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A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917

5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL ESTRANGEIRO

5.1. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917

Cumpre observar, preliminarmente, que a Constituição do México configura o reconhecimento das reivindicações da Revolução Mexicana iniciada em 1910.

238 Essa correlação entre a Constituição e a Revolução Mexicana foi ressaltada

pelo constitucionalista e ex-presidente da Corte Constitucional Fixzamudio:

Nuestra Constitución actual entronca directamente a la Revolución mexicana. Cierto que en um principio este movimiento no llevó como objetivo hacer una nueva Constitución. Se encabezó inicialmente por Madera239 contra la dictadura Díaz240, y después por Carranza241 para restaurar el orden constitucional quebrantado por Huerta242, pero el

238 A revolução mexicana iniciou-se em 1910, tendo mobilizado, em seu processo, milhões de camponeses e

índios (despojados dos “ejidos”), e se insurgia, basicamente, contra a ditadura do Presidente Porfírio Diaz. As principais reivindicações revolucionárias consistiam na proibição da reeleição do Presidente da República, no retorno dos “ejidos” e devolução das respectivas terras às comunidades indígenas, nacionalização das grandes empresas e bancos, na consolidação de direitos trabalhistas à classe média emergente, e na separação radical entre a Igreja e o Estado.

239 Francisco Indalécio Madera. (1873-1913). Político mexicano. Defensor abnegado da democracia.

Combateu o governo de Porfírio Diaz. Detido, fugiu para o Texas. De lá iniciou revolta contra a ditadura. De volta ao país, uniu-se às forças rebeldes. Foi eleito Presidente da República em 1911, sendo deposto em 1913 pelo General Victorino Huerta. Foi detido e assassinado.

240 Porfírio Diaz (1830-1915). Militar e político mexicano. Foi deputado e candidato à Presidência da

República. Assumiu a Presidência da República em 1876. No ano seguinte, foi eleito para o cargo de magistrado da nação (1877-1880). Em 1884, voltou a ocupar a chefia da nação. Alterou a Constituição com o objetivo de se reeleger, por cinco períodos consecutivos. Com a vitória do general Francisco Indalécio Madero, demitiu-se do cargo, viajando para a Europa, vindo a morrer em Paris.

241 Venustiano Carranza. (1859-1920) Político mexicano. Foi um dos revolucionários que derrubou o

Presidente Porfírio Diaz. Colaborou, decisivamente, para o Partido Democrático. Com o assassinato do presidente Madero, lutou contra o usurpador Victorino Huerta, a quem derrotou e obrigou a expatriar-se. No ano de 1917, convocou o Congresso mexicano com o fim de elaborar uma nova Constituição. No final de sua vida, foi assassinado por soldados de forças revolucionárias.

242 Victoriano Huerta (1854-1916). Nascido em Colotlán Jalisco. Foi um dos colaboradores do governo de

Porfírio Diaz. Após aproximar-se do Presidente Francisco Indalécio Madera, traiu-o, permitindo que os revoltosos o matassem. Proclamado Presidente da República em 1913, fechou o Congresso Nacional, porém foi vencido pelo movimento constitucionalista. Em julho de 1914, renunciou ao cargo, exilando-se na Europa e depois nos Estados Unidos da América, onde veio a falecer.

dessarollo mimo de los acontecimientos condujo finalmente a la expedición de ley fundamental. 243

Igual observação faz Daniel Moreno244, que assim se manifestou sobre a

Assembléia Constituinte Mexicana:

Poucas vezes o pensamento jurídico foi devedor de forma tão determinante da realidade social e das idéias postas em jogo, como no caso da mencionada Assembléia. Foram assinaladas como causas fundamentais algumas de tipo econômico, sobretudo a dura exploração que sofriam os camponeses e as paupérrimas condições em que viviam os operários.

Incontestavelmente, como advertiu Fixzamúdio, embora a elaboração de um novo texto constitucional não tenha sido um dos objetivos da Revolução Mexicana, é certo que o texto constitucional que sobreveio à revolução deu expressão máxima às reivindicações desta.

A Constituição Mexicana de 1917 foi a primeira a assumir no rol das garantias constitucionais um conjunto de regras voltadas para a proteção do ser humano, no sentido de coletividade.

Diversos juristas pátrios245 e estrangeiros246 reconhecem a Constituição mexicana de 1917 como a primeira do planeta a garantir os direitos sociais aos trabalhadores, juntamente com as liberdades individuais e políticas.

Apesar dessa importância histórica, Floriano Correa Vaz da Silva247 pensa

ser equivocado e simplista afirmar que as constituições do século XIX foram puramente liberais, enquanto as constituições do século XX marcadamente sociais:

243 FIXZAMUDIO, Hector e CARMONA, Salvador Valencia. Derecho Constitucional Mexicano y

Comparado, 2ªed., México: Porrúa, 2001, p. 89/90. “Nossa Constituição atual remete diretamente à Revolução Mexicana. É certo que o início deste movimento não tinha como objeto fazer uma nova Constituição. Iniciou-se com a liderança de Madera contra a ditadura Diaz e depois por Carranza para restaurar a ordem constitucional quebrada por Huerta, mas o desenrolar mesmo dos acontecimentos conduziu finalmente à expedição da lei fundamental.”

244 MORENO, Daniel. Derecho Contitucional Mexicano. Cidade do México: Porrúa, 1973, p. 227.

245 Fábio Konder Comparato (Constituição Mexicana de 1917), Moacyr Mota da Silva (A Justiça Social

como destinação dos direitos sociais) e Maria Claudia Cucchianeri Pinheiro (A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social, à luz da Constituição Mexicana de 1917).

246 Georges Bordeaux (Dijon), Pierre Duclos (Paris), Karl Lowestein (Alemanha), Juan Clemente Zamora

(Cuba), Poblete Troncoso (Chile), Alberto Trueba Urbina (México).

Em quaisquer Constituições, nas mais diversas épocas podem ser encontrados e pesquisados dispositivos concernentes à ordem social e econômica, cláusulas que explícita ou implicitamente definem o regime econômico-social pretendido pelos constituintes. A própria ausência de cláusulas sociais numa Constituição traduz a opção por determinado sistema. E esta ausência, é claro, não impede uma lenta construção jurisprudencial, nem emendas constitucionais, nem legislação ordinária – que irão pouco a pouco, delinear, dentro do sistema constitucional, uma série de direitos sociais e trabalhistas, que passam a integrar o arcabouço econômico-social do país.

O argumento seduz, mas não convence. A Carta mexicana é um marco: exprime sentimentos, consagra direitos, de forma seminal.

Todavia, destacam-se as seguintes constituições liberais que continham dispositivos sociais: Constituição da Venezuela de 1812 (Constituição da Província de Barcelona), que no seu art. 23 previa a proteção ao trabalho e "seguro-desemprego"; a Constituição francesa de 1848, igualmente em seu art. 13 assegurou o direito ao trabalho e a garantia ao trabalho; a Constituição suíça de 1874, no art. 34, previa o direito da Confederação, e não dos Cantões, de editar normas uniformes sobre o trabalho das crianças nas fábricas, jornada de trabalho dos adultos e proteção ao trabalhador nas hipóteses de exercício de atividade perigosa ou insalubre.

Após essa breve observação, passa-se ao exame da Constituição Mexicana. Em síntese, essa constituição, promulgada em 31/01/1917, em vigor desde 01/05/1917, compunha-se de 136 artigos e algumas disposições transitórias. Verifica-se que tal Constituição não se restringiu a consagrar as aspirações e reivindicações veiculadas pela Revolução e aprovou, também, em seu Capítulo I –

“Das Garantias Individuales” -, inúmeros direitos clássicos à liberdade.

Entre o extenso rol de direitos de primeira dimensão constantes do Capítulo I, do Título I, da Constituição Mexicana, destacam-se os seguintes: proibição da escravidão (art. 2º); igualdade entre os sexos (art. 4º); liberdade de expressão e de informação (art. 6º); vedação à censura prévia (art. 7º); direito de petição (art. 8º); liberdade de reunião e de associação (art. 9º); direito à livre circulação (art. 11); princípio do juiz natural e proibição de juízo de exceção (art. 13); irretroatividade das leis (art. 14); devido processo legal (art. 14, § 1º); legalidade em matéria penal (art. 14, § 2º); vedação à extradição por crimes políticos (art. 15); inviolabilidade de domicílio (art. 16); sigilo de correspondências

(art. 16, § 2º); vedação ao exercício arbitrário das próprias razões (art. 17); acesso gratuito ao Poder Judiciário (art. 17, § 1º); vedação de prisão por dívida (art. 17, § 3º); garantias do acusado (art. 20); vedação de penas cruéis (art. 22); princípio do

non bis in idem (art.23); liberdade religiosa (art. 24); mandato de seis anos

conferido ao Presidente da República (art. 83 – direito à alternância política) e separação Estado/Igreja (art. 130).

Ao lado dos direitos de liberdade acima referidos, a Constituição Mexicana previu, igualmente, direitos e garantias de segunda dimensão, merecendo destaque os que se encontram nos artigos 27 e 123.

O artigo 27 previu, em linhas gerais, além da questão pertinente à questão agrária no México, a propriedade da nação relativamente às terras e águas, a possibilidade de desapropriação de terras por utilidade pública, mediante indenização, a proteção da pequena propriedade (art. 27, XV) e a função social desta, primeira constituição, no plano mundial, a inserir a concepção social da propriedade.

Por sua vez, o artigo 123 consagra, dentre outros, o direito ao emprego e correlata obrigação do Estado de promover a criação de postos de trabalho (art. 123, "caput"); jornada de trabalho máxima de 8 (oito) horas (I); jornada noturna de 6 (seis) horas (II); proibição do trabalho aos menores de 14 e jornada máxima de 6 (seis) horas aos maiores de 14 e menores de 16 (III); um dia de descanso para cada 6 dias trabalhados (IV); direitos das gestantes (V); salário mínimo digno (VI), participação dos trabalhadores nos lucros das empresas (IX); horas extras limitadas a três diárias, realizadas no máximo três dias consecutivos, e acrescidas de 100% (XI); responsabilidade do empregador por acidente de trabalho (XIV); direito à formação de sindicatos (XVI); direito de greve, reconhecido inclusive em favor dos patrões e em favor dos funcionários públicos (art. XVII); direito à indenização em caso de demissão sem justa causa (XXII) e reconhecimento da utilidade pública da Lei de Seguro Social, que compreenderá "seguros por invalidez, por velhice, seguros de vida, de interrupção involuntária do trabalho, de enfermidades e acidentes de trabalho e qualquer outro seguro destinado à proteção e ao bem-estar dos trabalhadores, dos camponeses, dos não- assalariados e de outros setores sociais e respectivos familiares" (XXIX).

Contudo, a análise atenta do texto constitucional permite a conclusão de que os direitos e garantias de segunda dimensão não se concentram em um único Capítulo da Constituição mexicana, apresentando-se, ao contrário, dispersos ao longo de todo o texto da Carta Política. Sob tal aspecto, destacam- se as seguintes previsões: proteção à família (art. 4º), direito à saúde, de incumbência da Federação e das entidades federativas (art. 4º, § 2º), direito à moradia digna, a ser concretizado por meio de apoio Estatal (art. 4º, § 3º), proteção pública dos menores (art. 4º, § 4º), direito ao trabalho e ao produto que dele resulta (art. 5º), proibição de contratos que importem na perda de liberdade do indivíduo (art. 5º, § 4º) e a vedação à constituição de monopólios (art. 28 – direito este de natureza eminentemente econômica).

Registre-se, por fim, o aspecto mais importante da Constituição Mexicana de 1917, para fim desta tese, qual seja, a previsão, ao lado dos direitos de primeira e de segunda dimensão, de direitos fundamentais de terceira dimensão.

A previsão de direitos de terceira geração encontra-se mencionada nos artigos 3º, art. 25, § 4º, e no artigo 27.

ARTICULO 3 – La educacion que imparte el Estado – Federación, Estados Municípios – tenderá a desarrolar armónicamente todas las faculdades del ser humano y fomentará en él, a la vez el amor a la pátria y la conciencia de la solidaridad internacional, en la independência y en la justicia:

I – Garantizada por el articulo 24 la libertad de creencias, el critério que orientará a dicha educación se mantedrá por completo ajeno a cualquier doctrina religiosa y, basado en los resultado del progreso científico, luchará contra la ignorância y sus efectos, las servidumbres, los fanatismos y los prejuicios. Además:

a) Será democrática, considerando a la democracia no solamente como uma estructura jurídica y un régimen político, sino como un sistema de vida fundado en el constante mejorameiento econômico, social y cultural del pueblo;

b) Será nacional en cuento – sin hostilidades ni exclusivismos – atenderá a la comprensión de nuestros problemas, al aprovechamiento de nuestros recursos, a la defensa de nuestra independência política, al aseguramiento de nuestra independência econômica y a la continuidad y acrecentamiento de nustra cultura; y

c) Contribuirá a la mejor convivência humana, tanto por los elementos que aporte a fin de robustecer em el educando, junto com el aprecio por la dignida de la persona y la integridad de la família, la convicción del interés general de la sociedad, cuanto por el cuidado que ponga en sus sustentar los ideales de fraternidad e igualdad de los derechos de todos

los hombres, evitando los privilégios de razas, sectas, de grupos, de sexos o de indivíduos;”248

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro 249 assevera que o artigo 3º da Constituição Mexicana (sistema público de educação) afirma que este deverá promover a consciência da solidariedade internacional. Portanto, em claro beneplácito ao princípio inspirador dos direitos de terceira dimensão. Mas não é só. Asseverou que determinados valores devem ser protegidos não apenas em relação ao indivíduo (primeira dimensão) ou a uma coletividade nacional (segunda dimensão), mas, sobretudo, em face de toda a comunidade (terceira dimensão).

Por sua vez, o artigo 25, que trata sobre a intervenção do Estado no domínio econômico, dispõe que os setores sociais e privados da economia sujeitam-se aos interesses públicos e ao uso, em benefício geral, dos recursos produtivos, devendo-se cuidar, portanto, de "su conservación y el médio

ambiente". Outro direito/dever protegido na terceira dimensão.

ARTICULO 25 - Corresponde al Estado la rectoría del desarrollo

nacional para garantizar que éste sea integral, que fortalezca la soberanía de la Nación y su régimen democrático y que, mediante el fomento del crecimiento económico y el empleo y una más justa distribución del ingreso y la riqueza, permita el pleno ejercicio de la libertad y la dignidad de los individuos, grupos y clases sociales, cuya seguridad protege esta Constitución.

[...]

Bajo criterios de equidad social y productividad se apoyará e impulsará a las empresas de los sectores social y privado de la economía, sujetándolos a las modalidades que dicte el interés público y al uso, en

248“Artigo 3º. A educação ministrada pelo Estado – federação, estados, municípios, tenderá a desenvolver nele o

amor à Pátria e a consciência da solidariedade internacional na independência e na justiça. I - Garantido pelo artigo 24 a liberdade da opinião, o critério que orientará esta instrução se manterá completamente alheio a toda a doutrina religiosa e, baseado o resultado do progresso científico, lutará contra a ignorância e seus efeitos, as servidões, os fanatismos e os preconceitos. Além disso: a) Será democrática, considerando a democracia não somente como estrutura jurídica e um regime político do um, mas como o um sistema de vida fundado no melhoramento constante econômico, social e cultural do povo; b) Será a nacional enquanto - sem hostilidades nem exclusivismos - tomará cuidado da compreensão de nossos problemas, da vantagem de nossos recursos, da defesa de nossa independência política, a assegurar nossa independência do econômica e à continuidade e ao aumento nossa cultura; e c) Contribuirá à melhor convivência humana, tanto quanto pelos elementos que contribuem a fim fortalecer o estudante, junto com apreço pela dignidade da pessoa humana e pela integridade da família, a convicção do interesse geral da sociedade, quanto pelo cuidado que ensiná-los a defender os ideais de fraternidade, igualdade de direitos de todos os homens, evitando os privilégios de raças, seitas, de grupos, de sexos ou de indivíduos.” [tradução nossa]

249 BUCCHIANERI PINHEIRO, Maria Cláudia. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a

preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/asp?id=9014 Acesso em: 27 de jan. 2000.

beneficio general, de los recursos productivos, cuidando su conservación y el medio ambiente.250

No artigo 27, em que está disciplinada a reforma agrária, o modo de organização dos assentamentos, reconhece-se a necessidade de se editar medidas para "preservar y restaurar el equilibrio ecológico" e, também, para "evitar la destrucción de los elementos naturales".

Assim, o texto constitucional mexicano não apenas reconheceu e positivou direitos de terceira dimensão, mas, também, colocou-os em relação de recíproca interação e mútua influência com outros direitos fundamentais.

A promulgação da Constituição do México de 1917 repercutiu favoravelmente no solo europeu. Com efeito, conforme se verá a seguir, a Constituição de Weimar, em 1919, trilhou a mesma via.