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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA

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MARCIAL BARRETO CASABONA

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO

DIREITO DE FAMÍLIA

DOUTORADO EM DIREITO

(2)

MARCIAL BARRETO CASABONA

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO

DIREITO DE FAMÍLIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito (Direito Civil), sob a orientação do Professor Doutor Rogério Ferraz Donnini.

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Banca Examinadora

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_____________________________________

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“O homem só é homem pela solidariedade, que o une a seus semelhantes; o homem só pode viver por essa solidariedade; o homem só pode diminuir o sofrimento que lhe oprime por essa solidariedade. Por conseqüência, todo ato de vontade individual que tende a realizar essa solidariedade deve forçosamente se impor a todo homem.”

(5)
(6)

AGRADECIMENTO

Agradeço a Rogério Ferraz Donnini, magnífico orientador e melhor amigo.

Agradeço a Paulo Henrique Fernandes Silveira, Maria Carolina Bermond e Eliana Riberti Nazareth pelo incentivo e pela troca de idéias.

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RESUMO

Esta tese de doutorado tem por objeto a defesa da aplicação do princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, inciso I, Constituição Federal) no Direito de Família. O trabalho é composto de uma introdução (capítulo I), na qual minuciosamente se declara o percurso que será seguido. Em seguida, capítulo II, é realizada uma pesquisa de natureza filosófica, buscando as origens do instituto da solidariedade. Partiu-se de Aristóteles e de sua idéia de justiça e amizade, que se entrelaçam com a caridade. A partir daí, o trabalho foi trazendo o pensamento apenas dos mais importantes filósofos que trataram dos três assuntos. Concluiu-se com o estudo de socialistas utópicos e o desdobramento da caridade em solidariedade como dever, e, portanto, instituto jurídico. No capítulo III, é abordado o solidarismo jurídico e seus mais significativos representantes. A seguir, no capítulo IV, estudaram-se princípios, cláusulas gerais, conceitos legais indeterminados, como meio de melhor se localizar a natureza jurídica do princípio objeto deste trabalho. Fez-se, também, uma breve incursão pelo tema dos direitos humanos, que guarda absoluta relação com o escopo desta tese. Em continuidade, capítulo V, analisou-se o princípio da solidariedade em algumas das mais importantes constituições em vigor, para juntar no capítulo VI com a abordagem do mesmo princípio na constituição brasileira. Como decorrência absolutamente lógica do caminho, enveredou-se pelo regramento da família nas principais constituições estrangeiras e nas brasileiras. A partir daí, capítulo VIII, desceu-se à legislação infraconstitucional, o Código Civil vigente, abordando os pontos relativos ao princípio ali constantes ou faltantes. O trabalho é encerrado com breve conclusão, na qual é deduzida de forma sucinta e objetiva a tese defendida (capítulo IX).

(8)

ABSTRACT

The objective of this PhD thesis is the defense of the application of the constitutional principle of solidarity (art. 3°, clause I, Federal Constitution) within family law. This assignment consists of an introduction (Chapter I), in which the course to be followed is carefully laid out. Chapter II consists of a philosophical investigation pursuing the origins of the instinct of solidarity.

Aristotle and his ideas of justice and friendship, which are strongly connected to charity, was taken as a starting point. From there on, only the thoughts of the most important philosophers who dealt with these three matters were included,

We end with the study of utopian socialists and the development of charity and solidarity as a duty, and thus forensic institution.

In chapter III juridical solidarity and its most significant representations are approached,

Next, in chapter IV, principles, general clauses, undetermined legal concepts were studied, as a means to best pinpoint the juridical nature of the principles underlying this study. A brief incursion in the subject of human rights, which bears a close relation to the scope of this thesis, was also made.

Next, chapter V analyses the principle of solidarity in some of the most important constitutions in force, leading in chapter VI to the approach of the same principle in the Brazilian constitution. As an absolutely logical following, family regulations in the Brazilian, and in the main foreign constitutions were studied.

From there, in chapter VIII, the inferior to the constitution legislation, the Civil Code in force were considered, tackling the questions related to the included or missing principles. The study is terminated with a brief conclusion from which the thesis here defended is drawn succinctly and objectively. (chapter IX)

(9)

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...10

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...11

1.2. APRESENTAÇÃO DO TEMA E PLANO DE TRABALHO...12

2. VALOR E CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE, AMIZADE, DIREITO E JUSTIÇA...18

2.1. DA PALAVRA SOLIDARIEDADE ...18

2.2. DA JUSTIÇA ...19

2.2.1. Justiça na Grécia Antiga...21

2.2.1.1. Leis divinas...21

2.2.1.2. Famílias, fratrias e clãs ...22

2.2.1.3. Justiça familiar e vingança –thémis e timoría...23

2.2.1.4. O chefe de família -basileús...24

2.2.1.5. Contrato de amizade -philótes. ...25

2.2.1.6. Primeiras legislações gregas e a lei de talião...27

2.3. TEORIA CLÁSSICA DA JUSTIÇA...28

2.3.1. Aristóteles ...28

2.3.1.1. Virtude e felicidade para Aristóteles...28

2.3.1.2. Ética e política para Aristóteles...29

2.3.1.3. A Justiça para Aristóteles...30

2.3.1.4. Amizade para Aristóteles ...32

2.3.2. Marco Túlio Cícero ...34

2.3.2.1. Justiça e Amizade para Cícero. ...34

2.3.2.2. A República, a Lei e o Direito em Cícero...36

2.4. TEORIA DA JUSTIÇA CRISTÃ ...37

2.4.1. Justiça e Caridade de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino ...37

2.4.1.1. Velho e o Novo Testamento...37

2.4.1.2. A vida feliz ...39

2.4.1.3. Justiça, paz e bem comum ...41

2.4.1.4. Caridade e perdão...45

2.4.1.5. A caridade difere da amizade. ...46

2.5. A TEORIA MODERNA DE JUSTIÇA...47

2.5.1. Escola Clássica do Direito Natural ...48

2.5.1.1. O pensamento de Huig Van Der Groot (Hugo Grócio) ...48

2.5.1.2. O pensamento de Samuel Puffendorf...50

2.5.2. Os defensores do Contrato Social...51

2.5.2.1. Absolutismo de Hobbes ...51

2.5.2.2. John Locke e o Liberalismo ...55

2.5.2.3. Jean Jacques Rousseau...57

2.5.3 Escola Histórica do Direito ...60

2.5.3.1. Montesquieu...60

2.5.3.2. Savigny...62

2.5.4. Immanuel Kant...64

2.5.5. George Wilhelm Friedrich Hegel ...71

2.5.5.1. A dialética em Hegel ...71

2.5.5.2. Hegel e o Historicismo ...73

2.5.5.3. A teoria dos Espíritos e a filosofia do Direito para Hegel...74

2.6. A TEORIA DE JUSTIÇA SOCIAL ...75

2.6.1. O Conceito de Solidariedade após a Revolução Industrial...75

2.6.1.1. Revolução industrial (1780-1860) ...75

2.6.1.2. Trabalho nas indústrias...76

2.6.1.3. Leis dos pobres e caridade institucional ...77

2.6.1.4. Organização dos trabalhadores e solidarismo...78

2.6.1.5. A solidariedade incorporada pela sociologia ...81

(10)

3. O SOLIDARISMO JURÍDICO...86

3.1. A SOLIDARIEDADE PARA LEON DUGUIT...87

3.2.O PENSAMENTO DE GEORGES GURVITCH...89

3.3. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O SOLIDARISMO JURÍDICO ...91

4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE...92

4.1. PRINCÍPIOS, NORMAS, CLÁUSULA GERAL E CONCEITO LEGAL INDETERMINADO. ...92

4.2. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E OS DIREITOS HUMANOS ...100

5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL ESTRANGEIRO ...108

5.1. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917 ...108

5.2. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1919...114

5.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES FRANCESAS ...119

5.4. CONSTITUIÇÃO ITALIANA DE 1948...122

5.5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS DEMAIS CONSTITUIÇÕES EUROPÉIAS. ...126

6. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ...127

6.1. PRECEDENTES HISTÓRICOS...127

6.2. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO VIGENTE ...132

7. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA...136

7.1. FAMÍLIA: CONCEITO E TRANSFORMAÇÕES. REDESCOBERTA DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR ...136

7.2. A FAMÍLIA E O DIREITO CONSTITUCIONAL...146

7.2.1. A Família nas Constituições Estrangeiras...148

7.2.1.1. A família na Constituição Italiana (1948) ...148

7.2.1.2. A família na Lei Fundamental Alemã - Bonn am Rhein (1949) ...150

7.2.1.3. A família na Constituição Portuguesa (1976) ...151

7.2.1.4. A família na Constituição Suíça (1999)...155

7.2.2. A família nas demais Constituições Estrangeiras. ...156

7.3. A FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ...157

8. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA FAMÍLIA CONSAGRADA NO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO...180

8.1. O DIREITO/DEVER DE SOLIDARIEDADE E A RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE...182

8.1.1. Casamento ...182

8.1.2. União estável ...183

8.2. AS RELAÇÕES DE PARENTESCO E O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE ...184

8.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E A PROTEÇÃO DOS FILHOS NA DISSOLUÇÃO DA RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE...185

8.4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E O BEM DE FAMÍLIA ...188

8.5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E O DEVER DE PRESTAR ALIMENTOS...190

8.6. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E OUTROS INSTITUTOS ...191

9. CONCLUSÃO...193

(11)

1. INTRODUÇÃO

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Vive-se uma época que alguns muito alardemente denominam pós-moderna1.

É tempo do consumo, no qual alguns pensam (o que lhes convêm) e conduzem o resto do mundo a “pensar o que os primeiros lhes fazem pensar” (Karl Marx)2. É uma espécie de tirania da maioria (John Stuart Mill)3, embrutecida por uma sociedade em que o homem cada vez mais se isola, se fecha em seus casulos (cada vez menores e mais caros), não se relaciona com seus semelhantes, que, em verdade, são seus competidores, não seus iguais. Hoje, há pouco afeto, muita convivência, e o afeto no mais das vezes é carência, é falta. Amor é uma palavra cada vez mais distante da clara realidade.

São palavras duras essas. O autor não se preocupa se isso é realismo ou se pode ser visto como pessimismo. Gostaria que os humanos se amassem, se doassem, o que tornaria esse trabalho menos útil. Assim não é, porém. Esta obra trata da solidariedade. Quando o homem tem sentimentos espontâneos de ajuda ao próximo, está-se no campo da caridade, mas quando assim não é, a conduta de auxílio ao semelhante há que ser imposta pela norma. E, então, caridade mais não é: está-se diante do instituto jurídico da solidariedade, imprescindível para que a sociedade tenha sustento, para que não se esfacele.

Esta obra trata do dever que cada humano tem de socorrer o outro, cada grupo de se unir ao outro e lutar por um mundo menos economizado, menos

1 “Uma sociedade marcada pelo capitalismo pós-industrial, consumo exacerbado, movimento constante,

efemeridade e fragilidade dos laços afetivos entre as pessoas.” BAUMAN, Zigmunt. O Mal-estar da pós-modernidade. São Paulo: Zahar, 1998.

2 Vide: MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Vozes, 1848.

3 O filósofo e economista inglês John Stuart Mill foi um dos maiores expoentes do utilitarismo. Submetido

(12)

utilitarista, mais digno do orgulho que o humano tem de sua humanidade, mais harmonioso, mais justo, enfim.

1.2. APRESENTAÇÃO DO TEMA E PLANO DE TRABALHO

O mundo moderno vive um quadro de perplexidade, provocado pelas intensas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, científicas e tecnológicas.

A despeito de esse redimensionamento se apresentar sob diversos aspectos, o fenômeno chamado “globalização” produziu profunda mudança no mundo inteiro, principalmente, no que diz respeito à família.

Hoje, é fácil verificar que as pessoas se casam mais tarde, isso quando se casam. Cresce o número de pessoas que se divorciam, sendo que muitos divórcios são iniciados pelas mulheres. Mas não é só. Muitos casamentos incluem ao menos um divorciado. Mas o novo casamento de divorciados também vem diminuindo. Por seu turno, mais mulheres criam filhos sozinhas.

As mulheres estão tendo menos filhos, sendo certo que aumentaram os nascimentos sem casamento. Igualmente, cresceu o número de mulheres que optam por não ter filhos.

Cada vez mais os filhos fora do casamento são registrados por ambos os pais. E, embora a maioria dos filhos viva com ambos os pais naturais, muitas crianças têm um padrasto ou madrasta. Aumentou muito a experiência de crianças com mudanças na família.

Cada vez mais as mulheres casadas trabalham fora. Igualmente, há um número significativo de mães solteiras trabalhando fora. A maioria dos pais trabalha em tempo integral.

(13)

Não se pode esquecer, também, o aumento das relações homoafetivas, a exigir não só o estudo do fenômeno social pela ciência jurídica, como também a efetiva proteção do direito positivo.

Alguns autores, ao estudar o futuro da humanidade, especialmente o futuro da família, ressaltam as seguintes tendências do século XXI: mais pessoas nunca se casarão; mais casais coabitarão sem casamento; mais crianças nascerão de casais não casados; um terço a dois quintos dos casamentos terminarão em divórcio; menos pessoas se tornarão a casar; mais crianças viverão com apenas um dos pais; mais crianças viverão com padrasto ou madrasta; haverá mais pessoas idosas aos cuidados de parentes. 4

Como se observa, as questões familiares, nesse contexto, são ainda mais complicadas e complexas. Como se verá nesta tese, não há mais um só conceito de família, mas vários conceitos, que variam no tempo e no espaço.

É nesta conjuntura que, nesta tese, se abordará o discurso da solidariedade.

Um dos objetivos deste trabalho consiste em fazer uma análise sobre um instituto jurídico específico, característico do direito contemporâneo, denominado princípio da solidariedade.

Em franca discussão acadêmica, dá-se a importância da atuação humana pautada na solidariedade como forma de garantir a vida e a felicidade no mundo moderno.

O valor solidariedade teve sua origem na caridade, antes ligada à amizade, uma das três virtudes teologais. 5

O cristianismo não só consagrou a pessoa humana como portadora de um valor absoluto, através da mensagem de igualdade de todos os homens,

4 EEKELAAR, John & MACLEAN, Mavis. A Reader on Family Law. Grã-Bretanha: Oxford University

Press, 1994, pp. 31 e ss., apud GLANZ, Semy. A família mutante – sociologia e direito comparado:

inclusive o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 69.

5“As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão. Informam e vivificam

todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para serem capazes de agir como seus filhos e merecer a vida eterna. São o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano. Há três virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade.” in Catecismo da Igreja Católica,

(14)

independentemente de origem, raça, sexo ou credo6, mas também inaugurou o

tema da caridade, preceito ético de extrema importância para a humanidade.

A caridade é uma atitude geral e regular que o cristão deve assumir em relação ao próximo e não depende do comportamento deste. Nisso a caridade cristã se mostra diferente da moralidade pagã; ninguém questiona o dever de amar aos próprios amigos, mas Jesus pede mais que isso, a caridade exigida por Jesus é universal. 7

Como é de conhecimento geral, o cristianismo influenciou sobremaneira o pensamento atual. 8 Posta assim a questão, é de se dizer que o preceito

“caridade” acabou por se desdobrar no preceito ético que hoje se denomina “solidariedade”.

Por sua vez, o discurso da solidariedade, que originariamente pertencia ao campo da moralidade e da ética, passou a freqüentar com destaque os debates jurídicos das sociedades ocidentais, em razão da reaproximação entre a ética e o direito9.

O princípio da solidariedade, como se verá, é um paradigma jurídico. É não só uma orientação para a atuação do legislador, mas, também, uma referência importantíssima para a compreensão do funcionamento das práticas jurídicas positivas do direito atual. 10

6 Na Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 3, versículo 28, lê-se: “não há judeu, nem grego, não há

escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”.

7 MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. (tradução Álvaro Cunha ... et al.; revisão geral Honório

Dalbosco) São Paulo: Paulus, 1983, p. 35-36.

8“O Cristo e o cristianismo seguem como as principais referências da civilização ocidental. De tal sorte é

assim que nem pensamos nisso. Culturas vitoriosas são estáveis, pacíficas, civilistas e até um tanto frívolas na proteção de seus fundamentos. (...) É claro que o que vai acima se presta ao contencioso. Especialmente num tempo em que toda evidência serve à contestação. As culturas vitoriosas dão à luz os críticos de seus próprios fundamentos. É a melhor evidência de um triunfo. Assim, haveria ali a indisfarçável afirmação da supremacia de uma visão de mundo. Cristo é e seguirá sendo a principal referência do que reconhecemos no Ocidente como a nossa “cultura” porque somos todos cristãos. Se não formos pela fé, seremos pela história; se não formos porque devotos da Revelação, seremos porque caudatários de uma revolução. Cristãos, ateus, judeus, islâmicos, budistas, materialistas, espíritas, agnósticos, comungamos de um patrimônio que entendemos como um ideal de civilização e justiça. (AZEVEDO, Reinaldo. Somos todos cristãos. Revista Veja. Editora Abril: São Paulo, edição 1988 – ano 39 – nº 51 – 27 dez. 2006, p. 66)

9 TORRES, Sílvia Faber. “O princípio da solidariedade no Direito Público Contemporâneo”. Rio de

Janeiro: Renovar, 2001, p. 90.

(15)

Enfim, é uma regra de juízo11 para as práticas jurídicas.

O princípio da solidariedade possui aplicação nos diversos ramos da ciência do direito.

Esta tese tem por objeto o exame da solidariedade sob a ótica jurídica, buscando identificar sua aplicação efetiva, enquanto um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, como norma orientadora da legislação infraconstitucional do Direito de Família e das sucessões.

Uma das hipóteses deste trabalho é, levando-se em conta a realidade atual, abordar a questão do princípio da solidariedade e mostrar a possibilidade de a ciência do direito auxiliar na criação efetiva de uma sociedade solidária baseada numa democracia social e pluralista.

Procurar-se-á, no final desta tese, sempre a partir do citado princípio da solidariedade, demonstrar a passagem da família socioafetiva para a família sócio-solidária.

Com efeito, a filosofia e a ciência jurídica contemporânea exigem uma mudança de atitude do pesquisador. Como diz G. Bachelar12, passa-se “do por que ao por que não”.

Não se pretende aqui esgotar totalmente o assunto. Seguramente, hoje não se pode mais pensar o mundo do Direito de maneira estática. O conhecimento do real não é jamais imediato e pleno; as revelações do real são sempre recorrentes”.13 O conhecimento é sempre uma tentativa, comporta

sempre retificações, tanto mais no domínio das ciências humanas e sociais, como é o direito.

Antes de expor a principal orientação metodológica que norteia esta tese, torna-se necessário reafirmar a primeira regra de todo método: não se pode compreender o que se encontra se não se sabe o que se procura.

11 Sobre a noção de “regra de juízo”, vide EWALD, François: Foucault: A Norma e o Direito. Tradução de

Antonio Fernando Caiscais. Lisboa, Vega, 1993, pp. 59-66, 209 e ss.

12 BACHELARD, G. La Formation de l’Espirit Scientifique. Paris, J. Vérin Édition, 1977, p. 13 e 14 (grifo

(16)

Com o intuito de facilitar o exame jurídico do princípio da solidariedade no Direito de Família, realizar-se-á abordagem pautada nos mais diversos métodos científicos. Como se observará da leitura desta obra, não se limitará o autor apenas ao método dedutivo, uma vez que não há apenas uma maneira de raciocínio capaz de dar conta do complexo mundo das investigações científicas. Com feito, será utilizado o método indutivo, o dialético e, também, o fenomenológico. 14

Assim sendo, o presente trabalho se inicia com a exposição dos pensamentos dos mais diversos filósofos, estudiosos, historiadores sobre o conceito e o valor da solidariedade, da amizade e da justiça, entre eles Aristóteles, Cícero, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Grócio, Locke, Hobbes, Puffendorf, Rousseau, Rawls, etc.

É necessária breve incursão de cunho jurídico-filosófico sobre as teorias de justiça, a fim de se alcançar os subsídios necessários ao estudo do solidarismo jurídico.

Na segunda parte deste trabalho, estabelecer-se-ão, brevemente, conceitos jurídicos do que são normas e princípios, para então abordar a questão do princípio da solidariedade sobre o prisma do direito constitucional pátrio e estrangeiro, uma vez que o tema solidariedade não encontra desenvolvimento suficiente pela doutrina, se posta em consideração a extrema importância do tema.

14Método dedutivo é método proposto pelos racionalistas Descartes, Spinoza e Leibniz, que pressupõe que

(17)

Nesta parte da tese, buscar-se-á, também, responder ao seguinte questionamento: o princípio da solidariedade aqui estudado se encontra entre os direitos fundamentais de terceira geração?

Também será objeto deste estudo a família, sob o prisma do direito constitucional brasileiro e estrangeiro. Evidentemente, é de conhecimento geral a extraordinária relevância que, nos últimos anos, ganhou a chamada constitucionalização do direito civil, sendo inadequada a abordagem do tema no Direito de Família sem este exame preliminar da questão constitucional.

Certamente, esta abordagem não terá a pretensão de aprofundar o assunto, porquanto o objeto da tese é matéria de direito civil e, mais especificamente, do Direito de Família.

A terceira parte do trabalho abordará o Direito de Família. Verificar-se-á em que dispositivos do livro IV do Código Civil – DO DIREITO DE FAMÍLIA – acha-se aplicado o princípio da solidariedade e como isso se dá, com a devida e necessária observação a respeito da adequação ou não de sua aplicação.

Nesta mesma parte, serão criticados os artigos do Código Civil que deixaram de atender o princípio constitucional da solidariedade.

A importância deste trabalho tem forte ligação com o pesquisador. Seu objeto e a delimitação do estudo são frutos de seu interesse, curiosidade e também de seu compromisso com a realidade, e é essa interação que pode enriquecer a compreensão do objeto.

O fulcro maior desta tese se dá a partir do princípio da solidariedade e do estudo das normas de Direito de Família. Dentro deste enfoque, apresentam-se sugestões sobre como o operador do direito deve aplicar o citado princípio, tudo tendo em mente a realidade social do século XXI, caracterizada por uma sociedade de consumo, acentuadamente urbana e tecnológica.

Com isso, se bem resultar a empreitada, estar-se-á trazendo para o Direito de Família uma contribuição no sentido de ser ele adaptado e completado ao princípio constitucional que é título desta tese.

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2. VALOR E CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE, AMIZADE, DIREITO E JUSTIÇA.

2.1. DA PALAVRA SOLIDARIEDADE

Inicialmente, antes de se estabelecer um conceito sobre solidariedade, é necessário buscar o sentido etimológico da palavra.

O dicionário Aurélio15 apresenta, dentre outros, os seguintes significados

da palavra “solidariedade”:

SOLIDARIEDADE [De solidári(o) + edade] Substantivo feminino

Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade. Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s).

Observa-se na atualidade que a palavra “solidariedade” vem sendo retomada e tem sido estudada pelos mais diversos ramos do pensamento humano. No entanto, essa recuperação parece não conservar a origem do conceito. É provável que tenha sofrido mudanças, readequações, reformulações e negações. Pode ainda ter deixado de ser um conceito para se transformar em uma idéia, noção, uma expressão ideológica.

Pedro Buck Avelino define a solidariedade como:

Atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros, tratando-os como se familiares fossem; e cuja finalidade subjetiva é se auto-realizar, por meio da ajuda ao próximo.16

Por sua vez, Wladimir Novaes Martinez, em estudo voltado para a área do direito previdenciário, leciona que:

15 Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0

- O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa corresponde à 3ª edição, 1ª impressão da Editora Positivo, revista e atualizada do Aurélio Século XXI, O Dicionário da Língua Portuguesa, contendo 435 mil verbetes, locuções e definições. ©2004 by Regis Ltda. 16 AVELINO, Pedro Buck. Princípio da solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na constituição

(19)

A solidariedade social é projeção do amor individual, exercitado entre parentes e estendido ao grupo social. O instinto animal de preservação da espécie, sofisticado e desenvolvido no seio da família, encontra na organização social ambas as possibilidades de manifestação. 17

Apresentados alguns conceitos do valor solidariedade, questiona-se se tal pode ser considerado um princípio, um direito ou um dever na ordem jurídica. Esse é o objetivo da próxima parte do trabalho.

2.2. DA JUSTIÇA

Antes de ingressar inteiramente no tema desta tese, qual seja, o princípio da solidariedade, é necessário fazer uma breve dilação ao que a doutrina denomina axiologia jurídica e/ou deontologia jurídica.

A noção de direito sempre esteve ligada à teoria de justiça. O direito, à exceção do positivismo jurídico de Kelsen18, é sempre visto, pelos juristas, como um esforço para realizar a justiça19.

17 MARTINEZ, Wladimir Novaes Martinez. Princípios do direito previdenciário. São Paulo: RT, 1995, p. 78. 18HANS KELSEN - Jurista austro-húngaro nascido em Praga, criador da teoria pura do direito, foi o principal

representante do positivismo jurídico através da obra “Hauptprobleme der Staatsrechtslehre”. Elaborou a constituição austríaca (1920) quando era juiz da Suprema Corte Constitucional da Áustria. Em 1940, emigrou para os Estados Unidos, onde foi professor das universidades de Harvard e de Berkeley, na Califórnia. Publicou, ainda,

Principles of International Law. Hans Kelsen desenvolveu sua doutrina visando à desvinculação do Direito de outras ciências, purificando seu conteúdo de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural. Sua intenção foi elevar a Ciência Jurídica à altura de uma genuína ciência, com objetividade e exatidão. Essa meta foi plenamente alcançada baseada em sua Teoria Pura do Direito. A conduta humana só seria objeto da ciência jurídica quando constituísse o conteúdo da norma; as relações inter-humanas só seriam objetos da ciência do direito quando fossem relações jurídicas (constituídas por normas). O positivismo não atribui importância à presença da justiça no Direito. A função do Direito, para Kelsen, é somente descrever as normas jurídicas existentes em determinada ordem jurídico-política, sem realizar qualquer juízo de valor sobre ela. Kelsen quer expurgar do interior da teoria jurídica a preocupação com o que é justo e o que é injusto. Mesmo porque o valor justiça é relativo, e não há concordância entre os teóricos e entre os povos e civilizações de qual o definitivo conceito de justiça. Discutir sobre a justiça, para Kelsen, é tarefa da Ética, ciência que se ocupa de estudar não normas jurídicas, mas sim normas morais, e que, portanto, se incumbe da missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. Agnes Cretela e José Cretella Júnior – São Paulo: RT – Coleção: RT Textos Fundamentais – 4ª edição – 2006.

19“Todos os seres humanos têm um conceito de justiça próprio – entende-se a justiça como distinta do direito,

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Gurvitch 20, um dos grandes estudiosos do direito, assim como M. Hauriou,

B. Cardozo, dentre outros, reconhecem que “um elemento constitutivo de todo o direito é um elemento ideal, a JUSTIÇA”. Igualmente, já dizia Del Vecchio: “A noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico”. 21

Incontestavelmente, o debate entre os juristas não diz respeito à estreita relação entre a justiça e o direito, mas sim à concepção de justiça.

O que é a justiça?

O estudo da justiça, como parte fundamental do direito, conduz a um sistema de valores, pois a justiça é um dado axiológico continuamente confrontado com outros valores, como a ética e a moral.

Diversas são as acepções, conceitos e teorias de justiça. Aliás, o estudo das teorias da justiça, sem dúvida, é um dos principais temas da ciência jurídica.

A justiça, em sua acepção subjetiva, significa a virtude em geral; numa acepção menos ampla, seria não a virtude em geral, mas apenas o conjunto de virtudes sociais ou virtudes de relação e convivência humana. Todavia, em sentido estrito, a justiça designa uma virtude com objeto especial. Nessa acepção,

“a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade”, definição clássica de São Tomás de Aquino22. Por sua vez, em sua

acepção objetiva, justiça é o que se aplica à ordem social para garantir para cada um aquilo que lhe é devido. 23

Este título não tem a ambição de dar respostas, formular conceitos, tampouco iluminar as mentes dos leitores com o brilhantismo do pensamento socrático, aristotélico, kantiano, tomista, kelseniano, etc.

Sem grandes pretensões, estudar-se-ão as três principais teorias de justiça, a saber: teoria clássica da justiça, teoria moderna da justiça e teoria da

DA SILVA. Francisco Viegas. Relatividade da Justiça na Jurisdição. Revista Escola Direito, São Paulo, 5(1): 343-352, Jan./Dez. 2004.

20 GURVITCH, G. Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Kosmos, 1964, p.34. 21 DEL VECCHIO, G. Justice, Droit, État. Sirey, 1938, §1, p. 4

apud MONTORO, André Franco.

Introdução à ciência do Direito. 25ª ed., 2ª tiragem – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 122. 22“Ratio justitae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur secuncum aequalitatem”.

23 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. 25ª ed., 2ª tiragem – São Paulo: Editora

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justiça social. O preceito solidariedade inaugura, como se verá adiante, a noção de justiça social.

2.2.1. Justiça na Grécia Antiga24

2.2.1.1. Leis divinas

Coube ao historiador Fustel de Coulanges (1830-1889) destacar, pela primeira vez, a relação intrínseca entre a religião e o direito nas sociedades arcaicas. Sua obra monumental,A cidade antiga – estudos sobre o culto, o direito, e as instituições da Grécia e de Roma (1864), ajudou a traçar as linhas de pesquisa de renomados sociólogos, antropólogos e historiadores do direito. 25

Anterior ao advento da escrita (graphé), as leis (thémistes) 26 antigas eram sustentadas por uma tradição religiosa. Essas leis eram proferidas por reis/sacerdotes que se julgavam inspirados pelos deuses. Eram leis milenares, implacáveis, cuja origem ninguém sabia ao certo. É o que explica Fustel de Coulanges:

A lei antiga não precisava de justificativas. Por que haveria ela de as ter? Não necessitava de explicar suas razões; não era obra da autoridade; existia porque os deuses a fizeram. A lei não se discute, impõe-se. Os homens obedecem-lhe porque crêem nela. Durante longas gerações as leis eram apenas orais; transmitiam-se de pai para filho como as crenças e as fórmulas de oração. 27

Para compreensão desta sociedade arcaica que sustenta esta forma de lei, é preciso coletar atentamente os dados históricos fornecidos por Homero em suas duas grandes epopéias: a Ilíada e a Odisséia.

24 Parte dos textos utilizados neste capítulo e no seguinte foi material utilizado em aulas particulares

ministrada pelo Prof. Dr. Paulo Henrique Silveira no período de 2003 a 2006.

25 Ainda no século XIX, o livro de Coulanges se faz notar nos estudos: Da divisão do trabalho (1893) e no

Proibição do incesto e suas origens (1896), de Émile Durkheim, e no A religião e as origens do direito penal

(1897), de Marcel Mauss. No início do século XX, Coulanges influencia, direta ou indiretamente, os livros:

Solidariedade de família no direito criminal da Grécia (1904) e os Estudos sociais e jurídicos sobre a antiguidade clássica (1906), de Gustave Glotz, e o livro Investigações sobre o desenvolvimento do pensamento jurídico e criminal na Grécia (1917), de Louis Gernet.

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2.2.1.2. Famílias, fratrias e clãs

No tempo de Homero, século IX antes de Cristo, as famílias (géne) 28 eram, econômica e juridicamente, auto-suficientes (autarkés). Faziam parte do genós as pessoas que tivessem qualquer laço de parentesco. Alguns géne possuíam centenas de pessoas:

Embora casados, os cinqüenta filhos e as doze filhas de Príamo habitam a mesma casa paterna. Se o grupo gentílico tem, como coletividade, obrigações em relação à cidade, os indivíduos que o compõem dependem unicamente da família. O grupo conserva a sua autonomia, tem o seu chefe, o seu culto, a sua administração, a sua justiça. 29

Em algumas regiões, necessidades econômicas e militares levaram as famílias (géne) a se agruparem em fratrias (phratríai), e as fratrias, em tribos ou clãs (patraí). 30 A economia gentílica baseava-se, fundamentalmente, nas atividades

pastoril e agrícola. Havia pouca necessidade de comércio entre as famílias. A cidade (pólis) funcionava, apenas, como um centro administrativo, onde as lideranças de cada família ofereciam auxílio mútuo. 31

Tratava-se de uma sociedade mística, que associava o poder dos deuses à fertilidade dos campos. As regras do destino e o arbítrio dos deuses eram decifrados por um intérprete (hermeneutés) das leis divinas. Estes decifravam os mandamentos divinos interpretando os sonhos, os oráculos ou as aparições de animais que representam estes deuses. 32

Templos e rituais homenageavam estes deuses protetores da ordem familiar. Sacrifícios e festas pretendiam garantir a harmonia entre os homens e os deuses. A religião estabelecia as leis e organizava os costumes de cada família. Segundo Fustel de Coulanges:

O que uniu os membros da família antiga foi algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física: na religião do fogo sagrado e dos antepassados se encontra esse poder. A religião fez com que a família formasse um único corpo nesta vida e na do além. A família

28A palavra géne pode ser traduzida por “família”, “estirpe” ou “raça” {TORRANO, “O mundo como função

das Musas”, p. 78}.

29 GLOTZ, História econômica da Grécia, p. 24. 30 HOMERO, Ilíada, canto II, vv. 362-4. 31 GLOTZ, A cidade grega, p. 29.

32 Muitas passagens dos poemas de Ésquilo fazem referência ao trabalho de interpretação dos sonhos e do

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antiga é, desta forma, mais uma associação religiosa do que uma associação natural. 33

2.2.1.3. Justiça familiar e vingança – thémis e timoría

As leis divinas e eternas, que compõem a justiça familiar (thémis), garantem a ordem do génos. Estas leis proíbem: os sacrilégios, os ultrajes aos mortos, as ofensas aos parentes, os adultérios, os incestos, os parricídios, os assassinatos e toda forma de injúria ou de atentado contra as autoridades da família. Por outro lado, a mesma thémis suscita os laços de hospitalidade (xenía) e os contratos de amizade (philótes). 34

O principal objetivo dessas leis era preservar a paz. 35 A rígida hierarquia

no interior do génos e as severas penitências aos infratores procuravam garantir o respeito (aidós) às leis e a manutenção da ordem. Acreditava-se que as thémistes

transgredidas, e que não recebessem punição, provocariam a ira divina (némesis) contra toda a cidade. É o que assevera Hesíodo:

Amiúde paga a cidade toda por um único homem mau que se extravia e que maquina desatinos.

Para eles do céu envia o Cronida grande pesar: fome e peste juntas, e assim consomem-se os povos, as mulheres não parem mais e as casas se arruínam pelos desígnios de Zeus olímpio. 36

Uma vez que toda a cidade, ou seja, um conjunto de clãs, fratrias e famílias, paga pelo delito religioso (hýbris) de uma única pessoa, a punição envolve toda a coletividade. Um sentimento de vingança (timoría) 37 une as pessoas

para punirem aquele que ameaça a sorte de todos. Nesse sentido, argumenta Louis Gernet, a timoría não traduz uma vingança pessoal, mas a necessidade de justiça produzida por uma solidariedade coletiva: “Na verdade, se o assassinato impõe a vingança (timoría), é porque ele desencadeia uma força imperiosa,

33 FUSTEL DE COULANGES, A cidade antiga, p. 34. 34HOMERO, Odisséia, canto XIV, vv. 56-8.

35 GLOTZ, A cidade grega, p. 6.

36 HESÍODO, Os trabalhos e os dias, vv. 240-5. Nesse mesmo sentido, verificar passagem da Ilíada, canto

XII, vv. 385-95.

37 A palavra timoría significa “preservar a timé”, ou seja, preservar a dignidade dos phíloi, dos parentes e

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aquela da solidariedade do clã que se exprime na idéia da ‘assistência’ recíproca.”38

Segundo Marcel Mauss, a vingança é um efeito dessa unidade religiosa. 39 Por outro lado, o dever de vingança reanima essa unidade do clã; o que era efeito passa a ser condição, as regras da justiça sustentam e são sustentadas pela coesão social. Acredita-se que a impunidade possa provocar, além da ira divina, doenças misteriosas nos parentes que se furtam ao dever de vingança. 40 Em muitos casos, a vingança da coletividade gerava a guerra entre os géne. A guerra dos aqueus (gregos) contra os troianos é um exemplo de confronto motivado pela vingança.

2.2.1.4. O chefe de família - basileús

Cada família possuía um chefe encarregado de memorizar e de impor as leis divinas. Homero associa o poder deste chefe de família à posse de um cetro sagrado, que ele herda de um antepassado direto. 41 Alguns poetas o chamam de

rei soberano (basileús). É tarefa do basileús convencer seu povo a ter dignidade (timé) e respeito (aidós) pelos deuses e por suas leis. 42 Pensava-se que o

sangue do basileús era o mais puro da família, e que seu poder refletia diretamente o poder dos deuses cultuados.

Na estrutura hierárquica da família e do clã, o basileús é a pessoa mais poderosa. Ele não precisa prestar contas de suas decisões, a não ser aos deuses, os quais ele mesmo trata de interpretar. Ésquilo ilustra o terror dos desmandos dos reis na trilogia Oréstia: inspirado por um presságio dos deuses, o rei Agamêmnon decide sacrificar a própria filha, a menina Ifigênia. 43

Nessa organização jurídica, não há espaço para julgamentos; quando muito, a pessoa condenada pode pedir clemência ao rei ou aos deuses. Os

38 GERNET, Recherches sur le developpement de la pensée juridique et morale em Grèce, p. 143. Émille

Durkheim chama esta forma de solidariedade de mecânica {DURKHEIM, Divisão do trabalho, p. 154}. 39 MAUSS, “Origines religieuses do droit pénal”, p. 685.

40 Nas Coéforas, Ésquilo fala do fantasma que “assombra” o parente de uma vítima {ÉSQUILO, Oréstia –

Coéforas, vv. 272-4}.

41 HOMERO, Ilíada, canto IX, vv. 98-102. As sociedades primitivas chamam este objeto sagrado de totem, e

o conjunto de proibições legais de tabu {FRAZER, La rama dorada, p. 41; FREUD, Totem e tabu, p. 1790}. 42 HESÍODO, Teogonia, vv. 75-90.

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únicos opositores das determinações do basileús são os oráculos, 44 que também reivindicam o poder de interpretar os mandamentos divinos. De todo modo, faça o que fizer, rei algum pode infringir as leis que ele mesmo deve promover entre os membros da família e do clã. As thémistes limitam o poder do basileús. Desde Homero, aisonomía firma-se como uma exigência na Grécia Antiga.

A Trilogia tebana, de Sófocles, fornece um exemplo paradigmático de um

basileús condenado por desrespeitar as thémistes: Édipo infringe duas leis divinas ao cometer o incesto e o parricídio. A impunidade do rei Édipo provoca a ira divina contra seus concidadãos, tornando inférteis as mulheres e os campos. Na tragédia, os oráculos prevêem que apenas o sacrifício do rei poderia conter a ira divina. Na segunda parte da Trilogia tebana, Antígona cobra a isonomía do rei Creonte, que ameaça desrespeitar as leis não-escritas:

Não reconheço nas tuas ordens força que a um mortal permita violar aquelas não-escritas e intangíveis leis dos deuses.

Elas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; ninguém sabe quando foram promulgadas.45

2.2.1.5. Contrato de amizade - philótes.

Como demonstrou Gustave Glotz no seu doutorado, Solidariedade de família no direito criminal da Grécia, a concepção de justiça familiar (thémis) influencia, diretamente, a coesão social naquela sociedade. Em sua perspectiva mais sombria, ao convocarem toda a família para vingar os crimes cometidos, as

thémistes promovem uma solidariedade ativa, que pode levar à guerra. Por outro lado, inúmeros rituais antigos procuram selar contratos de amizade (philótes) entre estrangeiros (xénoi). Como assevera Homero, o próprio Zeus é o deus protetor dos estrangeiros e dos errantes, é sua thémis que obriga as pessoas a cumprirem os deveres de hospitalidade: “A thémis não me permite ultrajar um estrangeiro, mesmo que viesse alguém ainda mais miserável do que tu, pois é de Zeus que vêm todos os hóspedes e todos os miseráveis.” 46

44 Este seria um interessante tema de pesquisa sobre a política antiga: como atestam as tragédias gregas, os

oráculos, como o famoso Tirésias, exerceram uma oposição ao poder do basileús. 45 SÓFOCLES, Antígona. In. Três tragédias gregas, vv. 450-7.

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Na base dessa estrutura social, há um socialismo primitivo. Em sua clássica pesquisa sobre a relação de amizade nas sociedades primitivas, o

“Ensaio sobre a dádiva”, Marcel Mauss destaca a importância da troca de presentes nesses rituais. Como prova de amizade, as famílias ofereciam contratos de casamento:

Na sua forma mais antiga (e em um meio de nobreza que a poesia épica nos faz conhecer), o casamento é um fato de comércio contratual entre grupos familiares; a mulher é um elemento desse comércio. A sua função é selar uma aliança entre grupos antagônicos. 47

Seja como laço de cooperação entre estrangeiros, seja como contrato de casamento, a philótes foi uma conseqüência direta da thémis:

Nesses tempos, a relação estabelecida pela amizade está longe de ser puramente sentimental, ela é, sobretudo, uma relação jurídica. Um homem chama de amiga (phílon) uma mulher ou uma casa, pois esta mulher é dele, e porque a casa lhe pertence. Nesses casos, o coração não tem importância. Por isso Homero, para referir-se ao ‘amor’, constantemente acrescenta: ‘amar em seu coração’. São, naturalmente, phíloi, os homens que se unem pelos deveres do respeito (aidós), parentes e aliados, companheiros e criados. 48

Entre os séculos VII e VI antes de Cristo, com o desenvolvimento do comércio (empórios), surgem, na Grécia, a moeda (nómisma) e as primeiras legislações. A justiça familiar (thémis) começava a perder espaço para a justiça (díke) e para as leis (nómoi) escritas da cidade (pólis). Este processo acabaria por enfraquecer o poder do basileús e a solidariedade familiar oriunda das thémistes:

Os chefes dos grandes géne perdiam para sempre os privilégios de determinar e interpretar segundo o seu arbítrio as fórmulas que deviam pautar a vida social e política. Era o fim das thémistes que se originavam de uma tradição tenebrosa, das thémistes deformadas por memórias infiéis ou por consciências venais; soava a hora do nómos promulgado à luz do dia, repartindo com precisão os direitos e os deveres e, posto que também revestido de caráter sagrado, variável segundo as exigências do interesse comum. De uma só vez, ruía o regime gentílico, corroído na base. Estabelecia-se uma relação direta entre Estado e indivíduos. A solidariedade da família, tanto na forma ativa como passiva, já não tinha razão de ser. Em todos os casos em que o próprio Estado não reconhecia, pelo menos implicitamente, o direito de vingança ou de

47 VERNANT, Mito e pensamento entre os gregos, p. 207. No seu doutorado, As estruturas elementares do

parentesco, Lévi-Strauss defendeu a tese de que a proibição do incesto nas sociedades primitivas justifica-se por esta relação de trocas, e não pelo temor ao totem, como defendera Freud no Totem e Tabu. Segundo Gernet, algumas festas populares promoviam casamentos coletivos {GERNET, Anthropologie de la Grèce antique, p. 39}.

48 GLOTZ, Études sur l’antiquité grecque, p. 22. Sobre o sentido contratual da amizade arcaica, ler de David

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transação privadas, impunha a sua jurisdição à parte lesada e, para fazê-la aceitar, reprimia todas as violências com uma severidade que, no entanto, jamais devia ultrapassar a lei de talião. 49

2.2.1.6. Primeiras legislações gregas e a lei de talião

No sétimo século antes de Cristo, surge a primeira legislação na Grécia. Promulgadas por Zaleucos de Locres, essas leis escritas restringiram o direito de vingança das thémistes. A partir de então, apenas o Estado tinha o poder de autorizar a vingança, mesmo assim limitada ao talião. Para Glotz, com a severidade das punições, Zaleucos procurava mostrar a rigidez do poder do Estado. 50

Por volta do ano 621 antes de Cristo, as thémistes e o poder dos géne

sofrem novo abalo com as leis de Dracon. Este legislador pretendia combater os abusos do direito de vingança, substituindo a guerra privada pela repressão social:

Dracon deixa livre o génos para julgar seus membros, consagra tacitamente o direito do marido sobre a esposa, do pai sobre as crianças, do senhor sobre os escravos, e se guarda a tal ponto de penetrar no interior da família, que ele não intervém nem mesmo no caso do parricídio. Mas ele não tolera mais que uma família lesada por uma outra que faça justiça por conta própria. 51

Em sua cuidadosa análise dos termos jurídicos gregos, Gernet mostra como a palavra timé deixa de significar apenas dignidade para adquirir o sentido de uma reivindicação. Após as leis escritas e a criação dos tribunais de justiça, o direito de vingança (timoría) do génos passa a depender de uma reivindicação (timé) legal. 52 A legislação de Dracon determina que apenas parentes próximos podem exigir vingança. E mais: para que os tribunais acatassem o direito de vingança, todos os parentes deveriam concordar com a pena. Começavam a ser levadas em conta as decisões individuais contra a antiga unidade imposta pelo

génos.

49 GLOTZ, A cidade grega, p. 88. Dodds defende esta mesma tese no seu Os gregos e o irracional, p. 41. 50 GLOTZ, Histoire Grecque, p. 240.

51 GLOTZ, Histoire Grecque, p. 421.

52 GERNET, Recherches sur le developpement de la pensée juridique et morale em Grèce, p. 143. É

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Em 594 antes de Cristo, sobe ao poder o poeta Sólon, a Grécia ganha uma nova legislação. Sólon antecipa o espírito da filosofia e das artes da Idade Clássica. Contra a violência e o permanente estado de guerra e de conflito dos

géne, Sólon elege a moderação como princípio fundamental de suas leis. O fortalecimento do Estado e a garantia dos direitos individuais, como o da propriedade, garantem a independência do indivíduo frente à família. 53

Definitivamente, entre a ânsia de vingança familiar e aqueles que cometem crimes e excessos, surge um direito público, com leis escritas conhecidas por todos e a possibilidade de um julgamento.

Essa mudança radical nos sentidos de justiça e de lei promoveu transformações políticas e econômicas; as relações sociais no interior da família e fora dela foram profundamente alteradas. Segundo os grandes estudiosos do período, a sociedade já não dependia mais da solidariedade familiar, pelo menos não desta solidariedade familiar que antecede os contratos escritos e que era fortalecida pelo direito familiar e religioso de vingança.

Estava aberto o espaço de discussões políticas e filosóficas sobre a idéia de justiça e de amizade, espaço que seria ocupado por teóricos brilhantes do período Clássico e do helenismo greco-romano.

2.3. TEORIA CLÁSSICA DA JUSTIÇA

No pensamento jurídico clássico havia uma tendência de identificar a justiça ao ideal moral.

2.3.1. Aristóteles

2.3.1.1. Virtude e felicidade para Aristóteles

No primeiro livro do Ética a Nicômaco, Aristóteles investiga os fins que podem dirigir o comportamento dos homens. Para o filósofo, nem o prazer, próprio dos escravos e dos animais, nem a honra, frágil bem que se sujeita à

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opinião alheia, estão à altura de nossas possibilidades racionais de escolha. Para Aristóteles, a virtude (aretés) é a grande finalidade da existência humana, o que

torna o homem superior aos outros animais. Esta é a finalidade que ele sonha para os filhos Nicômaco e Eudêmio, esta é a finalidade que ele desejaria encontrar nos cidadãos atenienses e na pólis organizada a partir das novas leis

escritas.

A virtude deve guiar o comportamento ético e racional a partir da prudência (phrónesis). 54 Aristóteles não cria um catálogo das ações boas ou ruins. No

mesmo espírito dos diálogos socráticos e dos poemas e leis de Sólon, Aristóteles defende o princípio da autárkeia, da auto-suficiência dos homens para se

decidirem por suas ações de uma maneira virtuosa, ou seja, da melhor maneira possível para cada circunstância.

A racionalidade (lógos) e a educação (paideía) formam o homem para

viver em sociedade, livre dos ímpetos da paixão, para criar e respeitar as melhores leis e para aplicar a justiça na vida pública e na vida privada. É com essa lição aos filhos e à humanidade que Aristóteles principia sua ética.

Ao perseguir a virtude, ao agir de acordo com ela, o homem se aproxima da felicidade e da boa sorte (eudaimonía). O homem é um animal social que

encontra nas ações virtuosas sua principal realização. A honra e o prazer não devem ser escolhidos como fins em si mesmos. O reconhecimento social e o prazer mais elevado devem surgir como conseqüência da ação virtuosa.

2.3.1.2. Ética e política para Aristóteles

Tanto na ética como na política, a justiça (díke) é a disposição da alma que

direciona o pensamento e a ação virtuosa em vista da excelência moral perfeita. Ainda que seus significados estejam muito próximos, a prudência e a justiça não são sinônimos. Em muitas partes do livro Ética a Nicômaco, Aristóteles refere-se às ações justas como sendo, também, moderadas e prudentes. No entanto, a

54 Para Pierre Aubenke, a prudência de Aristóteles é o substituto humano para as falhas da providência, e

uma previdência ante um porvir obscuro. Por estas razões, a palavra latina prudentia, contração de

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prudência indica uma moderação nas escolhas e nas paixões que nem sempre tem efeitos sociais. A prudência e a moderação funcionam como remédios, auto-medicamentos para as paixões e para os desejos. Já a justiça implica numa relação entre as atitudes da pessoa e o seu meio social:

Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também ao próximo (...) De fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de um companheiro da comunidade. 55

Nessa perspectiva, seja no âmbito das relações éticas, entre elas as do clã ou da família, seja na pólis regida por boas leis, a justiça deve delimitar a relação

com o próximo. Por outro lado, assim como a virtude, os atos justos tendem a produzir e a preservar a felicidade.

2.3.1.3. A Justiça para Aristóteles

Aristóteles56, como visto antes, e que logo abaixo será melhor enfocado, no Livro V, de sua obra Ética à Nicômaco, afirmava que a justiça é uma virtude completa. 57

Para Aristóteles, ser um homem justo é ao mesmo tempo ser piedoso, aguerrido e sensato, é apresentar atributos como prudência, honestidade e moderação, dentre outros.

Na ética aristotélica, a justiça é uma virtude moral própria da pessoa, sendo encarada como uma característica comportamental, que dirige a ação do indivíduo em face da lei geral e particular. O bom cidadão é virtuoso não só pelo

55 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1130a. 56 384-322 a.C.

57“A justiça é a virtude perfeita, embora com uma qualificação, a saber, que mostrada por outrem. É por

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fato de cumprir a letra da lei, mas também por sua disposição interior permanente de cumprir seus deveres legais perante a comunidade. 58

O filósofo, após perscrutar o sentido da palavra justiça, correlacionando-a com sua antítese a injustiça, chega a esboçar o que, hoje, se denomina eqüidade.

Em outras palavras, a definição de justiça pressupõe a definição de injusto, que é a violação da proporção, ou seja, da igualdade. O justo, portanto, é a igualdade. Sendo assim, Aristóteles privilegia o aspecto distributivo da justiça.

Ele é o autor da famosa distinção que acompanha toda a filosofia jurídica do ocidente de forma imperecível, qual seja: a justiça distributiva e comutativa.

A justiça distributiva ou proporcional, por ele comparada a uma proporção geométrica, é aquela que leva em consideração o valor das pessoas, distribuindo desigualmente entre elas as funções, bens, cargos, honrarias e direitos, na medida em que se desigualam em méritos ou capacidades.

A justiça comutativa prescinde do valor pessoal para só levar em conta as coisas, ações ou serviços, a fim de que haja uma equivalência entre o dado e o recebido, na base de um critério de igualdade.

E essa espécie de justiça é chamada de justiça equiparadora, retificadora, corretiva. Ao juiz cabe fazer com que prevaleça a igualdade na distribuição dos bens quando rompido o equilíbrio social, porque é desejável uma paridade entre pessoas ligadas juridicamente.

Diz ele que a eqüidade é a melhor espécie de Justiça, verbis:

Por conseguinte, a justiça e a equidade são a mesma coisa, e ambas são boas, embora a equidade seja melhor. A fonte da dificuldade é que a eqüidade, embora justa, não é a justiça legal, mas sim uma retificação da justiça legal.59

A justiça aristotélica influenciou o pensamento filosófico de São Tomás de Aquino e de outros filósofos que se seguiram. Werner Goldschmidt 60, ao estudar

58 Id. Ibidem, p. 91/111.

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o tema enfocado, em obra célebre, assim se pronuncia sobre a influência de Aristóteles:

(...) La estructura de la Justicia - En la Etica a Nicómaco, de Aristóteles, se encuentra al principio igualmente la captación de la justicia como virtud; más exactamente, no como virtud especial, sino la equiparación de justicia y virtud, la cual, desde luego, ya se remuenta a Platón, se conserva en Cicerón, es aceptada por teología cristiana y subsiste en la Edad Moderna hasta Leibniz.61

2.3.1.4. Amizade para Aristóteles

Nos livros VIII e XIX do Ética a Nicômaco, Aristóteles trata do tema da amizade. Não seria possível abordar este conceito sem antes analisar os temas da virtude, da felicidade e da justiça: “Depois do que já dissemos cabe-nos examinar a natureza da amizade (philía), pois ela é uma forma de excelência

moral ou é concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente necessária na vida.” 62

Retomando uma idéia já debatida por Platão no diálogo Lísis, 63 Aristóteles analisa a tese de que a amizade só é possível entre pessoas igualmente virtuosas. Segundo essa tese outorgada aos filósofos Pitágoras e Empédocles, só a pessoa boa e virtuosa seria capaz de amar o bom e o virtuoso numa pessoa que tivesse estas mesmas qualidades, e só nestas condições a amizade seria possível.

Para Aristóteles, nem a excelência moral, nem a amizade fazem parte da essência de quem quer que seja. Tanto a virtude quanto a amizade devem ser cultivadas e alimentadas regularmente pelas pessoas. Neste sentido, uma pessoa que preza a justiça e a virtude possui grande potencialidade para as relações de amizade. Mas a amizade não é exclusiva das pessoas comumente virtuosas. Uma pessoa que não esteja acostumada a praticar ações justas pode vir a aprender sobre a justiça a partir da relação de amizade com uma pessoa justa.

61 A estrutura da justiça - Na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, encontra-se ao princípio também a captação

da justiça como a virtude; mais exatamente, não como o virtude especial, mas a comparação da justiça e da virtude, a qual, naturalmente, já remonta a Platão, se conserva em Cícero, é aceita pela teologia cristã e subsiste na Idade Média até Leibniz.

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Não fosse dessa maneira, haveria pouca ou nenhuma esperança na formação de crianças perversas. Nesse sentido, a amizade precede a idéia da justiça:

Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam de amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa. 64

Há amizade entre pessoas que tenham boa vontade recíproca (benevolência) e se desejem bem. Isso pode ocorrer entre cidadãos, entre familiares ou entre meros companheiros de viagem. Assim, como existem diferentes formas de associação, existem diferentes formas de amizade entre as pessoas:

A extensão da amizade é limitada ao âmbito de sua associação, da mesma forma que a extensão da existência da justiça entre tais pessoas. O provérbio ‘os bens dos amigos são comuns’ é a expressão da verdade, pois a amizade depende da participação. Os irmãos e os membros de uma confraria têm tudo em comum, mas as outras pessoas às quais nos referimos têm somente certas coisas em comum – algumas mais, outras menos – pois nas amizades também há maior ou menor intensidade. As reivindicações de justiça em relação à amizade também diferem; os deveres dos pais para com os filhos e os dos irmãos entre si não são idênticos, nem aqueles dos membros de uma confraria e os dos cidadãos em geral, e da mesma forma com as demais espécies de amizade. 65

Ao destacar a diversidade das relações de amizade, Aristóteles afasta-se de uma predeterminação mística ou cosmológica da amizade. Para Empédocles, por exemplo, a sucessão das encarnações determina o tipo de amizade possível para cada homem e para cada forma de existência, numa relação predeterminada pelo cosmo. 66

Segundo Aristóteles, as razões que motivam a amizade são antropológicas. As pessoas procuram a amizade para obter reciprocidade no prazer da companhia, para obter reciprocidade de interesses ou para obter a reciprocidade e a constância no querer o bem do outro. Os três motivos são eminentemente psicológicos. Nada de divino ou de cosmológico interfere diretamente na possibilidade destas relações de amizade.

64 ARISTÓTELES, op. cit, 1155a.

65 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1160a.

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A forma mais perfeita e rara de amizade, a que visa o bem do próximo, exige que a pessoa seja virtuosa e que encontre amigos virtuosos que estejam dispostos a fazer o bem ao outro. Esta é a forma de amizade mais duradoura, uma vez que ela é determinada pelas qualidades do amigo, e não por um prazer ou um interesse circunstancial. Por outro lado, é uma amizade que pressupõe tempo e intimidade para que se conheça o amigo e para que se comprovem suas intenções. Amizades desse tipo fazem parte da felicidade das pessoas virtuosas.67

É preciso destacar, ainda, que não há uma correspondência direta entre a forma de associação ou de amizade e a motivação psicológica daquela forma de união. As relações familiares, por exemplo, podem estimular amizades que visem o prazer, o interesse ou o bem do outro. Mas, de uma maneira ou de outra, há a justiça e a reciprocidade em qualquer laço de amizade.

2.3.2. Marco Túlio Cícero

2.3.2.1. Justiça e Amizade para Cícero.

As idéias de Aristóteles sobre a ética, a justiça e a amizade marcam, profundamente, a filosofia helenista. Elas reverberam no ceticismo, no epicurismo e, especialmente, nos estoicismos grego e romano. Em muitos pontos, a filosofia de Marco Antônio Cícero é herdeira desta ética aristotélica. No livro “Dos deveres”, Cícero retoma a articulação estabelecida por Aristóteles entre a justiça e a amizade. Como para Aristóteles, a justiça ciceroniana pauta as relações de amizade. Para haver justiça nas relações de amizade, é preciso aprender a honrar a palavra e a respeitar os acordos. 68

Pelo menos num ponto, Cícero se distancia das análises de Aristóteles. Para Cícero, há uma verdadeira amizade, 69 justamente aquela que Aristóteles considera a mais rara e perfeita, possível, apenas, entre homens virtuosos e que só querem o bem do amigo. Portanto, a amizade pelo prazer da companhia e,

67 ARISTÓTELES, op. cit., 1170a. 68 CÍCERO, Dos deveres, I, VII, 23.

69 Neste ponto, Cícero aproxima-se de Platão, que já defendia a tese de uma amizade verdadeira (alethés

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especialmente, a amizade por interesse não devem ser vistas como formas puras de amizade, porque contaminadas por interesses outros.

Cícero preocupa-se em definir a justiça ao lado da injustiça, e as condições para a amizade ao lado das condições para a inimizade. É preciso conhecer bem o amigo e suas verdadeiras intenções para poder julgar sua amizade. Mais ainda, é preciso saber-se o dono de determinadas virtudes para poder estabelecer um laço de amizade verdadeiro: “Quem contempla um amigo verdadeiro contempla como que uma imagem de si mesmo.”70

A amizade funciona como espelho e critério para o próprio exercício da justiça e da virtude. Antes mesmo de saber escolher os amigos, é preciso fazer-se merecedor da amizade verdadeira:

Muitos homens, porém, contra a razão, para não dizer sem vergonha, erram ao querer ter um amigo tal qual eles mesmos não conseguem ser, esperando dele serviços que eles mesmos não lhes prestam. Ora, antes de tudo convém ser homem de bem para depois procurar um semelhante. Entre pessoas assim é que a estabilidade na amizade, da qual vimos falando, se pode consolidar, desde que elas, unidas pela benevolência, primeiro dominem as paixões que escravizam os demais, depois amem a equidade e a justiça, assumam suas obrigações recíprocas, só peçam umas às outras serviços conformes à moral e ao direito e, além da estima e do amor, se proporcionem respeito mútuo. 71

A amizade verdadeira não coincide com a idéia de reciprocidade dos pitagóricos. Não é preciso dar exatamente o que se recebeu para provar a amizade verdadeira. Exige-se, muito mais, a constância e a generosidade do que o cálculo entre o dar e o receber. Este desprendimento material é justamente o que baliza a amizade verdadeira:

A meu ver, há bem mais largueza e generosidade na amizade verdadeira, que não cuida em minúcia se perdeu mais do que ganhou. Pois não se deve recear perder o que ofertou, semear sem colher ou exceder-se em sua diligência. 72

Essas idéias de Aristóteles e de Cícero sobre a justiça e a amizade marcam profundamente os filósofos cristãos. Por um lado, o cristianismo sustenta, como faz Aristóteles, a possibilidade de um laço entre os homens que

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