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An ´alise Situacional II: aplicac¸ ˜ao

Nada melhor para saber como esse m ´etodo opera do que v ˆe-lo em funciona- mento. Popper (MF, pp. 166-8) nos d ´a o exemplo de Richard, o pedestre15. Imaginemos que Richard deseja atravessar a rua. Diversos elementos16 est ˜ao presentes nessa situac¸ ˜ao: autom ´oveis, outros pedestres, elemento f´ısicos que podem obstruir a passagem (como uma falha na calc¸ada ou uma ruptura na via), as regras de tr ˆansito, a sinalizac¸ ˜ao (elementos institu- cionais). Richard tem um objetivo e diversas barreiras (f´ısicas e institucionais) o constrangem a complet ´a-lo. Num modelo que assuma um conhecimento completo da situac¸ ˜ao, Richard to- maria conhecimento de todos os objetos (n ˜ao apenas dos que pode ver ou ouvir, mas tamb ´em

14Embora tenhamos falado em “leis sociais, Popper parece ter sido posteriormente demovido da ideia de que elas existam. No in´ıcio, ele nos apresenta (PH, pp. 56-7) diversos exemplos de pretensas “leis” sociais; contudo, os exemplos dados n ˜ao s ˜ao mais que meras tautologias (quando n ˜ao s ˜ao falsos – a maior parte dos exemplos vem da economia, e nenhum deles poderia ser garantido, por exemplo, numa economia socialista). Ele pr ´oprio parece ter percebido esse erro: apesar de ainda mencion ´a-las em The Open Society and Its Enemies (OSE I, p. 76, pp. 81-2), n ˜ao encontramos mais em sua obra trechos claros que sustentem que leis sociais (no molde das naturais) existam. Gorton (2006, p. 41) inclusive cita casos de amigos de Popper que, em conversas informais e em cartas, explicitam sua mudanc¸a, o que inviabilizaria sua posic¸ ˜ao. At ´e mesmo a crenc¸a de Popper no indeterminismo – especialmente no livre arb´ıtrio humano – n ˜ao poderia ser conciliada com leis sociais.

15N ˜ao nos enganemos ao ler o nome pr ´oprio e pensar que a an ´alise descreveria uma situac¸ ˜ao singular e n ˜ao um tipo de situac¸ ˜ao. O exemplo serve para descrever qualquer situac¸ ˜ao onde um agente deseje atravessar a rua, n ˜ao aquele agente espec´ıfico. Ele tem como objetivo a descric¸ ˜ao de uma situac¸ ˜ao padr ˜ao, mas esse modelo padr ˜ao pode (e provavelmente ser ´a) modificado para atender as peculiaridades de cada situac¸ ˜ao espec´ıfica. Apenas a partir desse novo modelo podemos sugerir qual seria a ac¸ ˜ao racional a ser tomada.

16Esse exemplo tamb ´em ajuda a clarificar como objetos do Mundo 3 podem atuar sobre o mundo f´ısico. Certos elementos f´ısicos, como a faixa de pedestre ou o sem ´aforo, s ˜ao, em primeiro lugar, construc¸ ˜oes te ´oricas (eles s ˜ao parte das regras de tr ˆansito) incorporadas em objetos f´ısicos.

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daqueles abstratos) e executaria seu objetivo da melhor forma poss´ıvel.

Frisamos a express ˜ao acima (diversas barreiras) pois ´e necess ´ario um pequeno desvio para retornar a um ponto j ´a anteriormente citado17. L ´a era poss´ıvel perceber uma mudanc¸a feita por Popper: primeiramente, ele definia instituic¸ ˜oes exatamente como barreiras que constrangem o agente a completar um objetivo; em seguida, afirma que elas funcio- nariam quase como barreiras. Essa inconsist ˆencia esconde uma d ´uvida ainda mais grave: Popper simplesmente ignora como uma instituic¸ ˜ao social impediria (ou permitiria) uma deter- minada ac¸ ˜ao. Instituic¸ ˜oes, assim como teorias, s ˜ao habitantes do Mundo 3; contudo, apenas instituic¸ ˜oes s ˜ao definidas como barreiras. Uma teoria, apesar de poder ser escrita na forma de uma proibic¸ ˜ao, n ˜ao nos impede de realizar qualquer ac¸ ˜ao, j ´a que a teoria apenas escla- rece quais ac¸ ˜oes ela (a teoria, e n ˜ao o mundo) pro´ıbe. J ´a com instituic¸ ˜oes nosso problema ´e maior. Um sem ´aforo impede algu ´em de atravessar uma rua caso esteja verde? N ˜ao, apesar de que, caso aceitemos a primeira interpretac¸ ˜ao (exatamente como barreiras), essa parec¸a ser a interpretac¸ ˜ao correta. ´E prudente n ˜ao atravess ´a-lo se n ˜ao queremos ser atropelados, mas n ˜ao h ´a uma proibic¸ ˜ao efetiva. Richard poderia atravessar a rua enquanto os carros pas- sam; recomenda-se que n ˜ao o fac¸a, mas n ˜ao ´e poss´ıvel impedi-lo (se ele decidir por isso). Existem sanc¸ ˜oes (sociais, legais e culturais) que constrangem o agente a seguir as regras vigentes na situac¸ ˜ao, mas, exceto em casos em que existe coerc¸ ˜ao ou incapacidade f´ısica, n ˜ao ´e poss´ıvel garantir que o agente vai seguir aquelas normas. Essa pequena mudanc¸a de voc ´abulo permite essas duas interpretac¸ ˜oes, embora consideremos que a segunda opc¸ ˜ao traz um n´ıvel maior de correc¸ ˜ao, j ´a que ela tornaria determinadas ac¸ ˜oes mais ou menos “atrativas”. Num certo sentido, as instituic¸ ˜oes continuariam a funcionar exatamente como barreiras, em- bora n ˜ao mais para proibir determinadas ac¸ ˜oes, mas para nos impedir de “ver” (assim como fazem teorias – se aceito teoria X, n ˜ao vejo determinados eventos que eu veria se aceitasse a teoria Y) determinadas ac¸ ˜oes poss´ıveis.

N ˜ao obstante a descric¸ ˜ao feita acima, deve-se levar em considerac¸ ˜ao a falta de conhecimento de algum desses fatores numa situac¸ ˜ao real. Caso Richard n ˜ao consiga atra- vessar a rua, a ele pode ter faltado o conhecimento de algum desses elementos. Numa situac¸ ˜ao ideal, ele caminharia at ´e a faixa de pedestre, esperaria a luz do sem ´aforo ficar ver- melha e atravessaria. Algu ´em que n ˜ao conhece as leis de tr ˆansito n ˜ao saberia que esse ´e o comportamento ideal a ser seguido. Um segundo problema ´e o fator indeterminado presente no estudo. Richard poderia seguir todas as regras e mesmo assim ser atropelado por um carro que n ˜ao respeitou o sinal para parar, ou esbarrar numa outra pessoa na calc¸ada e cair na pista. Enfim, os motivos podem ser os mais diversos, e conhec ˆe-los durante a formulac¸ ˜ao do modelo ´e uma tarefa imposs´ıvel. Apenas pela comparac¸ ˜ao do modelo ideal (completa racionalidade) com a situac¸ ˜ao real (onde Richard ´e atropelado), podemos descobrir onde a situac¸ ˜ao real falhou e buscar corrigi-la. ´E importante atentar que em momento algum nos

preocupamos se Richard atravessava a rua para ir ao trabalho ou para ir a uma lanchonete: seus fins s ´o entram na an ´alise enquanto elementos da situac¸ ˜ao proposta. Quaisquer ele- mentos psicol ´ogicos s ˜ao parte do modelo, n ˜ao uma caracter´ıstica particular do agente. Se estud ´assemos n agentes que atravessam ruas, cada um com seu fim particular, em nenhum momento o porqu ˆe deles atravessarem a rua seria relevante, mas apenas que eles desejam atravess ´a-la. Popper tem consci ˆencia disso e escreve:

Proponho tratar os objetivos e o conhecimento de Richard n ˜ao como fatos psicol ´ogicos a serem averiguados por m ´etodos psicol ´ogicos, mas como ele-

mentos de uma situac¸ ˜ao social objetiva. E proponho tratar seu objetivo psi-

col ´ogico real de alcanc¸ar o trem como irrelevante para a resoluc¸ ˜ao do nosso problema particular, que apenas exige que seu intuito - “seu objetivo situaci- onal” - seja cruzar a rua do modo mais r ´apido e seguro (MF, pp. 167-8, grifo do autor).

Mas e quando o objetivo do agente n ˜ao ´e cumprido? Como j ´a afirmado anterior- mente18, o ´unico ponto que ainda conserva uma t ˆenue unidade entre a an ´alise situacional e

o m ´etodo das ci ˆencias naturais ´e a presenc¸a da falseabilidade. Contudo, a exposic¸ ˜ao feita at ´e agora deixa cada vez claro que mesmo o elemento falseador ´e entendido de forma dife- rente. Como considerar a an ´alise situacional um m ´etodo cient´ıfico e ainda assim ser capaz de aceitar a falseabilidade ´e um problema que merece ser examinado.

Sabemos que os modelos da an ´alise situacional s ˜ao duplamente falsos. Por um lado, eles s ˜ao simplificac¸ ˜oes da realidade e, como tal, n ˜ao incorporam todos os elemen- tos presentes na situac¸ ˜ao, apenas aqueles necess ´arios para o exame naquele momento. Tamb ´em o princ´ıpio de racionalidade, necess ´ario para a formulac¸ ˜ao dos modelos, ´e falso, funcionando apenas como uma ferramenta metodol ´ogica para ajudar na construc¸ ˜ao. Da´ı surge o primeiro problema: como exigir o teste preciso de um modelo cuja pr ´opria formulac¸ ˜ao precisa da presenc¸a de um elemento falso? Precisamos do princ´ıpio de racionalidade para determinar quais aspectos do mundo ser ˜ao selecionados; se ele ´e falso, n ˜ao temos garantia de que esses aspectos s ˜ao os realmente relevantes para o caso em quest ˜ao. Em exemplos simples, como o de Richard, ´e f ´acil determinar quais aspectos s ˜ao necess ´arios para quest ˜ao e descobrir onde um poss´ıvel erro ocorreu; caso examin ´assemos um caso de interac¸ ˜ao entre pa´ıses, por exemplo, seria praticamente imposs´ıvel.

Um segundo problema ´e o fator interpretativo presente nas ci ˆencias sociais. Fal- sear teorias na ci ˆencia natural ´e f ´acil: comparamos nossa previs ˜ao com o fato objetivo do mundo; caso nossa previs ˜ao tenha falhado, a teoria ´e falseada. Mas a sociedade n ˜ao fun- ciona desse modo t ˜ao simples. A an ´alise situacional busca compreender uma ac¸ ˜oes dentro de um contexto social mais amplo, n ˜ao de maneira puramente causal, mas como um com- portamento adequado para a obtenc¸ ˜ao de certos fins. Nesse sentido, ela se aproxima muito