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MAT FÍS QUÍ BIO LPO HIS GEO. Capítulo Módulo Módulo Módulo Filosofia SOC RES

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Academic year: 2022

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FÍS M AT

QUÍ BIO LPO HIS

FIL FIL FIL FIL FIL FIL FIL FIL

SOC RES GEO

Filosofi

a 281

Capítulo 11 ... 200

Módulo 31 ...216

Módulo 32 ...221

Módulo 33 ... 225

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ISTOCK

1. Aspectos fundadores da filosofia

existencialista: Sören Kierkegaard 202 2. Schopenhauer: a vontade irracional 206 3. Tragédia e existência em Nietzsche 210 4. Organizador gráfico 215 Módulo 31 – Aspectos fundadores da

filosofia existencialista: Sören Kierkegaard 216 Módulo 32 – Schopenhauer:

a vontade irracional 221 Módulo 33 – Tragédia e existência

em Nietzsche 225

• Identifi car diferenças entre discurso fi losófi - co e discurso religioso.

• Identifi car as ideias centrais das fi losofi as constituídas ao longo da história.

• Identifi car o debate fi losófi co em cada época histórica, assinalando visões diferenciadas so- bre determinados temas avaliados por fi lósofos contemporâneos.

• Identifi car os pressupostos de conceitos fi losófi cos.

• Elaborar defesa de determinada ideia fi losófi - ca acerca do ser, do conhecimento e da ação por meio de exercício argumentativo.

• Diferenciar experiência comum, técnica, ciência e saber fi losófi co.

• Compreender a noção de tempo e suas dimensões.

• Avaliar a apropriação da fi losofi a no discurso religioso, identifi cando o que é fi losófi co e o que é religioso nesse discurso.

• Compreender a importância da fi losofi a para o desenvolvimento das ciências da natureza.

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ISTOCK

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Neste capítulo, estudaremos importantes aspectos da filosofia do século XIX, relacionados a Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, e seus desdobramentos.

Existencialismo, vontade e tragédia:

aspectos filosóficos do século XIX 11

Esculturas representando Apolo, deus grego da beleza, da perfeição e do equilíbrio (à esquerda), e Dionísio (ou Dioniso), deus grego do vinho, da embriaguez e do exagero (à direita). As posturas distintas desses dois deuses foram usadas por Nietzsche, no século XIX, para exemplificar sua crítica à filosofia de tradição socrática, essencialista, que predominava no mundo ocidental desde a Antiguidade.

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1. Aspectos fundadores da filosofia existencialista: Sören Kierkegaard

A filosofia conheceu grandes sistematizadores em Kant e em Hegel, pois suas ideias procuraram abarcar todo o campo de conhecimento humano, conferindo nexos e relações que atingiram tal grau de complexidade a ponto de parecer difícil alguma coisa chegar a transcender às suas postulações.

O que restava, então, à filosofia? Uma repetição desses pensadores? Ou haveria espaço para uma crítica que pudes- se lançar o pensamento a novos horizontes?

É nesse quadro histórico que podemos localizar o pensa- mento de Sören Kierkegaard. Sua filosofia foi o contrafluxo da filo- sofia totalizante de Hegel. Ela foi construída a partir de fragmentos e de muita sensibilidade, em que a razão foi colocada, de forma diferente de outros pensadores, na berlinda. O que poderia a ra- zão diante do indivíduo e de seu mergulho existencial na vida?

JORISVO/SHUTTERSTOCK

Estátua de Sören Kierkegaard em Copenhague, cidade onde nasceu, em 5 de maio de 1813. Kierkegaard viveu 42 anos e sempre na capital dinamarquesa. Tornou-se um dos grandes escritores universais, deixando uma vasta obra constituída por pseudônimos, diários e publicações diretas, tais como: Discursos edificante, As obras do amor, A imutabilidade de Deus, O desespero humano, Uma crítica literária, entre outras.

Logo se percebe algo de romântico no pensamento de Kierkegaard que reluta contra o império da razão e de todo o es- clarecimento que esta poderia dar ao homem. Tal percurso do filósofo colocava-o, também, contra a máxima do cogito, ergo sum de Descartes. Para Kierkegaard, o homem pensa porque existe e confere elementos à sua existência a partir das sensa- ções, dos seus sentimentos, de seus desejos e de suas ações.

Kierkegaard realizava uma contundente crítica ao ra- cionalismo moderno e, em especial, à noção de que o co- nhecimento é um dado objetivo e que possibilita, também, estabelecer uma moral universal. Contra a ditadura de uma razão totalizante, hegemônica, contrapôs a precariedade da existência e a necessidade de escolha humana pautada pela consciência, zona em que se encontram sentimentos e a pró- pria razão. Mais que isso, por um pensamento subjetivo e par- cial em que a angústia tem papel relevante.

Para compreender o pensamento de Kierkegaard, é neces- sário vê-lo no universo do existencialismo cristão. Sua intensa formação religiosa colocou desafios à interação entre o senti- mento religioso e a razão pura. O filósofo recebeu, desde a infân- cia, uma educação religiosa rígida de seu pai, Michael Pedersen.

Para alguns estudiosos, a influência do pai se deve ao fato de ele ter nascido e vivido seus primeiros anos de vida na Jutlândia, área em que a população expressava um forte pietismo triste, an- corado na culpa e no medo da punição. Isso teria sido transmitido para o filho que, desde cedo, externou uma visão profundamente religiosa. Sören definia o indivíduo como um ser moral e autôno- mo, sendo a capacidade de tomar decisões aquilo que determi- naria o homem como um ser moral. Essa moralidade deveria ser considerada como uma escolha pautada pelas crenças em Deus.

Sobre pietismo e Kierkegaard

O pietismo foi um movimento religioso de renovação da fé cristã derivado do luteranismo, que propunha a valorização das experiências individuais do crente. Foi iniciado por Philip Jacob Spener, no século XVII, que escreveu e publicou Pia Desideria (Desejos Pios), daí o nome pietismo. A experiência religiosa do crente com Deus é a tônica do pietismo, afirmando esse caráter particular, individual e sagrado do movimento da fé.

O pai de Kierkegaard exerceu forte influência sobre o fi- lho, principalmente em sua angústia declarada na questão da fé. Tal influência pontua a obra filosófica de Kierkegaard, em especial, quanto à valorização do indivíduo e sua relação direta com Deus.

Para o filósofo, a verdade é subjetiva, pois diz respeito à relação que o ser existente se põe diante do Absoluto. Sa- bendo-se precário na existência, sem razão que lhe possa dar sentido ou validade, o indivíduo deve procurar se posicionar – e esse posicionamento não deixa de ser um ato de fé, uma crença. Nesse sentido, o pensador dinamarquês afirma que sem “risco não existe fé”. É a incerteza objetiva no homem que o faz se manter na mais apaixonada interioridade, sendo esta a maior verdade para um ser existente. Esse Absoluto é Deus e a questão fundamental é como o ser existente vive in- dividualmente a sua relação com Deus.

A filosofia de Kierkegaard é complexa e sua complexidade não reside naquela existente no modelo abrangente de Hegel, mas na forma indireta e fragmentária de exposição, tornando a leitura um desafio de relações subjetivas. Para entender melhor esta afirmação, pode-se considerar que, para o filósofo, a comu- nicação não deveria ser direta, pois o maior comunicador, Deus, faz-se comunicar de forma indireta. Deus estaria na criação, em todas as partes da criação, mas não estaria diretamente nela e, somente quando o indivíduo voltasse para si mesmo, para sua interioridade, poderia ver Deus.

Kierkegaard procurou fazer da mesma forma sua comu- nicação, asseverando que entre espírito e espírito também não poderia haver uma comunicação direta quanto à verda- de essencial. Daí sua obra ser marcada por pseudônimos, seres outros que escreviam pelas mãos do filósofo, ou como figuras com voz própria ("O sedutor"), ou ainda personifican- do determinados estados ("A angústia").

A. Primeiros passos filosóficos a contradizer: Hegel

Kierkegaard afirma em seus primeiros trabalhos que a existência humana possui três dimensões ou estados: a es- tética, a ética e a religiosa.

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A.1. A dimensão estética

No estágio estético, há uma procura incessante pela realiza- ção dos sentidos, em que a busca pelo prazer está em primei- ro plano na existência humana. É a fase em que as emoções e a sensualidade dominam a experiência da vida, numa espécie de hedonismo. É uma forma de existência em que a vida é o não compromisso, é uma simples especulação sensória que, por mais cheia que seja, não se basta, é infeliz – mesmo travestida de felicidade. Em seu fim há melancolia, “uma melancolia que deve ser elaborada eticamente. É uma melancolia essencial e tão profunda que, embora própria a quem a sente, se ocupa, com o fito do engano, dos sofrimentos dos outros [...] e ainda engana sob a máscara da alegria, da compreensão, da perversidade; mas o engano e a máscara são, ao mesmo tempo, sua força e sua im- potência, sua força na fantasia e sua impotência para se realizar na existência [...] no seu vértice está o desespero” (Postilla, II, p.

396. In: ROVIGHI, S. V. História da Filosofia Contemporânea. 3. ed.

São Paulo: Loyola, 2004. p. 108).

A.2. A dimensão ética

No estado ético, o indivíduo vive o dilema básico que pre- side a noção de liberdade, o estar entre o prazer e o dever. São abandonados os desejos pessoais, adotam-se regras, preceitos que têm valor universal. Nasce uma lei moral na forma de objeti- vidade, presidindo as ações de cunho universal em detrimento do subjetivo. Uma disciplina necessária para valorizar aspectos imediatos da vida. Os compromissos aparecem como renúncia ao hedonismo, entendido como falta de coragem de viver no tempo e não no instante. Diferentemente da atitude estética – em que quaisquer escolhas se equivalem, daí a falta de compro- misso –, a atitude ética corresponde à decisão, a uma escolha.

Escolher é sair da indiferença. A escolha, entretanto, traz consigo a tristeza e o desespero. Faz-se importante escolher não entre o bem e o mal, e sim entre uma coisa e outra, mas o espírito precisa de algo maior que isso, daí a necessidade da fé.

GALLERIA DEGLI UFFIZI, FLORENCE, ITALY

A obra de Caravaggio, de 1603, alude ao Sacrifício de Isaac, história bíblica considerada por Kierkegaard como necessária para entender a entrada na dimensão religiosa, para ele a mais elevada da existência. Abraão, obedecendo à ordem de Deus, sacrificaria o seu próprio filho, mas foi contido pelo mesmo Deus. Para Kierkegaard, a fé, cujo modelo Abraão oferece no sacrifício de Isaac, é contrária a toda razão: Abraão acreditou por causa do absurdo; ele teve fé não apenas na outra vida, mas também nesta; acreditou que aquilo ao qual renunciava poderia ser-lhe restituído por milagre. Assim, a fé se opunha também à ética, porque “o ético é universal e o universal é aquilo que é valido para todos”; a fé, ao contrário, é a resposta do indivíduo ao chamamento de Deus, ela põe o indivíduo diante de Deus. “A fé é o paradoxo pelo qual o indivíduo é maior do que o universal”. (Kierkegaard, Diário. In: ROVIGHI, Sofia V. Filosofia Contemporânea – do século XIX à neoescolástica. p.110.)

A.3. A dimensão religiosa

Kierkegaard apresenta a questão da fé e sua importân- cia diante da vida ao tratar do caso de Abraão, informando que essa fé é um salto além do ético. Abraão aceitou sacri- ficar seu filho, Isaac, acreditando e confiando mesmo con- tra toda a esperança racional. Aguardava um milagre que restituísse aquilo a que renunciava, seu filho. A grandeza de Abraão é medida pelo seu gesto de amor a Deus. A fé de Abraão é contrária à razão, a um sentido ético provido por ela. É o algo particular, não universal como a ética, e que dá sentido a toda a vida. Só nessa individualidade, é possível a comunicação restauradora com Deus. É nessa individua- lidade da existência que se poderá chegar à verdade; uma verdade não objetiva, não racional, mas intensa e apaixo- nada, possibilitada pela fé. Para o pensador, o sacrifício que Deus pede a Abraão é individual e não universal.

O sacrifício ético, da renúncia às várias possibilidades, das paixões múltiplas do hedonismo desenfreado, é o sal- to da dimensão estética para a ética. Da dimensão ética para a religiosa, o sacrifício é pessoal, particular. Enquanto a ética fala do universal, a esfera religiosa diz respeito à interioridade de cada existência. O sacrifício ético da re- núncia e da escolha informa um heroísmo em nome da coletividade, do Estado etc. O herói da fé está irremedia- velmente só diante de Deus. Enquanto o sacrifício do herói trágico (ético) envolve o olhar dos outros, o heroísmo da fé só envolve o indivíduo e Deus.

A letra da canção Refém da solidão, de Baden Powell, informa bem a questão da solidão e da escolha necessária.

Entre uma e outra, a angústia e o querer não escolher. Qual a solução? Para Kierkegaard, a fé.

Quem da solidão fez seu bem Vai terminar seu refém E a vida para também Não vai nem vem Vira uma certa paz Que não faz nem desfaz Tornando as coisas banais

E o ser humano incapaz de prosseguir...

[...]

E eu vivi

Mas nunca descobri Se essa vida existe

Ou essa gente é que insiste Em dizer que é triste ou que é feliz Vendo a vida passar

E essa vida é uma atriz Que corta o bem na raiz E faz do mal cicatriz

Vai ver até que essa vida é morte E a morte é

A vida que se quer

BADEN POWELL. Refém da solidão. Baden Powell e Paulo César Pinheiro [Compositores]. In: As músicas de Baden Powell e Paulo Sérgio Pinheiro: os cantores da Lapinha. Rio de Janeiro: Elenco, p. 1970.

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Para Kierkegaard, a dimensão religiosa era a mais eleva- da de todas, pois era a única que poderia conferir algum sen- tido à existência particular, ao indivíduo. Sua crítica à racio- nalidade estava assim exposta e, disso, a visão considerada romântica na filosofia estava delineada.

Vivenciar as dimensões era uma questão de escolha do indivíduo, não havendo necessariamente um caminho seguro até se atingir a dimensão religiosa. Até esta não garantiria a paz desejada. Escolher, para Kierkegaard, é estar continua- mente preparado para a angústia.

BRIDGEMAN IMAGES / EASYPIX BRASIL

A obra do pintor anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992) mostra como o artista representava o homem, suas angústias, seu lado obscuro. A angústia é uma marca do homem que tem a consciência da existência e da necessidade de escolha. O que será certo? O prazer, a sensualidade explorada como afirmação de si no mundo? O dever ético que informa o compromisso com o outro? Ou a realização íntima na contemplação e no fervor religioso, na relação particular com Deus?

B. Um crítico da razão, um defensor do indivíduo e da religião cristã

O filósofo desmonta certas filosofias assentes unica- mente na racionalidade, pois não há capacidade de a razão definir sentidos particulares, existenciais. Na crítica a He- gel, Kierkegaard aponta a preocupação daquele pensador em afirmar a necessidade de abstrair do concreto noções gerais, sendo a história a expressão objetiva para esta abstração.

Kierkegaard diz que, no conhecimento histórico e em sua especulação, poderemos saber muita coisa sobre o mundo, mas nada sobre o indivíduo. A abstração perde o essencial que é a vida particular, pois a existência não é percebida no pensamento, mas sim na subjetividade, no sentimento.

A respeito do indivíduo no pensamento de Kierkegaard, o filósofo Álvaro Luiz Montenegro Valls escreveu:

Ser um homem individual é, na verdade, a condição de toda a religiosidade; é impossível edificar ou ser edificado “en masse”: a edifica- ção refere-se ao Indivíduo mais categoricamen-

te ainda do que o amor. “Nestes tempos, tudo é política”, mas “o político começa na terra para aí permanecer, ao passo que o religioso, que vem do alto, quer transfigurar o terrestre para o elevar em seguida ao céu”. O pensador dinamarquês enfatiza: “E, no entanto, sim, se ti- vesse de pedir que me pusessem uma inscrição no túmulo, não quereria outra senão esta: ‘Foi o Indivíduo’”. E completa: “O meu possível papel em ética relaciona-se incondicionalmente com a categoria de ‘o Indivíduo’: é a categoria do espírito, do despertar do espírito, tão oposta o quanto possível da política. A recompensa ter- restre, o poder, a glória etc. não se encontram ligadas ao seu uso correto; porque a interiorida- de não interessa ao mundo.” “O Indivíduo” é a categoria cristã decisiva, sem a qual o paganis- mo e o panteísmo triunfam.

VALLS, Álvaro luiz Montenegro. In: PECORARO, Rossano.

(Org.) Os filósofos: clássicos da filosofia. Petrópolis/

Rio de Janeiro: Vozes/PUC-RJ, 2008. p. 144-145.

C. O existencialismo cristão

O existencialismo cristão, iniciado por Kierkegaard, pro- cura recuperar a relação vertical entre ser humano e Deus, estabelecendo que o caminho corresponde à afirmação da individualidade da criação; cada homem é um ser único, com seu Criador, Deus.

Para o existencialismo cristão, a singularidade não pode ser dissipada pelo racionalismo que afirma categorias univer- sais abstratas descoladas da própria existência. O saber-se singular, individual, faz do homem uma criatura que busca uma resposta no criador, pois sofre a inquietude da consciên- cia existencial. O questionamento de sua existência o faz se- guir o caminho da fé.

Para esse existencialismo, a relação entre homem e Deus não é uma simples relação “científica” e questioná- vel de causa e efeito. As relações de causa e efeito expli- cam coisas e não as existências. Assim, a integração com o divino se faz por vontade de uma consciência de exis- tência que busca significação e sentido além e, ao mesmo tempo, afirma-se como singularidade no mundo. Esta vi- vência existencial não pode ser experimentada sem uma forte dose de angústia, de dramaticidade.

Dentre alguns nomes do existencialismo cristão encon- tram-se Karl Jaspers, Maurice Blondel, Henri Bergson, Karl Barth, Nicolai Berdyaev, Fiódor Dostoiévisk e Gabriel Marcel.

C.1. Karl Jaspers

Para este pensador, a filosofia não podia ser ciência, pois não era saber de coisas determinadas, mas um problema do ser. O ser não é um objeto do saber científico, é aquilo que se anuncia em todos objetos determinados, mas que não se identifica com nenhum deles.

De acordo com Jaspers, a existência é a origem do ser,

“é o que posso e devo ser, é meu ser como possibilidade. [...]

sou existência enquanto não me torno objeto. Nela eu me sei independente sem poder intuir o que sou. Vivo de sua possibilidade; somente ao realizá-la sou eu” (Philosophie II, p. 1-2. In: ROVIGHI, S. V. História da filosofia contemporânea.

3. ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 407).

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Além de filósofo, Karl Theodor Jaspers (1883- 1969) também foi médico psiquiatra.

Nessa movimentação existencial, o fundamento do ser está na comunicação. É ela que permite um relativo entendimento da própria condição existencial como possi- bilidade de ser. Para Jaspers, o que se experimenta como existência é a verdade na fé. Essa é a comunicação mais elevada: a fé como orientação para a transcendência. Esta não se manifesta em si mesma, mas em “cifras” que é pre- ciso decifrar.

Conforme o filósofo:

A palavra “Deus” destina-se a designar algo que nós, pura e simplesmente, não chegamos a compreender. O israelita do Antigo Testa- mento procurou, sem êxito, esclarecer o senti- do dessa palavra; mas jamais duvidou de que Deus existia.

JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico.

São Paulo: Cultrix, 1965. p. 114.

C.2. Gabriel Marcel

O pensamento de Gabriel Marcel parte da própria existência e dos problemas vividos com experiências fi- losóficas idealistas, que oprimiam e suprimiam os limites humanos. Sua filosofia se aproxima de Kierkergaard e de Jaspers, embora não tenha tido contato com os dois.

Para Marcel, a presença do transcendente é o centro das experiências humanas. Partindo da ideia de que o transcendente não seria acessado pela lógica racional, ele defendeu as experiências totalizadoras como fidelidade, esperança e amor. A descoberta de ser existente, encarna- do e participante de um Ser provém da própria experiência da vida. Enquanto o ser humano se descobre um existente, percebe que participa de algo maior, o divino. Este Deus é experimentado no desejo humano de encontrar um origi- nário absoluto.

De acordo com Urbano Zilles:

Marcel tinha um grande respeito pelo sa- grado, pela contemplação mística e diante da

vocação humana para a transcendência. Ora, a própria teologia católica hoje parece estar mais preocupada com a terra do que com o céu, mais com a práxis do que com a contem- plação mística, mais com a matéria do que com o espírito. Tudo isso faz com que, a nos- so ver, ainda não tenha sido dada a necessária atenção a essa filosofia, uma das mais fecun- das de nosso século.

ZILLES, Urbano. Gabriel Marcel e o existencialismo.

Porto Alegre: Acadêmica/PUC, 1988. p 33.

AFP

O francês Gabriel Honoré Marcel (1889-1973) foi um filósofo existencialista cristão.

No entanto, em que pese o valor da contemplação mística em Marcel, o filósofo aponta a necessidade de se entender que existir não se faz aqui senão coexistindo. Conviver e a noção de existência envolvem uma intersubjetividade no vi- ver com os outros. Nesse sentido, a intersubjetividade deve abranger fundamentalmente uma participação amorosa, a experiência com o outro. A vida corpórea, por essa via, nada mais era do que a possibilidade, no tempo, de reconhecimen- to humano acerca do divino.

Marcel afirma que Deus não é uma questão externa ao homem, mas pertence ao mundo da experiência humana.

Falar de Deus não significa dissecá-lo racionalmente, mas senti-lo na vida concreta. Como a vida precede o filosofar, a experiência de Deus é anterior a qualquer reflexão so- bre Ele. Para o filósofo, a ciência é uma forma de conhe- cimento limitadora, restrita a um universo quantitativo, mensurável, havendo nisso o império do racionalismo e do objetivismo que retira do mundo sua dimensão de pro- fundidade, de mistério. A tarefa do filósofo seria ir além da ciência e tematizar o inverificável pela razão científica e, aí, a comunhão com Deus.

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A verdade subjetiva

A esquerda hegeliana e Marx representam uma reação à filosofia de Hegel em nome das exigências do homem real, do homem que tem problemas concretos e cotidianos para resolver: em primeiro lugar, o problema econômico, o problema do reconhecimento de seu trabalho em uma sociedade que reconheça o seu valor de homem. Em Kierkegaard há também uma reação ao “especulativo” de Hegel, mas em nome do homem individual que se conscientiza de seu ser precário, contingente diante de Deus, e se resgata por meio da fé nele. A religião, tão duramente criticada pela esquerda hegeliana, volta aqui ao primeiro plano como uma dimensão essencial do homem, e isto em pleno século XIX, depois das críticas iluministas e ao mesmo tempo em que as da esquerda hegeliana.

Não é fácil compreender o pensamento de Kierkegaard porque ele nunca o expôs de uma forma sistemá- tica; ao contrário, sempre zombou do sistema como tentativa de enclausurar a verdade em uma exposição objetiva. Um capítulo (o segundo da segunda seção da segunda parte) dos Pós-escritos definitivos não científi- cos das migalhas filosóficas é dedicado à verdade subjetiva, à verdade como subjetividade. Talvez seja útil falar preliminarmente desse capítulo para tentar compreender o universo de Kierkegaard. Ele se baseia inicial- mente na definição escolástica de verdade como conformidade do pensamento com o ser, mas se pergunta em seguida: com que ser, e de que pensamento? Não com o ser empírico, por parte de um pensamento que já é, desde sempre, pensamento em devir, nem com o ser abstrato. É a conformidade de um espírito existente com o ser que é capaz de satisfazer sua paixão. “A tarefa do pensamento subjetivo é compreender a si mesmo na existência” (Postilla, 452). “O ponto culminante da interioridade em um sujeito existente é a paixão; à paixão corresponde um paradoxo, e o fato de que a verdade se torna fundamenta-se precisamente em sua relação com o sujeito existente” (Postilla, p.365).

O que entende Kierkegaard por sujeito existente? Antes de mais nada, sujeito individual – não o Eu transcendente do idealismo –, um sujeito “infinitamente interessado no existir”, ou seja, ao qual importa sua existência (e neste sentido, parece-me, é paixão), enquanto sente a precariedade dessa existência. Quando Kierkegaard afirma que “existir é vir a ser”, entende justamente a insuficiência do existente, não ter em si a razão do próprio ser. A verdade subjetiva – ou verdade como subjetividade – é o modo como o existente se refere ao absoluto. Digo se põe em relação porque não se trata de referir uma relação objetivamente dada, mas se pôr em relação, ou seja, de tomar uma decisão, e a decisão é um ato de fé.

ROVIGHI, Sofia Vanni (Org.). História da filosofia contemporânea: do século XIX à neoescolástica. São Paulo: Loyola, 1999. p. 105-106.

01. UFPE (adaptado)

Quais são os três estágios identificados por Kierkegaard?

a. Estético (do gozo da vida), ético (da responsabilida- de) e superior (da consciência)

b. Estético (do gozo da vida), filosófico (da razão) e senil (da sabedoria)

c. Infantil (do gozo da vida), filosófico ( da razão) e se- nil (da sabedoria)

d. Filosófico (da razão), superior (da consciência) e religioso (da fé)

e. Estético (do gozo da vida), ético (da responsabilida- de) e religioso (da fé)

Resolução

Kierkegaard identifica três dimensões da exis- tência: a dimensão estética, dominada pelo prazer, a dimensão ética, dominada pela liberdade, a qual este filósofo percebe como o desespero humano associado, por sua vez, com a necessária escolha que cada homem deve realizar, e, por fim, a dimensão religiosa, mantida pela fé e marcada pela contradição entre o dever ético e a necessidade religiosa.

Alternativa correta: E

APRENDER SEMPRE

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2. Schopenhauer: a vontade irracional

A compreensão do pensamento de Arthur Schopenhauer passa pelo entendimento da influência exercida pelo pensa- mento de Kant sobre este filósofo. Para tanto, é preciso reto- mar alguns aspectos da filosofia kantiana.

I. Kant afirmou que o conhecimento que temos das coisas não é o conhecimento delas mesmas, mas de como nós a percebemos. Nesse sentido, o acesso às coisas em si não é possível, mas podemos represen- tá-las a partir do que podemos captar com o nosso aparelho sensório. Dessa maneira, temos que nosso conhecimento é uma parcialidade da coisa em si e diz respeito à nossa percepção. Nossa percepção é representação do mundo para nós mesmos, in- formando a própria condição humana que percebe sempre o númeno (aparição) da coisa.

II. Kant apresenta um nítido limite à ciência, pois esta es- taria associada intimamente ao fenômeno e não à coisa em si. A verdade de cada coisa estaria restrita a ela mes- ma, e o ser humano é incapaz de sabê-la, a não ser que volte a razão para si mesmo, pois, como “coisa em si”, ele poderia saber a verdade de si mesmo e não do mundo.

III. Para Kant, o indivíduo já traria em si estruturas essen- ciais a partir das quais percebe um certo mundo, o mundo dos fenômenos. Em outras palavras, a estru-

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tura cognitiva humana é que permite a relação com o mundo, nunca abarcando a totalidade do universo, mas aquilo que pode ser assimilado com seu aparato mental e sensório de entendimento.

Partindo dessa influência, Schopenhauer assinala: se não conseguimos abarcar as coisas em si mesmas, isso significa di- zer que vivemos no mundo das representações e que o mundo é representação humana, pois, apesar de existirem coisas além da percepção do ser humano, é com as percebidas que ele lida.

Assim, o mundo é representação. Para Schopenhauer, a represen- tação é uma complexidade cerebral em que formas puras pree- xistentes, como espaço, tempo e causalidade, constroem subjeti- vamente um mundo. A realidade efetiva é resultado da percepção humana na qual espacialidade, temporalidade e causalidade (for- mas puras a priori) se articulam na composição de um entendi- mento do mundo. Para o filósofo, o homem, então, intui o mundo.

HULTONARCHIVE/ISTOCK

Schopenhauer nasceu no dia 22 de fevereiro de 1788, em Danzig, território alemão na Polônia entre 1793 e 1945, hoje Gdansk, cidade polonesa. Sua obra filosófica teve fortes influências de pensamentos orien- tais, em especial da literatura védica hindu e do budis- mo. Para aplacar o princípio irracional da vida, o seu ím- peto cego, propunha a compaixão como princípio ético de integração dos seres viventes.

Segundo Levene:

Até 1809, Schopenhauer era estudante de fi- losofia na Universidade de Göttingen. Em 1811, mudou-se para Berlim, para prosseguir seus estudos, e finalmente concluiu sua dissertação em 1813, em Iena. Intitulado Sobre a raiz quá- drupla do princípio da razão suficiente, o trabalho desafiava a ideia de que o que é real é o que é racional – ou, em outras palavras, que o mundo é perceptível. Em 1814, Schopenhauer foi para Dresden, onde começou a trabalhar em seu livro mais famoso, O mundo como vontade e representa- ção (1818). Tornou-se professor da Universidade de Berlim em 1820.

LEVENE, Lesley. Penso, logo existo: tudo o que você precisa saber sobre Filosofia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

A. O homem e os outros animais

Se o homem intui o mundo, o que dizer dos outros ani- mais? Eles também não agem por intuição? Schopenhauer afirma que outros animais têm indícios de razão, categorias de organização e de representação do mundo. Dessa forma, possuem um entendimento do mundo e com ele procuram preservar sua vida. O que faz um cachorro evitar pular de uma determinada altura é o entendimento do mundo ao seu redor, pois, de alguma maneira, ele calcula o risco em uma representação que faz. Dessa forma, o filósofo conclui que a intuição corresponde também a um instinto. As categorias de percepção e entendimento existem nos seres vivos. O entendimento, fruto do instinto, é um meio para a sobrevi- vência. O entendimento deve ser considerado uma forma de conhecimento e este possui conteúdo instrumental.

O que existe de diferente no homem em relação aos outros animais diz respeito à razão complexa formada pela linguagem, pela comunicação. Para Schopenhauer, a razão é fundada pelas representações intuitivas, constituin- do, na sequência, representações abstratas e com apelo de universalidade. Daí nascem os conceitos, as genera- lizações e a noções de “ser”, “absoluto” e “substância”. O mundo da razão reflete o mundo intuitivo e, em ambos, há representações significativas para o ser que as produz.

Assim a razão é despotencializada, pois é derivação e não o fundamento, e não a base do entendimento do mundo.

A matriz desse entendimento está no instinto, em sua in- tuição. O princípio do mundo (sua representação em que cada ser atua) reside não na razão, mas na Vontade. Uma Vontade cega e irracional.

COLEÇÃO PARTICULAR

A caricatura reproduzida foi feita por Wilhelm Busch e mostra o filósofo Schopenhauer com seu poodle. Afirma-se que ele era muito dócil com seu cão e o chamava de Sir, mas, quando o cachorro fazia alguma coisa errada, chamava-o de humano.

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B. Contribuições e limites da razão na vida do homem

Apesar de não ser a força motriz do entendimento do mundo (conhecimento), a razão é uma faculdade que possibilitou aos seres humanos alguns poderes inquestio- náveis, segundo Schopenhauer. Por meio dessa faculda- de, foi possível desenvolver várias linguagens, organizar ações coletivas bem planejadas, estruturar Estados, pro- duzir ferramentas variadas expressas em tecnologia, criar um corpo de conhecimentos científicos e instituir meios para preservá-los.

No entanto, é exatamente por viver e elaborar seu entendimento primário em complexos racionais, que o homem constitui um universo psíquico em que passado, presente e futuro são pensados, preservando traumas e imaginando riscos (medos e ansiedades) que, embora existentes apenas na mente, repercutem como dor e limi- tações à própria vida.

C. O corpo, o instinto e a vontade

O mundo é um fazer-efeito do sujeito, pois todas as re- presentações são objeto do sujeito e todos os objetos dos sujeitos são representações, para o filósofo. Calcadas no sujeito, elas dizem respeito a um corpo que vê, que sente e se move – neste mundo de representações. Assim, os sen- tidos dos fenômenos (representações) se encontram no

“sentimento”, e não na razão. O corpo confere as condições de inteligibilidade, mas existe algo mais no campo da repre- sentação que não está submetido a essa razão, que lhe é alheia, mas não ao homem. O nome que Schopenhauer dá a isso é Vontade. Ela se encontra em todos os corpos, em todos os existentes. Assim, o mundo, além de ser minha re- presentação, é minha Vontade.

Conforme escreveu Schopenhauer:

[...] Antes, a palavra enigma é dada ao sujei- to do conhecimento que aparece como indiví- duo. Tal palavra se chama Vontade. [...] Todo ato verdadeiro de sua Vontade é simultâneo e inevitavelmente também um movimento de seu corpo. Ele não pode realmente querer o ato sem ao mesmo tempo perceber que este aparece como movimento corporal. O ato da Vontade e a ação do corpo não são dois es- tados diferentes, conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são uma única e mesma coisa, apenas dada de duas maneiras totalmente diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do entendi- mento. A ação do corpo nada mais é senão o ato da Vontade objetivado, isto é, que apare- ceu na intuição.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Unesp. 2005.

Dessa maneira, a identidade entre corpo e vontade de- fine a significação do mundo. Se a Vontade não é satisfeita, o resultado é dor ou mal-estar e, se é realizada, a significa-

ção é prazer ou bem-estar. A vontade do corpo e sua ação possuem uma identidade. No entanto, a mente humana, por sua percepção temporal, vê a vontade anterior à ação do corpo. Para Schopenhauer, quando agimos, a decisão e o ato já ocorreram e, dessa forma, somos espectadores de nós mesmos. Nisso tudo se encontra o instinto. É a Von- tade de vida a essência mais íntima dos fenômenos e ex- pressa de maneira inconsciente, ou seja, não racional. A Vontade é irracional e a vida é assim tecida.

Por meio do caminho do sentimento, o mundo é “minha Vontade". Conforme o filósofo Jair Barboza, a respeito da filo- sofia de Schopenhauer:

Existe uma Vontade cósmica que atra- vessa a natureza desde o mundo inorgânico, passando pelos vegetais, animais até atingir a consciência de si no indivíduo que investiga e efetividade. É este indivíduo que investiga o próprio mundo. Ora, o investigador pode então concluir que o enigma do mundo não é deci- frável pela razão, que trabalha com conceitos, portanto fica na superfície dos eventos, mas pelo “sentimento” que desce até o íntimo dos acontecimentos, pela via do corpo, e assim de- cifra o enigma do mundo. Decerto tem-se aí o lado romântico da filosofia schopenhaueriana, já presente em Kant quando afirmava na Crí- tica da faculdade do juízo que só o sentimento diante da bela e sublime natureza, sobretudo, nos liga ao substrato suprassensível do mun- do, ao infinito ali mesmo na experiência esté- tica. Contudo, apesar de tais conclusões, Kant nunca chegou a concluir que o sentimento era a via de acesso à coisa-em-si. Tal assertiva só aparece com toda clareza e segurança na obra-prima de Schopenhauer.

BARBOZA, Jair. In: Os filósofos: clássicos da Filosofia.

Petrópolis: Vozes/PUC-RJ, 2008. p.115.

D. Estética: a música e a filosofia de Schopenhauer

A Vontade pode ser considerada a mola propulsora da existência podendo ser encontrada, no pensamento de Schopenhauer, num plano metafísico. Como os seres todos expressam essa Vontade, há disputa, há morte, há sofrimento. Nisso reside o traço pessimista de sua filo- sofia. Embora sejam possíveis a fruição, o prazer e certas realizações, no tempo, o que mais se sente é a dor, o sofri- mento. “Viver é sofrer” (Alles leben ist leiden). Há sempre uma luta de todos contra todos, uma batalha heraclitiana sem fim, assim se esculpindo a vida. A Vontade cega mor- de a si mesma, morde o corpo que sente e sente mais dor que prazer.

Há também, nesse movimento de afirmação e luta pela vida, expressões que remetem à imortalidade, que sus- pendem e pacificam a dor e dizem respeito à arte. No caso humano, isso é possível por meio da contemplação artís- tica. A arte faz a Vontade contemplar, suspende por alguns momentos o sofrimento, como recreio para a existência,

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pois o contemplador se confunde com o objeto contem- plado, aliviando-se das tensões existenciais. O ser acaba por se fixar na forma estética contemplada como ideia e, assim, por instantes, ganha a eternidade.

Para Schopenhauer, a arte é pacificadora em termos individuais e coletivos. É a expressão estética que confere algum conforto ou consolo ao mal-estar predominante. A contemplação estética nada tem a ver com a razão, inde- pende dela, pois simplesmente agrada sem que haja uma razão que especifique esse agrado. Essa contemplação desinteressada não revela o egoísmo do ser individual lu- tando contra os outros, podendo haver até uma comunhão na fruição artística dos combatentes.

Para o filósofo, dentre as várias artes que permitem a frui- ção estética, a música ocupa um lugar especial. A compreensão dessa sobrevalorização da música em relação às outras artes deve levar em consideração que, à época de Schopenhauer, havia uma passagem da música clássica para a romântica, de um Mozart para um Beethoven. Schopenhauer viveu esta tran- sição de uma música de caráter universal, em procedimentos e técnicas, o clássico, para outra de cunho intimista e dramática.

Na música romântica, as dores ganham especial relevo, dores particulares (saudades, paixões, nostalgia). Esta identificação da música (uma representação) com as dores da Vida, desloca, por instantes, o ser de si, para contemplar um reconhecimento levado à eternidade.

COLEÇÃO PARTICULAR

Para Schopenhauer, a música era a expressão artística mais poderosa contra o sofrimento humano. A este respeito, o filósofo escreveu: “[...] é uma arte a tal ponto elevada e majestosa, faz efeito tão poderosamente sobre o mais íntimo do homem, é tão inteira e profundamente compreendida por ele, como se fora uma linguagem universal, cuja distinção ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo” (SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. São Paulo: Unesp, 2005. p. 336-337).

Como se diz por aí, em uma tradução livre daquilo que Schopenhauer considerava sobre a música, “quem canta, seus males espanta”.

Sobre o assunto, o estudioso André Eustáquio M. de Oli- veira escreveu:

Um exemplo desse caráter subjetivo que mar- cou o Romantismo é Ludwig Van Beethoven. Sua música romântica tem como peça fundamental a afirmação individual do compositor. Trata-se de uma música densa e emotiva, cujas compo- sições estão intrinsecamente ligadas às paixões que o agitam e que marcaram toda a sua exis- tência. Essa qualificação romântica sobreleva em Beethoven, o Maestro, como era chama- do, universalizando os sentimentos. A música a partir dele adquiriu um caráter de absoluto egocentrismo. Beethoven é o que se pode de- nominar de “o puro romântico”, ou seja, para ele só o drama pessoal é que conta. Há uma dialética entre o ouvinte e a música, isto é, o ouvinte não recebe a música como mensagem dirigida a todos, mas identifica o seu caso par- ticular humano com o da música, reconhecen- do que na própria desgraça pode haver, pelo encanto da arte, um sentimento profundo, o que equivale a formular as dores e, ao mesmo tempo, aliviá-las.

OLIVEIRA, André Eustáquio M. de. A importância da música na filosofia de Arthur Schopenhauer. Revista Eletrônica, São João del-Rei: UFSJ, n. 5, p.86-87, jul. 2003. Disponível em:

<http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/revistalable/

numero5/andre.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2015.

E. Há uma ética?

Para Arthur Schopenhauer, a Vontade, manifestação da vida envolvendo o orgânico e o inorgânico, os vegetais, os ani- mais e, nestes, o próprio ser humano, é uma luta egoísta. Como seria possível, então, uma ética na relação com os outros e, por que não dizer, consigo mesmo?

Schopenhauer vê uma saída para a ética na compai- xão, em sentir a dor do outro; isso significa a palavra com- paixão. O sentimento de compaixão é se colocar no lugar do outro, sentir junto, sair de si e estar com este outro, é, na ação, ajudar. O filósofo estende esta concepção a todos os animais, pois são participantes do sofrimento. Todos os viventes foram um único organismo em que se manifesta a Vontade. Note-se aí uma atualidade no pensamento de Schopenhauer se considerarmos os movimentos ecológi- cos e as discussões de hoje sobre o meio ambiente, sobre a proteção à natureza.

A compaixão, entretanto, não nega a Vontade e a con- tradição é que aquele ajudado pode-se voltar contra aque- le que o ajudou. Se há uma solução definitiva para isso, ela só pode existir na quebra da Vontade, no movimento de renúncia, num estado em que o querer está quieto ou se, no caso humano, a prudência tornar-se sabedoria de vida, uma espécie de visão que não nega a Vontade, mas busca, de forma constante, o menor sofrimento possível.

Nesta sabedoria de vida, o ganho não está nas delícias que o indivíduo efemeramente gozou, mas naquilo de desgra- çado, de sofrimento que evitou.

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O sistema de Schopenhauer é uma adaptação de Kant, mas destaca aspectos da “Crítica” totalmente diferentes dos destacados por Fichte e Hegel. Estes se desembaraçaram da coisa-em-si, tornando assim o conhecimento fundamental, do ponto de vista metafísico. Schopenhauer conservou a coisa-em-si, mas a identificou com a Vontade. Afirmava que o que aparece ante a percepção como nosso corpo é realmente a nossa Vontade. Havia mais que dizer a respeito desta tese, como desenvolvimento da tese kantiana, do que a maioria dos kantianos acha disposta a reconhecer. Kant afirmara que um estudo da lei moral pode levar- -nos empós dos fenômenos e dar-nos um conhecimento que a percepção sensorial não pode proporcionar, afirmava, ainda, que a lei moral está essencialmente vinculada à Vontade. A diferença entre um homem bom e um homem mau é, para Kant, uma diferença no mundo das coisas-em-si, um diferença quanto às volições.

Segue-se daí que, para Kant, as volições têm de pertencer ao mundo real, e não ao mundo dos fenômenos. O fenômeno correspondente a uma volição é um movimento corporal; eis aí porque, segundo Schopenhauer, o corpo é a aparência daquilo de que a Vontade é a realidade.

Mas a Vontade que se acha atrás dos fenômenos não pode consistir num determinado número de vo- lições diferentes. Tanto o espaço como o tempo, segundo Kant – e, nisto, Schopenhauer coincide com ele – pertencem somente aos fenômenos; a coisa-em-si não está nem no espaço nem no tempo. Minha vontade, portanto, no sentido em que é real, não pode estar datada nem ser composta de atos de vontade separados, porque o espaço e o tempo é que são fonte da pluralidade – o “princípio de individualização”, para empre- gar a frase escolástica que Schopenhauer prefere. Minha vontade, portanto, é una e intemporal. Mais ainda:

deve ser identificada com a Vontade de todo o Universo; minha separação é uma ilusão, resultante de meu aparelho subjetivo de percepção espaço-temporal. O que é real é uma vasta vontade, que se revela em todo o curso da natureza, tanto na animada como na inanimada.

Até aqui, podia esperar-se que Schopenhauer identificasse a sua vontade cósmica com Deus e ensinasse uma doutrina panteísta não diferente da de Spinoza, em que a virtude consistiria na conformidade com a vontade divina. Mas, neste ponto, seu pessimismo conduz a um desenvolvimento diferente. A Vontade cósmica é perversa; a Vontade, em seu todo, é perversa ou, em todo caso, a fonte de todo o nosso ilimitado sofrimento. O sofrimento é essencial a toda a vida e aumenta com o aumento do saber. A Vontade não tem nenhum fim determinado, que, se realizado, traria contentamento. Embora a morte deva triunfar no fim, prosseguimos em nossos empenhos inúteis, “como sopramos uma bolha de sabão o maior tempo e o máxi- mo possível, embora saibamos perfeitamente que rebentará” [...].

A causa do sofrimento é a intensidade da Vontade; quanto menos exercitarmos a Vontade, me- nos sofreremos.

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. São Paulo: Companhia Nacional, 1977. p. 302-303.

01. Enem

Podemos concordar com Schopenhauer quando afirma que todas as artes aspiram à condição de uma determinada forma de expressão. Qual é essa forma de expressão?

a. Escultura b. Música c. Teatro d. Pintura e. Poesia Resolução

Música, porque todas as artes aspiram à condição da música, por sua liberdade. Segundo Schopenhauer, só o com- positor se sente perfeitamente livre para criar uma obra de arte de própria consciência, não tendo outro objetivo em mira senão o deleite, sem ter de se ater a suportes e materiais pró- prios de outras manifestações artísticas.

Alternativa correta: B

APRENDER SEMPRE

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3. Tragédia e existência em Nietzsche

Nietzsche foi o filósofo alemão que assumiu , de forma plena, a crítica a uma tradição racionalista que afirma uma metafísica, valores transcendentes, além da própria vida.

A existência, nesse sentido, era carregada de profunda tra- gicidade, pois não havia alento para além do ser. Este se realizava no aqui e no agora em um jogo de forças apolí- neas e dionisíacas.

BIBLIOTECA NACIONAL DA ALEMANHA

Imagem de Nietzsche feita em 1887.

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A. O apolíneo e o dionisíaco

Para o filósofo, a metafísica, iniciada por Sócrates, teria embotado a vida humana em nome de um transcendente, de uma verdade, que estaria no além do mundo material. Daí seu devotado ódio a Sócrates e a toda filosofia que pretendeu vin- cular a verdade num outro lugar que não a vida concreta.

Antes de Sócrates, Nietzsche considerava que havia uma intensa criatividade entre os gregos, uma criatividade que afirmava a vida em todos os seus sentidos. Sócrates teria ini- ciado uma cultura da decadência no Ocidente ao desvalorizar esta vida em prol de um conhecimento transcendente.

Apolo Representa

· Ordem

· Equilíbrio

· Expressão

– Deus da beleza, do Sol e da luz – Simboliza a contenção – Razão

Não A vida

Sim

Dionísio Representa

· Paixão

· Terror

· Realidade

– Deus do vinho, vegetação, Baco – Simboliza o exagero – Instintos

ISTOCK

No mundo ocidental anterior a Sócrates, o que havia?

Nietzsche considera que os gregos viviam alimentados pela força apolínea, que era a força da ordem, da iluminação, e pela força dionisíaca, que era a do caos, da embriaguez. Ao mesmo tempo em que Apolo conduzia os gregos como representação de um ordenamento, Dionísio incutia naqueles homens um fervor pelo caos do mundo. Assim era a tragédia, um movi- mento de afirmação da ordem e também de instauração da desordem, das criações às destruições e às novas constru- ções informando a vida em seu curso. Romper com esta mo- vimentação era romper com a própria vida. Era isso o que Só- crates teria feito ao pretender um estatismo do bem e do mal, do ímpio e do pio, fixado na metafísica, segundo Nietzsche.

B. A crítica aos valores

Para Nietzsche, moral e razão integravam uma espécie de psicologia humana que deveria ser pensada. A moral infor- mava a condição cultural, enquanto a razão dizia respeito aos avanços materiais, civilizacionais concretizados no mundo material. Para o filósofo, considerar o binômio cultura e civili- zação era entender a própria condição humana.

No caso da Grécia Antiga, a da tragédia, os avanços ci- vilizacionais estariam associados a uma cultura em que o homem ganhava relevo por sua capacidade de ação, sem- pre apolínea e dionisíaca, ou seja, trágica. Era a tragédia que afirmava a grandeza humana. Ao se construir uma me- tafísica, a grandiosidade trágica do homem era domestica- da, submetida a princípios transcendentes, constituindo, ao mesmo tempo, uma cultura e uma civilização decaden- tes. A cultura iniciava sua decadência por vincular-se a uma moral de submissão humana aos tais valores trans- cendentes; a civilização trilhava o mesmo caminho por querer se guiar por uma racionalidade de causa e efeito,

de início e de fim, quando, na verdade, o mundo era variedade, diversidade de forças comunicantes.

O mundo em que o filósofo vivia era o resultado dessa movi- mentação decadente do mundo ocidental. Por isso, a voz do filó- sofo era contra os valores de sua época. Por essa razão, em es- pecial, fazia uma filosofia a “golpes de martelo”, destruidora das certezas engendradoras da vida. Quando pensa a questão dos valores, Nietzsche apresenta o que pode se chamar de proposta para além do Bem e do Mal, afirmando que o mundo dos valores socráticos era o mesmo do mundo dos valores cristãos e dos so- cialistas, pois colocavam em evidência o comum, o igual, quando a vida se expressava em diferença, em assimetria de forças.

Para o filósofo, a lógica cristã era a moral do escravo, a mes- ma de Sócrates e dos socialistas de sua época. Contrapondo-se a essa lógica, encontrava-se a moral do senhor. Era a moral dos fortes, daqueles que viviam intensamente as forças apolíneas e dionisíacas, dos que não se pacificam com valores transcen- dentes e vivem a tragédia da existência plenamente. A vida é um emaranhado de relações de poder, a vida é expressão da própria vontade de poder, não havendo um sentido transcendente ou uma predeterminação. Se não existem entidades permanen- tes, não há sentido e sem este não existe um fim. O que se pode constatar é um jogo eterno de forças que se afirmam e que se negam, expressando a vontade de poder.

Tais ideias foram desenvolvidas, em parte, na obra Genea- logia da moral, em que Nietzsche elabora com maiores detalha- mentos sua crítica radical, o que, para muitos, pode ser definido como irracionalismo. Chame-se a atenção para uma observa- ção: sua crítica é expressão de uma determinada racionalida- de. Uma racionalidade que questiona, no âmbito do discurso, categorias ou noções estáveis como causa, efeito, identidade, permanência que funcionam na construção de edifícios meta- físicos e ou religiosos.

O filósofo salienta que o desenvolvimento científico, levado às últimas consequências, deveria assinalar a própria “morte de Deus”, entidade sobre-humana que legisla uma moral aos ho- mens. A ciência anunciava a própria vontade de poder do homem.

FRANCISCO RONNISON ARJO

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Por essas pontuações do filósofo, percebe-se um perspec- tivismo e um relativismo em que a razão sai do lugar comum em que se encontrava, no meio-termo, para ganhar o espaço da diversidade constituída pelo jogo de forças e não por uma ante- rioridade metafísica. Nesse sentido, afirmou que os gregos eram mais livres quando tinham seus deuses cada qual com uma característica humana, pois poderiam afirmar suas ações, justi- ficando-as com a diversidade divina que os influenciava. Já nas religiões monoteístas, via um Deus Todo-Poderoso opressor que exigia a submissão humana no interior de uma moral, o que não deixava mais espaço para a experiência da vida pela vida.

C. O super-homem

A partir das considerações apresentadas, poder-se-ia su- por que Nietzsche entendesse que não havia mais saída para a cultura e civilização ocidentais, mas não foi esse o caminho intelectual do filósofo.

Para ele, negar a moral dos fracos (dos escravos) signi- ficava abrir caminho para a afirmação de um novo homem, aquele que destruiria a civilização e a cultura da decadência.

Evitando as armadilhas metafísicas e religiosas, esse homem afirmaria a vida sem reservas, tornaria-se o super-homem, o homem com a “vontade de potência”.

Este super-homem estaria muito além do Bem e do Mal, seria demasiadamente humano, pois não mais estaria agrilhoa- do à cultura decadente, aos princípios da decadência. Estes só servem de consolo para os fracos, para os que temem a vida e seu conteúdo trágico que é tensão, conflito e, também, aniqui- lamento.

COLEÇÃO PARTICULAR

Übermensch pode ser traduzido por super-homem ou além-homem.

Alguns tradutores afirmam que também pode ser último-homem.

Em todas estas possibilidades de tradução, encontramos a ideia de superação do homem. Isso em conformidade com a obra em que Nietzsche expôs seu conceito de übermensch. Escreveu: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? [...] Grande, no homem, é ele ser uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio”. NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 13.

D. O eterno retorno

Feitas as considerações, pode-se levar a crer que o aniquila- mento seria o fim, mas não é assim que Nietzsche entende a ques- tão. Ao considerar o mundo em suas relações, voltadas à vontade

de potência, o aniquilamento é só a oportunidade de recriação, de reordenamento das potências e do surgimento da continuidade da vida. Não há estancamento da vontade de potência, portanto não há fim. O que existe, então, é um eterno retorno.

A noção de eterno retorno é preciosa no pensamento de Nietzsche, pois, se “Deus está morto”, se é a vida que se afirma, a questão moral passa por outro ponto. Um ponto que só é enfren- tado pelos fortes. Que ponto é esse? Leia a seguir o que o filósofo escreveu.

O maior dos pesos

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe apa- recesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por in- contáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamen- to, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”. — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamen- to tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001. p. 230.

GREECE / BYZANTIUM: OUROBOROS REPRESENTED IN A LATE MEDIEVAL BYZANTINE ALCHEMICAL MANUSCRIPT WRITTEN IN GREEK. THEODOROS PELEKANOS, CRETE, 1478

Ouroboros é um símbolo que designa a eternidade, um modelo de

“eterno retorno”, em que uma espécie de dragão devora a própria cauda. A palavra é de origem grega, significando “devora cauda”.

Nos dicionários de simbologias, a ideia do ouroboros é de voltar- -se a si, de fecundar-se e de continuidade em eterno retorno.

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Se você fosse “condenado” a viver toda a sua vida infinitas vezes, eternamente, como se sentiria? Se você aceitasse a vida e não buscasse no além um sentido, você a viveria da melhor maneira e isso não seria uma maldi- ção? E se você não tivesse vivido autenticamente, poderia considerar isso uma maldição? O que propõe Nietzsche?

Viva intensamente, aceite o desafio trágico da existência, transforme-se em herói de si mesmo, seja o super-homem.

O maior dos pesos para os fracos é a vida e, para os fortes, esta é o maior dos presentes.

Conceito de vontade de potência É em Assim falava Zaratustra que o filóso- fo apresenta, pela primeira vez em sua obra publicada, sua concepção de vontade de po- tência. Nesse momento, é com ela que passa a identificar a vida. Concebe então a vonta- de de potência como uma vontade orgânica, ela é própria não unicamente do homem, mas de todo ser vivo, mais ainda: exerce-se nos órgãos, tecidos, células, nos numerosos seres vivos microscópicos que constituem o organismo. Atuando em cada elemento en- contra empecilhos nos que o rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se opõem e co- locá-los a seu serviço. É por encontrar resis- tências que ela se exerce; é por exercer-se que torna a luta inevitável. Efetivando-se, a vontade de potência faz com que uma cé- lula esbarre em outra que a ela resiste; o obstáculo, porém, constitui estímulo. Com o combate, uma célula passa a obedecer a outra mais forte, um tecido submete-se a ou- tro que predomina, uma parte do organismo torna-se função do outro que vence – duran- te algum tempo. A luta desencadeia-se de tal forma que não há pausa ou fim possíveis;

mais ainda, ela propicia que se estabeleçam hierarquias – jamais definitivas... a força só existe no plural; não é em si, mas na rela- ção a, não é algo, mas um agir sobre. Não se pode dizer, pois, que ela produz efeitos nem que se desencadeia a partir de algo que a im- pulsiona; isso implicaria distingui-la de suas manifestações e enquadrá-la nos parâmetros da causalidade.

MARTON, Scarlett. Nietzsche. Os filósofos: clássicos da Filosofia. Petrópolis: Vozes/PUC-RJ, 2008. p. 184

E. A escrita e o filósofo

A produção de Nietzsche é prolixa, envolvendo desde tex- tos acadêmicos sistêmicos, aforismos até produção poética.

Pode-se afirmar, entretanto, que a maior parte de seus es-

critos rompeu com o texto acadêmico tradicional, evocando a ideia de crítica aos sistemas explicativos. Em sua produ- ção, percebe-se a influência de Arthur Schopenhauer, em especial no que diz respeito aos questionamentos radicais deste em relação à religião, à metafísica e à ciência.

Nietzsche, o filósofo-poeta, para alguns, era um ro- mântico amante das óperas trágicas de Richard Wagner;

para outros, um pensador controverso que deixou uma obra polêmica. O filósofo não criou um programa ou filoso- fia, mas deixou uma atmosfera a ser explorada. Por muito tempo, sua influência foi mais sentida na literatura do que na filosofia. Eram escritores como Thomas Mann, Hermann Hesse e Robert Musil que o consideravam importante, além de artistas expressionistas.

Deixemos o filósofo se pronunciar:

Supondo que a verdade seja uma mulher – como? não está bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres?

De que a terrível seriedade, a desajeitada in- sistência com que até agora se acercaram da verdade, em meios inábeis e impróprios para conquistar os favores de uma mulher? É cer- to que ela não se deixou conquistar – e hoje toda espécie de dogmática está em pé, aflita e sem ânimo. Se é que ainda permanece em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que toda dogmática está no chão, mais ainda, que toda dogmática está nas últimas.

Falando sério, há boas razões para esperar que todo dogmatizar em filosofia, ainda que se te- nha apresentado como algo solene e definiti- vo, não foi mais do que nobre infantilidade e coisa de iniciante.

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal:prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza.

São Paulo: Companhia de Bolso, 2005. p. 7.

Principais obras de Nietzsche

Humano, demasiado humano: um livro para espíri- tos livres (1878)

A gaia ciência (1882)

Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (1883)

Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do fu- turo (1886)

Genealogia da moral: uma polêmica (1887) O anticristo (1888)

Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo (1888)

Ecce Homo: como alguém se torna o que é (1888)

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A arte trágica

Segundo Nietzsche, esse processo de decadência ou de supervalorização da verdade se deu porque os instintos estéticos, isto é, da arte trágica da Grécia Arcaica, foram desclassificados pela razão. A sabedoria instintiva foi reprimida pelo saber racional. De acordo com tal ideia, somente a arte trágica seria capaz de recuperar a perda ocasionada pela “civilização socrática”.

Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, de um modo tão confuso que deveria ser ignorada. Ela valorizou apenas o sa- ber de Apolo, deus da clareza, desqualificando o saber de Dionísio, deus do êxtase. A arte trágica apresenta a luta de contrários que reúne esses dois elementos, fazendo-os aparecer simultanea- mente na tragédia grega.

O “ideal dionisíaco” de Nietzsche e seu ideal de acrescentar ao saber apolíneo o saber de Dionísio.

O saber apolíneo é aquele do deus Apolo, deus da beleza e da clareza. A beleza, para o grego, é medida, harmonia, ordem, proporção, calma, liberdade com relação às emoções, isto é, sereni- dade. Contra a dor, o sofrimento, a morte, o grego diviniza o mundo, criando a beleza, um estado onírico e absoluto. A beleza é uma aparência, cujo objetivo é mascarar a dura realidade e escapar do saber pessimista do povo grego, extremamente sensível e vulnerável à dor. Sua finalidade é tornar a vida possível e desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. Por sua ne- cessidade de clareza, ordem e proporção, o saber apolíneo situa-se ao lado da Razão, ou seja, da racionalidade filosófica e científica.

O saber dionisíaco opõe-se ao apolíneo. Dionísio é o deus da desmesura, da contradição e da volúpia nascida da dor. Em vez de medida e serenidade, o dionisíaco busca o êxtase, as extrava- gâncias do frenesi sexual, busca a bestialidade natural; sua volúpia e crueldade, sua força brutal.

Em vez de sonho é embriaguez. O êxtase dionisíaco permite esquecer a consciência, o Estado ateniense, a civilização, tudo o que foi vivido. Essa experiência mostra ao homem a ilusão em que vive, ao criar o mundo da beleza para mascarar a triste verdade. E isso o faz desistir de agir, de viver, o que o levaria ao aniquilamento.

Por isso, Dionísio não vive sem Apolo, que transforma o mundo em arte. Transforma o dionisíaco puro, aliviando-o de sua força destrutiva e irracional. A ilusão apolínea liberta o peso excessivo do dionisíaco fazendo com que os instintos sejam descarregados em sua arte.

REZENDE, Antonio (Org.). Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar/Seaf, 1986. p.189-190.

01. UFU-MG

No livro de 1872, O nascimento da tragédia, Nietzsche disse a respeito de Sócrates e Platão:

Aqui o pensamento filosófico sobrepassa a arte e a constrange a agarrar-se estreitamente ao tronco da dialética. No esquematismo lógico crisalidou-se a tendência apolínia: como em Eurípi- des, cumpre notar algo de correspondente e, fora disso, uma transposição do dionisíaco em afetos naturalistas.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 89.

Considerando o comentário de Nietzsche:

a. descreva as duas forças antagônicas: apolíneo e dionisíaco;

b. explique em que o pensamento filosófico se difere da atividade artística.

Resolução

a. O apolíneo e o dionisíaco são duas forças vitais que caracterizam a arte trágica na Grécia Clássica, segundo Nietzsche.

Para ele, Dioniso é a força noturna que representa a desmedida, a embriaguez, os sentimentos, os instintos, a fertilidade e as ações e emoções. Por outro lado, Apolo é a força diurna que representa a ordem, a medida, o equilíbrio, a harmonia e a razão. Segundo Nietzsche, são forças antagônicas, as quais, porém, não subsistem uma sem a outra, complementan- do-se numa relação de tensão mútua.

b. Para Nietzsche, o pensamento filosófico está relacionado à razão, ao pensamento lógico e sistemático, repre- sentado pela figura apolínea; já a atividade artística está relacionada ao criativo, aos sentimentos e emoções, contemplando o equilíbrio entre Apolo e Dioniso.

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