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Existe uma Refutac¸ ˜ao do Historicismo?

Pode parecer extraordin ´ario, mas, no pref ´acio21 de Poverty of Historicism, Popper afirma n ˜ao ter refutado o historicismo. Apenas posteriormente, ao estudar a quest ˜ao do inde- terminismo na f´ısica, ele foi capaz de formular um argumento que refuta a doutrina. At ´e ent ˜ao a cr´ıtica fora focada em demonstrar que o historicismo ´e um m ´etodo pobre, incapaz de for- necer os resultados que oferece, a saber, a descoberta de leis do desenvolvimento hist ´orico; contudo, uma refutac¸ ˜ao no plano puramente l ´ogico ainda n ˜ao havia sido alcanc¸ada.

N ˜ao obstante sabermos que uma teoria sempre carrega um car ´ater hipot ´etico, examinamos o mundo por meio delas, esperando que elas nos fornec¸am a chave para que possamos prever acontecimentos futuros com certeza – talvez ansiando descobrir uma teoria perfeita que nunca erre. Contudo, sabemos que elas n ˜ao s ˜ao mais que aproximac¸ ˜oes. Mesmo uma teoria extremamente corroborada at ´e o presente momento pode mostrar-se falsa em tempos vindouros. A f´ısica qu ˆantica – especialmente ap ´os as descobertas de Heisenberg – j ´a

21A obra foi publicada primeiramente na forma de artigos na revista Economica em 1943, da´ı isso somente ser constatado na primeira vers ˜ao em livro, datada de 1957.

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exemplifica tal fato: n ˜ao ´e nela poss´ıvel determinar com precis ˜ao absoluta todas as condic¸ ˜oes iniciais necess ´arias para o c ´alculo de uma previs ˜ao. Sem tais condic¸ ˜oes, convivemos lado a lado com a possibilidade de erros. Nosso futuro, ao contr ´ario do passado, ´e uma janela aberta e indeterminada. At ´e mesmo o senso comum compartilha dessa opini ˜ao. Essa assimetria entre o passado e o futuro – o primeiro inteiramente determinado, o segundo aberto – pode ser usado como o ponto de partida para provar que at ´e mesmo teorias tidas como deterministas oferecem raz ˜oes para acreditarmos no indeterminismo.

Ao afirmar que existe tal assimetria, se espera que ela esteja representada na estrutura da pr ´opria teoria f´ısica. Na relatividade geral esta exig ˆencia ´e plenamente satisfeita; nesta teoria existem, para qualquer observador, um passado e um futuro absoluto, separados por uma regi ˜ao de contemporaneidade poss´ıvel; na representac¸ ˜ao dada por Minkowski22esta exig ˆencia ´e satisfeita. Para examinar com mais detalhes como essa assimetria se comporta utilizaremos a ficc¸ ˜ao do dem ˆonio de Laplace.

Antes da exposic¸ ˜ao do argumento, s ˜ao necess ´arias algumas observac¸ ˜oes. Pri- meiro, deve-se lembrar que o argumento foi constru´ıdo na d ´ecada de 1950, onde a veloci- dade com a qual tom ´avamos conhecimento das informac¸ ˜oes era mais lenta do que a atual. Ent ˜ao, ao fazer a an ´alise, ´e necess ´ario levar em considerac¸ ˜ao que aquilo que Minkowski (e Popper) chamavam de “contemporaneidade” hoje pode ser conhecido de forma quase que instant ˆanea. Tenho acesso em poucos segundos a informac¸ ˜oes sobre a atual situac¸ ˜ao das duas Coreias, algo impens ´avel para algu ´em localizado no Brasil em 1950. Al ´em disso, o ar- gumento original foi constru´ıdo levando em considerac¸ ˜ao sempre as ci ˆencias naturais. Nas ci ˆencias sociais, nossas ac¸ ˜oes influenciam de forma mais marcante as ac¸ ˜oes daquele ambi- ente no qual estamos inseridos, podendo at ´e mesmo modific ´a-lo completamente. Por essas duas raz ˜oes, devemos entender o argumento aqui exposto com certa toler ˆancia23.

Para Laplace, o universo n ˜ao seria mais que pequenos corp ´usculos interagindo entre si de acordo com as leis da mec ˆanica Newtoniana. Um super cientista, chamado por ele de dem ˆonio, seria capaz de prever qualquer estado futuro caso dispusesse de todas as condic¸ ˜oes inicias necess ´arias, o estado inicial do mundo, utilizando-se apenas das leis de Newton. A ficc¸ ˜ao de Laplace “estabelece a doutrina do determinismo n ˜ao [como] uma verdade da religi ˜ao, mas da ci ˆencia” (OU, p. 30). O dem ˆonio n ˜ao ´e um deus onisciente ou algo do tipo: uma intelig ˆencia sobrehumana seria capaz disso (o dem ˆonio ´e uma idealizac¸ ˜ao do pr ´oprio Laplace). Um dem ˆonio constru´ıdo nesses moldes poderia at ´e mesmo responder uma pergunta que at ´e provoca diss´ıdios, o problema da interac¸ ˜ao de mais de dois corpos24. Da´ı

22Cf. fig. 4.1., p. 67.

23Ao analisar o cap´ıtulo 4, veremos que o pr ´oprio Popper leva em considerac¸ ˜ao essas ligeiras diferenc¸as entre as ci ˆencias naturais e sociais, pois sabe que, se existe uma unidade de m ´etodo, essa s ´o pode ser entendida de forma deveras abstrata.

24Newton acreditava que apenas um sistema com dois corpos poderia ser previsto com absoluta certeza: qualquer n ´umero acima desse criaria dificuldades insol ´uveis, j ´a que n ˜ao poder´ıamos examinar como os corpos

poder´ıamos definir uma teoria prima facie determinista do seguinte modo:

uma teoria f´ısica ´e prima facie determinista apenas se nos permite dedu- zir, a partir de uma descric¸ ˜ao matematicamente exata do estado inicial de um sistema f´ısico fechado e descrito de acordo com os termos da teoria, a descric¸ ˜ao, com um grau estipulado e finito de precis ˜ao, do estado do sistema em qualquer tempo futuro determinado (OU, p. 31, grifo do autor).

O dem ˆonio de Laplace, ent ˜ao, poderia transformar o determinismo numa disci- plina cient´ıfica. Mas mesmo dessa definic¸ ˜ao somos obrigados a assumir a verdade do de- terminismo? Nem mesmo exigimos que as previs ˜oes sejam matematicamente exatas (o que poderia trazer problemas para a teoria Newtoniana), mas o crit ´erio ser ´a relaxado de modo a inclui-la. Em primeiro lugar, ´e necess ´ario saber quais condic¸ ˜oes uma teoria exige para ser considerada prima facie determinista.

Primeiro, n ˜ao ´e exigido o conhecimento do mundo por uma “intuic¸ ˜ao” ou algo simi- lar: ´e assumido que os fatos do mundo ocorrem de acordo com leis e que podemos prev ˆe-los utilizando essas leis em conjunto com as condic¸ ˜oes inicias. O futuro deve ser racionalmente previsto por meio de teorias universalmente v ´alidas. Nem mesmo ´e preciso assumir que as condic¸ ˜oes iniciais t ˆem um valor matem ´atico absoluto, desde que o dem ˆonio, caso necess ´ario, possa diminuir a imprecis ˜ao das suas medic¸ ˜oes a um n´ıvel m´ınimo. Segundo, o cientista (ou “dem ˆonio”, no caso de Laplace) pertence ao mundo, e portanto est ´a sujeito `as mesmas leis que regem os fatos e pode interferir neles. As previs ˜oes devem ser feitas de dentro do sistema. Logo o dem ˆonio tem poderes que, em princ´ıpio, n ˜ao s ˜ao superiores ao de nenhum outro humano. Talvez Laplace tenha idealizado o dem ˆonio dessa forma para evitar poss´ıveis cr´ıticas: caso ele fosse localizado fora do sistema poderia ser considerado onisciente, o que inviabilizaria a tentativa de Laplace de provar que o sistema ´e inteiramente previs´ıvel de den-

tro. Mas o determinismo cient´ıfico (o que Laplace pretende provar) pode ser deduzido de uma

teoria prima facie determinista? Notemos que existe uma ligeira diferenc¸a entre uma teoria

prima facie determinista e o determinismo cient´ıfico: a primeira exige que a nossa teoria se

comporte como determinista (e todas as nossas teorias s ˜ao de fato prima facie deterministas, j ´a que elas assumem que o mundo ´e um sistema fechado e inteiramente previs´ıvel25), en- quanto o segundo afirma que o mundo ´e determinado e pode ser previsto com qualquer grau de precis ˜ao.

Nosso primeiro argumento ´e puramente l ´ogico, e lida com a diferenc¸a entre deter-

interagiriam entre si.

25Isso ´e inclusive necess ´ario para que elas sejam bem sucedidas. Caso formul ´assemos uma teoria que trata o mundo como algo completamente indeterminado, qualquer tentativa de explicac¸ ˜ao seria fadada ao fracasso j ´a do in´ıcio, pois para qualquer tipo de previs ˜ao de um evento do mundo precisar´ıamos, inicialmente, de uma lei que explicasse como essas mudanc¸as causadas pela indeterminac¸ ˜ao ocorrem, o que nos levaria a um regresso ad infinitum: preciso explicar um evento de um mundo indeterminado, logo preciso explicar como a mudanc¸a causada pela indeterminac¸ ˜ao ocorre, para em seguida tentar explicar o evento de um mundo indeterminado, e assim sucessivamente.

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minismo e teorias deterministas. J ´a foi debatido extensamente sobre teorias e sobre a criac¸ ˜ao de teorias, e esse ´e justamente nosso ponto de partida. Nossas teorias s ˜ao instrumentos26

que utilizamos para descobrir a verdade do mundo. Se lembramos que elas s ˜ao criadas por n ´os, teremos poucos motivos para achar que seu car ´ater prima facie determinista corres- ponde a um determinismo do mundo. “A simplicidade de algumas das nossas teorias – que s ˜ao de nossa autoria – n ˜ao implica a intr´ınseca simplicidade do mundo” (OU, p. 43). O car ´ater

prima facie determinista de uma teoria ´e diretamente ligado `a sua simplicidade. Antes de mais

nada, n ´os escolhemos quais caracter´ısticas fazem parte (e quais n ˜ao fazem) do estado do sis- tema. Ou seja, quais objetos podem ser desprezados do estudo. Quanto mais f ´acil ´e para n ´os testar uma teoria, mais simples ela ´e: da´ı ser, aparentemente, determinista, embora em nenhum momento seja afirmado que o mundo o ´e. E al ´em disso, mesmo que descobr´ıssemos a teoria verdadeira do mundo – aquela inteiramente verdadeira e capaz de explicar todos os fen ˆomenos – como poder´ıamos saber que ela ´e verdadeira? N ˜ao saber´ıamos: nossa teoria ainda manteria seu car ´ater hip ´otetico e nunca poder´ıamos garantir sua validade absoluta.

O segundo argumento ´e de ordem t ´ecnica e se baseia na relatividade geral27.

Partimos da j ´a dita assimetria entre um passado determinado (j ´a que ´e aquilo que aconteceu) e um futuro indeterminado (pois ainda pode acontecer). Antes de prosseguir, um aviso: o argumento tomado por Popper como modelo foi criado com base na f´ısica. Devemos ter em mente que sua explicac¸ ˜ao nas ci ˆencias sociais deve ser entendida de maneira mais “frouxa”, isto ´e, n ˜ao entendido de maneira literal. Como Minkowski o cria, seria apenas o tempo em que a luz leva at ´e ser emanada de ponto (ou refletida, no caso de observadores que n ˜ao s ˜ao fontes de luz), chegar at ´e um segundo ponto e refletir de modo que o primeiro ponto a capte (caso seja um observador, at ´e que ele o “conhec¸a”)28. Logo, falamos de um tempo equivalente

a micro (10−6 s) ou nanosegundos (10−9 s). No ˆambito social n ˜ao poder´ıamos falar de algo t ˜ao r ´apido a ponto de atingir velocidade similar, embora, com a velocidade de propagac¸ ˜ao da informac¸ ˜ao atual, ainda atinja uma velocidade espantosamente r ´apida.

Podemos representar a assimetria pela figura 4.1. a seguir. No diagrama, o ponto

P representa um observador (ou como Popper prefere chamar, um “sistema inercial local”

(OU, p. 57); todos os pontos `a esquerda de P representam seu passado, enquanto todos `a direita representam seu futuro. Essas duas ´areas est ˜ao separadas por uma regi ˜ao de contemporaneidade poss´ıvel. Qualquer ponto localizado no passado de P ´e capaz de, por meio de influ ˆencias f´ısicas, afetar o futuro de P:

26E importante n ˜ao confundir com a vis ˜ao instrumentalista, que toma as teorias apenas como instrumentos,´ importando-se somente com a funcionalidade – e n ˜ao com a verdade – delas.

27Cf. especialmente MINKOWSKI, 2001, para detalhes sobre o diagrama. N ˜ao o discutiremos a fundo pelo excesso de literatura sobre tal assunto.

28O experimento permite uma conclus ˜ao interessante. Como s ´o conhecemos algo quando a luz emanada ou refletida nele chega at ´e n ´os, podemos dizer que todos os eventos dos quais tomamos conhecimento j ´a est ˜ao no passado. Mesmo em dois pontos tomados como contempor ˆaneos, sempre aquilo que conhecemos j ´a aconteceu frac¸ ˜oes de segundo antes de tomarmos conhecimento dele.

essa assimetria [entre passado e futuro] ´e estabelecida pelo fato de a partir de qualquer lugar no “passado” uma cadeia causal f´ısica (por exemplo, um sinal luminoso) poder alcanc¸ar qualquer lugar no “futuro“; mas a partir de nenhum lugar no “futuro” pode semelhante efeito ser exercido sobre qualquer lugar do passado (OU, p. 58).

Figura 4.1.: Representac¸ ˜ao da assimetria temporal.

Tempo

P

Passado Futuro

Contemporaneidade

Contemporaneidade

Logo, pelo exame da figura 1, a n ´os fica evidente que o futuro ´e inteiramente aberto (indeterminado), enquanto nosso passado ´e fechado (ou determinado). Vamos `a figura 4.2. para examinar mais detalhadamente essa afirmac¸ ˜ao:

Figura 4.2.: Impossibilidade da previs ˜ao precisa.

Tempo P F C Passado Futuro Contemporaneidade Contemporaneidade

Diga-se que desejamos calcular uma previs ˜ao do ponto F. Para ter sucesso em tal tarefa, precisar´ıamos conhecer todos os pontos `a esquerda de F. Se estivermos em P essa previs ˜ao ´e imposs´ıvel, j ´a que F tem em seu passado diversos pontos, como C, que n ˜ao pertencem `a ´unica regi ˜ao da qual podemos ter conhecimento, o passado de P. “Em consequ ˆencia dessa assimetria entre passado e futuro, a relatividade especial j ´a n ˜ao ´e prima

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facie determinista no sentido pleno atr ´as descrito [...] na relatividade especial j ´a n ˜ao h ´a um

dem ˆonio laplaciano” (OU, p. 60). Expliquemos esse exemplo com mais detalhes.

Imagina-se (de acordo com a fig. 4.2.) que um dem ˆonio laplaciano localiza-se em algum lugar do espac¸o e possui todas as condic¸ ˜oes inicias de um espac¸o suficientemente grande (mas n ˜ao ilimitado) que inclua o ponto C. Na figura seguinte (fig. 4.3.) a regi ˜ao a qual o dem ˆonio tem conhecimento ´e representada pela reta R:

Figura 4.3.: Representac¸ ˜ao do dem ˆonio laplaciano.

Tempo P F C Passado Futuro Contemporaneidade Contemporaneidade F1 R R

Para prever o estado de F, a reta deveria chegar pelo menos `as linhas tracejadas que representam o passado de F (como efetivamente chega na figura 4.3.). Mas vamos imaginar que o dem ˆonio laplaciano tem um conhecimento ainda maior (representado pela reta R29). A partir dos pontos aos quais o dem ˆonio tem acesso, podemos calcular, na figura

4.3., o ponto exato onde ele estaria para ser capaz de possuir todo o conhecimento dessa estado de coisas, nesse caso o pontoF1. Mas ao calcular esse ponto, vemos que o dem ˆonio, ao calcular o estado de F, calculou apenas um acontecimento do seu pr ´oprio passado: ele

fazia n ˜ao uma previs ˜ao, mas uma retrovis ˜ao, j ´a que ele precisaria estar no pontoF1 (ou seja, no futuro de F) para reunir essa quantidade de informac¸ ˜ao. Poder´ıamos ainda prolongar a reta R infinitamente para o dem ˆonio ser capaz de calcular qualquer acontecimento. Mas esse caso s ´o poderia acontecer se o dem ˆonio estivesse num futuro infinito, de modo que qualquer acontecimento pertencesse ao seu passado.

Ou seja, podemos provar que uma teoria prima facie determinista n ˜ao pode ser usada para apoiar o determinismo cient´ıfico, j ´a que ela n ˜ao obedece as duas condic¸ ˜oes que estabelecemos no in´ıcio deste ponto. Primeiro, todas as suas previs ˜oes deveriam ser inter-

29Essa reta representa a ´area de informac¸ ˜ao necess ´aria para a previs ˜ao do estado de F; contudo, tamb ´em poderia ser entendida como um observador extenso. Popper n ˜ao utiliza esse segundo argumento (do observador extenso), limitando-se apenas a considerar a reta R uma regi ˜ao de informac¸ ˜ao requerida.

pretadas como retrovis ˜oes. Segundo, ele n ˜ao satisfaz o requisito da previsibilidade a partir de dentro (j ´a que o previsor precisaria estar num ponto no futuro de F para calcular seu estado). Mas ainda h ´a um outro argumento, esse dirigido diretamente ao historicismo.

N ˜ao sabemos certas informac¸ ˜oes a respeito de n ´os mesmos, isso ´e um fato. Di- ante disso, somos obrigados a aceitar que “n ˜ao podemos prever, cientificamente, resultados

que vamos obter no decurso do crescimento do nosso pr ´oprio conhecimento” (OU, p. 62, grifo

do autor). Outra pessoa, desde que n ˜ao interfira em n ´os, seria capaz de prever tal cresci- mento30. Poder´ıamos pensar num exemplo: digamos que um cientista examina uma crianc¸a

e tenha informac¸ ˜ao completa acerca de todas as suas capacidades cognitivas e sobre todas as influ ˆencias que a crianc¸a vir ´a a ter num futuro pr ´oximo (vamos estabelecer um tempo curto nesse caso, um m ˆes). O cientista poderia prever o que a crianc¸a iria aprender de acordo com essas influ ˆencias. Sim, Popper aceita isso. Mas, nesse caso, o previsor estaria localizado fora do sistema, o que fere as exig ˆencias do determinismo cient´ıfico. Estamos preocupados em mostrar que n ˜ao conseguir´ıamos prever de dentro o crescimento do nosso pr ´oprio conheci- mento. Apenas se a pr ´opria crianc¸a, conhecendo os mesmos dados, pudesse prever o que saberia ao final de um m ˆes, o determinismo cient´ıfico poderia ter validade31

Popper apresenta o argumento da seguinte forma:

1. O curso da hist ´oria humana ´e fortemente influenciado pelo crescimento do conhecimento humano [. . . ]

2. N ˜ao podemos prever, por meio de m ´etodos cient´ıficos ou racionais, o crescimento futuro do nosso conhecimento cient´ıfico [. . . ]

3. Por consequ ˆencia n ˜ao podemos prever o curso futuro da hist ´oria hu- mana.

4. Isto significa que devemos rejeitar a possibilidade de uma hist ´oria teor ´e-

tica, isto ´e, de uma ci ˆencia hist ´orica correspondente a uma f´ısica teor ´e- tica. N ˜ao pode haver uma teoria cient´ıfica do desenvolvimento hist ´orico

servindo como base para a previs ˜ao hist ´orica

5. O principal objetivo dos m ´etodos historicistas [. . . ] ´e, portanto, errado; o historicismo sucumbe (PH, Pref ´acio, pp. xi-xii, grifo do autor).

O cerne do argumento ´e o ponto 2., “n ˜ao podemos prever, por meio de m ´etodos cient´ıficos ou racionais, o crescimento futuro do nosso conhecimento cient´ıfico” (PH, Pref ´acio, p. xii)32. O historicismo exige que possamos prever (sabendo as condic¸ ˜oes iniciais e as leis hist ´oricas) quais os desenvolvimentos futuros que a hist ´oria ter ´a de qualquer ponto de dentro

do sistema. Mas como conseguir´ıamos prever hoje o que s ´o iremos saber amanh ˜a? Nesse

caso n ˜ao far´ıamos uma previs ˜ao, j ´a que saber´ıamos hoje daquilo que seria o objeto da nossa

30Supondo que sejamos um sistema fechado, o que n ˜ao ´e o caso.

31E mesmo nesse caso a crianc¸a n ˜ao fez uma previs ˜ao. Se hoje digo que sei o que saberei daqui a um m ˆes, ent ˜ao eu n ˜ao “previ” o que saberia pois eu j ´a o sei.

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previs ˜ao. Por isso, um cientista capaz de prever suas pr ´oprias previs ˜oes n ˜ao passa de uma impossibilidade. Como o historicismo exige que possamos prever tamb ´em o crescimento do nosso conhecimento (j ´a que a sociedade ´e fortemente influenciada por este), sua expectativa de prever o futuro da humanidade ´e fadada ao fracasso desde o in´ıcio.

Podemos argumentar que ´e imposs´ıvel prever um estado futuro do nosso conheci- mento por meio de infer ˆencias dedutivas com um argumento relativamente simples, e portanto atestar a validade do ponto 2.. Supondo que temos conhecimento te ´orico perfeito e condic¸ ˜oes iniciais precisas de um estado qualquer, a tarefa de previs ˜ao seria resumida a um c ´alculo. Mas ´e mesmo poss´ıvel prever qualquer estado do nosso conhecimento futuro por esse m ´etodo? Claro que o argumento ´e dirigido apenas a quaisquer formas de previs ˜ao cient´ıfica; sabe- mos que certas pessoas acreditam em outros meios de previs ˜ao do futuro (astrologia, tar ˆo, sonhos, etc.), mas estes n ˜ao s ˜ao investigados por n ˜ao serem cient´ıficos. A prova ser ´a apre- sentada utilizando computadores33. Essa forma ´e uma concess ˜ao dada por Popper ao seus advers ´arios (OU, p. 69), pois um computador ´e um objeto f´ısico e nem mesmo precisamos pressupor a exist ˆencia de uma mente humana para tal tarefa. Al ´em disso, tudo que ´e v ´alido para um computador tamb ´em ´e v ´alido, com algumas pequenas modificac¸ ˜oes, para previsores humanos.

Comecemos descrevendo o computador como programado para conter todas as leis universais e todos os m ´etodos de c ´alculos l ´ogicos e matem ´aticos34. O computador so- mente poder ´a ser estimulado a uma tarefa de previs ˜ao, ou seja, “iniciar seu trabalho”, se estiver em seu estado inicial – o estado zero –, quando ent ˜ao sofre um est´ımulo (um procedi- mento padr ˜ao) e inicia seu trabalho (n ˜ao sendo mais perturbado por qualquer outro est´ımulo), s ´o parando ao complet ´a-lo. A tarefa de previs ˜ao consiste na descric¸ ˜ao do estado do sistema em seu in´ıcio (t0=0) e a descric¸ ˜ao de um instante futuro de tempo a ser determinado pela ta- refa (t1). Como uma simplificac¸ ˜ao, assumimos tamb ´em que o computador, ap ´os fornecer sua resposta, regressa ao seu estado inicial. J ´a que falamos em computadores, e para tornar a tarefa de previs ˜ao, de certo modo, mais ”palp ´avel”, digamos que a tarefa de previs ˜ao (a tarefa propriamente dita mais as condic¸ ˜oes iniciais relevantes) ´e fornecida num arquivo escrito numa linguagem padr ˜ao35, o arquivo tarefa36. A resposta ´e produzida num arquivo semelhante, o arquivo resposta37. Ao completar sua tarefa o computador ´e composto por duas partes: o

computador propriamente dito (em seu estado inicial) e o arquivo resposta.

33O argumento foi ligeiramente modificado para adequ ´a-lo `a nossa realidade. Popper o formula no final da d ´ecada de 1950 em sua obra Open Universe (editada em livro somente no comec¸o da d ´ecada 1980), de modo que eram usadas m ´aquinas ainda similares `as m ´aquinas de escrever. Como hoje estas n ˜ao s ˜ao mais utilizadas,