• Nenhum resultado encontrado

A EXPERIÊNCIA DE FAZER CINEMA NA ERA DA TELEVISÃO

No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 139-147)

Em quase todas as cenas pode-se observar não só como as entrevistas dos repórteres japoneses são insistentes, persuasivas, intrometidas, mas também cômicas e dinâmicas, dando leveza ao filme. A abordagem rápida e enfática tem o intuito de arrancar surpreendentes respostas do entrevistado que, sem tempo de pensar, diz a primeira coisa que lhe vem à mente. O repórter televisivo deve representar o telespectador para efetuar uma comunicação de cumplicidade, buscando a abordagem daquilo que o público quer ver e ouvir. Os espectadores almejam conhecer pessoalmente o ídolo e ter a nítida impressão de que podem participar de sua vida, sem sair da poltrona de suas casas e sem custo adicional. A televisão acena com essas possibilidades de forma única.

Os telespectadores, em geral, se sentem satisfeitos ao assistir a cobertura de uma emissora de TV que desvende a intimidade do ídolo. Por esse motivo, em

!$+"

Intervista, os repórteres ficam sempre juntos a Fellini para descobrir segredos de sua intimidade.

A propaganda é um outro ponto de discussão presente tanto em Intervista como em La Voce della Luna. Em Intervista as filmagens dos comercias realizados em Cinecittà explicita essa necessidade de propagar produtos para trazer mais verba às emissoras, produtoras, atores e estúdio. Grandes produções são realizadas para fazer um filme publicitário, como a filmagem do comercial das máquinas de escrever Imperial, em que jovens vestidos de fraque dançam em cima de uma enorme máquina de escrever, e o slogan diz: Use imperial e Zás - trás! É trabalho mais rápido. É como se o pedaço de um filme, com todo glamour possível, fosse trabalhado no intuito de usar maravilhosas imagens para persuadir as pessoas a adquirirem o produto anunciado.

Baudrillard em Significação da Publicidade, diz que é preciso ouvir pela voz publicidade, uma doce litania do objeto, seu verdadeiro imperativo:

“ ‘Veja como a sociedade não faz mais do que se adaptar a você e a seus desejos. Portanto, é razoável que você se integre a essa sociedade’. A persuasão, como diz Packard, faz-se clandestina, mas não visa tanto a ‘compulsão’ de compra e ao condicionamento pelos objetos quanto à adesão ao consenso social que esse discurso sugere: o objeto é um serviço, é uma relação pessoal entre você e a sociedade.[...]” (BAUDRILLARD, 2000:293, 294).

Nesse sentido pode-se citar a cena em que algumas jovens surgem das alamedas do estúdio, com roupas de desfile militar cor-de-rosa, acompanhadas por uma banda. Um travelling as acompanha e logo sabemos que é um comercial de batom que está sendo gravado. Uma mulher linda e sensual se posiciona em cima de um canhão. Um tiro sai desse enorme canhão e, ao som forte do disparo, um batom, grandioso e vermelho, é visualizado; apelo fálico que estimula as mulheres, até mesmo por um processo inconsciente, a adquirir aquele produto.

Servindo de emprego para os artistas, produtores ou diretores do cinema ou do teatro, os filmes publicitários transformam os estúdios de Cinecittà. Essas rápidas e caras produções são realizadas, na maioria das vezes, para serem veiculadas nos

!$!"

intervalos de filmes e de programas de TV, com o intuito de arrancar grandes quantidade de dinheiro oferecidos pelos patrocinadores à emissora. A propaganda também é grandiosa e bem cuidada. Entrelaçam-se a ilusão por detrás das telas, a persuasão dos filmes publicitários e a realidade dos programas de TV nos estúdio de Cinecittà.

Diante das câmeras da TV japonesa, Fellini se descontrai, penteia os cabelos e os espectadores são levados ao mundo mágico da cinematografia. O diretor reconstrói o universo fantástico de sua chegada a Cinecittà e, ao mesmo tempo, conta esses fatos aos japoneses. Vai atrás de elementos para reconstruir o passado, como a fachada da Casa del Passeggero, que busca redefinir a memória de outros tempos.

O filme burla a dor e a nostalgia que poderia incutir por ser um tanto idílico, e no lugar, coloca a fantasia e o inusitado. No entanto, a desolação proveniente da concorrência da TV com o cinema é um elemento que persiste no filme, sendo que esse confronto abre a discussão e constrói uma lógica entre essas duas linguagens. Percebe-se a possibilidade do convívio de ambas no mesmo espaço, apesar dos seus distintos propósitos; suas semelhanças tornam esse entrelaçamento factível. O filme que Fellini pretende fazer para mostrar como chegou a Cinecittà começa no bonde, com uma cena de sua primeira viagem a Roma. Detalhes são mostrados, fortalecendo a espirituosidade de Intervista. Numa cena, o ator que faria a personagem do fascista gordo não aparece e, rapidamente, Fellini improvisa, colocando em cena um de seus assistentes, que é magro e não é ator. Essas cenas relembram a equipe atrapalhada e clowesca de I Clowns.

Quando a equipe de filmagem sai pelas ruas para filmar as cenas da chegada de Fellini a Cinecittà, os atores são colocados dentro de um bonde que está em cima de um caminhão; nesse momento ouve-se uma música de circo. A fantasia do cinema está aberta, sem mistérios, o “real” e o imaginário juntos. Na continuação, em uma cena da época de 1940, esse bonde pára e o encontro do fascista com as vendedoras de uva retoma o momento em que os fascistas eram capazes de encantar o povo, vestidos na farda impecável, representando a figura do poder; as vendedoras de uva correm maravilhadas, cantando ao encontro do militar. Enquanto

!$#"

Fellini conta sua história à TV japonesa, ela é vivida pela personagem que o faz jovem nessas cenas; duas épocas distintas confrontam duas linguagens similares, porém diversas.

A pergunta da repórter japonesa a respeito de como Fellini faz para encontrar suas personagens desencadeia a cena do trem, onde seu assistente e o fotógrafo procuram, entre os passageiros, personagens interessantes. Pode-se ver nessas cenas como o diretor busca no cotidiano pessoas aparentemente comuns, que possuem características únicas e intrigantes.

O filme tem uma narrativa muito fragmentada, pois as perguntas da repórter da TV geram imagens retiradas de vários lugares distintos: do filme que Fellini está rodando, dos fatos que estão acontecendo no momento presente das filmagens ou dos preparativos de Amerika, em que Maurizio realiza testes para encontrar a personagem Brunelda. Essa busca incessante pelas personagens e a forma como os filmes se entrecortam mostram a complexidade de um diretor que mesmo antes de terminar um filme já necessita rodar outro.

No decorrer do filme, Maurizio realiza entrevistas com pessoas interessadas em participar de um filme do diretor. Noutra cenas, Fellini busca, através de fotos de roupas antigas, compor o figurino do elenco de Amerika, filme que pretende rodar logo na seqüência. Enquanto isso, um dos japoneses lhe faz massagens.

Há um momento mágico em que Marcello Mastroianni surge como por encanto na janela do escritório de Fellini que está no segundo andar do prédio, vestido de Mandrake e rodeado de bexigas e assobios de vento, dizendo: “Os pepinos de sempre? Problemas financeiros”. Como citado anteriormente, Marcello está fazendo parte de uma peça de publicidade e sobe por uma grua para ver Fellini.

A magia e a beleza do cinema é também enfatizada nas cenas em que Fellini sai do set de filmagens com Marcello e Sergio Rubini, o ator que está interpretando- o quando jovem, sempre acompanhados pelas câmeras da TV japonesa. Realidade e ficção se misturam; na vida “real”, Marcello Mastroianni fuma três maços de cigarro por dia e, com a idade avançando, torna-se menos interessante para os cineastas. Em Ginger e Fred, com a personagem Pippo, já é notória a decadência como uma

!$$"

característica da velhice. O diretor, os atores e a equipe da TV vão à casa de Anita Eckbert e são bem recebidos por ela.

Na sala, Marcello, Anita, Fellini, Sergio e a equipe japonesa assistem a mágica de Mandrake. Surge pela vareta do mágico um grande lençol branco e límpido, como o dos comerciais do sabão em pó, e nele podendo-se ver uma cena de La Dolce Vita. Todos voltam ao passado em que Anita e Marcello eram Sylvia e Marcello, dançando na Fontana di Trevi. As cenas dos dois dançando se alternam às dos dois em Intervista, vinte e seis anos mais tarde. O olhar dos atores diante do tempo passado é comovente, descobrindo a decadência do corpo, o avanço da velhice e a finitude da vida como algo real. A beleza física e o endeusamento do ser são desmascarados perante aquelas cenas de ficção e realidade.

Para relembrar a poética do cinema, essas personagens, que no presente estão sendo filmadas pelas câmeras da TV, revivem o tempo passado com saudosismo e conformismo, brincam com suas perdas, remontando à época de glória e glamour. No presente, Marcello como Mandrake e Anita com seus cachorros, vivem na era da modernidade tentando se adaptar à realidade vigente. O filme rapidamente retoma Cinecittà, logo nas cenas seqüentes, no estúdio quatorze, onde iniciam-se os testes para o filme Amerika; as câmeras da TV continuam assistindo a tudo com persistência, o palco móvel, as câmeras grandes empurradas pelos assistentes; um mundo de ilusão cinematográfica que insiste em existir. Maurizio explica aos japoneses que ali será o teste para as personagens de Amerika, de Kafka. O ambiente do estúdio está compondo cenas do próprio filme. A voz insistente de Fellini se destaca na grande confusão, em torno dos ensaios. Fora deles, os atores dançam denunciando a alegria de fazerem parte de uma filme. As cenas dos testes dos atores mostram a grande frustração dos artistas não escolhidos se contrapondo à alegria dos contratados. Trabalhar no cinema é um momento importante na vida de um ator ou de pessoas comuns que querem ter seus quinze minutos de fama.

Nas cenas finais, vê-se o início da chuva durante as filmagens, o que obriga a equipe a interromper as tomadas externas. Os refletores enormes começam a

!$%"

quebrar e os cenários devem ser retirados. Anoitece e a alegria da equipe de filmagens e atores continua, guardados embaixo de plásticos transparentes.

Uma bola de fogo é jogada e todos sabem que o inimigo está chegando. A cena mostra várias antenas de TV que estão nas mãos de índios como armas. A luta entre os índios e as pessoas determina o conflito entre a TV e o cinema. Como em Prova d’Orchestra, com a grande bola maciça, o confronto é estabelecido aqui pelas bolas de fogo. Nesse momento o embate não convence e, ao contrário de Prova d’Orchestra, tudo parece uma grande brincadeira. Será que aqui Fellini já não mais acreditava na crise? A desordem estabelecida não podia mais dar conta do tamanho da confusão. O cinema, a publicidade e a televisão não teriam mais como viverem separadas. Fadadas à união, o conflito se transforma em contemplação.

Como em um circo, os trabalhadores do cinema atiram com espingardas nos índios que trazem nas mãos antenas de TV. Embalados por uma música circense, a mesma canção das cenas finais de I Clowns, os índios rodam em torno dos toldos transparentes. A voz de uma personagem, ex-palhaço de circo, diz: “Podem parar”. Eles param e comentam a respeito das filmagens; felizes terminam de filmar o filme de Fellini. Qual seria esse filme, Intervista? O filme dos japoneses? Ou o filme da chegada de Fellini aos estúdios de Cinecittà?

As cenas continuam, nem todos esses filmes acabaram pois as filmagens persistem. Nesse momento, todos se despedem, as luzes se apagam e, no estúdio vazio vem a pergunta da voz-off:

O filme deve terminar assim? Na verdade já terminou. Ouço as palavras de um antigo produtor. Mas como vai terminar assim, sem um fio de esperança? Sem um raio de sol, pelo menos me dê um raio de sol. Ele implora ao final de cada filme. Um raio de sol, vamos tentar... primeiro take.

Intervista encontra sua forma mais realista para lidar com o incômodo proporcionado pela TV e pela publicidade na era da modernidade. Parece que aqui, nada mais poderá ser feito para resgatar o tempo passado. Inevitavelmente a TV e a publicidade fazem parte da nova era do audiovisual contemporâneo. Sobra ainda a

!$&"

Fellini o circo, a ironia e a comicidade para lidar com a pressão capitalista dos tempos modernos.

!$'"

!$("

No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 139-147)