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A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1919

5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL ESTRANGEIRO

5.2. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1919

A Constituição de Weimar251 nasceu, assim como a mexicana, em um período de intensas perturbações sociais. Surgiu no período em que a história política alemã, entre 1914 e 1919, vivia uma acentuada curva descendente na economia, decorrente dos efeitos da Primeira Grande Guerra Mundial. De fato, antes da Declaração de Rendição da Alemanha, o povo experimentava uma das mais cruéis expectativas de vida. Os estoques de alimentos haviam se exaurido. A destruição dos meios de comunicação e a manutenção das cidades chegaram ao limite máximo. A fome estava presente não só nas trincheiras, como também nas cidades.

250 ARTIGO 25 – Corresponde ao Estado a regência do desenvolvimento nacional para garantir que este será integral,

que fortaleça a soberania da nação e de seu regime democrático e que, por meio da promoção do crescimento econômico e do uso de uma distribuição mais direita da entrada e da riqueza, permita o pleno exercício da liberdade e da dignidade dos indivíduos, grupos e classes sociais, cuja seguridade protege esta Constituição.

Sob critérios de equidade social e produtividade se apoiará e impulsionará as companhias dos setores sociais e privado da economia, sujeitando-os às modalidades que ditam o interesse público e ao uso, no benefício geral, dos recursos produtivos, tomando cuidado com a conservação do meio ambiente.

251 O local escolhido para sediar a Assembléia Constituinte foi Weimar, eis que, além de trazer a inspiração

de Goethe, que ali vivera, ficava afastada das lutas travadas em Berlim em função do levante spartakista, liderados por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, que buscavam uma maior fidelidade ao marxismo.

Em 1918, foi proclamada a República da Baviera252, e, logo em seguida,

uma revolução interna se iniciou por toda a Alemanha. Anunciou-se em Berlim a abdicação do Kaiser253. Um Conselho Provisório presidido por Friederich Elbert254,

representante do movimento socialista no Reichstag255, assumiu o governo

alemão. Iniciaram-se as providências para o Armistício. O governo provisório foi chamado para assinar o Tratado de Versalhes.256

Todos os Estados envolvidos na guerra encontravam-se com suas economias abaladas. O sistema capitalista mostrava-se impotente para reerguer o desastre econômico, político e social da Alemanha. Após o Tratado de Versalhes, o governo da Alemanha encontrava-se nas mãos de socialistas, integrantes do Partido Social Democrático, por isso a nova constituição representava uma nova coalizão de socialistas centristas católicos e liberais democratas. 257

Convocadas as eleições para a Assembléia Constituinte, verificou-se uma das causas da ruptura de Weimar: a absoluta fragmentação política e a ausência de maioria positiva no Parlamento258. Sob tal aspecto, irretocáveis as palavras de Bourthoumieux259:

252Baviera – pertence à República Federal da Alemanha. Localiza-se no sul do país. Baviera constitui um dos 16

estados federados autônomos, denominados Lander. Munich é a capital do estado da Baviera.

253 Kaiser no idioma alemão designa imperador. Kaiserin representa o nome feminino. in Langescheidts

Taschenwoterbuch – Deutsc-Portugiech de BEAU, Albin Eduard. Berlim-Munique-Zurique 1969, p. 1238. – O Kaiser Guilherme II renuncia, seguindo-se a nomeação de seu filho, Max von Baden. Segundo Comparato, foram tentativas de "abrir mão tão-só da coroa imperial, permanecendo como rei da Prússia". COMPARATO, Fábio Konder. opus cit., p. 196.

254 Fiederich Elbert (1871-1925). Nasceu em Heidelberg. Foi sindicalista e político. Ingressou na Social

Democracia, pois as idéias do marxismo não o atraíam. Foi o primeiro presidente alemão democraticamente eleito, como líder de movimento social-democrático. Foi um dos fundadores da Constituição de Weimar de 1919.

255 Reichstag designa Parlamento Alemão.

256 Tratado de Versalhes designa o documento político-jurídico celebrado pelas nações diretamente interessadas no

Primeiro Conflito Mundial. Foi assinado em Versalhes, em Paris, no dia 28 de junho de 1919. Presentes à sessão solene encontravam-se representantes de trinta e nove países. Representando o bloco vencedor: Presidente Woodrow Wilson (EUA), David Lloyd Georges (Primeiro Ministro da Inglaterra) e Georges Clemenceau (Primeiro Ministro da França). O Tratado punha fim à Primeira Grande Guerra Mundial. Pretendia devolver a paz à Europa e, ao mesmo tempo, eliminar o poderio bélico da Alemanha. Esta foi obrigada a entregar todo o seu equipamento bélico, 1700 aeroplanos e 5 mil locomotivas, navios, bem como retirar suas tropas que se encontravam além de suas fronteiras.

257 Cf. MOTTA DA SILVA, Moacyr. A justiça social como destinação dos direitos sociais. [S.L.: s.n., 200?], p. 56. 258 Para participação na Assembléia Constituinte, elegeram-se 421 representantes de 6 partidos: 44 membros da

direita conservadora, 19 membros da direita populista, 91 membros do partido católico, 75 membros do partido centrista, 165 membros da social-democracia e 22 membros da social-democracia independente. Constata-se, pois, a absoluta fragmentação política da Assembléia, bem assim a derrota dos partidos de esquerda. Nesse sentido: VAZ DA SILVA, Floriano Corrêa. opus cit., p. 43; THALMANN, Rita. República de Weimar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 15; BRUNET, René. La Constitution Allemande du 11 aout 1919, Paris: Payot & Cie, 1921 p. 47. Carlos Roberto Jamil Cury prefere a menção a percentuais, afirmando que as esquerdas moderadas (o partido comunista não participou das eleições) obtiveram 45% das cadeiras, a centro-direita, 33,3% e a direita, 14,7%. Trinta e sete

Cette dissociation du pouvoir réel et du pouvouir legal caractérise dés le début la période nouvelle et marque ce qui en será la loi constante: necessite de réaliser et de maintenir um compromis entre des forces naturellement divergentes. Ce compromis, uniquement imposé par la crainte commune de la Révolution n’est qu’une tréve momentanée pour les adversaires de la République. Il ne suppose aucun accord sur les questions politiques et sociales. Cet accord n’exist même pas dans la coalition républicaine des socialistes, des democrats et du centre. Dés les premières séances de l’Assemblée nationale, il fut visible que seuls les discourses qui exaltaient l’heroisme des armées et repoussaient toute responsabilité du Reich dans la guerre étaient capable de faire l’unnanimité. 260

O projeto da Constituição de Weimar, 1919, foi elaborado por Hugo Preuss261, discípulo de Gierke262, e influenciado por Weber, que era considerado um dos poucos juristas de tendências de esquerda. 263

A Constituição Alemã de 1919 era composta por 165 artigos, divididos em dois livros. O primeiro livro, relativo à "Estrutura e Fins da República", já o segundo, relacionado aos "Direitos e Deveres Fundamentais do Cidadão Alemão".

O livro II (artigos 109 a 165) merece atenção neste estudo. Não faltaram críticas aos direitos e garantias nele constantes. Técnicas de hermenêutica foram aprimoradas para permitir que os direitos fundamentais conferidos por estes dispositivos ao povo alemão pudessem alcançar nível mais elevado de concretização.

mulheres foram eleitas para a Constituinte. JAMIL CURY, Carlos Roberto. A Constituição de Weimar: Um capítulo para a educação, in Revista Quadrimestral de Ciência da Educação, nº 63/1998, p. 86.

259 BOURTHOUMIEUX, Ch. Fédéralisme et Démocratie dans la Constitution de Weimar et la Loi

Fondamentale de Bonn. in Revue Internationale de Droit Comparé, janeiro/março de 1950, p. 28

260 “Esta dissociação do poder real e do poder legal caracteriza desde o começo o período novo e marca o que

na lei será constante: necessidade de realizar e manter um compromisso entre forças naturalmente divergentes. Este compromisso, unicamente imposto pelo temor comum da Revolução é apenas um tréve momentâneo para os adversários da República. Não supõe nenhum acordo sobre questões políticas e sociais. Este acordo não existe mesmo na coalizão republicana dos socialistas, democratas e do centro. Nas primeiras sessões da Assembléia Nacional, ficou visível que só os discursos que exaltavam o heroísmo do exército e afastavam qualquer responsabilidade do Governo na guerra eram capazes de fazer unanimidade.” (tradução nossa).

261 Hugo Preuss (1860-1925). Jurista e político alemão. Professor de origem judaica adepto do

comunitarismo. Representa um dos principais teóricos da Constituição de Weimar de 1919. Foi discípulo do jurista Otto Friedrich von Gierke.

262 Otto Friedrich von Gierke. Nasceu em Heidelberg, Alemanha (1841-1913-1921?). Jurista e político.

Professor de Direito em Breslau, Heidelberg e Berlim.

263 A questão de a escolha de Preuss ter se fundado em sua suposta proximidade com a esquerda da época foi

enfatizada por Walter Jellinek. apud BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social. Atualidade do debate sobre direito, Estado e economia na República de Weimar. Tese de Livre-Docência apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2003, p. 14.

Nesse sentido, deve-se dizer que se sustentou até que a Constituição alemã possuía uma contradição absoluta entre seus dois livros, que estabeleciam uma organização liberal de Estado, de um lado, e conferiam direitos de natureza socialista, de outro. 264

Importante observação é feita por Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro265:

O rol sistematizado de direitos constante do Livro II da Constituição de Weimar, ao garantir tanto liberdades públicas como prerrogativas de índole social, notabilizou e celebrizou a Constituição Alemã de 1919, que, não obstante suas imperfeições – inerentes à toda obra humana –, inspirou textos constitucionais por todo o mundo, inclusive no Brasil (Constituição de 1934).

Analisando-se a famosa Constituição, a primeira observação recai sobre o extenso rol de direitos fundamentais de primeira dimensão nela constantes: direito à igualdade (art. 109); igualdade cívica entre homens e mulheres (art. 109, § 1º); direito à nacionalidade (art. 110); liberdade de circulação no território e para fora dele (arts. 111 e 112); inviolabilidade de domicílio (art. 115); irretroatividade da lei penal (art. 116); sigilo de correspondência e de dados telegráficos ou telefônicos (art. 117); liberdade de manifestação do pensamento (art. 118); vedação à censura (art. 118, § 1º); proteção ao matrimônio e à família (art. 119); igualdade jurídica entre os cônjuges (art. 119); igualdade entre filhos havidos na constância ou fora do matrimônio (art. 121); liberdade de reunião (art. 123); liberdade de associação (art. 124); direito ao voto secreto (art. 125); direito de petição ao Poder Público (art. 126); liberdade de consciência e crença religiosa (art. 135); separação Estado/Igreja (art. 137); liberdade de associação religiosa (art. 137, § 1º) e liberdade de sindicalização (art. 159).

Entre os direitos de segunda dimensão, que conferem não só caráter social à Constituição de Weimar, mas também evidente atenção ao princípio da solidariedade, que se encontra implícito no conjunto dos dispositivos266, mister destacar: proteção e assistência à maternidade (arts. 119, § 2º e 161); direito à educação da prole (art. 120); proteção moral, espiritual e corporal à juventude (art. 122); direito à pensão para família em caso de falecimento e direito à

264 Schimitt apud Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro. op.cit., p. 16 265 Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, mesma página.

aposentadoria, em tema de servidor público (art. 129); direito ao ensino de arte e ciência (art. 142); ensino obrigatório, público e gratuito (art. 145); gratuidade do material escolar (art. 145); direito à "bolsa estudos", ou seja, à "adequada subvenção aos pais dos alunos considerados aptos para seguir os estudos secundários e superiores, a fim de que possam cobrir a despesa, especialmente de educação, até o término de seus estudos" (art. 146, § 2º).

Não se pode esquecer, igualmente, das seguintes garantias: função social da propriedade (art. 153, §2º); desapropriação de terras, mediante indenização, para satisfação do bem comum (art. 153, § 1º); direito a uma habitação sadia (art. 155); direito ao trabalho (art. 157 e art.162); proteção ao direito autoral do inventor e do artista (art. 158); proteção à maternidade, à velhice, às debilidades e aos acasos da vida, mediante sistema de seguros, com a direta colaboração dos segurados (Art. 161 - previdência social); direito da classe operária a "um mínimo geral de direitos sociais" (art. 162); seguro desemprego (art. 163, § 1º).

Registre-se, ainda, que há no corpo do texto constitucional de Weimar dispositivo destinado, unicamente, a contemplar direitos fundamentais de terceira dimensão, qual seja, o artigo 150, que, ao dispor que "Os monumentos de arte,

históricos e naturais, bem como a paisagem, gozam da proteção e incentivo estatais", positivou, em sede constitucional, típicos direitos de terceira dimensão.

O tema da solidariedade na Constituição de Weimar (1919) é mais evidente, menos tímido do que na Constituição Mexicana (1917), pois nela está previsto, ao lado dos direitos dos trabalhadores e do estabelecimento da função social da propriedade, um rol sistematizado de outros direitos com nítido caráter de observação ao princípio da solidariedade.

Destaca-se, entre eles, o avançado sistema de educação pública, obrigatória e gratuita, que previa, inclusive, a gratuidade do material escolar e a subvenção de famílias carentes para que seus filhos pudessem ir à escola (arts. 145 e 146). O sistema de previdência social, por sua vez, foi estabelecido de maneira mais organizada e explícita, com previsão de participação do segurado (art. 161), sendo, ainda, dividido em regime de previdência do setor público – para funcionários públicos (art. 129) – e regime geral de previdência (art. 161).

Estabeleceu-se, também, como meio de incentivo à pesquisa, o direito à proteção autoral do inventor e do artista (art. 158).

Como se observa, há uma evolução na proteção dos direitos humanos na Constituição de Weimar. Muitos direitos, tidos como sociais (segunda dimensão), passam a exigir para sua efetivação a solidariedade entre grupos humanos e entre os indivíduos; em outras palavras, passam a ter um caráter de direitos de fraternidade (terceira dimensão).

Com efeito, os direitos/deveres que implicam em atenção ao princípio da solidariedade são universais ou, no mínimo, transindividuais, dizem respeito tanto ao Estado, quanto à sociedade, quanto aos indivíduos.

5.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES