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BLOCK-NOTES DI UN REGISTA: UMA CELEBRAÇÃO À CRIAÇÃO NUMA CRÍTICA AO

No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 112-122)

Block-notes di un Regista inicia com uma panorâmica que se movimenta

devagar pelo antigo set de A Viagem de Mastorna, filme não realizado de Fellini. Os conflitos de um cineasta que adia a confecção de sua obra são enfatizados na primeira narração over do diretor. Block-notes se configura como um momento de reflexão e questionamento a respeito do cinema de Autor, do artista diante de sua obra. Esse tema já havia sido discutido em Otto e Mezzo (1963), com o personagem Guido em sua crise pessoal e autoral, colocando em xeque-mate o tão aclamado cinema de Autor, enaltecido pela Nouvelle Vague. Guido seria Fellini? O ícone Fellini seria desmontado?

Estes são os primeiros impasses do filme: a voga de cinema de Autor e a idéia de que sua obra não é tão autobiográfica quanto parece. Essas questões foram levantadas por Luis Renato Martins, que propôs, no lugar, vertentes mais interessantes para as análises fílmicas. A ironia e a paródia são utilizadas como armas de crítica e de “distanciamento” desses pressupostos. Essa seria a hipótese mais lúcida para um pensamento politizado e impessoal de Fellini.

Com a narração-over do cenário abandonado de Mastorna, tem-se, ao mesmo tempo, um olhar agudo sobre a indústria cinematográfica, com seus produtores inescrupulosos, e a incredibilidade da competência do diretor do filme. Não é por acaso que os hippies estão acampados nas ruínas do set de Mastorna. A presença deles se evidencia como contraposição ao pulso forte da indústria cinematográfica, valorizando o ambiente de liberdade. Na poesia de um personagem hippie, recitada a Fellini, percebe-se o encanto com o onírico, com o fantástico e com o universo criativo. A liberdade dos hippies se contrapõe ao cárcere dos fantasmas de Mastorna.

“ Mastorna-blyuz

Eu vivo numa cidade chamada Mastorna Que o sonho dos tolos descansa aqui

Uma cidade inútil onde ninguém quer morar e ninguém gosta de trabalhar ouodiaria morrer, todas as casas são seladas com portas de madeira, que

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ninguém tem a intenção de abrir. E tem um avião que não irá decolar Mastorna

Cidade triste e linda.

É a beleza que gosto antes de outras, porque ela sempre espera por sua estupidez.

Eu quero morrer aqui em Mastorna, e aqui ser enterrado naquela igreja de papel cartão.

Onde os padres não entram” 5

A inutilidade de um cenário vazio, de um lugar sem serventia, isolado e abandonado no mundo. Ruínas sem importância. O enigma do desconhecido, a indefinição de qual caminho seguir no emaranhado de exigências e de mudanças. Como prosseguir indiferente perante a televisão como meio de comunicação de massa e de produtores norte-americanos? Essas incertezas eram autênticas. A narração-over seria um indício de que a linguagem televisiva, documental e making- of se fazia presente no filme.

“Essas estranhas e solitárias formas foram construídas para um filme que eu planejei e não fiz, chamado Viagem de Mastorna.

O cenário permanece assim sem utilidade e vazio, em um estúdio perto de Roma.

Nesse estranho lugar haveria um acidente de avião que faria o herói do filme morrer... um violoncelista.

E a partir desse lugar estranho começaria sua jornada por um cenário absurdo de pesadelo.

Há pouco tempo atrás eu voltei para ver esse cenário novamente, estava mais bonito que agora, coberto de grama, a decoração parecia mais integrada às peças do cenário.

Algumas pessoas encontraram abrigo nessas doidas ruínas” 6

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5 Trecho retirado do filme Block-notes di un Regista. 6 Idem

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Não foi por acaso que Fellini batizou o filme de Block-notes di un Regista. Uma mistura de Block-notes, caderno de anotações, escrito em inglês, e di un Regista, diretor de cinema, escrito em italiano. O incômodo dos personagens em falar inglês é evidenciado no discurso fílmico, funcionando como crítica à aculturação norte-americana que, desde o pós-guerra, aprisiona a Itália.

Os hippies acampados no set celebraram um casamento sem padres e igrejas: seria uma metáfora da liberdade de ação, sem religião e sem poderes externos? Provavelmente um pensamento oriundo do desmoronamento da tríade Deus, Pátria e Família, “(...) valores que sobrevivem à queda do regime e se mantêm como pilares do regime anticomunista, guindado pela Guerra Fria” (MARTINS, 1994:19). As pessoas poderiam ser como eles – os hippies - vagando por ai livres de valores e crenças? É possível fazer filmes sem se envolver com produtores americanos e com a televisão? As incertezas agora estavam à frente de Fellini: o filme não realizado (Viagem de Mastorna), um filme para televisão em andamento e aparentemente ainda sem rumo (Block-notes di un Regista) e, por fim, a busca das personagens para Satyricon. Esse encadeamento de fatos descaracterizaria o ícone Fellini?

Em meio às dúvidas e aflições, surgem exagerados assobios de ventos e uma cena de Mastorna é inserida em Block-notes. Nela, vemos o interior de um avião que faz parte do cenário e, de dentro dele, ouvimos uma voz de aeromoça avisando sobre a aterrissagem forçada. Assim termina a cena, com a poeira e o vento levantando os conflitos de Mastorna.

“Ventos fortes, mudanças bruscas de temperatura. Instabilidade climática revelando sentimentos humanos. Fellini incorporou a seus filmes pequenas cenas onde os fenômenos naturais projetam e enfatizam as emoções dos personagens – ruídos de pássaros e assobios exagerados de ventos inseridos com cuidado, nos remetem às emendas onomatopéias, reminiscências dos desenhos e das histórias em quadrinhos – habilidades consagradas de Fellini reveladas no decorrer de sua filmografia” (SANTOS, 2001:15).

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Fellini aparece apresentando sua assistente Maria Boratto, que mostra o “cemitério” de Mastorna, onde restos de figurinos, cenários, desenhos e pinturas explicitam a frustração e o remorso do diretor. O aparecimento de Maria Borato desencadeia uma característica documental, com imagens autênticas de sua assistente, as câmeras e a equipe de filmagem. Imagens de uma ficção, afinal tudo é montado e idealizado a la Fellini – realidade e sonho. Supõe-se que estamos diante de um documentário ou de um docuficção. Seria esse um filme-ensaio ou ensaio audiovisual para a TV, mostrando o trabalho de um diretor de cinema?

As cenas do metrô satirizam a rapidez com que a televisão procura soluções. A equipe mostrada por Fellini não filma efetivamente, estando em cena somente para satirizar o filme para a TV. Arlindo Machado, em seu artigo Filme-ensaio, escreve, a respeito desse jeito de fazer cinema, uma interessante reflexão de Mattoni, que parece categorizar o estilo fílmico de Block-notes:

“Não se trata então de dizer, se quisermos seguir o raciocínio de Adorno, que o ensaio se situa na fronteira entre literatura e ciência, porque, se pensarmos assim, estaremos ainda endossando a existência de uma dualidade entre as experiências sensível e cognitiva. O ensaio é a própria negação dessa dicotomia, porque nele as paixões invocam o saber, as emoções arquitetam o pensamento e o estilo burila o conceito. “Pois o ensaio é a forma por excelência do pensamento no que este tem de indeterminado, de processo em marcha em direção a um objetivo que muitos ensaístas chamam de verdade” (Mattoni, 2001:11).” (MACHADO, 2001:64)

O que seria então o filme Block-notes? Cinema como forma de pensamento composto por imagens e sons, revelando afeto e emoções (Aumout,1996)? Ou como em Eisenstein, um filme-montagem e conceitual?

Em Block-notes depara-se com um filme que começa sem eixo dramático ou narrativo claro, nem story-line definido. Suas personagens são “colocadas” no filme, como os hippies, que são atores. Em alguns momentos esses atores são intercalados nas figuras do diretor, que é o próprio Fellini, e de sua assistente Maria Boratto, que interpreta ela mesma. Trata-se de uma ficção que utiliza elementos da

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linguagem televisiva e documental. As cenas das estátuas dos imperadores romanos, logo na seqüência do matadouro, reverencia Eisenstein na montagem conceitual. O filme apresenta um paralelo entre Roma antiga e a Roma atual. O matadouro foi um lugar significativo encontrado por Fellini; metaforicamente, representa a Roma antiga: sangue, morte, homens romanos covardes e corajosos. O Coliseu é mostrado por fora, evidenciando sua magnitude. Dentro dele, uma personagem entra em cena: uma vendedora de poeira do Coliseu. Ela diz vender a poeira para americanos curarem reumatismo. Essa mulher é um retrato da sátira aos americanos que, por falta de tradições, se voltam para o mundo antigo com uma ingenuidade inverossímil. Uma simples mulher do povo pode tirar proveito dessa situação para ganhar dinheiro vendendo poeira de um Coliseu já degradado. Por que Fellini fez um filme para a TV questionando as indecisões de um cineasta a respeito do seus filmes? Ao colocar essas questões em cena, Fellini permite ao público de televisão, mais extenso que o de cinema, vivenciar os conflitos de um cineasta, de suas produções e inquietudes. Duas narrações se intercalam no filme: a de Fellini e a do narrador americano, constituindo-se uma metalinguagem na perspectiva de dois olhares, o de dentro e o de fora.

Block-notes figura como um grande making-of de si mesmo, da procura dos personagens para Satyricon e da frustração de Mastorna. A televisão é eleita para o telespectador ver o cinema de forma visceral, passando por um processo de discussão e questionamento.

A presença da convergência entre cinema e TV é perceptível em várias momentos, como quando Fellini inclui uma entrevista com Giulietta Masina, representando ela mesma, dando um depoimento a respeito da parte cortada do filme Le Notti di Cabiria. As cenas cortadas desse filme entram em Block-notes, preenchendo a entrevista e discutindo a miséria e a prostituição da periferia de Roma. Tateando uma estética fílmica, Fellini flerta com o documentário e com a ficção.

Na cena onde aparece o teste para o filme A Viagem de Mastorna, em que Fellini dirige Marcello Mastroianni, o violoncelista morto, fica evidente o descontentamento que Fellini tem com a sua direção. Logo, em um cena posterior,

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Mastroianni comenta com o diretor suas atuações em Otto e Mezzo e La Dolce Vita, ressaltando que Fellini já havia encontrado dificuldades em dirigi-lo vivendo outras personagens.

Block-notes di un Regista revive o passado nos momentos em que Fellini procura suas personagens para atuar em Satyricon, assim como nas imagens dos afrescos que se desmancham aos olhos de todos; o presente é representado nas cenas da construção do metrô. Associados a esses dois tempos aparecem, respectivamente, o cinema, através da frustração de Mastorna, e a televisão, que aparece na linguagem fragmentada, com câmeras subjetivas e luzes chapadas. A metáfora de Giuseppe morto, voltando a um mundo inexistente, mundo que ele deixou e não será mais o mesmo; as novas formas de se fazer cinema; o mundo antigo e o novo mundo em consonância; as dúvidas de um diretor de cinema a respeito de suas personagens e de seus filmes; o questionamento da linguagem cinematográfica e televisiva, tudo isso é Block-notes, um filme-ensaio que põe em cheque o cinema, a arte e o audiovisual contemporâneos.

“Não podemos mais falar em imagens simples, a imagem-vídeo cria uma nova linguagem, uma nova forma utópica, capaz de permitir, a partir da integração com outras formas de expressão (cinema, fotografia, pintura), sua organização em um sistema próprio”

Raymond Bellour. (apud: Bruna Leonardi, Peter Greenaway e o cinema pós- moderno, www.greenawaymoderno.blogspot.com).

O filme termina no escritório de Fellini, onde entrevistas com seus possíveis personagens de Satyricon são realizadas. O diretor enfatiza que essa atitude parece cínica e cruel, exibindo imagens dos diversos entrevistados; no entanto, ao mesmo tempo, diz amar essas personagens, pois, para ele, são a própria Itália. “As qualidades humanas são ricas, engraçadas e muitas vezes nobres”7

A entrevista é um atributo do documentário, que parte do indivíduo para entender o todo; fortalece-se a pessoa particular para se chegar a uma """""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""

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representação de classe social ou tipo ideal de personalidade. As entrevistas criam maior proximidade entre as personagens e os telespectadores. As personagens de Fellini são reais, mas fica claro a associação com a fantasia que cada um carrega intrinsecamente. Todos elas trazem em si uma centelha do povo italiano, que é o foco do universo fílmico felliniano. Essas entrevistas agregadas ao filme mostram a necessidade do diretor de estabelecer vínculos com a “realidade” que o cerca, mas sem se aprisionar a eles. Os desejos e anseios de suas personagens se confundem com os seus, edificando-se uma espécie de arquétipo da Itália. Essa busca pelas personagens mostram como a ficção e a realidade conversam e atuam numa mesma linha de raciocínio.

A construção de uma linguagem que dialogue com fatos reais e fictícios foi fortalecida pela convergência dos meios, que colaborou de forma decisiva para agregar novos elementos do audiovisual, das artes plásticas, visuais, musicais e sonoras ao ambiente multimídia.

Nos anos 60 e 70, a televisão e, posteriormente, o vídeo, fizeram os realizadores vislumbrar novas ideologias a partir dessas novas formas de interação, facilitando o aparecimento de diferentes categorias, como o docuficção, filme conceitual ou filme-ensaio. Desde Eisenstein e Dziga Vertov, a montagem se configura como um elemento muito importante para a construção de um pensamento, de um conceito. Em tempos posteriores, o avanço tecnológico veio facilitando as montagens pelos computadores e pelas câmeras digitais, que permitiram o surgimento de um imenso universo de possibilidades.

É interessante notar que, apesar desse novo cenário, a televisão parece ainda muito acanhada no campo da invenção conceitual. O que se vê são muitos programas de auditório, programas de entrevistas, telejornais praticamente idênticos em toda parte do mundo. A possibilidade de cineastas realizarem filmes especificamente para televisão se torna uma saída criativa, com produções independentes, promovendo o “desengessamento” da programação televisiva. Nesse sentido inovador, é que Fellini questiona o antigo e o novo. Em uma cena, que possui uma conotação metafórica, as antigas estátuas de imperadores romanos surgem de um fundo escuro, acompanhadas de uma música forte e

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ritmada. Através da explícita referência a Eisenstein com seu cinema conceitual, constrói-se o pensamento de um tempo. Fellini utiliza-se de figuras de linguagem, como a metáfora e a metonímia, para realizar um pensamento mais complexo. Nessa cena dos bustos, a montagem é definitiva para a constituição do sentido de destruição da Roma antiga, do Coliseu com seus imperadores, senadores e gladiadores, desmontando-se a idéia de encontrá-los no passado. Por esse motivo, Fellini resolve filmar Satyricon em estúdio e não nas ruínas; a reconstituição do ambiente lhe traria maior emoção e liberdade de criação. No momento em que desiste de encontrar suas personagens nas ruínas de Roma e nas suas lembranças dos filmes de infância, vai buscá-las em lugares comuns, como em um matadouro. Contra a ditadura do realismo dentro do cinema e da televisão, Fellini vai atrás de uma linguagem audiovisual sem amarras conceituais predeterminadas. Apesar de não ser tão inovador no quesito montagem, o filme traz em si elementos importantes e questionamentos de um novo tempo no audiovisual. Block-notes di un Regista passa a sensação de uma viagem ao universo conflituoso e frustrante de um diretor de cinema e mostra a apreensão do caminho percorrido ao encontro das personagens e do próprio autor consigo mesmo.

Nesse sentido, o filme propõe um questionamento a respeito do cinema e da televisão, critica a necessidade dos romanos de viverem do passado. O matadouro é, a princípio, o Coliseu dos tempos modernos, e é lá que Fellini encontra suas personagens. A metáfora que realiza entre o matadouro e os antigos imperadores e senadores romanos é enfatizada pelos bustos aparecendo e sumindo aos sons desesperados dos porcos; é a morte impiedosa à qual as pessoas eram submetidas. Para encontrar o sanguinolento mundo antigo, Fellini vai ao matadouro, associando-o à atmosfera mítica e até religiosa, como na evocação de sacrifícios antigos. Ele descobre os romanos reais nesse local, ou seja, alguns de seus personagens imperadores, senadores e gladiadores vão tomando forma no making- of de Satyricon e nas cenas-testes do filme. A câmera passeia pelo matadouro/Coliseu e as imagens frias, cinzas e cruéis exalam morbidez, como se o cheiro de morte pudesse ser sentido no filme. As câmeras angulosas e outras vezes

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subjetivas carregam o espectador para o achado do filme: o lugar da morte, como em Mastorna, com as ruínas do cenário do filme.

Block-notes di un Regista converge cinema e televisão, documentário e ficção, o mundo antigo e o moderno, abrindo aos telespectadores da televisão a possibilidade de pensar os questionamentos.

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4.3 A construção do lugar: elementos visuais e sonoros oriundos da

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