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FELLINI E SUA FICÇÃO DOCUMENTÁRIA

No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 68-80)

Como visto anteriormente, percebe-se uma cisão estrutural fílmica na obra felliniana desde a sua participação em Block-Notes di um Regista (1969). Historicamente falando, aproximadamente na década de 60, a Itália devastada pela guerra atravessava um período de reconstrução econômica e cultural. Com o capitalismo levado a níveis mais intensos pelos norte-americanos, a cultura italiana, praticamente agrária, foi fortemente influenciada e afetada pela americana, totalmente tecnológica. A televisão surge em meio a esses conflitos e, de certo modo, influenciada por eles. Por volta de 1960, a televisão já era um meio de comunicação de massa na Itália, e a possibilidade de Fellini realizar filmes para a TV

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era uma estratégia bem-vinda, uma forma de se comunicar com o grande público. Parece ter acontecido meio por acaso a aproximação de Fellini com a TV.

A televisão era um desafio para Fellini, um cineasta que sempre bebeu na fonte dos espetáculos populares; a oportunidade de popularizar seu cinema era tudo que queria. Essa possibilidade de realizar filmes para a TV, apesar de lhe parecer assustadora, também o encantava. O caminho percorrido para seu ingresso na TV como diretor foi descrito por Tullio Kezich, em Fellini: uma Biografia (KEZICH, 1992:52), um se seus biógrafos mais importantes.

Fellini teria assinado um contrato com o produtor americano, Peter Goldfarb, se comprometendo a dar uma entrevista para o Sperimental Hours, um programa de entrevista que consistia em por à disposição de personalidades importantes do espetáculo e da cultura 55 minutos para realizarem uma entrevista mais livre e criativa. O Sperimental Hours era apenas um projeto que acabou não se concretizando. No entanto, Fellini precisou cumprir o contrato. Realizou então, às pressas, em meio aos preparativos para rodar Satyricon, o filme Block-Notes di um Regista (1969).

Depois de Block-Notes di um registra Fellini roda I Clowns (1970) e Prova d’orquestra (1978), completando três filmes feitos para a TV. Intervista (1978), Ginger e Fred (1985) e La Voce de La Luna (1989), realizados para o cinema, possuem como temática principal discussões a respeito da televisão. Percebe-se que a possibilidade de produzir para esse meio tão popular fez Fellini repensar sua estética cinematográfica, agregando a ela características do documentário e da reportagem televisiva. Assim tornou sua obra cinematográfica mais jornalística e direta, sem perder o tom fantástico e inusitado, características marcantes de todos seus filmes.

Em Ginger e Fred (1985), Fellini ironiza os programas de auditório, relacionando-os à invasão cultural norte-americana e ao capitalismo galopante, evidenciados nas propagandas de rua e nos anúncios da TV. A invasão de outdoors na cidade e a estação de trem se contrapõem ao lixo das ruas, aos pedintes e ao caos urbano. Os aparelhos de TV, presentes em todas as cenas, tanto nos lugares públicos quanto privados, intervêm na vida das personagens com suas formas de

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persuasão. Pelos aparelhos televisivos podem-se ver vários tipos de comerciais, filmes publicitários, concursos de comida, jogos de futebol e programas de auditório.

No filme, o programa “Com Vocês” é o eixo central da trama. Ele é uma mistura de reality show, freak show e talk show, um mix de atrações díspares que são incrementadas pela participação de pessoas comuns ou artistas de circo e do teatro popular que, no palco, se submetem aos desmandos da TV para desfrutarem alguns minutos de fama. A rapidez da seqüência das atrações é assustadora; mal o espectador se recuperou de um choro e, ainda com os olhos cheios de lágrimas, se diverte com uma situação bizarra ou grotesca que é colocada logo na seqüência. Os produtos do cavalheiro LOMBARDONE patrocinam esse programa híbrido. A todo momento entram merchandisings de um de seus subprodutos, algo incessante, tão rápido, que mal dá tempo de pensar.

O problema tratado no filme não está centrado nos aparelhos de TV, e sim no que neles é propagado. Para quem serve a televisão? Para que são realizados os programas? Qual a intencionalidade da TV? É nessas questões que se encontra o ponto de discussão.

A televisão proporciona aos espectadores varias formas de assistir a seus programas: muitas vezes apenas se olha para o visor, mas não se vê o que ela apresenta; outras, se vêem pequenos trechos entrecortados, sendo necessário juntar esses fragmentos para dar um sentido; noutras, só se ouve o som de um outro cômodo da casa, e ainda noutras, só se vê a imagem, como nos lugares públicos, onde o som fica submerso no ambiente. Assim sendo, a TV se configura como uma caixa mágica que pode trazer o mundo através de uma janela.

Jean-Claude Carrière aborda as modificações técnicas e estruturais da imagem a partir do advento da TV, tendo o cinema como referencial: a perda do feixe luminoso acima de nossas cabeças, em contraponto às imagens frontais da televisão; a dimensão reduzida da TV perante a tela de cinema; e o fato de os aparelhos estarem em casa ou em algum lugar público, convivendo com os ruídos, sons, luzes acesas e tudo que estiver em seu entorno. Segundo Carrièrre, essa rapidez induz a um certo amortecimento do espectador perante as imagens. Imagens que não se cansam de passar, passar, passar uma atrás das outras. As

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imagens se referem ao mundo em que vivemos, mas, quando se encontram na tela luminosa, parecem se ressignificar. O autor diz: “Basicamente a televisão não pertence a este mundo”. ( Carrière, 1995 p.70).

A impressão pode ser outra, mas certamente a televisão pertence a esse mundo. Como todas as mídias, ela é um elemento social, político e cultural de uma sociedade. Em 1970, Hans Magnus Enzensberger escreveu, em Elementos para uma Teoria dos Meios de Comunicação, que a mídia não é um instrumento neutro e, sim, uma “indústria de consciência”, portanto a televisão também é aquilo que nós fazemos dela:

“Com o desenvolvimento das mídias eletrônicas, a indústria da consciência tornou-se o marca-passo do desenvolvimento socioeconômico das sociedades industriais tardias. Ela invade todos os outros setores de produção e assume cada vez mais funções de comando e de controle, determinando o padrão da tecnologia dominante” (ENZENSBERGER, 2003, p.11).

Em Ginger e Fred, Fellini aproxima a televisão dos conflitos socioculturais e econômicos da Itália contemporânea ao filme. Obviamente, discutir televisão perpassa pelo conceito múltiplo no qual ela está inserida. O repertório é infinitamente variável, contendo novelas, minisséries, telejornais, filmes, programas de auditório, propagandas e desenhos animados, transmitidos em várias emissoras, públicas, privadas, universitárias, canais abertos e a cabo, nacionais e internacionais. O recorte estabelecido, o programa “Com Vocês”, inserido no filme,

foi baseado nos estilos norte-americanos de programas de auditório. Já em I Clowns, a estética jornalística remete à própria forma da televisão.

Em vários planos do filme, podemos ver a câmera como elemento importante da filmagem; o personagem que está em cena aparece com uma câmera na mão, supostamente filmando de outro ângulo a cena que vemos. A câmera é um personagem do filme, o que o diferencia, por exemplo, de La Strada, onde a vida mambembe das personagens Gelsomina e Zampanò construía o eixo central da trama, tomando-o como ficção.

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Constituído por duas partes, I Clowns faz a inter-relação entre o sonho e a realidade. Resgata a personagem palhaço, apresentando-a por oposição – mobilidade/saúde, juventude/alegria, sucesso/prazer - e, por outro lado – imobilidade/tristeza, fracasso/doença, velhice/morte. Apesar de trabalhar com o pretérito, percebemos que Fellini tem a intenção de fazer um filme vivo. Vários palhaços fazem o papel deles mesmos no passado, quando atuavam no circo. É interessante notar que, ao convocar palhaços para essa tarefa, Fellini não só revive o ido e vivido, mas o reconstrói. Ele poderia usar as fotos e imagens de arquivo para demonstrar os números circenses, sem perda do sentido histórico de resgatar aquilo que foi e não é mais. Entretanto, quando opta por reviver as cenas, realmente as reorganiza com os personagens reais, não representando tão somente o que foi, mas o que ainda é, como em uma história do presente.

O filme inicia com uma tela vermelha, música circense e um canto rouco de um palhaço – aparece o título e entram os créditos. Na seqüência inicial, a apresentação descritiva da chegada do circo se faz pelos olhos do menino, que se levanta durante a noite ouvindo uma voz de ordem forte, ritmada; o barulho de peças metálicas forçadas por cordas o deixa curioso. Olha pela janela de seu quarto, mas, na penumbra, não pode destingir bem o que vê: parece ser uma lona se levantando como num milagre. Através das grades de um presídio, os detentos também olham surpresos. Essa cena parece retirada de um sonho e remete à poética do circo, o circo da magia e do encantamento dos meninos. Essa alegoria propõe questionamentos. Na primeira parte do filme, o narrador – voz off – conta algumas histórias recordadas pelo menino, e o flashback funciona como eixo central de descrição das memórias e situações vividas na Itália no período do fascismo e da Segunda Guerra Mundial.

As personagens inspiradas em pessoas do cotidiano representam ícones de sentimentos, como medo, desejo e fascínio. Muitas delas voltaram em Amarcord, influência felliniana dos quadrinhos e da Commedia dell‘arte, com personagens recorrentes incluídos em histórias fragmentadas, provenientes do teatro de variedades e do circo.

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Podemos citar algumas personagens inseridas em I Clowns, que Fellini associava a clowns augustos; um deles é Giovannone, que aparece na primeira história contada pela voz-over. Ele é um homem que provoca as mulheres, um mendigo, extremamente inofensivo com seu membro de lebre morta. Um típico clown augusto – provocador. Outra associação acontece entre os palhaços anãos, que lembram uma freira, também anã, que vivia falando sozinha, ora no hospício, ora no convento. Ela voltará em Amarcord. Outra personagem relembrada é uma mulher que sabia todo o discurso de Mussolini e o anunciava em voz alta. O fascismo também foi representado pela figura do chefe da estação e por Giudizio, outro clown augusto, que vivia na cidade, um homem maltrapilho atormentado pelos terrores da guerra. Seus atos de loucura simulam combates – joga bombas imaginárias, se esconde de inexistentes inimigos e atira com espingarda sem munição. As crianças não têm medo de Giudizio. Pelo contrário, saem na rua compartilhando da brincadeira.

“Giudizio era justamente um augusto de circo. Um capote militar cinco ou seis vezes maior que seu corpo, sapatos de borracha branca até no inverno, uma manta de cavalo nos ombros. Mas possuía sua dignidade, como o mais esfarrapado dos palhaços”. (Fellini, 2000, p.124).

Fellini recria o autoritarismo pela dupla de palhaços – clowns augustos e clowns brancos. Os clowns augustos, maltrapilhos, debochados, porém inofensivos e, por outro lado, os clowns brancos, autoritários, impiedosos e, no entanto, alvo de gozações dos clowns augustos.

Na primeira parte do filme, a hipótese onírica amplia o laboratório de sentimentos. O menino que vê a chegada do circo, sente-se fascinado, entretanto, quando assiste ao espetáculo à noite, chora com medo dos palhaços. O fascínio e o medo estão incluídos na abordagem que Fellini deu ao circo: um mundo de desafios, encantamentos e perigos. Na segunda parte do filme a procura dos palhaços na França é estruturada a partir do making-of da equipe de filmagem. As narrações são intercaladas ora por Fellini, o diretor que narra o filme, ora por Maya, a secretária que narra o documentário para a televisão.

Enfim, a poética do filme leva os espectadores a um belo passeio por esquetes circenses de algumas trupes e da dupla de palhaços que foram

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cuidadosamente revividos e encenados no filme. Todas as cenas que incluem palhaços e a trupe circense foram encenadas por verdadeiros palhaços e artistas circenses, trazendo realismo às cenas.

Fellini aparece quase todo o tempo no filme, deixando claro que ele é o diretor e, ao mesmo tempo em que dirige o filme, dirige o documentário que estaria sendo realizado para a televisão italiana. A ficção está caracterizada e explícita, porém no circo mostrado por Fellini, os palhaços e os atores são os próprios artistas citados.

As duas seqüências que iniciam o filme acontecem numa narrativa linear e contêm continuidade, porém a seqüência seguinte rompe com a narrativa, a qual se inicia com um engolidor de fogo que posa para as câmeras do filme. As demonstrações dos números circenses seguem aparentemente sem nenhuma relação com as cenas dos dois primeiros planos. Esse início assemelha-se aos documentários que, isentos da formalidade da ficção, podem ir e vir com narrativas fragmentadas, mais livres e soltos, sem necessidade de uma história com começo, meio e fim. No filme, a importância é dada ao contato com o mundo lúdico do circo. Entram em cena os palhaços, todos ao mesmo tempo. Sons se misturam às cores e aos movimentos rápidos. O menino que avistou o circo da janela do quarto está na platéia, sente medo e começa a chorar. Depois, em seu quarto, se lembrará de situações que lhe provocaram medo e fascínio.

O circo fornece pretexto para Fellini, em voz off, narrar situações em que o medo e o fascínio se inter-relacionam, ocorrendo uma ruptura da narração linear. A narração-off conta histórias de pessoas comuns que se convertem em personagens que lembram os augustos de circo, funcionando como elemento de distanciamento do clima poético. Pessoas do cotidiano são, para Fellini, as personagens “clowns” da Itália. A voz off narra fatos de pessoas reais, porém ela é preenchida com imagens de atores revivendo as histórias. Como contar o circo sem trazer a poética circense à tela? O menino que agora está no quarto, pensativo, não voltará ao filme. Ele é a metáfora dos medos e anseios sugeridos pelo filme. A quebra da narrativa sugere um outro caminho.

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Fellini apresenta sua equipe de filmagem, fortalecendo a idéia de um filme de reportagem; as luzes fortes e diretas da câmera denunciam a falta de naturalidade e imediatismo próprios da câmera televisiva. Federico incorpora entrevistas de palhaços franceses, espanhóis e italianos que se encontram na França, fazendo um paralelo entre fantasia do circo e a realidade. A necessidade de uma linguagem mais despojada e mais pertinente à televisão traz para o filme elementos do documentário, com entrevistas, equipe de filmagem, som direto, movimentação atrapalhada, utilização do making-of da câmara subjetiva, das luzes fortes da TV e da câmera na mão. Cinema ficcional imbuído e emerso no mundo real

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DA CRISE EXISTENCIALISTA DO PÓS-GUERRA AO MUNDO TELEVISIVO EM I CLOWNS E GINGER E FRED, NA LINGUAGEM CLOWESCA DE FELLINI

“Em 1943, 1944, a Itália tinha sido liberada e tudo estava nas mãos dos americanos: jornais, rádios, revistas e sobre as telas só se viam os seus filmes, para a grande alegria do público que jamais havia esquecido os deuses do único cinema verdadeiro, aquele que lhes presenteava com divertimento, sonhos, evasão, aventura. Quem é que tínhamos? Besozzi, Viarisio, Macario, Greta Gonda. Como se poderia competir com a volta de Gary Copper, Clark Gable, os irmãos Marx e Carlitos, e todas as belíssimas estrelas, e seus assistentes de direção?” (Fellini, 1980: p.10).

Em meados de 1940 e 1950, as produções cinematográficas hollywoodianas continuavam emocionando os italianos, com seu cinema de sonhos, aventuras e entretenimento. Por um lado, suas estrelas encantadoras, lindíssimas e talentosas, eram adoradas e veneradas também nos quatro cantos do mundo; por outro lado, o cinema italiano se apresentava, ainda, muito atrelado às perdas e danos decorrentes das duas grandes guerras mundiais. A presença marcante do regime totalitário, fascista e, posteriormente, da aculturação norte-americana, delineou um estilo próprio pautado nas dores, lutas e angústias do povo italiano; um cinema especifico para contar a história de um lugar.

Nessa época, por um outro viés, Fellini se propôs a fazer filmes nos quais as relações interpessoais traumáticas e insólitas, oriundas desse período histórico, fossem destrinchadas e expostas na figura de seus personagens, como fez com as duplas Gelsomina e Zampanò, em La Strada, e Ivan Cavalli e Wanda, em Lo Sceicco Bianco.

Quando Fellini elege uma dupla de clowns, em La Strada, para representar as angústias do homem moderno, ele opta por fazer um cinema humanístico pautado numa temática mais universal. Talvez esse seja o motivo pelo qual o filme tenha levado o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1956.

A melancolia desse período conturbado e incerto contagiou grande parte do mundo e serviu de inspiração para inumeráveis produções artísticas, tanto na Itália

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como em outros países da Europa. Não só o cinema, mas as artes, em geral como o teatro, a dança, a música e as artes plásticas se voltaram às questões relacionadas ao homem e suas aflições.

O teatro de Samuel Beckett é emblemático nesse sentido. Ao se referir à crise existencialista, constrói as histórias e as personagens, tendo como base o teatro do absurdo. Em Esperando Gogot (1952), por exemplo, Beckett realiza um debate intrigante da condição humana, explicitando, via atuação das duas duplas clowescas, as incertezas e mazelas da humanidade: Na primeira parte da peça, Didi e Estragon, dois clowns augustos, sofrem de medos e inseguranças e, mesmo assim vivem da esperança de encontrar um tal Godot, solução para todos os seus problemas. Na segunda parte da peça, Lucky e Pozzò, vivem uma inescrupulosa relação de senhor e escravo; a opressão do escravo se perpetua na maldade do senhor e vice e versa. As atitudes cruéis de Lucky, um clown branco, sobre Pozzò, seu escravo, traz à tona as relações de poder e submissão levadas ao extremo. Em Fellini, as interpelações da vida mambembe de Gelsomina e Zampanò, presentes em La Strada, representam metaforicamente os conflitos existencialistas e sociais vividos no pós-guerra, não somente pelo povo italiano, mas também por grande parte da Europa. Pode-se traçar um paralelo entre o teatro do absurdo, de Beckett, e o filme La Strada, de Fellini.

Contemporâneos, Fellini e Beckett, respectivamente em La Strada e Esperando Godot, mostram a mesma desolação com quatro personagens clowescos, tristes, angustiados e inseguros. É notória a similaridade entre essas duas obras, que, com poéticas distintas, retratam o período de incertezas, medos e angústias pelo viés da dupla de clowns. Veja-se que em La Strada, Fellini expõe não somente a dor causada pela ruptura social e cultural da Itália contemporânea ao filme, como também faz um crítica das relações interpessoais no mundo moderno. A história de Gelsomina e Zampanò mostra as relações de poder, de autoritarismo e de submissão diante de situações limites. Como conseqüência da guerra, surge a fome, a desesperança e a miséria das famílias do sul da Itália que, muitas vezes, se viam obrigadas a vender suas filhas maiores em troca de algum dinheiro para continuarem sobrevivendo. Esse é o story-line do filme.

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Essas duas personagens, perdidas numa estrada qualquer, remetem a Esperando Godot, em que Vladimir (Didi) e Estragon (Gogô) se vêem à espera de um certo Godot, metáfora da possível solução para seus problemas existenciais. Dois clowns, como Gelsomina e Zampanò, ou como Didi e Gogo, caminham por estradas desérticas buscando algo que certamente não encontrarão. Dramatiza-se o desencanto do ser estrangeiro em seu próprio território, em seu próprio lugar, à procura desesperada por algo que venha a amenizar seus sofrimentos e suas incertezas. Becket e Fellini, respectivamente, em Esperando Godot e La Strada, realizam um relato da condição humana do pós-guerra, tendo como personagens centrais figuras marcantes e caricatas.

É interessante notar que a comicidade presente na caracterização e nas atitudes das personagens promovem um estranhamento, um olhar crítico da dor e do sofrimento. Ponto importante a se ressaltar, visto que Fellini utilizaria esses tipos caricatos e cômicos como elementos de distanciamento por toda sua filmografia. O processo se dá quando o espectador, afastando-se das dores e das angústias, via caracterização clowesca das personagens, passa a enxergar o que está por detrás daquilo. Rindo, alivia-se a tensão, possibilitando, assim, ver por um outro ângulo. Livre da catarse aristotélica, o público pode se distanciar dos problemas, num estranhamento brechtiano induzido pela ironia e pela comicidade. Provoca-se o riso

No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 68-80)