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O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Katia Peixoto dos Santos

O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Katia Peixoto dos Santos

O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor Arlindo Machado

SÃO PAULO

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Banca Examinadora

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Aos meus adorados pais, Romualdo e Zuleide Aos meus queridos filhos, Geisly e Leandro

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AGRADECIMENTOS:

Considero que a elaboração de uma tese de doutorado seja fruto de um solitário trabalho de pesquisa e escrita da redação. No entanto, para a consolidação desse processo fui premiada com a contribuição de várias pessoas, as quais sou grata de todo coração.

Quero começar meus agradecimentos pela Secretaria da Educação e a CEMP, a quem devo o mérito de estudar na PUC, pois sem a bolsa que me foi concedida não poderia realizar esse doutorado.

Ao Professor Dr. Arlindo Machado, orientador da tese, que com suas maravilhosas aulas e orientação pude enriquecer meu trabalho de forma definitiva. Às Professoras Dras. Cecilia Almeida Salles e Christine Greiner, que fizeram parte de minha Banca de Qualificação e, com um discurso democrático, engendraram contribuições importantes à redação final.

À Professora Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara que, em suas aulas, pude adentrar o mundo das espacialidades, ficando claro todo o amor e dedicação que tem com seu trabalho. Ao Professor Dr. Norval Baitello Júnior, pelas aulas inesquecíveis nas quais aprendi a importância de se discutir o tema e a estrutura da tese, e por ver em seus olhos e sorriso uma enorme sensibilidade. Ao Professor Dr. José Luiz Aidar, pela oportunidade de publicação na Revista Galáxia.

Ao Professor Dr. Eugênio R. Trivinho e à professora Dra. Ana Claudia M. de Oliveira, pela seriedade e comprometimento na Coordenação do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC.

À Professora Dra Ana Maria Dietrich, amiga, carinhosa e sempre disposta em ajudar-me.

Aos meus queridos filhos, Geisly Conca e Leandro Daniel Santos Carvalho, pelo companheirismo, amor e ajuda.

Aos meus queridos pais, Romualdo Ribeiro dos Santos e Zuleide Peixoto dos Santos, por tudo que fizeram por mim.

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“Quando tinha sete anos, meus pais me levaram ao circo. Os palhaços me causaram um medo terrível. Não entendi se eram animais ou espíritos e não os achei nem um pouco engraçados. Mas tive um sentimento estranho: a sensação de que me esperavam por lá. Naquela noite, e em muitas noites nos anos seguintes, sonhei com o circo. Ainda não sabia que meu futuro era o cinema: o circo-cinema”

Federico Fellini

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RESUMO

O estudo parte da premissa de Luis Renato Martins, na qual, em seu livro Conflito e interpretações em Fellini (1994), se contrapõe a voga de cinema autobiográfico para a obra de Fellini estabelecendo no lugar, vertentes mais interessantes e pertinentes às leituras e análises fílmicas, como por exemplo: a paródia como arma crítica, a discussão da cultura de massa, o fascismo e suas matrizes históricas. Afastando-se dos cineastas neo-realistas, Fellini conta sobre a realidade social italiana via espetáculos populares. Os artistas assumem o papel de mediadores da crítica felliniana e, a partir deles, estabelece-se uma oposição: o crescente mundo industrial em conflito com a identidade italiana anteriormente estabelecida. Nesse sentido, de construção de uma análise mais fundamentada, é que esse trabalho se envereda, considerando a questão da estruturação fílmica felliniana que converge circo, teatro, televisão e cinema, documentário e ficção criando uma intrigante possibilidade audiovisual proporcionada pela inserção da linguagem televisiva na obra clowesca e cinematográfica de Fellini.

O fator exógeno, ligado à marcada influência norte-americana, se apossa do terreno cultural italiano, transformando-o. Fellini retrata o encontro do mundo dos espetáculos e do cinema com a mídia televisiva que, na esteira do desenvolvimento tecnológico, fincou raízes em solo italiano. Entre perdas e danos, os filmes ressaltam o constante movimento e adaptação dos espetáculos, da linguagem cinematográfica e do próprio estilo felliniano frente ao novo referencial.

Considerando essas imbricações, o estudo privilegia a importância do percurso fílmico felliniano para defender a hipótese da reestruturação de sua linguagem a partir do advento da TV como meio de comunicação de massa, fato evidenciado em seu primeiro filme realizado para a TV, Block Notes di un Regista (1969). No intuito de argumentar essa hipótese, fez-se necessário considerar e analisar outros filmes de Fellini realizados para a TV: I Clowns (1970) e Prova d’orquestra (1978). Outros três filmes feitos para o cinema, porém com temática televisiva, Ginger e Fred (1985), Intervista (1987), La Voce della Luna (1989), também foram elucidados e avaliados. Assim pôde-se constatar que a estética fílmica de Fellini partiu dos espetáculos populares para atingir a televisão em suas linguagens e propósitos, convergindo documentário e ficção, televisão e cinema.

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ABSTRACT

The study starts from the Luis Renato Martins’ premise, which, in his book Conflito e interpretações em Fellini (1994), he countered the autobiographical cinema vogue for Fellini’s work and established in its place, a more relevant and interesting trend for readings and filmic analysis, e.g.: the parody as critical weapon, the discussion of the mass culture, the fascism and its historical matrix. Getting away of the neo-realistic filmmakers, Fellini tells about the Italian’s social reality throw popular shows. The artists assume a role of mediator of Fellini’s critic and, from them, establish a contradiction: the arising industrial world in conflict with the Italian identity previously established. Accordingly, the construction of a more structured analysis is where this work goes, considering Fellini’s filmic organization issue which converges circus, theater, television and cinema, documentary and fiction creating an intriguing audiovisual possibility provided by television language insertion in the clownish and cinematographic work of Fellini.

The exogenous factor, linked with the north american influence, gets hold of the cultural italian ground, changing it. Fellini portrays the encounter between the world of the spectacle and the cinema with televisable media, which, in the path of technological development, planted root in Italian ground. Between losses and damage, the films emphasize the constant movement and adaptation of the spectacles, of the cinematographic language and the own Fellini’s style forefront a new differential.

Considering those implications, the study focus in the importance of the Fellini’s filmic route to defend the hypothesis of the restructure of his language from the advent of TV as a means of mass communication, fact shown in his first movie realized for TV, Block Notes di un Regista (1969). In order of arguing this hypothesis, was made necessary considering and analyzing another Fellini’s movies realized for

TV: I Clowns (1970) e Prova d’orquestra (1978). Another three movies made for

cinema, nevertheless with televisable thematic, Ginger e Fred (1985), Intervista (1987), La Voce della Luna (1989), also was elucidated and evaluated. Therefore could have seen that Fellini’s filmic aesthetics came from the popular spectacles to gain television in its languages and purposes, converging documentary and fiction, television and cinema.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO:...1

1 A RELEVÂNCIA DOS ESPETÁCULOS POPULARES NOS FILMES DE FEDERICO FELLINI: O PROCESSO CRIATIVO ...7

1.1O CIRCO DE LONA E O TEATRO DE VARIEDADES: ELEMENTOS DO CIRCO ELETRÔNICO,TV.17 1.2A PERSONAGEM CLOWN NO CIRCO E EM FELLINI... 24

2 A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM TELEVISIVA NA OBRA DE FEDERICO FELLINI...37

2.1OS ENCANTOS DO DOCUMENTÁRIO E DA FICÇÃO... 42

2.2OS ENCANTOS DAS IMAGENS NO DECORRER DA HISTÓRIA... 46

2.3FEDERICO FELLINI E A CONSTRUÇÃO DO CINEMA IMAGINATIVO E DOCUMENTAL... 57

2.4FELLINI E SUA FICÇÃO DOCUMENTÁRIA... 58

3 DA CRISE EXISTENCIALISTA DO PÓS-GUERRA AO MUNDO TELEVISIVO EM I CLOWNS E GINGER E FRED, NA LINGUAGEM CLOWESCA DE FELLINI...67

3.1O CIRCO NA ERA DA TV ... 70

3.2 GINGER E FRED E O ESPETÁCULO TELEVISIVO... 73

3.3A ESTÉTICA DA TV CRIA NOVOS TEMPOS E ESPAÇOS... 77

3.4A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO E TEMPO NO PROGRAMA “COM VOCÊS”... 84

4 AS CONVERGÊNCIAS DOS MEIOS: A ARTE E A COMUNICAÇÃO NO IMPERALISMO DA TV ...89

4.1OS CINEASTAS NA TV... 96

4.2 BLOCK-NOTESDIUNREGISTA: UMA CELEBRAÇÃO À CRIAÇÃO NUMA CRÍTICA AO CINEMA DE AUTOR... 102

4.3A CONSTRUÇÃO DO LUGAR: ELEMENTOS VISUAIS E SONOROS ORIUNDOS DA LINGUAGEM TELEVISIVA E DOCUMENTAL EM PROVA D’ORCHESTRA... 112

4.4AS ENTREVISTAS COLOCAM EM EVIDÊNCIA AS PERSONAGENS... 120

5 ENTRE O CHOQUE E A ACEITAÇÃO: INTERVISTA E LA VOCE DELLA LUNA, A TV NO CINEMA...125

5.1A EXPERIÊNCIA DE FAZER CINEMA NA ERA DA TELEVISÃO... 129

5.2O CONFRONTO E A CONTEMPLAÇÃO EM LA VOCE DELLA LUNA... 137

CONSIDERAÇÕES FINAIS:...150

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LISTA DE ILUSTRAÇÃO

FIGURA 1 – Gelsomina e Zampanò em La Strada.

FIGURA 2 – Idem

FIGURA 3 – Fellini e sua equipe de filmagem em I Clowns

FIGURA 4 – Os palhaços em I Clowns

FIGURA 5 – A dupla de palhaços em I Clowns

FIGURA 6 – I Clowns

FIGURA 7 – Pippo e Amélia em Ginger e Fred

FIGURA 8 – Cena dos bastidores do programa em Ginger e Fred

FIGURA 9 – Maurizio em Intervista

FIGURA 10 – Um close de uma personagem em Block-Notes di un Regista

FIGURA 11 – Pippo e Amélia em Ginger e Fred

FIGURA 12 – Apresentador do Programa Com Vocês em Ginger e Fred

FIGURA 13 – Palco do Programa Com Vocês em Ginger e Fred

FIGURA 14 – Cena de Block-Notes di un Regista

FIGURA 15 – Idem

FIGURA 16 – Cena de Prova d’ Orchestra

FIGURA 17 – Idem

FIGURA 18 – Fellini em Intervista

FIGURA 19 – La Voce della Luna

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INTRODUÇÃO:

Os debates primordiais que, posteriormente motivaram este trabalho, se originaram no programa de pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, na disciplina Conflito e Interpretação em Fellini: Construção da Perspectiva do Público, tendo como professor responsável Jean-Claude Bernardet, e como professor convidado Luis Renato Martins.

No decorrer do curso, foram exibidos e discutidos doze filmes de Fellini, oportunamente divididos em quatro módulos temáticos, abrangendo desde a década de 1950, com as perspectivas de expressão nos discursos do pós-guerra, até 1980, com a representação do agudo diagnóstico da cultura e da sociedade na era do marketing.

Contrapondo-se à voga do cinema de Autor e à visão autobiográfica para pensar a obra de Fellini, os professores enveredaram por vertentes mais interessantes e pertinentes, estabelecendo assim parâmetros mais contextualizados com as leituras fílmicas. Para tanto, foram analisados elementos comuns aos filmes como: a paródia como arma crítica, a discussão da cultura de massa, o fascismo e suas matrizes históricas.

O filme La Strada (1954) foi o escolhido para a monografia final do curso. Aproveitando discussões oriundas das aulas, o estudo pôde se aprofundar nas ações e reações físicas e emocionais das personagens Gelsomina e Zampanò. Foram levantados e analisados elementos evidentes da relação da dupla, como o autoritarismo, a ingenuidade e a falta de comunicação entre eles. Assim, reconhecendo-os como tipos caricatos, clowns e artistas mambembes, a dupla passou a representar, comparativamente, as questões e valores políticos e culturais vigentes no período contemporâneo ao filme.

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A continuação desse processo de estudos em Fellini se deu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do prof. Dr. Arlindo Machado. A pesquisa de doutorado propôs um paralelo entre a reformulação fílmica felliniana e a inserção da televisão como meio de comunicação de massa na Itália, fato ocorrido por volta de 1960. Nos filmes realizados após esse período, puderam-se constatar elementos próprios da linguagem televisiva associados aos preceitos circenses e espetaculares de Fellini.

Nesse sentido, o objetivo deste trabalho de doutorado é comprovar a hipótese de uma reestruturação da linguagem felliniana a partir de Block-notes di un Regista (1969), primeiro filme de Fellini realizado para a TV, no qual o diretor incorpora, mais evidentemente, elementos da estética documental e televisiva. Defendendo essa idéia central, os argumentos se articulam, exemplificando como as técnicas e linguagens documentais e televisivas foram imbricadas às características mambembes, circenses e populares. É importante evidenciar como esses meios distintos de linguagem, eletrônicos e artesanais diferem-se e convergem mutuamente para a estética fílmica felliniana.

Dos vinte e quatro filmes realizados por Fellini em um espaço de 40 anos, o estudo privilegiou mais especificamente nove deles, com os quais se pôde efetuar a pesquisa, valorizando o percurso fílmico do diretor.

Na tese, contemplam-se análises de filmes da década de 1950, com contextos mais humanistas baseados nas artes populares, vistos em Luci del Varietà (1950), Lo Sceicco Bianco (1952) e La Strada (1954), que mereceu atenção especial neste primeiro instante, por ser um filme voltado às condições humanas da sociedade italiana do pós-guerra e a um referente importante quanto à identidade clowesca de Fellini. Assim sendo o filme pode ser considerado um marco na construção da obra do diretor. Com esses filmes, pode-se comprovar a construção da linguagem felliniana em confluência com a arte popular: a caricatura, o espetáculo de variedade e o circo, com o qual Fellini edificou sua estética, fato que o diferenciou de seus contemporâneos neo-realistas.

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Dolce Vita (1960), no qual a linguagem fílmica felliniana já começava a apresentar contornos mais fragmentados de forma menos linear.

Outros dois filmes realizados para a TV depois de Block-notes di un Regista, I Clowns (1970) e Prova d’orchestra (1978), e mais três filmes realizados para o cinema com temática ou estética televisiva, Ginger e Fred (1985), Intervista (1987) e La Voce della Luna (1990), também foram elucidados.

I Clowns e Ginger e Fred são os mais emblemáticos e ilustrativos para exemplificar como aconteceram as convergências entre o espetáculo popular - circo, teatro mambembe, teatro de variedade - e a televisão - meio eletrônico de comunicação de massa.

Prova d’orchestra e Intervista também corroboram com a pesquisa e são apresentados no decorrer das análises, principalmente por possuírem em suas estruturas fílmicas evidências da aproximação da linguagem felliniana à estética televisiva. Nesses filmes, surgem elementos da linguagem documental, da televisão e do telejornal como meios de uma construção mais aberta, a despeito dos estanques conceitos de documentário e ficção. Possuem como eixo dramático a televisão e sua inserção de forma massiva na sociedade italiana.

Em I Clowns, Fellini discute o circo por meio dos palhaços, tecendo um diagnóstico da situação dessa personagem na França e na Itália da década de 1970. Por um lado, o filme possui uma linguagem cinematográfica poética e lúdica. Por outro lado, a utilização da forma telejornalística, caracterizada pelo uso de luzes diretas, por uma equipe de filmagem itinerante e uma direção improvisada, casual e atrapalhada, servem como elementos para ironizar a reportagem televisiva. Fellini entrevista ex-palhaços e atores circenses, que interpretam a si mesmos nessas intervenções, valorizando a veracidade dos depoimentos.

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que, essencialmente, representam o povo italiano. Essa relação entre o passado e a realidade vigente, contemporânea ao filme, é enfatizada nos depoimentos dos ex-palhaços e na reportagem atrapalhada, além da intercalação dos relatos de Maya e de Fellini, entre as falas, sugerindo a aproximação de elementos do circo, da TV e do cinema.

Em Ginger e Fred, Fellini critica a televisão em um filme realizado para o cinema e elege um programa de auditório, Com Vocês, como eixo dramático. Percebe-se o tom clowesco, caricato e fantástico das personagens, inseridas na trama de forma oportunista e pitoresca diante da televisão, como personagens ou como telespectadores, sugerindo uma relação que vai do fascínio à angústia e vice versa. A propaganda televisiva e de rua, insistentemente abordadas, imprimem um olhar mais atento à sociedade capitalista em voga na contemporaneidade referente ao filme.

Em Prova d’orquestra, Fellini assimila a televisão e a concebe como dentro da perspectiva do espectador, tendo como referencial a transformação da arte nos tempos passado e presente. As câmeras estão no ensaio de uma orquestra e denunciam as angústias, frustrações e inquietudes do copista, dos músicos e do maestro na era moderna. Num mesmo local, uma antiga tumba de bispos e papas, os músicos se vêem à beira de uma crise quando os barulhos insistentes e surdos teimam em soar. É interessante notar como a televisão se faz presente durante o filme, mesmo sem ser vista, pois ela se apresenta apenas pela voz-off do locutor da TV e pelas luzes que se acendem nos rostos do músicos.

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A linguagem de Fellini, nesse filme, assume um compromisso dialético: de um lado, ironiza o belo e a arte e, de outro, mostra, na intimidade da câmera subjetiva, a beleza do amor à arte, descrita em cada história contada pelos músicos. Numa ambientação cênica única, Prova d’orquestra, no olhar da objetiva de uma reportagem jornalística, refaz o caminho do passado e do valor da arte, reativado com o tempo presente. Numa mesma ótica, Fellini faz em Intervista esse caminho da lembrança testemunhada pelas câmeras de TV. As personagens de La Dolce Vita são revividos 26 anos depois na frente das câmeras de TV japonesas. Fica evidente como o passado-presente foram abordados na perspectiva de avaliar como os meios de comunicação e artísticos se constroem na medida do tempo nos quais estão inseridos. Em La Voce della Luna, a loucura e a poética de Salvini servem como referência para o espectador olhar o mundo moderno. A televisão, incansavelmente, aparece para vigiar e reafirmar a degradação do homem perante as mazelas do mundo moderno.

Nesse sentido, esse estudo faz um retrato da filmografia felliniana na intenção de demonstrar como sua estética e temática fílmica foram articuladas para representar as inquietudes e as transformações do homem perante as novas formas de expressão artística e comunicacional. As dores do homem do pós-guerra ou as incertezas do homem moderno foram relatadas via espetáculo, ora mambembe e clowesco, ora televisivo e eletrônico. A televisão, tanto em seu processo de produção quanto de exibição e condução das idéias, figura constantemente nos filmes como um incômodo não resolvido por Fellini, ao qual, em alguns momentos, ele se rende e, em outros, serve de alimento para sua criação.

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Fig.1.

La Strada

Fig. 2

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A RELEVÂNCIA DOS ESPETÁCULOS POPULARES NOS FILMES DE

FEDERICO FELLINI: O PROCESSO CRIATIVO

A estética fílmica de Fellini advém de dois fatores determinantes: sua bagagem individual artística, decisiva para a elaboração dos tipos caricatos aclamados como fellinianos; e a experiência política e cultural vivenciada por ele em sua infância, adolescência e no período contemporâneo às suas produções cinematográficas.

A infância e a juventude de Fellini foram cercadas pelo encanto do universo criativo enaltecido pela sua enorme capacidade de imaginação, tornando possível a invenção de situações com tipos mágicos e únicos, revelados posteriormente nas caracterizações de suas histórias e personagens. Seu interesse pelas artes se manifesta primeiramente por meio do desenho e do teatro, rabiscando papéis, brincando com teatro de fantoches, indo ao circo ou lendo historietas acompanhadas de desenhos alegres e bem feitos, como Corriere dei Piccoli, o Gato Felix, Mio Mao, os italianos Bonaventura e o recruta Marmittone. Mais tarde, formado jornalista, sua capacidade lúdica de unir histórias e fatos reais a desenhos e caricaturas proporcionou-lhe a possibilidade de elaborar textos e ensaios acompanhados de ilustrações irônicas e sagazes a la H.Q., determinando assim um estilo próprio. Escreveu esquetes para o teatro de revista e programas de rádio e, a partir de 1943, começou sua carreira como roteirista. Teve duas indicações ao Oscar de melhor roteiro por Roma Città Aperta (1946) e por Paisà (1949), ambos dirigidos por Roberto Rossellini.

Historicamente, as primeiras produções de Fellini, como diretor de cinema, nasceram logo após o período do neo-realismo italiano, o principal fenômeno cinematográfico internacional do pós-guerra (MARTINS, 1994:13). Rossellini, um dos mais fecundos representantes do neo-realismo, antecipou o conceito de autoria, que se formaria em meados da década de 1950, a chamada “política dos autores” 1.

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1"Politique des Auteurs", expressão criada por François Truffaut (teoria autoral, em português) para

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A partir de Roma Città Aperta e Paisà, evidenciou-se a importância da expressão do diretor diante de outras variantes, como o predomínio da participação de atores hollywoodianos famosos e aclamados pelo público como elemento de valorização dos filmes.

Desde seu primeiro filme, no qual dividiu a direção com Lattuada, Luci del Varietà (1950), Fellini propôs novos olhares para a cinematografia italiana, focando principalmente o mundo marginal e os espetáculos mambembes e populares. Nos filmes: Lo Sceicco Bianco (1952), I Vitelloni (1953), Agenzia Matrimoniale. In: L’amore in Città (1953), La Strada (1954), Il Bidone (1955) e Le Notti di Cabiria (1957), há evidências de suas influências e referências oriundas das artes plásticas e cênicas.

Em 1943, 1944, a Itália tinha sido liberada e tudo estava nas mãos dos americanos: jornais, rádios, revistas e sobre as telas só se viam os seus filmes, para a grande alegria do público que jamais havia esquecido os deuses do único cinema verdadeiro, aquele que lhes presenteava com divertimento, sonhos, evasão, aventura. Quem é que tínhamos? Besozzi, Viarisio, Macario, Greta Gonda. Como se poderia competir com a volta de Gary Copper, Clark Gable, os irmãos Marx e Carlitos, e todas as belíssimas estrelas, e seus assistentes de direção? (FELLINI, 1980:10).

Nesses filmes da década de 1950, já se pode perceber forte presença de questões humanistas e existenciais, relacionadas ao universo fantástico e lúdico dos espetáculos, dos quadrinhos e da fotonovela, evidenciadas na construção das personagens e das cenas. Esses elementos utilizados por Fellini, de forma particular, serviriam para construir uma linguagem criativa e surpreendente, diferenciando-se das produções cinematográficas dos cineastas neo-realistas.

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Nesta perspectiva, este trabalho sustenta que o cinema de Fellini, em vez de nostálgico e vivencial ou exasperadamente pessoal – como julgam muitos, na linha do cinema de autor – será radicalmente analítico e político e, enquanto tal, fundamentalmente impessoal. Desse modo sua obra efetuaria a crítica das premissas do cinema de autor, como do neo-realismo, desconstruindo a fabricação do cinema. E, ao mesmo tempo, examinaria as transformações históricas de uma cultura totalitária, com fundo agrário e provinciano, para uma sociedade marcada pelos mecanismos de mercado e essencialmente conflituosa, nos termos do processo de industrialização e urbanização, implementado na Itália republicana. Nesse sentido, frente a um quadro de complexidade nova, Fellini se contraporia pelo distanciamento e pela ironia à estética neo-realista, apoiada na busca de uma expressão popular, carregada de autenticidade, dos atores e dos autores – empenhados na crítica do cinema de estúdios e espetaculoso da era fascista. (MARTINS, 1994:18)

Segundo Ennio Bispuri (2003: 14-16), Fellini passou por três fases evolutivas em seu cinema. A primeira, de 1950 a 1957, chamada pelo autor de realismo elegíaco, foi marcada por sete filmes, nos quais fica explícita a poética realística representada num mundo fantástico e dominado pelo sonho.

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Esses filmes possuem uma trama linear, um único plot e um eixo dramático trágico, ao mesmo tempo repleto de cenas cômicas. O sonho e a esperança nascem das personagens que, a princípio, se mostram caricatas e superficiais. Seres humanos diante do mundo, das carências, das dificuldades e da complexidade de sentimentos e emoções. Alguns temas servem de eixos dramáticos principais desses filmes: a guerra, a trapaça, a traição, a prostituição, a fome, a família e a difícil vida dos artistas mambembes, argumentos sempre elucidados em uma atmosfera de ironia e comicidade.

As produções de Fellini da década de 1950 apontam para a negação do neo-realismo e do cinema de autor e acenam a uma realidade mais intimista e fantástica: mais embalada num lirismo das desesperanças do que nas agruras do mundo real. Como pano de fundo desses filmes, vê-se uma Itália devastada pela guerra com personagens sofridos perante as circunstâncias econômicas e sociais vigentes. Tendo como base essas questões humanas, Fellini se debruça sobre as estranhezas e as mazelas existenciais da humanidade; suas personagens são colocadas em situações limites e se mostram perdidas no vai-e-vem das circunstâncias. Elas se distanciam da razão e passam a divagar pelos sonhos; entretanto, como em uma ilusão que se acaba, terminam sempre caindo nos braços da realidade nua e crua. Os filmes representam o desmoronar das certezas antigas frente às guerras e aos conflitos humanos e o apontar de novos referenciais ideológicos com base na aculturação norte-americana. Os personagens padecem de medos, dúvidas, anseios, desejos e inquietudes provenientes do contato com esse momento de mudança de identidade cultural italiana.

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que a consciência desse clown singelo, Gelsomina, parece surgir. Nessa seqüência ela vê a possibilidade de sair do seu mundo hostil, quando conhece o equilibrista-poeta-filósofo-palhaço, ou simplesmente o personagem Louco. Apesar de seu nome, ele representa a lucidez perante a vida, estabelecendo um ponto de equilíbrio para Gelsomina. Numa seqüência, o Louco conversa com a pobre clown, filosofando sobre a importância de cada coisa existente no mundo, deixando claro que nada que existe na terra é inútil, nem mesmo Gelsomina com sua cabeça de alcachofra; pela primeira vez ela sente-se notada. A atitude do Louco em valorizá-la se contrapõe à de Zampanò, de humilhá-la, criando uma oposição: de um lado está o Louco, trazendo a possibilidade de ela sentir-se importante para o mundo, representando um princípio de liberdade; de outro, Zampanò, que lhe oferece segurança, trabalho e comida. Zampanò, acuado diante de sua limitação, mata o poeta-equilibrista e depois abandona Gelsomina. Após algum tempo, ele descobre que ela morreu de tristeza e chora de ódio de si mesmo. Personagens perdidas perante vidas perdidas em um mundo cruel e insólito, formando um retrato social do pós-guerra na Itália.

Em Luci del Varietà, pode-se efetuar a relação do mundo dos espetáculos hollywoodianos com as companhias mambembes da Itália. A história da trupe Poeira de Estrelas é o foco da trama. No filme, vêem-se fragmentos do teatro de variedades com números alegres de apelos simples e de ópera buffa, que levam os espectadores a momentos de êxtase. Essa relação também pode ser vista em Roma (1971), filme realizado posteriormente em que Fellini explora o mesmo tema, mostrando números de variedades do Teatro da Barafonda como uma das únicas diversões do período conturbado em meados da década de 1940. O espetáculo funciona como mediador das dificuldades enfrentadas na Itália, como numa cena na qual nem mesmo a indisciplina da platéia constrange a apresentação dos números de canto, comicidades e dança, evidenciando a beleza dos espetáculos populares.

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Num segundo momento, que compreende o período de 1959 a 1971, Fellini realiza oito filmes que emergem numa perspectiva que aponta mais para a memória e para a busca da consciência de seus personagens do que para o sofrimento ingênuo e inevitável de antes. Percebem-se nesses filmes personagens mais conscientes e muitas vezes frustradas diante do cotidiano de uma grande cidade, explicitando um desconforto com o mundo moderno. Esses fatores podem ser percebidos em La Dolce Vita (1960), onde ocorre um questionamento do cinema, da arte e da autoria, colocando em voga o homem e suas aptidões perante o mundo social e capitalista. Enfatiza-se o confronto entre o talento dos artistas e a obrigação de capitalizar sua arte. Nesse período temos personagens frustradas, colocadas em situações de desencanto com o mundo, notando-se uma maior consciência destas comparadas àquelas apresentadas no primeiro período. Em Otto e Mezzo (1963), por exemplo, as fraquezas do diretor de cinema são desveladas, colocando em xeque sua capacidade de realizar filmes.

Os últimos três filmes dessa etapa, Block-Notes di un Regista (1969), I Clowns (1970) e Roma (1971) (os dois primeiros realizados para a TV, e Roma, narrado por Fellini numa perspectiva making-of), possuem um ambiente mais irônico e bizarro, oferecendo evidências de uma reestruturação da estética fílmica de Fellini. No final desse segundo período, a televisão passa a fazer parte do universo fílmico. Em Block-Notes di un Regista (1969), por exemplo, já se tem claros sinais da influência da TV como meio de comunicação de massa na reelaboração da estética e do conteúdo fílmico de Fellini.

Diversas são as diferenças entre o contexto televisivo e o cinematográfico, que interferem de maneira significativa na condução do roteiro e da produção final. Entre as diferenças mais evidentes, podem ser citadas a duração do filme, o tipo de câmeras que o focaliza e a natureza dos temas abordados. A duração de um filme realizado para a TV pode ser menor, não existindo a obrigação de realizar um média ou longa-metragem, como no cinema. As emissoras de TV privilegiam filmes mais curtos, dinamizando a audiência com a inserção de comerciais e diversificando o conteúdo, evitando a monotonia e buscando a arrecadação de capital por tempo de transmissão.

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mais fácil condução que as de cinema. O manuseio da câmera na mão permite a realização de planos mais fechados, favorecendo a criação de cenas mais ágeis. A TV oferece uma tela quadrada e infinitivamente menor que a do cinema, que figura como uma enorme tela em formato scope, favorecendo a visualização de grandes panorâmicas. A narração-off, que estabelece a ponte entre o ambiente interior e exterior ao filme, proporciona um tom mais jornalístico e ao mesmo tempo distanciado da ficção, como se vê em E La nave Va (1983), com a personagem Orlando, que é um dos narradores da história e, simultaneamente, inserido na trama.

A abordagem de temas mais urbanos também contribui para essa característica televisiva nos filmes de Fellini, tematizando o trânsito das ruas e o metrô. Em I Clowns, os elementos narrativos se assemelham ao de um documentário jornalístico televisivo. A equipe de filmagem de Fellini, atrapalhada e clowesca, sai em busca dos palhaços perdidos na Itália e na França. O diretor aparece no filme interpretando ele mesmo e dirigindo-o.

Várias entrevistas são realizadas nos padrões das reportagens jornalísticas, fato também observado em Roma, quando Fellini aparece junto aos jovens filmando as ruas de Roma. Em meio às filmagens de Fellini - Satyricon (1969), realizado para cinema, Fellini realiza Block-notes di un Regista (1969), filme que representa uma nova abordagem em relação aos filmes anteriores, os quais não dialogavam de forma tão direta com essas linguagens próprias da TV. Evidencia-se, nesse sentido, essa revisão estética fílmica que se inicia no final desse segundo momento.

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presença maçante da TV japonesa e a busca da memória do cinema através das personagens fellinianas envelhecidas; finalmente, La Voce della Luna (1993), com a loucura e a perda do romantismo ocasionadas pela era do marketing, que têm as emissoras de TV como epicentro.

A partir de então, a entrevista televisiva passa a ser um elemento freqüente nos filmes. Nas cenas finais de Block-Notes di un Regista, por exemplo, vemos Fellini entrevistando várias pessoas que chegaram até ele por meio de um anúncio no jornal que solicitava personagens para seus filmes. Cada pessoa entrevistada demonstrava suas habilidades, consideradas por elas mesmas como artísticas. O que poderia ser uma forma banal e incrédula de se conseguir personagens, transformava-se em um grande acontecimento, com filas de pessoas querendo participar dos seus filmes.

As pessoas comuns são as que interessam a Fellini. Elas possuem características únicas e essenciais que as fazem se diferenciarem umas das outras e, ao mesmo tempo, trazem consigo elementos comuns que as identificam como grupo, pelas suas crenças, seus costumes e suas culturas. O ser individual é interessante pela diversidade de propósitos e aspectos caricaturáveis; já o ser social se destaca por propósitos comuns. Para Fellini, esse contato, que ele mesmo classificava de surreal, disponibilizava elementos para a construção de suas personagens, parte crucial na composição de suas histórias.

Os primeiros, segundos e terceiros momentos descritos por Ennio Bispuri (2003: 14,15,16), como fases evolutivas na linguagem de Fellini, não levam em consideração um elemento muito forte que viria a determinar e interferir de forma considerável a estética fílmica felliniana: a televisão como meio de comunicação de massa.

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Fig. 3.

I Clowns

Fig. 4.

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1.1 O circo de lona e o teatro de variedades: elementos do circo eletrônico, TV.

Quando rapaz, sob a tenda do circo, olhava encantado as coisas: hoje a tenda me pertence, eu determino, eu provoco (GRAZZINI, 1983:125).

Da perplexidade infantil à engenhosidade criativa, o encantamento pelo espetáculo percorreu um longo caminho na vida de Fellini, tendo como exemplo sua admiração pelo circo, que foi cercada de lendas e mistérios. Será que aos 7 anos de idade Fellini teria fugido com um circo? Será que o menino que acorda atônito, em I Clowns, ao ver a armação da lona ao som de vozes roucas, é a representação de Federico criança?

A chegada do circo durante a noite, na primeira vez que o vi, ainda criança, teve o cunho de uma aparição. Um mundo novo, não precedido por nada. Na noite anterior não existia e, na manhã seguinte, ali estava, diante da minha casa.

De saída, pensei se tratar de um barco desproporcional. Logo a invasão, pois foi isso, uma invasão, estava ligada com algo de marinho, uma pequena tribo pirata.

Então, além do medo, o fascínio pelo clown, surgido desse clima marinho, foi definitivo. (FELLINI, 1980: 123).

Da perspectiva onírica ao universo fílmico, os espetáculos circenses e de variedades ocuparam lugar importante na obra felliniana, marcando presença em grande parte de seus filmes, refilando emoções e propósitos. Nesse sentido, o espetáculo passa a ser mediador de momentos representativos da Itália do período do pós-guerra, das heranças do fascismo e da aculturação norte-americana.

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momentos mágicos e sublimes. Ainda, noutros propósitos, vêem-se cenas de puro encantamento nas quais se escondem relevantes críticas ao fascismo.

As lembranças de Fellini menino se transmutam em arquétipos coletivos de uma Itália provinciana, num momento de crise de identidade, quando o espetáculo era o abrigo perante a dura realidade vigente. Desde seu primeiro filme, Luci del Varietà, o espetáculo de variedades (vaudevilles)2 denuncia a fragmentação do tecido social e da cultura popular, indicando a reconstrução do show-business italiano. Forçosamente, os espetáculos mambembes perderam público e espaço para outras companhias teatrais, mais equipadas e estruturadas. A estética da cultura se associa ao ganho de capital. (MARTINS, 1994:19)

Em Luci del Varietà, o foco dramático constitui-se de dois elementos enunciativos: o teatro de revista e a vida dos artistas mambembes. O paradigma fílmico anuncia um novo tempo, na medida em que o espaço para as artes mambembes e para os artistas de rua estão cada vez mais se estreitando. As mulheres, artistas belas, são tratadas como mercadoria e atraem homens endinheirados às companhias. Em Luci del Varietà, Liliana abandona Checco para ir com Palermo, ficando evidente a crise que se precipita. Liliana, linda e jovem, deve aproveitar a oportunidade para trabalhar em lugares mais estruturados, onde o giro de capital é maior e, conseqüentemente, tentar melhorar sua vida financeira.

Algumas cenas do filme indicam a dualidade do mundo da arte: o contraste do glamour das grandes companhias se opondo à dura realidade do teatro mambembe. Pode-se presenciar essa dialética nas cenas tristes da decepção de

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Esse tipo de teatro popular e musicado (vaudevilles) foi característico do final do séc. XVIII como "revue de fin d'année" (revista de fim de ano)em Paris, França, surgindo com o intuito de fazer frente ao monopólio teatral estatal francês. Com o tempo essa revista do ano passou a ser mais freqüente, tendo como alvo as piadas sobre a burguesia e a sociedade capitalista. A origem do teatro de revista bufo e satírico, que remonta da Grécia Clássica, tinha em seu humor parte integrante dos espetáculos dionisíacos, que incluíam poesia e filosofia. Vertente do teatro popular e da comédia, o teatro de revista partiu da interação cúmplice com o público, oferecendo aos espectadores momentos de revisão de fatos e de fantasias numa linguagem ligeira que se tornara menos simpáticas às elites culturais. A interação com o público é evidenciada logo nas seqüências iniciais com muita música e letras que valorizam o público.

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Checco, quando fica sem Liliana e sem dinheiro. Contrapondo-se a essa melancolia, as cenas subseqüentes surgem para dar alivio; Checco aparece na rua, cabisbaixo e sem esperança, quando é acometido pelo som do sax de Johnny, músico negro que aparece na trama. A partir desse encontro, ele esquece sua dor, conhecendo outros artistas de rua, sentindo-se consolado.

Em Prova d’Orchestra (1979), por exemplo, temos uma amostra crítica e reflexiva das condições dos músicos perante sua arte, com a televisão flagrando a instabilidade com relação ao poder do maestro e ao desencantamento quanto a seus papéis na orquestra. Como um personagem que narra uma história, tanto de fora como de dentro, a televisão passa a ser um elemento eficaz para diagnosticar a situação vigente. A linguagem making-of, a narração-off, a fragmentação das histórias e a temática de confronto entre o antigo e o novo são características dos filmes a partir de 1969. Portanto, Prova d’Orchestra declara a morte da arte pela arte e deflagra o seu momento como produto da era do marketing, algo que assusta os mais antigos, como o maestro e outros músicos mais velhos.

A pausa dos trabalhos expõe a falência de significados da atividade musical hodierna. Os músicos, flagrados no lazer, assemelham-se a quaisquer outros trabalhadores do setor de serviços. Não parecem apreciar o silêncio, não consomem a própria música que produzem, enfim, não valorizam o seu labor artesanal como superior à reprodução industrial da música de massa.(...). (MARTINS, 1994:105).

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como os músicos da orquestra, parecem não valorizar suas próprias aptidões, acreditando que se tornaram obsoletas e, inevitavelmente, caem em um labirinto dentro de sua própria lógica artística. Nas cenas do intervalo da orquestra, os músicos ouvem músicas eletrônicas, num barulho ensurdecedor; similarmente, em La Voce della Luna, a discoteca da década de 1980 supera e transcende o gosto pela música erudita.

Apesar de mostrar a força crescente da cultura industrial, Fellini aponta elementos positivos em Luci del Varietà, acenando com a valorização da arte artesanal, como nas cenas do “diálogo” cantante entre atores e público. A letra da música enaltece o público do teatro, mostrando a popularidade e integração entre atores e espectadores.

Porque te admiro Com tua ternura Nos fazem sonhar Aqui está a felicidade Teatro de variedades Porque te quero Fascinação de amor Entrego teu coração Aos espectadores3

A propósito, vários filmes americanos vangloriavam o estilo musical, consagrando-o como gênero e, com a grande depressão de 1929, os musicais serviriam para revitalizar o cinema hollywoodiano. A década de 1930 no cinema foi marcada pela inserção do som no filme, gerando a edição conjunta do som com a imagem. O teatro de variedades apresentado em Luci del Varietà se difere dos vistos em musicais norte-americanos, onde tudo parece fluir de forma perfeita. Nesse sentido, o mundo dos espetáculos, pela ótica felliniana, ganha contornos mais realísticos, irônicos e bizarros.

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Em Ginger e Fred, Fellini satiriza os musicais via programa de TV. O diretor propõe um olhar sagaz da indústria e do marketing cultural iniciado em Luci del Varietà, com os espetáculos de variedades, em La Strada; passando por La Dolce Vita, numa conscientização das personagens, e finalizado em Ginger e Fred, com os espetáculos na TV.

Essas vertentes dialéticas – indústria e mercado, arte e expressão - se tornam eixos centrais para discutir a sociedade italiana. Em Ginger e Fred, os artistas oriundos desse mundo mambembe, clowesco e artesanal entram em contato com um programa de auditório. Fellini realiza uma revisão do espetáculo popular via programa de TV. Pequenas esquetes de variedades são inseridas como células na composição do programa, reformulando o espetáculo e reaproveitando-o de forma inconsistente. As atrações e bizarrices dos circos, dos musicais e palcos de variedades estão nos programas de TV. A televisão absorveu os espetáculos populares, reestruturando sua lógica artesanal e substituindo-a pela mercadológica. O último filme de Fellini, La Voce della Luna (1990), deixa esse fato evidente quando

a lua cai na terra e é capturada pelos operários da grua; a televisão aproveita esse fato para escandalizar o acontecimento. Todos os políticos influentes, ministros, prefeitos, arcebispos, donos de emissoras de TV se juntam para avaliar o fato, que é acompanhado de perto pelas câmeras de televisão. A metáfora da prisão da lua, fortemente coberta pela mídia televisiva, se opõe aos personagens lunáticos que, vivendo em outra dimensão, não conseguem perceber que são objeto de exploração da mídia televisiva. A reportagem jornalística televisiva trata o fato como meio de adquirir relevância e audiência em escalas astronômicas.

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Em I Clowns, o circo e os palhaços são discutidos num filme realizado para a TV com estética televisiva; em Intervista, o cinema é tema de uma reportagem de TV; em La Voce della Luna, a prisão da lua vira reportagem de TV; e em Ginger e Fred, os espetáculos populares, o circo e o teatro de variedades cedem seus artistas e números para o programa Com Vocês, patrocinado pelos produtos Lombardoni. Nesses filmes pode-se preconizar o surgimento da televisão não só como um reestruturador da estética fílmica, mas também como um tema a ser largamente discutido nos filmes.

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1.2 A personagem clown no circo e em Fellini

No espaço circense, a interpretação parece fluir espontaneamente diante do respeitável público. A alegria e a tranqüilidade com que os números são encenados sugerem um ambiente lúdico e encantado, que também é marcado pela dura disciplina de ensaios. Os exercícios de aprendizagem dos atores circenses são iniciados precocemente, um trabalho extenuante ao qual se submetem para adquirir atributos físicos e mentais que visam aprimorar suas peripécias cômicas, fantásticas e inusitadas. Atores circenses são comunicadores exímios, estimulam a cumplicidade de forma única e eficaz, tendo a seu favor o espaço circular que facilita essa interação da magia comunicacional entre público e platéia.

A característica forasteira e cigana do circo se assemelha ao do deus Dionísio, das festas, da alegria e da inconstância, que provocam nas pessoas a alegria e/ou medo. A alegria vem das cores, do riso, do inusitado; o medo, da incapacidade humana em lidar com o inconstante, com o imprevisto e até mesmo com a morte.

Em I Clowns tanto o espaço circular quanto a cumplicidade entre público e platéia, provenientes dessas prerrogativas, são elementos valorizados. No filme, nas cenas do picadeiro, a câmera subjetiva se comporta de tal sorte que faz com que o espectador vivencie momentos mágicos dos números do palhaços. Nas cenas finais, ao som apenas das serpentinas, o palhaço, pendurado e solto, parece voar no picadeiro. A câmera fortalece a ótica circular e percebe-se, a partir de seus movimentos, a magnitude do circo.

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formou, tal modalidade espetacular expôs sua própria contradição. Ao perceber a monotonia das apresentações exclusivamente eqüestres o espetáculo circense adotou a diversidade da arte dos saltimbancos, uma vez que as novas regras de comercialização da economia e da cultura provocaram o esvaziamento das feiras e suas práticas culturais, disponibilizando um número razoável de artistas saltadores, acrobatas, prestidigitadores, engolidores de fogo, etc. No interior de um espaço fechado, com a cobrança de ingressos, a habilidade sobre o cavalo associou-se aos saltimbancos errantes, dando origem ao circo moderno e seu espetáculo. (BOLOGNESI, 2002:01)

O palhaço, personagem imprescindível e o maior representante do circo, é também a que mais encantava Fellini. Mas qual seria a razão de tal deslumbramento? Para respondermos a tal questão, é importante buscar quais são as origens do palhaço e, em sua prática antiga e atual, quais seriam as representações e valores que o público e o espetáculo circense conferem a ele. Algumas pistas podem ser elucidadas, como, por exemplo, o fato de que o palhaço possui uma personalidade cômica, contraditória, rebelde, ingênua, irreverente e verdadeira; elementos interessantes à construção das personagens fellinianas. Outro fator relevante é a relação da dupla de palhaços brancos e augustos, que em suas apresentações geram uma oposição intrigante e necessária. Segundo Fellini, para analisarmos as relações humanas, a dupla de palhaços pode ser de grande valia. Muitos estudiosos se debruçam no estudo do palhaço, desde a sua origem, ainda questionada, até sua atuação nos dias de hoje.

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brincadeiras mais perversas tem a ingenuidade infantil como característica fundamental. (SANTOS, 2001:83).

A personagem aclamada por Fellini pode ter surgido há muitos anos, porém seus possíveis ancestrais não eram exatamente como a conhecemos hoje em dia. Seus prováveis ascendentes foram vistos há, aproximadamente, quatro mil anos atrás, segundo a literatura especializada. Existem relatos das suas primeiras aparições nas cortes dos imperadores chineses. Sua importância era incontestável, pois a presença do palhaço acalmava os ânimos e reativava o riso, provocando um relaxamento terapêutico, atuando inclusive nas decisões políticas do imperador. Entretanto, segundo Tessari (1981), as características do clown atual circense devem ser definidas com segurança a partir de Astley, sendo o clown oriundo da Commedia dell’arte e da farsa francesa e anglo-saxônica.

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Por já haver, na Idade Média, teatros fechados dos quais os comediantes desse tipo ficavam muitas vezes do lado de fora, só lhes sobrava perambular e se apresentar em ruas e feiras. Grupos de mímicos como malabaristas, músicos e acrobatas, usavam a estratégia da brincadeira para ganhar espaço entre as pessoas na rua, chamando a atenção do público para suas esquetes.

Desta maneira, um modo muito específico do fazer teatral alojou-se por completo no espetáculo circense. Nascido em circunstâncias precisas, os palhaços souberam sintetizar, para os novos tempos, em uma forma nova, toda uma tradição cômica popular, cujos antepassados são reconhecidos nos cômicos dell’arte, nos saltimbancos, nos bufões e seus ancestrais. Dos anteriores tipos cômicos, os palhaços herdaram o representar de improviso. É claro que não se trata de uma improvisação a partir do nada. Há elementos prévios que dão contorno ao jogo cênico. O primeiro deles é o sucinto roteiro das entradas, que demarca um certo número de situações cômicas, quer seja na fala propriamente dita, ou na ação corporal. O outro, igualmente importante, diz respeito à própria personagem-palhaço e suas características essenciais (enquanto tipo cômico universal) e particulares (expressando subjetividades próprias a cada ator e personagem). (Idem, p.07)

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maquiagem; o palhaço “augusto”, tonto, desajeitado e extravagante; o palhaço “toni” e o palhaço “excêntrico”.

Augusto, o idiota, surgiu quando Tom Belling, um cavalheiro inglês, caiu no meio da pista de um circo. Ao perceber que a queda tinha sido causada por sua embriaguez, o público não se conteve e extravasou toda sua alegria diante do ar bobalhão e de seu nariz vermelho. A partir desse momento, Tom Belling construiu sua personagem enfatizando o ridículo, vestindo-se de forma grotesca e explorando ainda mais a confusão que havia feito na noite anterior. No entanto, agora, soube exagerar e aproveitar o que antes havia sido um simples acaso. Consciente do que o público gostava, explorou ao máximo todos os recursos para suscitar o riso. Nasceu, nesse momento, o tipo Augusto. (PANTANO, 39:2007).

As entradas de palhaços, números aclamados pelo público, se tornaram clássicos no circo, representando trechos de peças importantes, como O Espelho Quebrado, Hamlet, A Água, A Estátua e O Barbeiro de Sevilha, apenas para citar alguns exemplos. Outra maneira de o palhaço participar dos espetáculos circenses era através das reprises de palhaço, pequenas cenas inseridas na programação para distrair o público enquanto se preparavam os materiais necessários para um novo número de trapézio, de animais ou de malabares. No início do século XIX, a pantomima cômica, pequena esquete teatral baseada em clássicos da dramaturgia universal, também era representada por palhaços.

O palhaço era, até pouco tempo atrás, o principal personagem de um circo, sendo uma honra para ele ocupar esse papel tão importante. Geralmente os palhaços eram habilidosos em alguma arte, muitos eram grandes acrobatas, músicos, malabaristas, domadores, bailarinos, piadistas, cantores, equilibristas, atores, mímicos, enfim, grandes artistas de circo.

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língua celta, que originalmente designa um fazendeiro, um campônio, visto pelas pessoas da cidade como um indivíduo desajeitado e engraçado (Masetti,1998). Para Fellini (1986), o palhaço é mais de feira e praça, o clown de circo e palco. Tessari coloca que, tanto na língua comum italiana quanto na linguagem especializada do espetáculo, hoje não existe nenhuma diferença entre a palavra palhaço e a palavra clown, pois as duas palavras se confluem em essências cômicas na linguagem revelada e pronunciada pelo corpo. (Maria Irma Hadler Condry e Ana Wuo - http://clownelinguagem.blogspot.com/2008_02_01_archive.html)

As definições construídas por vários autores e estudiosos a respeito dessa personagem tão antiga mostra o quanto ela é importante no contexto social e cultural, ligada muitas vezes ao fracasso (LECOQ, 1999:146). A entrada do palhaço, a partir do fracasso, revela a natureza humana, dando um senso de superioridade, como um perdedor feliz. Dornelles (2003:3) diz que o clown é “a mistura da arte com a vida, tanto na vida quanto no palco, no entanto esse é um movimento que ‘implode’ com a estabilidade proporcionada pela divisão clara entre vida e representação”.

Para Fellini, o clown fazia parte de sua inspiração de fantasias da infância e, à medida que foi crescendo, ele podia perceber como as pessoas se assemelhavam a clowns, ora augustos, ora brancos. Comparava a sociedade a um grande e magnífico circo. O fracasso repudiado por todas a pessoas fazia parte da vida do clown, que sabia de suas fraquezas e aprendia a lidar com elas. Sua necessidade imediata era a emoção, a vontade de viver e sorrir. Chorava de tristeza e ria de sua própria dor. Ser clown era estar presente no momento da perda, da dor, do embaraço.

As relações entre pessoas podem ser explicadas pela teoria felliniana do clown. Fellini sabia que o clown expressava a parte irracional do ser, a sombra, e que, para a sombra sumir, o homem precisaria estar todo iluminado, perdendo seus traços grotescos e caricaturais. Tinha uma explicação a respeito dos dois tipos de clown, o branco e o augusto, apesar de que sempre quando pensava em clown, pensava no augusto.

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reside o ponto negativo, se convertendo em professor, mãe: o lado repressor da questão. Ao invés de ficar constrangido perante tanta perfeição, o clown augusto se rebela, estabelecendo um par do orgulho contra o instinto. Dois lados opostos que necessitam um do outro, se complementando.

No filme I Clowns, Fellini coloca nas cenas finais o clown augusto e o branco se encontrando numa reconciliação dos opostos, a unidade do ser. Quando estava rodando o filme, Fellini começou a observar como nas ruas podiam ser vistas pessoas que se assemelhavam a clowns e como a natureza humana é mesmo engraçada. Essas observações foram importantes para a criação de seu universo fílmico. O circo, artesanal e cheio de emoção, serviria de argumento para vários filmes posteriores. Essa leitura clowesca da humanidade busca, no íntimo das ações, o ser que está sempre facilitando ou dificultando as ações do outro.

Oriundo do circo eqüestre, criado por Philip Asthey (1742, 1814), Clown, palhaço de picadeiro, figura mímica e elástica, cuja maquilagem do rosto é toda branca, procurava em cena fazer uma caricatura do cavaleiro, imitando estupidamente suas proezas. (Auguet, p.39).

Com gestos delicados, essa figura cômica representava ao lado do Augusto. Por sua vez, o Augusto atuava de forma simples, sem a ostentação do Clown, ingênuo, irreverente, alegre e, na maioria das vezes, atrapalhado. Essa personagem tem o poder de ridicularizar qualquer situação e qualquer um sem ser penalizado.

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Essa leitura felliniana do ser social a partir das oposições inerentes à dupla de clowns vai contra a visão antagônica de bem e mal, sendo mais relevantes outros fatores, como o orgulho e a sensibilidade do ser. Essa forma de ver a sociedade, segundo Fellini, mostra que o poder é um jogo de posicionamento perante uma situação ou pessoa. É muito importante pensar no espetáculo e no Clown dentro da ótica felliniana e, para tanto, é de grande valia a análise de trechos do livro Fare un Film (Fazer um Filme), onde Felliniredesenha o circo e o Clown quando se refere ao seu filme I Clowns:

Em italiano existe, entre tantas outras, uma definição de clown feita por meu conterrâneo Alfredo Panzini, no Dicionário moderno:

"CLOWN - palavra inglesa (pronúncia cláun) que quer dizer rústico, tosco, desajeitado, aquele que com uma falta de habilidade artificial faz rir o público.” É o nosso palhaço. Mas mais uma vez a lastimável distinção da palavra estrangeira que enobrece a coisa: “palhaço” é mais de feira e praça, o clown em circos e palcos. Um bom acrobata é um clown, isto é, quase um artista, e julgará imprópria e ofensiva a expressão palhaço. Mas clown designa também o palhaço. O próprio Carducci, defensor do vernáculo, nas prosas, não desdenhou a palavra (Ça ira, em Confessioni e bataglie). Tempos de nacionalismo. O que posso dizer?

O palhaço encarna as naturezas da criatura fantástica, que exprime o lado irracional do homem, a parte do instinto, aquela porção de rebeldia e de contestação contra a ordem superior que há em cada um de nós. É uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador. É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, disforme, bufa. É a sombra. Existirá sempre. (...) (FELLINI, 2004:157,158).

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branco e augusto revela as relações de poder entre essas figuras que representam as relações humanas.

Quando digo o palhaço, penso no augusto. As duas figuras são, na realidade, o clown branco e o augusto. O primeiro é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, propostas de forma moralista, como as situações ideais, as únicas, as divindades indiscutíveis. Eis então que surge o aspeto negativo da coisa, porque o clown branco, desta maneira, torna-se a mãe, o pai, o professor, o artista, o belo, em suma, o que se deve ser. Então o augusto, que sofreria o fascínio dessa perfeição se não fossem ostentadas com tanto rigor, se revolta. Ele vê os paetês resplandecentes, mas a vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis.

O augusto, que é menino, faz cocô nas calcas, rebela-se na presença de uma perfeição parecida, se embebeda, rola no chão e anima uma constatação repleta.

Portanto esta é a luta entre o culto soberbo da razão (que atinge um estetismo proposto com prepotência) e o instinto, a liberdade do instinto. (...) (Idem, 158 ).

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O filme [I Clowns] acaba assim: as duas figuras vão ao encontro uma da outra e partem juntas. Por que uma situação parecida comove tanto? Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de nós: a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.

Aquela mágoa que existe na contínua guerra entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de presenciarmos a algo que se liga à nossa própria incapacidade de conciliar as duas figuras. Com efeito, quanto mais procures obrigar o augusto a tocar violino, mais dará soprinhos com o trombone. Além disso, o clown branco ainda pretenderá que o augusto seja elegante. Mas, quanto mais autoritário for esse pedido, mais o outro será maltrapilho, tosco, empoeirado. (...) (idem, p. 160)

O dilema da pressão do forte sobre o fraco pode desencadear a revolta, que figura como a capacidade humana liberada a partir da falta de preparo em lidar com situações de frustração perante o poder ditado e imutável. Quando um objetivo parece inalcançável, a revolta aparece. Essa rebeldia pode ser demonstrada na forma de ironia, como acontece em Ginger e Fred, onde, durante o blackout na emissora de TV, Pippo sente-se revoltado e faz uma banana com os braços e, logo na seqüência, a energia elétrica retorna, e ele, sem ter como se desvencilhar da situação, começa a dançar. A personagem se julga impotente perante os desmandos da TV e as imposições do mundo capitalista do qual se sente excluído. Fred, irônico, desdenha da vida numa tentativa de tornar tudo mais suportável.

Outra tendência do clown branco: desfrutar o augusto, não apenas como alvo e zombarias, mas para executar o trabalho pesado. A propósito, típica é a entreé que reportamos adiante: Você não deve fazer nada, eu faço tudo. O clown branco manda o augusto pegar as cadeiras e coloca uma vela em seu traseiro. (...) (idem, p.161).

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constatação dessas, digamos, imperfeições. Como todos são passíveis de erros, o fato de diagnosticá-los em pessoas intocáveis e altivas, como os clowns brancos, abre um caminho para a sátira.

A referência de Fellini aos palhaços que habitavam sua cidade é uma forma encontrada para estabelecer o jogo entre o medo e o fascínio, sentimentos trabalhados no circo e, com isso, percebe-se como a relação interpessoal, política, social e familiar pode se identificar com a dupla de palhaços. Assim, o filme I Clowns foi um momento de pensar o espetáculo não somente como uma forma de diversão e lazer, mas também como uma maneira de observar, perceber e atuar na sociedade italiana.

(...) minha cidade se tornou uma grande lona. Embaixo dela estavam os augustos, com o potestade e fascistas vestidos de clowns brancos.

O medo provocado pelos palhaços também podia ser encontrado em algumas figuras dementes da cidade (sobretudo os augustos, mais do que nos brancos); figuras que em casa eram tidas como assustadoras. “Se não comer, vai acabar como o Giudizio”, dizia minha mãe.

Giudizio era o próprio augusto de circo. Um sobretudo militar cinco ou seis números maior do que o corpo, sapatos de lona branca, mesmo no inverno, uma manta para cavalos nos ombros; tinha uma dignidade própria, como o mais esfarrapado dos palhaços. (...)

O Clown branco, ao contrario, com o fascínio lunar, a elegância noturna espectral, lembrava a autoridade congelante de algumas freiras diretoras de escolas ou então certos fascistas poderosos, vestidos de uma seda preta brilhante, dragonas douradas, o chicote (exatamente como a palheta do palhaço) (...) (idem, p.165).

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Essa versão da vida, a partir dos clowns, pôde dar a Fellini as variações de envolvimento e de personalidades perante as relações de poder: o submisso, que cede, e o poderoso, que manda. Percebe-se que essas relações não são estanques, visto que elas podem se modificar de acordo com o tipo de propósito e intenções.

Portanto, a concepção dos espetáculos populares desde o circo, fotonovela, ópera e teatro de variedades desenhou um estilo que prevaleceu em todos seus filmes e foram discutidos, posteriormente, no contexto televisivo, com o espetáculo, adquirindo novos contornos diante do advento da TV.

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A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM TELEVISIVA NA OBRA DE FEDERICO

FELLINI

Nesse capítulo, o objetivo é demonstrar de que forma ocorreu a reformulação da linguagem felliniana a partir da criação de seu primeiro filme para a TV. Os argumentos levantados se sustentam especialmente pela constatação de elementos comuns à linguagem televisiva que foram incorporados aos filmes de Fellini, como: luzes diretas, câmeras mais ágeis, entrevistas, narrador com voz de Deus, histórias fragmentadas, temas mais pertinentes ao mundo moderno, linguagem making-of, pessoas que interpretam elas mesmas e filmes com temas televisivos, apenas para citar alguns exemplos. À narrativa ficcional foram acrescentados elementos da narrativa documental, proporcionando, assim, circunstâncias mais propícias às discussões da linguagem televisiva e cinematográfica.

Sem abandonar o universo espetacular do teatro de variedades e do circo, tratados no primeiro capítulo, percebe-se que, nos filmes realizados após 1969, ano da estréia de Block-notes di un Regista, Fellini demonstrou uma crescente preocupação com três fatores: as conseqüências sociais e culturais a partir do advento da TV como meio de comunicação de massa; o empobrecimento do espetáculo popular quando inserido no contexto televisivo e, finalmente, a convergência de cinema e TV.

Imagem

Fig. 2   Idem
Fig. 5.   I Clown
Fig. 6.  I Clowns
Fig. 7.     Ginger e Fred
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