• Nenhum resultado encontrado

Com a Graça de Deus O Humano como Condição para a Plenitude do Divino

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "Com a Graça de Deus O Humano como Condição para a Plenitude do Divino"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Resumo: o presente trabalho constitui-se de um substrato de minha tese de Doutoramento, intitulada “O mito cristão na literatura”, onde são observadas e analisadas as relações e o diálogo entre Teologia e Literatura. Neste trecho, o objeto é o romance de Fernando Sabino, “Com a graça de Deus”, no qual o autor retoma pela via da literatura o texto sagrado dos evangelhos bíblicos e procura desmistificar a imagem tradicional de um Jesus distante e severo, apresentando uma narrativa inspirada no humor de Jesus, como estratégia de humanização do divino e aproximação do homem comum.

Palavras-chave: favor/graça, humor, Jesus, humano, divino Andréa Beatriz Hack de Góes

“com a graça de deus”

N

ão obstante o prestígio e relevo que a Religião volta a adquirir, de maneira geral e aberta na atualidade, ainda persiste a idéia tácita e por vezes até diretamente declarada, de que fé e razão não podem coexistir, de que a admissão ou confissão religiosa de algum intelectual, principalmente se for ele ligado à área das ciências, automaticamente gera questionamentos sobre sua produção artística ou científica, ao ponto de ter seu valor desacreditado, é com certeza um tabu carregado de preconceitos, resquício persistente do abismo sulcado pelo Iluminismo, que separou peremptoriamente religião e ciência, fé e razão. Prova disso é o elevado número de intelectuais, cientistas e estudiosos, cuja obra é mundialmente reconhecida e respeitada, e que declararam abertamente possuírem uma fé religiosa, seja ela cristã ou não.

Um exemplo que cabe nesse ínterim é o do famoso escritor brasileiro Fernando Sabino1, natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, em cuja vasta

o humano como condição para a plenitude

(2)

obra literária se destacam romances premiados e inúmeras crônicas que o tornaram popularmente conhecido e admirado. Em seu livro Com a graça

de Deus (1994), ele se declara abertamente um cristão, e confessa ser essa

sua obra uma espécie de tributo a Deus, “leitura fiel do Evangelho inspi-rada no humor de Jesus”, estritamente baseado nos evangelhos bíblicos, o que expressa sua aceitação dos mesmos, tanto como textos sagrados da religião cristã quanto como registros fidedignos da existência e ministério de Jesus Cristo.

Apesar de sua declarada fidelidade e observância do texto bíblico, a perspectiva adotada por Sabino nesse livro enfatiza de maneira singular e quase lírica a humanidade do personagem Jesus, não como fator de di-minuição ou questionamento de sua condição divina enquanto “Filho de Deus”, situação essa largamente afirmada nos textos canônicos do Novo Testamento, mas, pelo contrário: segundo a leitura que o escritor faz das atitudes e posturas adotadas por Jesus ao longo dos variados episódios que o envolvem nos evangelhos, é justamente a percepção e observação de caracte-rísticas e sentimentos notadamente humanos que o tornam mais profunda e definitivamente divino. Sabino demonstra encantamento ao apresentar um Jesus às voltas com sentimentos tais como alegria, raiva, tristeza, emo-ção, e toda a sua gama de contradições, tão comuns e corriqueiras para qualquer mortal, mas absolutamente surpreendentes na divindade cristã, tradicionalmente vista como superiora, acima e imune a tais querelas, tão prosaicas e... humanas.

Dentro das religiões pagãs e politeístas são comuns as divindades representadas por animais, e também as identificadas com seres hu-manos, e, portanto, sujeitas aos sentimentos e atitudes sumariamente humanos, inclusive de natureza extremamente passional e negativa, como paixão, ciúme, vingança, egoísmo, vaidade, cólera, entre outros. Na cultura helênica, por exemplo, há uma variedade de deuses e deusas que compartilham de muitas características, atitudes e sentimentos humanos, chegando inclusive a apaixonar-se, envolver-se amorosamen-te e até amorosamen-ter filhos com humanos, o que é o caso do mito de Hércules, filho de Zeus, o maioral entre os deuses do Olimpo, com uma mulher. A identificação é tão forte nesse exemplo que a única diferença entre as divindades e os seres humanos que as cultuam e adoram é a condição de imortalidade de que gozam as primeiras.

Até mesmo o Deus de “J”, conforme descreve Harold Bloom, ironi-camente: “é humano demais: come e bebe, muitas vezes perde a paciência, delicia-se com suas travessuras, é ciumento e vingativo, proclama sua

(3)

im-parcialidade enquanto joga constantemente com favoritos [...] (BLOOM, 1994, p. 15). Contudo, segundo afirma o crítico literário Karl Josef Kuschel (1999, p. 23, grifos do autor), em seu livro Os escritores e as Escrituras, no qual ele aponta o diálogo possível entre Teologia e Literatura:

até o século XX a literatura é vista freqüentemente como intromissão injuriosa na esfera religiosa, talvez até mesmo como blasfêmia contra a qual a religião institucionalizada precisa defender-se; não muito raramente, teólogos cristãos referiram-se a textos literários como insolências piedosas, como panorama do mal..

Assim, o fato cada vez mais comum nos estudos acadêmicos que bus-cam relacionar Teologia e Literatura, que é considerar a Bíblia como uma vasta e complexa obra literária, e Deus, e mesmo Jesus, como personagens centrais dessa obra, ainda escandaliza e indigna muitos fiéis e lideranças eclesiásticas tradicionais, que consideram essa postura uma heresia que difama e ofende a santidade da divindade cristã. Situação similar, e com respostas ainda mais radicais e violentas, ocorre na terceira das maiores religiões mundiais: o Isla-mismo. Vários autores e estudiosos já foram execrados e inclusive ameaçados de morte por se referirem a Alá e ao Corão, texto sagrado muçulmano, em termos seculares, acadêmicos e artísticos. Um dos exemplos mais conhecidos nesse sentido é a obra Os versos satânicos, de Salman Rushdie (1998), que lhe rendeu sérios problemas como o governo do Irã, que queria condená-lo à morte por ter ele questionado preceitos e valores pregados e praticados pela religião muçulmana. Outro caso notório, que merece ser mencionado, já no contexto da religião cristã, principalmente católica, foi o romance do escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, O evangelho

segundo Jesus Cristo, de 1991, que provocou grande repercussão mundial e

acirrada rejeição da Igreja Católica, que ameaçou excomungá-lo. Isso porque, nessa obra, o escritor desconstrói incisivamente as duas principais figuras do Cristianismo: Deus e Jesus.

No romance saramaguiano, Deus é apresentado como uma divin-dade cruel e egoísta, sequiosa pela glória a qualquer preço, e que para tanto dispõe implacavelmente da vida dos seres humanos e até mesmo de seu próprio filho, Jesus. Este, por sua vez, é retratado como um ser confuso e vacilante, que resiste e se opõe a sua missão, mas por fim acaba se rendendo aos desígnios egocêntricos e inescapáveis de Deus. Outro mito muito caro aos cristãos católicos, e que Saramago simplesmente lança por terra, é o da virgindade de Maria. Jesus é apresentado como filho carnal de José, e a

(4)

relação sexual que deu origem à sua concepção é relatada no romance em seus detalhes mais crus e viscerais, o que por outro lado, também renega o mito da concepção espiritual divina do Messias2.

Através do breve detalhamento desse exemplo, torna-se claro e latente o poder que a Literatura, valendo-se da liberdade que seu caráter ficcional lhe proporciona, tem de reiterar, questionar, colocar em xeque e até mesmo derrubar pressupostos, paradigmas, dogmas e mitos.

No que se refere à curiosa questão da humanização do mito cristão, não como forma de questionar nem tampouco negar sua divindade, pelo contrário, para reafirmá-la e enfatizá-la, é possível identificar esse traço comum na postura de José Saramago e Fernando Sabino, um ponto de interessante convergência entre o Jesus angustiado de O evangelho segundo

Jesus Cristo e o Cristo passional e empírico de Com a graça de Deus.

Obviamente que o paralelismo sugerido entre as duas obras acaba por aí. Diferente da polêmica quase hostil e perturbadora provocada pelo livro de Saramago, tendo em vista as muitas outras personagens do texto sagrado que são revistas, desconstruídas e reconstituídas de maneira ousada e surpreendente, entre elas o próprio Diabo, o texto de Sabino é concordemente pautado pelo texto sagrado, de maneira muito pontuada e detalhada, como se verá adiante. Contudo, pode-se concluir que tanto um quanto o outro, a partir da perspectiva humanizadora com que concebem e tratam a personagem Jesus em suas respectivas obras, buscam aproxi-má-lo do homem comum, identificando um com o outro pelo caminho inverso que o próprio homem tem trilhado através dos séculos, na tentativa sempre frustrada de achegar-se a Deus. Sintetizando, em outras palavras: já que, não obstante todos os seus mais obstinados e extremados esforços, o homem não consegue jamais se tornar bom, puro e santo o suficiente para alcançar a Deus, então a solução é tornar Deus mais humano, de modo que Ele venha ao encontro do ser humano. O interessante e quase irônico em tudo isso é que, segundo os próprios evangelhos canônicos, Deus mesmo já havia imaginado e concretizou essa “solução”, conforme atesta o evangelista João, logo no início de seu livro:

1 No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. 2 Ele estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. [...] 14 E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai (Jo 1, 1-3, 14)3.

(5)

Não obstante sua linguagem acentuadamente simbólica, algo enig-mática, nesse trecho do texto bíblico Jesus é apresentado como o próprio Deus, cuja existência é eterna, e se faz presente desde a criação do mundo, e agora “encarna-se”, ou seja, recebe um corpo carnal, humano (em oposição a Deus, que é Espírito – conforme 2ª Coríntios 3:17, já citado), e mortal, e penetra na existência humana de maneira integral, tanto que vem ao mundo da mesma forma que todos os demais seres humanos: nascido de uma mu-lher, como um bebê frágil e completamente dependente. O apóstolo Paulo é ainda mais direto e enfático ao descrever a maneira como Deus escolheu vir ao encontro do homem:

6 pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; 7 antes, a sim mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. (Fp 2: 6-8).

Nesse trecho, a infinita superioridade divina sobre a corpórea e limi-tada vida humana é mais uma vez reiterada, o que inclui a supremacia da morte sobre a mesma, da qual nem o próprio Jesus escapa, o que talvez seja prova ainda maior da sua assumida condição humana, do que seu humilde nascimento infantil.

Contudo, apesar das declarações explícitas contidas nesses e em muitos outros textos bíblicos, asseverando a dupla natureza de Jesus Cristo, a divina e a humana, coexistindo nele, a tradição religiosa concebida e propalada pela Igreja, principalmente, sempre fez questão de manter em torno dele uma espécie de “aura” de distanciamento, que acabou se constituindo numa verdadeira barreira que inibia e até mesmo impedia o acesso a Ele, a não ser, é claro, através do canal da Igreja, da Religião enquanto instituição. A própria imagem algo etérea, constantemente séria, coercitiva e formal do Cristo veiculado pelo cinema, desde o início do século XX, na maioria das vezes, salvo algumas exceções, também corroborou em perpetuar no inconsciente coletivo a idéia de um Deus distante, impessoal, que aparentemente nada mais tinha em comum com o homem do que sua “casca” física. É provável que seja como resposta contra esse tabu, pelo qual a Igreja enquanto ins-tituição é muito responsável, e que contradiz o próprio texto bíblico, que o “Cristo alternativo” concebido pela Literatura, imaginado por escritores como José Saramago e Fernando Sabino, tenha surgido. Um Cristo mais próximo, mais humano, mais contraditório até, não apenas descido do céu,

(6)

mas também do pedestal onde foi colocado e encerrado, muitas vezes mais por interesses pessoais de utilizar sua imagem para manipular o povo, do que por sinceros respeito e devoção, e infelizmente, tal prática foi (e ainda é!) realizada justamente por aqueles que se auto-proclamam seus represen-tantes terrenos, como é o caso de muitas igreja e religiões, na pessoa de seus líderes e autoridades eclesiais.

Conforme atesta justamente uma autoridade religiosa, bastante conhecida e respeitada, o monge beneditino Dom Timóteo4, ex-Abade do Mosteiro de Salvador, e prefaciador de Com a graça de Deus (1994): Fer-nando Sabino não está preocupado em retratar Jesus como um personagem histórico, como muitos já o fizeram; tampouco pode-se considerar esse livro como uma biografia detalhada e fiel. O objetivo é justamente apresentá-lo “como homem verdadeiro, que é ao mesmo tempo um Deus verdadeiro” (SABINO, 1994, p. 7-8). Mais uma vez dando ênfase à condição humana de Jesus, privilegiada por Sabino (1994, p. 8, grifo nosso) em sua obra, afirma ainda o religioso:

Seu sentimento cristão, servido pela vocação de escritor, leva-o a apresentar um Jesus resgatado da etérea ficção [...] com que a devoção comum costuma mitificar o Salvador. Consegue reumanizar o Cristo recorrendo apenas aos Santos Evangelhos Canônicos, e não a escritos gnósticos, que professam um Cristo divino e transcendente, conce-bido à custa do eclipse de sua humanidade. É maravilhoso assistir a este encontro de duas vertentes: a ‘verdade’ dos Livros Santos e a imaginação criadora do escritor.

No prefácio do livro, Dom Timóteo ainda menciona que, talvez mes-mo sem querer (ou sem saber!), a postura adotada por Fernando Sabino em relação à dupla natureza de Jesus, a humana e a divina, ambas coexistindo em equilíbrio e harmonia, se coaduna com as decisões dos grandes Concí-lios da Igreja do século IV, os quais deram, já com terminologia filosófica e intelectual, uma definição organizada para esse mistério de Cristo, o de suas duas naturezas numa só personalidade: a Pessoa do Verbo (conforme o Evangelho de João, capítulo 1, versículos 1 e 14, já citados), e segunda pessoa da Santíssima Trindade5.

Mas, o que vem a ser essa “graça de Deus”, tão propalada e com tanta veemência por Fernando Sabino nessa sua obra?

No contexto bíblico e religioso, de um modo geral, “graça” implica em favor, ou mercê, e está relacionada diretamente ao perdão, à salvação,

(7)

regeneração, misericórdia... sempre partindo de Deus para os seres humanos. Em outras palavras, “graça” significa um dom, um favor absolutamente imerecido, concedido gratuitamente por Deus ao homem, mesmo porque é impossível (e desnecessário, no caso de Deus), retribuí-la.

Já relacionada à cultura brasileira, e mais especificamente, ao autor em questão, “graça” pode denotar humor, no sentido de comicidade, riso, gracejo; supõe-se instintivamente um desdobramento irônico de “espiritual” para “espirituoso”, em se tratando de Fernando Sabino. Mas e em relação a Jesus? Será que tal idéia cabe sequer ser considerada?

Logo na apresentação de seu livro, o próprio autor faz questão de discorrer e esclarecer tal querela, ao tempo em que expõe o propósito e a perspectiva algo original de sua obra. Ele rapidamente antecipa e assim previne um possível equívoco que a palavra “graça”, contida no título do romance, pode suscitar, especialmente quando relacionada a sua pessoa e principalmente à veia cômica que perpassa sua obra quase como um todo, ou ao menos a mais conhecida do público em geral: suas crônicas. Para Sabino, “humor”, palavra que mesmo assim ele imediatamente relaciona à “graça”, é muito mais do que humorismo, no que se refere à comicidade, riso, ao que é engraçado. O humor abarca também o estado de espírito, a disposição de ânimo, até mesmo o temperamento, isso em termos mais psíquicos e da personalidade individual de cada um. Segundo o autor, a própria expressão “senso de humor” não se restringe ao que é engraçado ou divertido, mas diz também do aspecto negativo e pessimista, amargo de muitas pessoas, consideradas “humoradas” (naturalmente que podem ser “bem” ou “mau” humoradas, ou até mesmo as duas coisas, obviamente que em diferentes momentos.

Pode-se concluir, a partir de Fernando Sabino mesmo, que o humor (também o de natureza fisiológica) faz parte do ser humano. E Jesus, enquan-to humano, também estava sujeienquan-to a ele (o humor) e suas vicissitudes, tão comuns e singulares para cada pessoa, independente de sua raça, condição econômica, histórica, geográfica e cultural. E é justamente essas caracterís-ticas que o fazem mais parecido e mais próximo ao homem natural, que a igreja e suas lideranças, desde os tempos mais remotos de seu surgimento, sempre relutaram em aceitar, procurando sempre contorná-las, ocultá-las, como se através delas a natureza divina de Jesus viesse a ser degradada, prejudicada, e houvesse desrespeito a sua santidade. Dessa forma, o autor faz um trocadilho com a palavra graça, deslocando seu sentido sagrado, comum ao contexto religioso de utilização, e realiza sua primeira descons-trução crítica, já no título da obra: sugere que, sem abandonar esse referido

(8)

contexto, normalmente tão sério e austero, “graça” pode também se referir a cômico, ao que é engraçado e hilário. Em outras palavras, a religião pode ser também algo alegre, sem prejuízo de seu valor e importância.

Em Com a graça de Deus, Fernando Sabino parece estar empenhado em quebrar esses verdadeiros dogmas que convencionaram a imagem de Jesus na coletividade como a de um “ser dramático, arrebatado e mesmo intole-rante, sempre a investir contra os ímpios, insensível a qualquer dos aspectos espirituosos desta vida. No outro extremo, a tradição impôs uma figura celestial do Nazareno, o Bom Pastor dos santinhos e dos livros de catecismo” (SABINO, 1994, p. 12). Porém, conforme ele mesmo destaca, o fato de os momentos prosaicos e triviais da vida de Jesus terem sido ignorados e talvez até propositadamente omitidos, isso não significa que eles simplesmente não existiram. E é nessa “brecha”, inusitada e fértil de possibilidades, que o autor envereda para atingir sua meta de trazer, em primeiro lugar a si mesmo, e também a cada um de nós, um Jesus mais próximo, com o qual realmente é possível identificar-se. Sabino, que se coloca diante dessa obra antes como cristão professo do que como escritor propriamente, afirma não considerar essa sua tentativa como irreverência, desrespeito ao Cristo da religião e da fé. Ele admite ser esta uma tarefa temerária, mas levando em conta a reverência que dedica, como crente, ao objeto sagrado que são os Evangelhos canônicos no contexto da fé cristã, deixa bem claro que jamais ousaria tomar Jesus como um objeto qualquer de especulação e criação literária. E é enfático ao afirmar que nesse livro, não acrescentou nem suprimiu nada. Apenas fez um apanhado geral dos quatro evangelhos, sendo que vários episódios relatados são repetidos de um para o outro, não necessariamente na mesma ordem e seqüência cronológica, enquanto que outros aparecem em um, ou dois dos evangelhos, e não nos outros.

Obviamente que o escritor adotou uma estrutura textual diferente da bíblica, organizada em capítulos e versículos, inserindo também uma lingua-gem atualizada, pautada por seu estilo pessoal e também por seus comentários espirituosos, questionamentos e intertextos, que visam contextualizar essa narrativa tão antiga. Mais de uma vez ele se refere às dificuldades de tentar transformar quatro textos (os quatro Evangelhos, Mateus, Marcos, Lucas e João) em um só, procurando seguir uma linha cronológica. Assim, Sabino se propõe a organizar o que ele chamou de “quebra-cabeças”, relatando a vida de Jesus a partir de temas que tentam manter da melhor maneira possível a cronologia já estabelecida (mas nem sempre coerente) pelos evangelhos.

Enquanto narrador analítico de seu objeto, Sabino conclama a si uma certa superioridade sobre o olhar objetivo e por vezes frio e pragmático dos

(9)

teólogos. Como escritor, ele se considera mais aberto e sensível, disposto apenas a destacar e acentuar uma linha escolhida subjetivamente como ex-pressão de seu estilo. Ele considera passiva e tranqüilamente a possibilidade de ser considerado ingênuo, como tantos outros antes dele, que também tentaram combinar as passagens nem sempre coerentes dos quatro Evangelhos em uma única narrativa, pautada obrigatoriamente pela visão pessoal do escritor da história (ou do personagem, Jesus) em questão. Mas ele defende essa inocência declarando ser ela como a “de um menino deslumbrado ante a imensidão dos Livros Sagrados, sobre os quais se debruçou com os olhos puros” (SABINO, 1994, p. 15).

Notas

1 Fernando Tavares Sabino nasceu em Belo Horizonte (MG), em 12/10/1923, e faleceu em 11.10.2004, véspera de completar 81 anos de idade, no Rio de Janeiro (RJ). Iniciou-se na vida literária aos 13 anos, com uma história policial. Depois, passou a escrever crônicas, gênero literário pelo qual é mais conhecido, contos, novelas, romances e até mesmo literatura infantil, sendo premiado diversas vezes, e tendo muitas de suas obras traduzidas e editadas em diversos países. Atuou também em cargos públicos federais, inclusive como adido cultural junto à embaixada brasileira em Londres, e viajou diversas vezes para muitos países. Fundou duas editoras: a Editora do Autor, e mais tarde, a Editora Sabiá, as duas em sociedade com Rubem Braga. Também se aventura na produção de dezenas de roteiros e textos de filmes documentários para diversas empresas, chegando a fundar, em 1972, a Bem-Te-Vi Filmes Ltda, em parceria com David Neves, passando a produzir diversos documentários. Sua obra mais polêmica foi o livro “Zélia, uma paixão”, biografia autorizada de Zélia Cardoso de Mello, Ministra da Fazenda no governo Collor, com tratamento literário. Em julho de 1999, recebeu da Academia Brasileira de Letras o maior prêmio literário do Brasil, “Machado de Assis”, pelo conjunto de sua obra, no valor de R$ 40.000,00, o qual foi doado pelo autor a instituições que cuidam de crianças carentes. 2 O Evangelho segundo Jesus Cristo, lançado em Lisboa pela Editorial Caminho, em

1991, e, no Brasil, em 1992, pela Companhia das Letras de São Paulo, rendeu ao seu autor, José Saramago, o repúdio público da Igreja Católica Apostólica Romana de Portugal, e também o Prêmio Nobel de Literatura.

3 Evangelho segundo João, 1: 1 – 3 e 14; in: Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo e Barueri, Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999, p. 1228. 4 Timóteo Amoroso Anastácio, mineiro de Barbacena, nascido a 12 de julho de

(10)

1910, tornou-se monge beneditino após ter-se formado em Direito, e ingres-sou no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Em 1965 foi eleito Abade do Mosteiro de Salvador. Recebeu o título de cidadão honorário e de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia. Suas crônicas e outros escritos foram selecionados e publicados por amigos no livro A Flauta de Deus. Faleceu em agosto de 1994, três meses após escrever o prefácio de Com a graça de Deus, de Fernando Sabino.

5 Segundo registra O Novo Dicionário da Bíblia, a palavra “Trindade” não pode ser encontrada na Bíblia, e apesar de ter sido empregada por Tertuliano na última década do século II d.C., só encontrou lugar na teologia da Igreja no século IV, afirmando que Deus é um só em Seu ser essencial, mas que a divina essência existe em três modos ou formas, cada qual constituindo uma Pessoa (Deus-Pai, Deus-Filho e Deus-Espírito Santo) de tal modo que a essência divina se encontra plena em cada uma delas (O Novo Dicionário da Bíblia, 1995, p. 1633).

Referências

AICHELE, G. et alii. A Bíblia pós-moderna. Tradução Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: Loyola, 2000.

BARTHES, G.. Mitologias. Lisboa: Edições 70, [1990].

BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. In: ______; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W; HABERMAS, J. Textos Escolhidos. Tradução de José Lino Grünnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Bíblia Sheed. Editor responsável Russel P. Sheedd. Tradução em português por João Ferreira de Almeida. 2.ed. rev. atual. São Paulo: Vida Nova; Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.

BERGEZ, D. et alii. A crítica temática. In: Métodos críticos para a análise literária. Tradução de Olinda Maria Rodrigues Prata. São Paulo: M. Fontes, 1997.

BRASIL, Assis. A Nova Literatura - O Romance. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1974.

CHAMPLIN, R. N.; BENTES, P. J. M. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filoso-fia. 3. ed. São Paulo: Candeia, 1995. V. 2.

CHATEAUBRIAND, François-Rene. O gênio do cristianismo. Tradução de Camilo Castelo Branco. São Paulo: Brasileira, 1964. V. 1.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1996.

CHOURAQUI, A. Os homens da Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

(11)

COELHO, N. N. Literatura e linguagem: a obra literária e a expressão lingüística. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960.

COSTA, D. Os olhos nas mãos - Literatura Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960.

COUTINHO, A. Antecedentes do Modernismo na Ficção. In: ______. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1970.

CUPITT, D. Depois de Deus: o futuro da religião. Tradução de Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

DERRIDA, J. Fé e Saber: as duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão. In: A religião: o seminário de Capri. In: VATTIMO, G.; DERRIDA, J. (Org.). A religião: o seminário de Capri. Participação de Aldo Gargani, Hans-Georg Gadamer et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

ELIADE, M. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.

ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: M. Fontes, 1992.

FERRAZ, S. As faces de Deus na obra de um ateu – José Saramago. Juiz de Fora: EDUFJF, 2003.

FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Tradução e Notas José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1988.

GAARDER, J. O livro das religiões. Tradução de Isa Maria Lando. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.

GÓES, L. T. de. O mito cristão no cinema: o verbo se fez luz e se projetou entre nós. Salvador: Ed. da UFBA, 2003.

HUGO, V. Do grotesco e do sublime. Tradução de Célia Berettini. São Paulo: Pers-pectiva, 1988.

KIERKEGAARD, S. A. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. Tradução de Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

LEMINSKI, P. Jesus a.C. São Paulo: Brasiliense, 2003.

LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: obras, autores e problemas da Literatura Brasileira. Ensaios e estudos 1940 – 1960. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna. Tradução rev. José Navarro. Lisboa: Gradiva, 1989.

(12)

MICHAELIS: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Cia. Melho-ramentos, 1998.

MILES, J. Deus – uma biografia. 3. reimp. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

NUNES, B. Teologia e Filosofia – Aspectos teológicos da Filosofia - O último Deus. In: Crivo de Papel. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998.

O NOVO Dicionário da Bíblia. Tradução de João Bentes. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.

SABINO, F. Com a graça de Deus. Rio de Janeiro: Record, 1994.

SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

VATTIMO, G. Vestígio do vestígio. In: VATTIMO, G.; DERRIDA, J. (Org.) A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Liberdade, 2000.

Von FRANZ, M. O processo de individuação. In: JUNG, C. O homem e seus

símbolos. 12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1990].

Abstract: in this paper the relations and the dialogue between Theology and Literature are observed and analyzed. In this text, the object is the Fernando Sabino romance, “Com a graça de Deus”, in that the author retakes, by the fiction literature, the holy text from biblical gospels, and wishes to demystify the traditional image of a far and severe Jesus. Than, he introduces a narrative inspired in the Jesus humor, as well as strategy to divine humanization and approximation of common man.

Keywords: favour/gracefulness, humor, Jesus, human, divine

ANDRÉA BEATRIZ HACK DE GÓES

Doutoranda da Pós-Graduação em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: abhack@gmail.com

Referências

Documentos relacionados

Caso a resposta seja SIM, complete a demonstrações afetivas observadas de acordo com a intensidade, utilizando os seguintes códigos A=abraços, PA=palavras amáveis, EP= expressões

Promovido pelo Sindifisco Nacio- nal em parceria com o Mosap (Mo- vimento Nacional de Aposentados e Pensionistas), o Encontro ocorreu no dia 20 de março, data em que também

Após retirar, da maré observada, o valor da maré teórica, aplicou-se uma linha de tendência aos dados resultantes, a qual representa a variação do nível médio das águas no

Os candidatos deverão enviar para o e-mail que será divulgado no dia do Resultado da etapa de Dinâmica de Grupo, as cópias dos comprovantes de escolaridade e experiência

A “Ficha de Avaliação Ético-Profissional” deverá ser assinada ao final de cada ciclo pelo aluno e professor responsável e, ao final do semestre pelo aluno e coordenador

esta espécie foi encontrada em borda de mata ciliar, savana graminosa, savana parque e área de transição mata ciliar e savana.. Observações: Esta espécie ocorre

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

Transpostas para a voz passiva, as passagens “O próxi- mo governo não encontrará um ambiente econômico in- ternacional sereno.” (1° parágrafo) e “Se até o início deste ano