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A «guerra religiosa» na I República

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Academic year: 2021

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Volumes publicados 1

Pedro Penteado Peregrinos da Memória O Santuário de Nossa Senhora de Nazaré

Lisboa, 1998 ISBN: 978-972-8361-12-9

2

Maria Adelina Amorim

Os Franciscanos no Maranhão e Grão-Pará Missão e Cultura na Primeira Metade de Seiscentos

Lisboa, 2005 ISBN: 978-972-8361-20-4

3

Colóquio Internacional

A Igreja e o Clero Português no Contexto Europeu The Church and the Portuguese Clergy in the European Context

Lisboa, 2005 ISBN: 978-972-8361-21-1

4

António Matos Ferreira

Um Católico Militante Diante da Crise Nacional Manuel Isaías Abúndio da Silva (1874-1914)

Lisboa, 2007 ISBN: 978-972-8361-25-9

5

Encontro Internacional

Carreiras Eclesiásticas no Ocidente Cristão (séc. XII-XIV) Ecclesiastical Careers in Western Christianity (12th-14th c.)

Lisboa, 2007 ISBN: 978-972-8361-26-6

6

Rita Mendonça Leite

Representações do Protestantismo na Sociedade Portuguesa Contemporânea

Da exclusão à liberdade de culto (1852-1911)

Lisboa, 2009 ISBN: 978-972-8361-28-0

7 Jorge Revez

Os «Vencidos do Catolicismo» Militância e atitudes críticas (1958-1974)

Lisboa, 2009 ISBN: 978-972-8361-29-7

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Maria Lúcia de Brito Moura A «Guerra Religiosa» na I República

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na I República

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Publicação integrante do Programa Oficial das Comemorações do Centenário da República

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A «Guerra Religiosa»

na I República

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C E N T R O D E E S T U D O S D E H I S T Ó R I A R E L I G I O S A

U n i v e r s i d a d e C a t ó l i c a P o r t u g u e s a

L i s b o a 2 0 1 0

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A oportunidade que o Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) tem de editar agora, na sua versão completa, A Guerra Religiosa na Primeira República, de Maria Lúcia de Brito Moura, não se deve só ao ambiente comemorativo sobre a I República, ainda que esta circunstância aumente o grau de importância do acto de se colocar à disposição do público esta obra marcante.

A obra teve uma primeira edição, simplificada do aparato mais académico e crítico, surgida em Outubro de 2004 na Editorial Notícias, mas entretanto esgo-tada. O CEHR assumiu agora a edição integral e revista deste estudo que corres-ponde ao trabalho realizado pela autora como dissertação de doutoramento em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação do Professor Fernando Catroga.

Este estudo é indiscutivelmente um marco no conhecimento historiográfico deste período – a I República – da vida portuguesa. Partindo da problemática do religioso, tradicionalmente colocado como «a questão religiosa», este estudo não se reduz às relações institucionais, nem se circunscreve exclusivamente aos ambien-tes católicos. A autora pretende sublinhar e tornar sensível à compreensibilidade historiográfica o quotidiano e a vida concreta das pessoas; como por várias vezes a própria autora refere, trata-se de um estudo sobre aqueles intervenientes e aqueles aspectos que não se esgotam nem no aparato, nem nos protagonistas dominantes, eclesiásticos ou políticos.

É um estudo inovador, pioneiro no conhecimento e na abordagem metodo-lógica dum tempo complexo e de profundas alterações mentais, sócio-culturais e políticas. Considerando o caleidoscópio dessas mutações e dos seus agentes, este trabalho assinala bem a recomposição do religioso que também o foi do ponto de vista cultural e social, marcado por rupturas e afrontamentos geradores de outros níveis de consciência. Questões como a legitimidade, a autoridade e a tradição são

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perspectivadas nesta análise como realidades antropológicas que, sendo factores de resistência, surgem também como processos de inovação e de adaptação gerando algo que se pode considerar parte integrante da secularização e da laicização da sociedade e da sua institucionalização orgânica, isto é, do Estado.

É gratificante para o conjunto de investigadores do CEHR esta edição de uma autora – Maria Lúcia de Brito Moura – que, membro empenhado do Centro, tem dado um contributo constante à formação de todos nós e tem ajudado a colocar mais profundamente as questões que respeitam a este primeiro período do regime republicano (1910-1926), apoiando e estimulando o trabalho de novos investigadores nestas problemáticas. Sempre disponível para partilhar os seus conhecimentos e informar sobre as suas pesquisas, a sua produção continuada sobre diversos temas é bem demonstrativa deste labor, utilizando fontes primárias relevantes de arquivos nacionais e internacionais.

É, pois, com uma palavra de profundo reconhecimento que a Direcção do CEHR agradece ter a autora disponibilizado todo o material necessário para esta edição, considerando este gesto como mais um daqueles com que nos tem brin-dado, como companheira das nossas actividades científicas, as quais procuram estar sempre abertas a todos, recebendo e dando o que está ao nosso alcance. O trabalho de investigação e de escrita, sendo solitário, tem também um elevado grau de cooperação, nele se jogando incessantemente o sentido do que se estuda e faz. A abertura e o rigor de um centro de investigação depende da atitude das pessoas que nele se integram e colaboram, pois, não se podendo tudo fazer, o que se alcança só pode ser o resultado do empenho de todos. A importância deste trabalho e da actividade científica de Maria Lúcia de Brito Moura tem sido o testemunho desta atitude. Por isso mesmo, nesta introdução, se assinalam estes aspectos como expressão e imperativo de gratidão.

António Matos Ferreira

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Até praticamente aos finais dos anos de 1980 não foi grande o interesse pelo estudo da questão religiosa em Portugal. Foi a época em que esta aparecia fundida com a história da Igreja, ou convocada para anatematizar os excessos do raciona-lismo moderno e das ideias liberais, democráticas e socialistas, isto é, para, directa ou indirectamente, justificar a política recatolicizadora levada a cabo pelo Estado Novo desde os inícios da década de 1930.

No campo oposto, a “historiografia de resistência” tendeu a recalcá-la, devido não só a razões de repressão ideológica, mas, sobretudo, de carácter epistemológico. Foi o momento em que, neste sector, a hegemonia da história económico-social caminhou a par com a secundarização da história política e da história cultural, e em que, por isso mesmo, a questão religiosa se confinou, quase exclusivamente, ao estudo das desamortizações. Regra geral, este reducionismo deveu-se à convicção de que as chamadas superstruturas nunca poderiam agir como forças instituintes do social, ou, pelo menos, como instâncias onde, num dado momento, as contra-dições da sociedade podem condensar-se. Em suma: havia dificuldades para se reconhecer que o ser humano é homo oeconomicus, homo socius e homo politicus, dado que também é homo symbolicus e homo sacer.

O panorama mudou nos últimos vinte anos, aparecendo a obra de Maria Lúcia de Brito Moura como um dos mais sólidos marcos dessa viragem. Não surpreende, já que a autora, querendo historiar a partir de factos beneditinamente certificados, não só fez uma profunda investigação de fontes primárias, como compulsou a bibliografia portuguesa e internacional de referência ligada à temática, porque igualmente sabe que historiar é fazer interpretações de interpretações. E tinha que ser assim: a hermenêutica ficaria diminuída se não fosse sujeita a dois olhares con-comitantes – o da comparação (interna e externa) e o da escala temporal média.

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Como o problema religioso, agitado pelos republicanos, desejava integrar a herança do antijesuitismo pombalino e do anticongreganismo monárquico-cons-titucional, só nessa diacronia as continuidades e as mudanças – em particular as acrescentadas pelo livre-pensamento e pela laicidade – poderiam ser apreendidas. Sem isso, cair-se-ia na ilusão de que a questão religiosa foi um fenómeno de con-juntura curta e uma “invenção” pequeno-burguesa sem causalidades estruturais. Ora, o tipo de anticlericalismo político aqui estudado ganhou relevância desde, pelo menos, Pombal, mantendo-se activo – com altos e baixos, é certo – até aos inícios da década de 1930. Média duração a pedir faseamentos e especificações, no contexto dos avanços e das resistências provocados pela longa luta em prol da modernização da sociedade portuguesa. Por isso, nesta obra – ainda que, à primeira vista, o seu objecto pareça somente ter a ver com a I República –, está em causa a compreensão de uma “guerra religiosa” que demorou mais de cem anos. E o seu cariz estrutural pode ainda ser comprovado tanto pela comparação com o ocorrido em boa parte dos países católicos da Europa do Sul (com destaque para a França) e da América Latina (México), como por este outro argumento: exceptuando a laicidade republicana, as medidas anti-ultramontanas, antijesuíticas e anticongreganistas foram tomadas por governantes monárquicos e católicos.

Percebe-se. Afinal, elas foram ditadas por necessidades tão importantes na desestruturação da sociedade de Antigo Regime como: a afirmação da soberania do Estado; o lançamento de uma política educativa que, contra o ultramontanismo, nacionalizasse as consciências e os sentimentos de pertença; a privatização dos bens da Igreja, tendo em vista o desenvolvimento de uma economia capitalista; a radicação de um sistema representativo assente nos direitos fundamentais do indi-víduo, premissa que os republicanos quiseram alargar à liberdade de consciência e, portanto, ao direito à religião ou à não religião. O que pôs na ordem do dia o combate pela laicização da sociedade portuguesa, objectivo que terá na célebre Lei de Separação das Igrejas do Estado (Abril de 1911), na introdução do ensino primário obrigatório gratuito e laico, na lei do registo civil obrigatório e na lei do divórcio, as traves mestras da sua concretização.

Maneira de sustentar que, sob a República, a questão religiosa foi um ponto de chegada e, simultaneamente, pretendeu ser um acelerado ponto de partida para o que se considerava ser a definitiva modernização da sociedade portuguesa. Mas, este projecto não foi um exclusivo do republicanismo: foi igualmente propagande-ado por várias correntes político-ideológicas (livre-pensamento, socialismo, anar-quismo) que reivindicavam para si o estatuto de vanguardas, e que, na diversidade dos seus objectivos últimos, se reuniram, nas vésperas do 5 de Outubro, à volta de programa mínimo: derrubar a Monarquia e institucionalizar a laicidade, chaves que abririam as portas à democracia e à resolução dos problemas sociais. Prova de que, para estas correntes político-ideológicas, a questão religiosa aglutinava todas as outras, e sinal de que, sem a remissão da influência da Igreja à esfera privada

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e mesmo, para alguns, sem a extinção da religião, não se conseguiria eliminar a opressão política e a exploração social.

O rápido cumprimento desta agenda começou logo após o 5 de Outubro de 1910 e traduziu-se na institucionalização político-jurídica da laicidade, aspecto bem descrito na obra, porque tratado de um modo não maniqueísta. Assim, não escamoteando a existência de um consenso entre as várias tendências republicanas no que respeita à implantação da neutralidade religiosa do Estado, regista-se a exis-tência de clivagens quanto ao âmbito e ao tempo necessário para a concretização dessa ruptura, realidade a que a entrada de Portugal na guerra e a dramática situa-ção do país (carestia de vida, pneumónica) trouxe uma ainda maior complexidade. A mesma cautela metódica se detecta no que respeita à evolução da Igreja. Esta, de uma situação inicial de impotência e de expectativa desconfiada, rapida-mente passou para uma atitude de desobediência às leis decretadas pelo Estado republicano, escudada nas posições públicas dos bispos contra a Lei de Separação e na intervenção papal. O imediato desfecho é conhecido: o exílio interno dos antístites e o levantar de manifestações de simpatia em seu apoio. Movimentos autónomos, mas não independentes das agitações monárquicas que, de armas na mão, começavam a preparar-se para derrubar a República.

Pode dizer-se que a descrição dos momentos fortes desta “guerra” constitui o núcleo duro do livro. Todavia, dele consta uma faceta frequentemente encoberta pelo peso da componente político-ideológica. Sem negar a existência de interco-nexões entre ambas, a autora assinala a existência de levantes e protestos populares movidos por motivações mais fundas. Entroncavam em costumes, hábitos e ati-tudes, cujas práticas rituais (muitas vezes eivadas de um paganismo catolicizado) tinham cimentado identidades comunitárias que se sentiram agredidas por uma política imbuída de um vanguardismo iluminista à luz do qual os relativismos culturais só valiam para o passado.

Com esta matéria, o livro entrou no cerne de uma das suas partes mais interessantes e inovadoras. A República actuou através dos meios estaduais que dominava, mas também da acção de grupos, organizados ou não, que, em nome da Lei de Separação, recorreram a actos de violência física e simbólica. O que obrigou a análise a descer do nível político-ideológico para o regional e local, a fim de captar algo secularmente comum a todas as guerras religiosas: a eclosão de manifestações iconoclastas.

Sabendo que esta reacção é típica das sociedades em que o sagrado também funciona como força legitimadora de poderes e opressões, Maria Lúcia de Brito Moura abraçou aqui a perspectiva antropológica para mostrar como esta

transfe-rência também serviu para bloquear a irrupção de formas mais contundentes de

violência, ao mesmo tempo que a comparação com fenómenos similares (Semana

Trágica de Barcelona, 1909; revolução mexicana) lhe permitiu captar índices de

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social menos intensa e de efeitos de mediações personalizadas, vindas, sobretudo de autoridades distritais e locais que, não raro, amorteceram a aplicação da Lei, explorando (particularmente no que respeita às manifestações rituais no espaço público) as excepções de cariz étnico-cultural que ela mesma previa. Noutros casos, porém, o proselitismo anticlerical chegou a ultrapassar os limites da lega-lidade, com comportamentos de iconoclastia comuns a todas as heterodoxias e comummente traduzidos na destruição de imagens, de badalos de sinos, em suma, na carnavalização dos ritos religiosos.

Rastrear e fixar a geografia e os momentos mais significativos destas atitu-des de resistência e de contestação constitui, sem dúvida, uma das partes mais fascinantes deste estudo. E como este mobiliza todas as implicações da questão

religiosa, a sua leitura também ajuda a entender-se melhor algumas das razões que

debilitaram a República e impulsionaram o crescimento dos que, contra os ideais democráticos, liberais e socialistas, apostavam na renovação do antigo consórcio regalista do trono com o altar e num maior controlo e fomento da massificação das formas de religiosidade popular.

Setembro de 2010

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

Assim como a Revolução Francesa tem sido interpretada à luz dos conflitos que se foram sucedendo na França e no mundo nos últimos duzentos anos, con-tinuando a alimentar acaloradas polémicas, também a I República Portuguesa, ao longo do século XX, serviu de referência, incorporando os nossos sistemas de crenças e os nossos mitos. Num século de utopias, ela representou para muitos portugueses a grande utopia. Antes da sua implantação, era o sonho que levaria à concretização de todos os ideais, a felicidade prometida por todos os sebas-tianismos. Depois de ter sido derrubada, os adversários da ditadura salazarista recalcaram a memória de erros e conflitos, elegendo a República como símbolo de luta por tudo quanto era generoso e bom. Foi esse facho de luz, congregando os sonhos de justiça e de liberdade, que o movimento de 25 de Abril recuperou e ergueu1. Contudo, essa visão luminosa e mitificada da República está longe de ser consensual. Alguns guardaram e reproduziram memórias de atropelos, de abusos, de espoliações, de terror. Por isso, pode afirmar-se que a República tem chegado aos portugueses pelas vias da idealização ou da diabolização. Ela surge como o bem ou o mal, em absoluto.

Esta radicalização maniqueísta é uma herança dos revolucionários de 1910 e, igualmente dos seus adversários, que fizeram da política – como afirma François Furet

1 Escrevendo para A Revista (do semanário Expresso), em 1990, quando a República completava oitenta

anos, Mário Soares considerou o 5 de Outubro como “um 25 de Abril a sessenta e quatro anos de vista”. Mário Soares, “A minha educação republicana”, in A Revista (do semanário Expresso), 5/10/1990, p. 16. Porém, Fernando Rosas afirma que, na fase terminal do chamado Estado Novo, a extrema esquerda, num processo de contestação à experiência da I República, fez desaparecer do combate político concreto o republi-canismo, que se manteve “apenas como referência ética e cultural da corrente socialista”. Cf. Fernando Rosas, “A Primeira República vista pelo Estado Novo e pela Oposição Democrática”, A República Ontem e Hoje, III Curso Livre de História Contemporânea, Lisboa, 20 a 25 de Novembro de 2000, organizado por Fundação Mário Soares e Inst. de História Contemporânea da UNL, Lisboa, Edições Colibri, 2002, pp. 107-108.

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acerca dos homens da Revolução Francesa – “o domínio do verdadeiro e do falso, do bem e do mal”, capaz de traçar “as linhas de separação entre os bons e os maus”2. Tal

concepção está bem presente em alguns «profetas» que, ainda durante a Monarquia, viam na instauração da República uma revolução escatológica que arrancaria do solo pátrio a árvore do Mal3. Para Guerra Junqueiro ela era uma “guerra santa”4:

A sociedade portuguesa está organizada para o mal […]. Desde que o mal é a sua própria essência, o bem constitui a sua própria negação e a sua morte. O bem é o adversário”.

É que, para aqueles que prepararam o fim da Monarquia, não se tratava sim-plesmente de abolir a realeza. Estavam em causa duas concepções do mundo e da vida: a “Boa Nova”, apoiada nas conquistas da Ciência e da Razão, contra a “Boa Nova”, envelhecida e rotineira, pregada por clérigos que não conseguiam actualizar o seu discurso.

As prevenções contra a Igreja Católica não constituíam novidade. A

Decla-ração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada na Assembleia Nacional

Francesa em 26 de Agosto de 17895, inaugurara uma oposição – que veio a durar

quase dois séculos – entre os defensores da liberdade e os defensores da religião. O Homem aparecia senhor do seu destino, crendo que, sem necessidade de recor-rer à interferência divina, teria capacidade para “controlar racionalmente a história e de, através da educação, ser crescentemente perfectível”6. A Igreja Católica é que

2

François Furet, Pensar a Revolução Francesa, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 45.

3

Norberto Cunha, Génese e Evolução do Ideário de Abel Salazar, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997, p. 33.

4 Idem, ibidem.

5 Verdadeiramente, a primeira declaração de direitos moderna foi a Declaração de Direitos da Virgínia, em

1776. Os fundadores da democracia norte-americana sentiam-se movidos por um forte ideal religioso e desejavam construir uma sã convivência de homens cristãos de diferentes confissões. Relativamente à reli-gião, estabelecia: “A relireli-gião, as obrigações para com o nosso Criador e a forma de as cumprir só podem ser prescritas pela razão e pela convicção, não pela força ou pela violência; e, por conseguinte, todos os homens têm igualmente direito ao livre exercício da religião…”. A declaração francesa proclamava: “Ninguém deve ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo as opiniões religiosas, contanto que a manifestação delas não perturbe a ordem publica estabelecida pela lei”. O texto americano reflectiria uma “consideração positiva da religião” e o texto francês, sendo sobretudo contra o absolutismo, consideraria “a religião pela negativa”. Paulo Pulido Adragão, A Liberdade Religiosa e o Estado, Coimbra, Livraria Almedina, 2002, pp. 71-74. Analisando a diferença entre os dois textos, Alain Renaut considera que a declaração americana se baseia na convicção segundo a qual o funcionamento natural da sociedade tende a realizar espontaneamente os direitos do homem. A declaração francesa tem a ver com a crença na necessidade de uma revolução como “rectificação radical da sociedade por uma vontade virtuosa, em nome de um ideal moral”. Alain Renaut, “Revolução americana, revolução francesa”, História da Filosofia Política / 4 – As Críticas da Modernidade

Política (dir. Alain Renaut), Lisboa, Instituto Piaget, 2002, pp. 19-20.

6 Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal – da Formação ao 5 de Outubro de 1910, Coimbra,

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não estava preparada para aceitar essa confiança que prescindia de Deus, rejei-tando veementemente que se garantisse “a cada um a liberdade de pensar como lhe aprouver, inclusive em matéria religiosa, de manifestar o seu pensamento no exterior com impunidade”7.

Na via da emancipação, os homens das Luzes teriam de entrar em conflito com essa Igreja desfasada de uma sociedade que se assumia como civil, sobre a qual teimava em querer impor autoritariamente os seus dogmas. Contudo, o cristianismo, despido das roupagens dogmáticas e realçando a sua face doutriná-ria de amor, mantinha potencialidades que lhe permitiam continuar a despertar simpatias entre aqueles que não se satisfaziam emocionalmente com a fria Razão. Nos meados do século XIX, apesar do processo de emancipação do Homem que pretendia ser senhor do seu destino, ainda parecia possível conciliar republica-nismo com catolicismo8. Porém, na segunda metade do século, essa convivência pacífica foi-se tornando mais difícil. Com Pio IX (que teve um longo pontificado, de 1846 a 1878), a Igreja Católica, frente ao avanço do movimento liberal e racio-nalista, procurou reconquistar campos perdidos, forjando novas armas. Mas elas não eram de molde a aproximá-la das novas mundividências. A Questão Romana veio erguer uma barreira de incompreensões e ressentimentos. Perante um mundo que repelia a sua tutela, a Igreja radicalizou-se e, num “intento extremado de supercompensação”9, por se sentir insegura, consciente de constituir um corpo

estranho num universo que se transformara, empreendeu um ataque frontal à ideia de modernidade. Incapazes de entender um mundo em mudança, os seus dirigen-tes teimavam em opor-se-lhe, ficando cada vez mais de fora. O Syllabus errorum (1864) – catálogo de proposições condenando o racionalismo, o socialismo, a franco-maçonaria, a independência relativamente ao magistério eclesiástico, o liberalismo, a negação do poder temporal do papa –, visto pelos seus adversários como “obra-prima do imobilismo doutrinal eclesial”10, forneceu argumentos aos que acusavam a Igreja de retrógrada, hostil ao progresso e à liberdade, à ciência e à aspiração dos mais pobres a elevarem-se acima da condição em que Deus os havia colocado. O concílio Vaticano I, com a declaração de infalibilidade papal (1870)11, veio tornar mais negra essa ideia de uma instituição esclerosada na sua

pretensão de imutabilidade. Os liberais católicos encaravam com grande

descon-7

Pio VI, «Alocução aos Cardeais» – 29 de Março de 1790. Transcrito por Jean-Claude Eslin, Deus e o

Poder – O Estado e a Religião na História do Ocidente, Lisboa, Âncora Editora, 2000, p. 175.

8

Veja-se Maria Manuela Tavares Ribeiro, Portugal e a Revolução de 1848, Coimbra, Liv. Minerva, 1988.

9 José Luis L. Aranguren, A Crise do Catolicismo, Coimbra, Livraria Almedina, 1971, p. 27.

10 Henri Tincq, “A expansão dos extremismos religiosos no mundo” in As Grandes Religiões do Mundo

(dir. Jean Delumeau), Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 684.

11 Sobre a participação da Igreja portuguesa no concílio e o confronto entre ultramontanos e galicanos

veja-se Manuel da Rocha Felício, Portugal e a Definição Dogmática da Infalibilidade Pontifícia – Teologia,

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

fiança essas novidades, temendo o emergir de um neocatolicismo sustentado no poder absoluto do pontífice romano, que parecia disposto a esquecer as tradições regalistas dos povos.

Tal catolicismo defensivo e ressentido parecia pouco interessado numa con-ciliação com os novos tempos, que se debatiam com novos problemas e necessi-dades decorrentes da industrialização, do desenraizamento das populações que abandonavam os campos e enchiam as cidades desumanizadas onde imperavam a pobreza e a exploração. Estas multidões não eram cativadas por uma Igreja que se revelava incapaz de inventar formas de sedução mais adequadas e que parecia não entender os sentimentos generosos que levavam tantos insatisfeitos a colocar-se ao lado dos oprimidos, lutando por construir uma sociedade mais justa. Leão XIII (pontífice entre 1878 e 1903) apercebeu-se dessa realidade e encetou uma aproximação com os mais fracos economicamente. Mas essa atitude não acalmou os seus adversários, antes tornou a Igreja ainda mais perigosa aos seus olhos, pois viam nessas novas estratégias somente um ardil destinado a subtrair a iniciativa social aos que pretendiam tornar-se nos mentores das novas gerações. Por isso, nos finais do século XIX, o anticlericalismo extremar-se-á, surgindo a questão religiosa cada vez mais articulada com a questão social12.

Contudo, se Leão XIII, de certo modo, procurou abrir-se a um mundo em transformação, preconizando uma política do ralliement13, o seu sucessor, Pio X

(que governou a Igreja Católica entre 1903 e 1914), preocupado sobretudo com a defesa da ortodoxia católica, que lhe parecia mais consentânea com a sua ideia de cidade de Deus, veio a adoptar uma posição rígida em relação aos novos pro-blemas. A sua condenação do modernismo – através da encíclica Pascendi (1907) –, movimento nascido no seio da Igreja, que pretendia conciliar as conquistas da ciência com a fé14, era um sinal de que não estava disposto a ceder. Foi este

o adversário, pouco disposto a contemporizações, que se deparou aos governos franceses que levaram a cabo a Lei da Separação. Será este o adversário que o republicanismo português irá encontrar pela frente.

Com tudo isto, parece incontestável que a intransigência da hierarquia eclesi-ástica contribuiu para que um muro se erguesse entre duas concepções do mundo: a da Igreja, representando a autoridade, o dogma, a coacção, ou seja, tudo aquilo

12 Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal…, cit, p. 88.

13 Através da encíclica Au millieu des sollicitudes, de 16 de Fevereiro de 1892, Leão XIII procurou reconciliar

a Igreja com a República Francesa, desvalorizando a questão de regime político e aconselhando os franceses a colaborar com as autoridades estabelecidas. Para João Francisco de Almeida Policarpo, este papa não alterou, “na essência”, a orientação seguida pelos seus predecessores. Continuava a apontar como solução para a questão social a prática das virtudes cristãs tradicionais. João Francisco de Almeida Policarpo, O Pensamento

Social do Grupo Católico de «A Palavra» (1872-1913), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1977, pp. 22-23.

14 Sobre o modernismo em Portugal, veja-se Jorge Seabra, ”O Impacto do Modernismo em Portugal.

O Caso dos Estudos Sociais”, AA. VV., O CADC de Coimbra, a Democracia Cristã e os Inícios do Estado Novo

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

que lembrava o passado; do outro lado, a razão, a liberdade, a ciência, o progresso, o futuro em suma15. As figuras cimeiras da Igreja não entendiam que, mesmo nos

países onde o catolicismo dominara durante séculos, uma parte da população se afastasse da sua mensagem, indiferente a promessas de felicidade ou a ameaças de castigos, somente concretizáveis num outro mundo, cada vez mais distante pelos esforços de uma ciência que parecia mais eficiente que os santos protectores do passado.

Aliás, foi precisamente nos países europeus e sul-americanos, onde a Igreja Romana mantinha grande influência, que o embate entre o tradicionalismo católico e as novas concepções do mundo atingiu maior furor. O conflito era exasperado pelo carácter universal do catolicismo que, ao impor a obediência a um pontífice máximo, que se arrogava o poder de ditar normas a cidadãos de países soberanos, ofendia os nacionalismos, exacerbados por conflitos ocorridos nas últimas décadas – no caso português relacionados com o problema colonial. Se, nesse combate, a França era olhada como a estrela guia, mercê de toda uma mitologia reactualizada pela memória da Revolução Francesa, a Itália, devido à guerra travada contra o domínio temporal do Papa, aparecia igualmente como exemplar. Aqui, a identidade nacional era directamente ameaçada pelo papado, pelo que a questão religiosa se justapunha à “questão romana”16. Já em 1862 Antero de Quental sustentava a importância universal desta questão, porquanto significava o combate “entre o obscurantismo, a intolerância e a tirania, universais inimigos do homem, e a ilustração, a tolerância e a liberdade, alvo eterno e universal de todas as nobres e generosas aspirações da humanidade”17.

Portugal não estava à margem da guerra entre o catolicismo conservador e o liberalismo. Apesar das disposições tomadas por Pombal e, na alvorada do liberalismo, por Joaquim António de Aguiar – visando especialmente o poder económico e espiritual das congregações religiosas, cuja existência era encarada como atentatória das liberdades naturais dos indivíduos e, até, perigosa para a independência, na medida em que o ultramontanismo agredia a consciência

15 René Rémond, Introdução à História do Nosso Tempo, Lisboa, Gradiva, 1994, p. 250.

A atitude defensiva dos órgãos dirigentes da Igreja é compreensível. Como faz notar Luc Ferry, “qualquer concessão a uma liberdade de consciência, por natureza ilimitada, representa uma ameaça para a própria ideia de revelação”. Se a consciência do ser humano pode descobrir por si só a fonte do bem e do mal, então a Igreja desmorona-se. Cf. Luc Ferry, O Homem-Deus ou O Sentido da Vida, Lisboa, Edições Asa, 1997, pp. 54 e ss.

16 Manuel Braga da Cruz, “Entre nacionalismo e democracia cristã”, in Revistas, Ideias e Doutrinas – Leituras

do pensamento contemporâneo, Lisboa, Livros Horizonte, 2003, p. 50. Justifica-se a afirmação de Edoardo

Tortarolo: “La tradizione laicista ottocentesca si costruì in gran parte in Italia e in Francia”. Edoardo Torta-rolo, Il Laicismo, Roma-Bari, Editori Laterza, 1998, p. 72.

17 Antero de Quental, “Questão romana”, in Prosas Sócio-Políticas (publicadas e apresentadas por Joel

Serrão), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, p. 165. O artigo foi publicado pela primeira vez em Grémio Alentejano, 1862.

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

nacional – , o catolicismo continuava a desfrutar de enorme predomínio, sendo a religião católica reconhecida como religião do Estado na Carta Constitucional. O rei e o presidente da Câmara de Deputados juravam, em primeiro lugar, manter a Igreja Católica. Só depois, prometiam observar a Constituição da Nação Portu-guesa18. A Universidade de Coimbra – escola que preparava os futuros governantes

– apesar do processo de secularização encetado após a vitória liberal19, continuava

a impor um conjunto de obrigações de carácter religioso – remanescências da sua primitiva estrutura de cunho clerical – que restringiam as liberdades de professores e alunos e que faziam da Universidade uma “mistura do serviço de Deus e do serviço de Minerva”20.

Se é certo que, nos primórdios do liberalismo, a grande maioria dos libe-rais não desejava romper com as crenças tradicionais, o campo dos que viam como atentados à liberdade de consciência todos estes princípios e costumes ia crescendo. Não pode esquecer-se que esta evolução está inserida no processo de secularização, que já vinha da Idade Média e que, neste século, mercê de alterações político-ideológicas, se ia assumindo como laicização21 ou seja, como diz Fernando Catroga, em “contestação militante apostada em pôr em causa a força institucional, cultural e simbólica do cristianismo e do catolicismo”22.

Todo este processo não foi pacífico, revestindo, em algumas circunstâncias, considerável dramatismo. A situação de ”cisma” após a vitória dos liberais, pro-vocada pelo abandono das dioceses por parte da maioria dos bispos, que tinham apoiado a facção absolutista – alguns deles haviam sido providos nos seus luga-res por D. Miguel, – era susceptível de provocar relações de conflitualidade. Os vencedores, que não reconheciam a apresentação dos novos bispos, nomearam vigários capitulares da sua confiança para a administração das dioceses. Essas nomeações não foram, contudo, reconhecidas pela Santa Sé. Aliás, os prelados, ao abandonarem as dioceses, haviam atribuído a sua administração a representantes

18

Trindade Coelho, Manual Político do Cidadão Portuguez, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1906, p. 279.

19

A Faculdade de Cânones foi extinta e o Direito Eclesiástico viu o seu peso reduzido a duas e, mais tarde, a uma só cadeira, sendo os estudantes da Faculdade de Teologia obrigados a frequentar as aulas, nessa matéria, na Faculdade de Direito. A supremacia do poder civil é visível no recrutamento dos professores que regiam as cadeiras de Direito Eclesiástico. O positivista e militante republicano Manuel Emídio Garcia regeu a cadeira de Direito Eclesiástico Comum. Veja-se João Luís Oliva, O Domínio dos Césares. Ensino do Direito Eclesiástico

na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1836-1910), Lisboa, Edições Colibri, 1997.

20 Como afiançou o Dr. Sidónio Pais, lente catedrático da Faculdade de Matemática, na oração de Sapientia

proferida na abertura do ano lectivo, em 16 de Outubro de 1908. Cf. Joaquim Ferreira Gomes, “A «Ideologia» Oficial da Universidade de Coimbra em 1910, antes da proclamação da República: uma mistura do serviço de Deus e do serviço de Minerva”, in Universidade(s) – História. Memória. Perspectivas, Actas do Congresso “História da Universidade”, Coimbra, s.n., 1991, p. 444.

21 Sobre o caminho percorrido por um anticlericalismo que não punha em causa os princípios do

catoli-cismo, até se tornar laicatoli-cismo, veja-se Fernando Catroga, A Militância Laica e a Descristianização da Morte

em Portugal 1865-1911, Coimbra, Faculdade de Letras, 1988, pp. 6 e ss.

(19)



seus23. Criou-se, assim, uma divisão entre os crentes, mesmo entre os membros do clero, dando origem a motins em muitas localidades, sobretudo nas zonas rurais do norte do país, com as populações a expulsarem os párocos nomeados pelas novas autoridades ou a absterem-se de participar nos actos de culto dirigidos pelos “intrusos”24.

Resolvido o diferendo e normalizadas as relações com a Santa Sé, em 1841, o convénio assinado em 1848 significou, essencialmente, a aceitação, por parte de Roma, das alterações políticas e eclesiásticas ocorridas em Portugal. Era, assim, um factor de estabilização do regime25. Contudo, mesmo entre os católicos liberais, experimentava-se um grande desconforto. Os novos dogmas definidos por Pio IX – o da Imaculada Conceição (1854) e o da infalibilidade papal (1870) – ofendiam as crenças de muitos católicos sinceros. Alexandre Herculano, num protesto contra essa “revolução” que se vinha fazendo na Igreja Católica, opinou que, se a Carta Constitucional garantia a protecção à religião tradicional, ao Estado competia somente defender o catolicismo de 1826 e não essa «nova religião» introduzida posteriormente26.

No virar dos anos cinquenta para os anos sessenta a questão das irmãs de caridade francesas, pela violência que atingiu, ateou uma verdadeira guerra reli-giosa em Portugal. Os radicais viam nessas poucas mulheres a “guarda avançada de Roma”, a “reacção ultramontana”, avaliando a sua presença como um atentado à liberdade, susceptível de comprometer o futuro da Pátria27. Aliás, o episódio parece revelar já “a afirmação e difusão de um anticlericalismo ateu”, utilizado como “motor da republicanização da monarquia”28. A questão entroncava no

pro-23

Veja-se Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. III, Porto – Lisboa, Livraria Civilização – Editora, 1970, pp. 288-332 e Vítor Neto, “A emergência do Estado Liberal e as contradições político-eclesiásticas” (1832-1848), in Revista de História, Porto, Universidade do Porto, 1988. Do mesmo autor, veja-se O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, sobretudo o Cap. III – O Estado Português e a Santa Sé.

24

Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, “Liberalismo, religião e política: o «cisma» da Igreja portuguesa e a questão da tolerância religiosa”, Ler História, nº 33, Lisboa, ISCTE, 1997, pp. 97-112. Veja-se também Manuel Clemente, “Laicização da sociedade e afirmação do laicado em Portugal (1820-1840)”, in Lusitania Sacra, 2ª série, tomo III, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), 1991, pp. 124 e ss.

25

Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a Sociedade…, cit., p. 149.

26 Alexandre Herculano, “A supressão das Conferências do Casino (1871)”, in Opúsculos: Questões Públicas

– Política, Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, pp. 513-529. Há que ter em conta que, antes do Concílio Vaticano

I, em cada país, os governos arrogavam-se direitos no plano religioso. Em França, a corrente galicana não reconhecia ao papa senão um primado espiritual. A Igreja francesa não recebia as determinações papais sem a aprovação da autoridade temporal. Como diz Manuel Braga da Cruz, “o regalismo estava metido na consciência católica e na consciência pública das nações”. A “transnacionalização do catolicismo”, foi uma novidade relativamente ao século XVIII. Veja-se Manuel Braga da Cruz, “Entre nacionalismo e democracia cristã”, cit., p. 51.

27 M. Fátima Bonifácio, Apologia da História Política – Estudos sobre o século XIX português, Lisboa, Quetzal

Editores, 1999, p. 242.

(20)



blema do ensino, encarado como o principal campo de batalha onde se decidiria o futuro dos povos. Os mais extremistas viam, na influência das congregações sobre a educação infantil, um enorme perigo para esse futuro, pois as religiosas constituíam, na sua perspectiva, “o mais recente suporte” da “máquina infernal do jesuitismo”29 e incutiriam nas almas tenras das crianças princípios em tudo

opostos ao espírito liberal.

A polémica em torno do casamento civil, em 1865-1866, opôs os adeptos do casamento civil voluntário, defensores da liberdade de consciência e dos direitos das minorias não católicas, aos ultramontanos que, ancorados na Carta Constitu-cional, alegavam que tal proposta era inconstitucional. A seus olhos, seria um factor de desagregação da família, abrindo as portas à imoralidade e rebaixando a posição da mulher. Assim, em nome desse moralismo, não reconheciam à população não católica o direito a realizar um casamento reconhecido legalmente30. Contudo, como lembra Fernando Catroga, não se pode dizer que a proposta geradora de toda esta polémica fosse uma “proposta militantemente laica”, pois não era exigida a sua obrigatoriedade nem tão pouco reconhecido o direito ao divórcio31.

Em outras controvérsias que agitaram a sociedade portuguesa, com enorme repercussão na imprensa, se evidencia a crescente importância da corrente que, em nome da liberdade, pretendia subtrair as consciências à influência clerical. As

Con-ferências do Casino, que intentavam “ligar Portugal com o movimento moderno”,

são iniciadas “sob o signo do livre-pensamento”32 Embora, como observa Fer-nando Catroga, ser livre-pensador não exigisse ainda “a adesão concreta a um todo doutrinal ou programático”33, sente-se que os projectos de futuro para o país se

construíam à revelia da Igreja Católica e, cada vez mais, contra ela.

Aliás, reflectia-se em Portugal o agitar de ideias vivido em diversos países da Europa, onde intelectuais respeitados emprestavam o seu nome a associações que

29

Idem, ibidem, p. 358. Sobre toda esta polémica veja-se Maria do Céu Cristóvão, “«A Questão das Irmãs

de Caridade» – Estudo de Opinião Pública (1858-1862)”, 2 vols., dissertação para licenciatura em História,

Faculdade de Letras de Lisboa, 1972 (policopiado)

30

Envolvendo-se directamente na questão, Alexandre Herculano defendeu que o casamento era um “con-trato que tem por fim constituir legitimamente a família”. Esta “não pode ser exclusivamente fabricada pelos ministros de nenhuma religião”. Lembrou que o art. 145.º da Carta Constitucional assegurava aos cidadãos a liberdade religiosa, com a condição de serem respeitadas as crenças da maioria e a moral pública. Veja-se Casamento Civil – Primeira Carta do Senhor Alexandre Herculano, Lisboa, Imprensa de J. G. de Sousa Neves, 1866, pp. 7-10. Em outra carta defende que “o Estado é incompetente em matéria de religião” e que esse princípio haveria de escrever-se um dia em todas as constituições da Europa. Cf. III Carta do Senhor

Alexandre Herculano, 1866, p. 8.

31 Fernando Catroga, A Militância Laica…, cit., p. 290.

32 Fernando Catroga, “O Livre-Pensamento Contra a Igreja – A evolução do anticlericalismo em Portugal

(séculos XIX-XX)”, in Revista de História das Ideias, vol. 22, Coimbra, IHTI, 2001, pp. 279-280.

33 Idem, ibidem, p. 282. Antero cedo se demarcou “do livre pensamento militante, em nome da razão crítica

e das necessidades metafísicas do homem, que nenhuma mundividência cientista poderia aquietar”. Idem,

(21)



se propunham lutar contra o avanço da intolerância – a qual, segundo a sua leitura da realidade coeva, parecia disposta a encetar um período de particular actividade –, pela liberdade de pensamento. E, se a liberdade de pensamento pressupunha a liberdade religiosa, a verdade é que, subjacente ao discurso dos seus propagandis-tas, estava o princípio fundamental do iluminismo, que considerava a razão como fonte única do conhecimento. Ao defender a liberdade religiosa, o liberalismo partia do pressuposto que todas as religiões eram falsas, ou todas eram iguais, ou não era possível averiguar qual a verdadeira34.

As sociedades de livres-pensadores mantinham contactos a nível nacional e internacional, organizando congressos onde eram discutidas propostas de actu-ação, tendo em vista a laicização da sociedade, condição imprescindível para construir uma nova era onde a Razão, escorada na Ciência, imperaria. Mercê de diversos factores, a que não é alheia a “força do clericalismo português” e a “sua resistência à Modernidade”35, o livre-pensamento conheceu considerável

radica-lismo em Portugal.

É certo que a Igreja Católica procurara adaptar-se às novas realidades criadas pelo soçobrar do regime absoluto. Embora com algumas divergências no seu seio, fora abandonando a posição de recusa absoluta do liberalismo e passara a uma atitude colaborante, tornando-se um importante esteio do regime36. Diligenciava reforçar as suas posições, tentando manter a influência moral num mundo que se transformava rapidamente. A organização do movimento católico e a reentrada das congregações religiosas no país, iniciada sobretudo a partir dos anos 60 do século XIX, comprovavam que as antigas questões continuavam em aberto. Os importan-tes apoios que detinha a nível das eliimportan-tes políticas evidenciavam que a guerra contra a Igreja teria de arrastar à guerra contra o constitucionalismo monárquico. A partir dos finais do século XIX, o acumular de problemas de natureza política e social, avolumando o sentimento de decadência nacional de que eram responsabilizadas a Igreja Católica e a Monarquia, conduzia a que os campos do anticlericalismo e do republicanismo tendessem a sobrepor-se.

Compreende-se que, entre os activistas do livre-pensamento, estivessem os seguidores do positivismo determinista de Comte – moderado embora pela aceitação da herança demoliberal recebida do vintismo –, para quem o espírito teológico era coisa do passado, e que apontavam o domínio da Igreja sobre as consciências como o grande responsável pelo atraso da sociedade. Decalcando das ciências exactas e experimentais os métodos que permitissem explicar o evoluir da

34 Paulo Pulido Adragão, ob. cit., pp. 75-76.

35 Fernando Catroga, “O Livre-pensamento contra a Igreja…”, cit., p. 272.

36 António Matos Ferreira, “A Igreja na Monarquia Constitucional. O comportamento da Igreja em face da

liquidação do Antigo Regime”, in História Contemporânea de Portugal – das invasões francesas aos nossos dias (dir. João Medina), Tomo I, Camarate, Multilar, 1990, p. 281.

(22)



realidade social, os positivistas alimentavam a pretensão de dar resposta a todas as questões formuladas pelos homens e enunciar previsões sobre a evolução das instituições sociais, incluindo as políticas. Em nome dum suposto conhecimento científico das leis de funcionamento das sociedades os seus mentores, crentes numa ciência que, progressivamente, iria fornecendo explicações para todos os fenóme-nos, acreditavam ser possível levar uma determinada sociedade a percorrer mais eficazmente ou mais rapidamente as etapas que conduziam ao progresso37. Este positivismo, ao articular-se com o monismo materialista, confirmado pelas teorias de Darwin, abriu o caminho ao evolucionismo sociológico de Spencer. O homem perdia o lugar privilegiado num Universo que, segundo ensinavam os antigos tra-tados teológicos – vistos como obsoletos – era obra de um Deus Criador, que dera origem ao mundo para gozo de um ser superior a todos os outros seres criados, dotado de alma imortal e de livre arbítrio. Os homens da ciência ensinavam agora que o Homem, como todos os outros seres do Universo, estava sujeito às leis da evolução e da selecção natural.

Contudo, os doutrinadores mais influentes do republicanismo, aceitando embora o darwinismo, não foram seus seguidores submissos. Entenderam suavizar a sua “desoladora” e “amoral” luta pela existência, integrando-a na doutrina do progresso e da perfectibilidade humana herdada do iluminismo38.

Conquanto nem todos os republicanos, mesmo entre os livres-pensadores, tivessem aderido ao materialismo positivista – os casos de Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro são sobejamente conhecidos –, certo é que essa doutrina, na sua vertente heterodoxa, foi dominante entre os activistas anti-monárquicos, que nem sempre conseguiram manter o espírito livre de novos dogmatismos. Como fez notar Antero de Quental, o positivismo parecia “claro, simples e capaz de explicar tudo”, não pedindo “esforço algum de inteligência para ser compreendido”39. O que

deu aos seus seguidores, não só a presunção de que tinham encontrado a verdade definitiva, mas também uma certa incompreensão relativamente aos que, perante essa verdade simples e clara, continuavam a colocar dúvidas.

Acreditando que “os fenómenos de natureza política são regidos por leis natu-rais, como são regidos por leis naturais os fenómenos mais singelos de ordem

37 Sobre a influência desta ideologia em Portugal, veja-se Fernando Catroga, “A importância do positivismo

na consolidação da ideologia republicana em Portugal”, in Biblos, Coimbra, 1977.

38 Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal…, cit., pp. 210-238.

Se Teófilo Braga pode ser considerado um exemplo da conciliação entre o darwinismo e o ideal de perfecti-bilidade, aberto a todos, outro republicano, Júlio de Matos, não viu incoerência entre a sua adesão ao ideal republicano e a leitura radical que fez do darwinismo, que o levou a combater “os princípios da liberdade

de consciência e de acção, da soberania popular e da igualdade, à luz do determinismo biológico”. Cf. Ana

Leonor Pereira, Darwin em Portugal – Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914), Coimbra, Livraria Almedina, 2001, p. 371. O sublinhado é da autora.

(23)



bio-química”40, defendiam que a República correspondia à era da positividade. A Monarquia, “enquanto emanação do espírito teológico, estava historicamente condenada”41. Só a República “poderia responder aos problemas criados pelo

desenvolvimento das ciências e pelo progresso da indústria”42. Este discurso cien-tificista retirava ao homem – cuja actuação estava sujeita a leis – o protagonismo da História. “De sujeito da História, o homem passou a seu objecto, de seu criador a seu criado”43.

Como faz notar Fernando Catroga, os republicanos não desejavam “uma revo-lução no sentido pleno do termo“44. As preferências destes discípulos de Comte

iam para uma transformação social, “sem abalos e sem reformas violentas”45, onde o progresso se conciliasse com a ordem e onde as diversas classes coabitassem harmonicamente46.

Ao contrário do que pensavam os socialistas, que desvalorizavam a questão do regime, a maioria dos republicanos “recalcava no politismo e no anticlericalismo os problemas sociais de fundo”47, considerando prioritária a mudança do regime. Só esta permitiria o combate ao clericalismo que, na sua óptica, estava mais inte-ressado nos interesses de Roma do que na regeneração da Pátria. Só a República facultaria uma escola capaz de incutir na geração mais jovem os novos valores, que conduziriam ao refundar do Estado-Nação, finalmente livre de influências

40

Amadeu Carvalho Homem, “Ilusões do «cientismo» nos primórdios da sociologia portuguesa”, in

Da Monarquia à República, Viseu, Palimage, 2001, p. 167. Para ilustrar a diferença, no plano científico, entre

Monarquia e República, Latino Coelho chegou ao ponto de comparar a primeira ao “erro geocêntrico de Aristóteles e Ptolomeu”. A segunda corresponderia à “verdade copernicana heliocêntrica”. Idem, ibidem.

41

Fernando Catroga, “A Importância do Positivismo…”, cit., p. 304.

42

Idem, ibidem, p. 304

43

Norberto Ferreira da Cunha, “A génese da Renascença Portuguesa perante a crise política e moral da I República”, in Crises em Portugal nos séculos XIX e XX – Actas do Seminário organizado pelo Centro de História

da Universidade de Lisboa – 6 e 7 de Dezembro de 2001, Lisboa, s.n., 2002, p. 151.

44

Fernando Catroga, “A importância do Positivismo…”, cit., p. 297.

45 Idem, ibidem, p. 296.

46 Seguindo Comte muitos positivistas consideravam que as teorias socialistas eram “metafísicas” ou não

passavam de “superstições”. Alguns – Afonso Costa, Sebastião de Magalhães Lima… –, porém, mostraram-se abertos aos anseios socialistas, aderindo ao “socialismo integral” de Benoit Malon. Veja-se Amadeu Carvalho Homem, “A teorização republicana perante o socialismo”, in Da Monarquia à República, cit.

Pretendendo uma “autêntica reorganização política” que pressupunha uma transformação de “todos os pensamentos humanos”, o programa positivista entregava a “autoridade moral” a uma elite constituída pelos detentores da ciência social, os quais procederiam a uma “regeneração educativa” que forneceria “princípios fixos de julgamento e de conduta”. Sylvie Mesure, “A política positivista. De Auguste Comte à tradição republicana”, in História da Filosofia Política / 4 – As Críticas da Modernidade Política (dir. Alain Renaut), Lisboa, Instituto Piaget, 2002, pp. 223-224. Segundo a autora, o programa pertencia à ordem das “grandes utopias científicas e políticas que, no século XIX, pretenderam realizar, para bem da humanidade, as promessas da razão humana”. Idem, ibidem, p. 224.

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

externas. Mas, por outro lado, para que tal desiderato fosse alcançado, tornava-se premente intensificar a propaganda das novas ideias, actuando sobre a “opinião pública de forma a conquistar aderentes e votos”48.

Em todo este programa considerava-se urgente pôr termo à situação de pri-vilégio da Igreja Católica. E, assim, com a confiança numa ciência carregada de promessas, o quadro de reclamações do anticlericalismo tradicional, que combatia o jesuitismo, o congreganismo e o ultramontanismo, mas que não punha em causa a existência de Deus e a importância da religião, alargara-se muito. Como diz Fernando Catroga, a luta pela separação das Igrejas do Estado iria ser entendida “como uma exigência nuclear, mas dentro de um processo total” que passava pela separação da igreja da família, da escola, da assistência, indo até à “descristiani-zação de todas as atitudes e comportamentos individuais e colectivos ligados à vida da comunidade e à existência familiar e individual49. Tinha-se em vista a secularização da sociedade e das consciências.

A partir dos anos setenta do século XIX o combate pela secularização, ou talvez melhor, pela laicização, travou-se em torno do registo civil, numa primeira fase para que fosse regulamentado, depois para que se tornasse obrigatório. A fundação e a refundação de organizações que pretendiam promover o registo civil50 mostram a sua importância no combate à influência da Igreja, a qual, pelo controlo que mantinha sobre os momentos decisivos da vida dos cidadãos, continuava a ter uma função primacial.

No virar do século XIX para o século XX toda uma rede de associações inte-grando livres-pensadores – ou que assim gostavam de se intitular – reclamava a publicação de medidas laicizadoras. Podemos considerar como programa comum o conjunto de princípios que Sebastião de Magalhães Lima, delegado dos grupos livres-pensadores portugueses ao Congresso Universal do Livre-Pensamento que teve lugar em Roma em 1904, se comprometeu a defender: “a incompatibilidade entre a ciência e o dogma, […] necessidade de se incrementar a luta contra todas as religiões; o corte de relações diplomáticas com a Santa Sé; a separação das Igrejas do Estado; a liberdade de consciência religiosa; a supressão do orçamento dos cultos; a supressão da Concordata e do Beneplácito; a sujeição das Igrejas ao direito comum; a expurgação, nas leis civis, dos restos anacrónicos do direito canónico; a venda, em hasta pública, dos templos paroquiais; a laicização dos cemitérios, o registo civil obrigatório de nascimentos, casamentos e óbitos”. Relativamente à edu-cação, apoiaria “a laicização do professorado e do ensino em todos os seus graus, a liberdade de ensino particular, excepto para os indivíduos que pertencessem a qualquer congregação religiosa”. Quanto à assistência pública, comprometeu-se a

48 Idem, ibidem, pp. 308-310.

49 Idem, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal, cit., p. 575. 50 Idem, “O livre-pensamento contra a Igreja…”, cit., pp. 285-324.

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

defender “a secularização das obras de beneficência e do corpo de enfermagem” e a suspensão das missões religiosas nas colónias. Empenhar-se-ia ainda na luta pela “permanente solidariedade moral, e mesmo material, dos livres-pensadores do mundo inteiro em face de todas as tentativas de reacção política ou religiosa”51. Conseguindo chamar a si as aspirações socialistas – na medida em que faziam depender a resolução da questão social da solução prioritária da questão religiosa –, os livres-pensadores empreenderam uma activa campanha junto das massas populares. Recorrendo a processos idênticos aos que a Igreja Católica utilizava – as romarias ou círios –, foram criadas associações de excursionistas – os chamados círios civis – que organizavam deslocações a diversos pontos do país, promovendo conferências, sessões musicais e outras iniciativas destinadas às camadas populares, onde o carácter lúdico se articulava com os objectivos educativos, em ordem a emancipar as consciências e apressar o advento do homem novo52. Na primeira década do século XX as notícias do que se passava em França, onde os governos de Waldeck-Rousseau e Émile Combes levavam a cabo uma política anticlerical que conduziria à promulgação da Lei da Separação, em finais de 1905, eram recebidas com enorme entusiasmo entre os livres- pensadores portugueses, provocando um reacender da questão religiosa53.

Segundo Fernando Catroga, esta “onda livre-pensadora” irá influenciar, no sentido de um maior radicalismo anticlerical, a evolução do Grande Oriente

Lusi-tano Unido54, associação que, mercê do estatuto social dos seus membros – apesar de se ter verificado uma relativa democratização no ingresso dos novos elementos –, teve um papel relevante na vitória republicana. A mensagem do Conselho da Ordem, recentemente eleito – presidido por Sebastião de Magalhães Lima – diri-gida ao povo maçónico, a 14 de Maio de 1906, é clara quanto à intenção de “impor a revolução laicista como linha oficial da maçonaria”55.

51

Idem, ibidem, p. 336. Sobre Sebastião de Magalhães Lima, veja-se Maria Rita Lino Garnel, A República de

Sebastião de Magalhães Lima, Lisboa, Livros Horizonte, 2004.

52

Fernando Catroga, ibidem, pp. 308-323. Sobre a importância dos círios civis na propaganda anticatólica veja-se também António Ventura, Anarquistas, Republicanos e Socialistas em Portugal – As Convergências

Possíveis (1892-1910), Lisboa, Edições Cosmos, 2000, p. 45.

A ideia dos círios civis, da iniciativa do Partido Socialista, terá surgido na sequência do congresso anticlerical de finais de Junho de 1895 que, por sua vez, constituiu uma reacção às comemorações do centenário de Santo António, empreendidas pelos sectores ligados à Igreja Católica. Estas festas integravam-se, aliás, na febre comemoracionista levada a cabo pelos positivistas e que tivera início em 1880, com as celebrações em honra de Camões. O anticlericalismo radical hostilizou as festas em torno do centenário antoniano e o cortejo que marcou o seu culminar foi manchado por incidentes graves, dos quais foram responsabilizados os anarquistas. Veja-se António Ventura, “A contestação ao Centenário Antoniano de 1895”, in Lusitania

Sacra, 2ª série, tomo VIII/IX, Lisboa, CEHR, 1996/1997.

53 Sobre o combate dos livres-pensadores franceses pela publicação da lei da separação veja-se Jacqueline

Lalouette, La Libre Pensée en France 1848-1940, Paris, Éditions Albin Michel, 1997, pp. 259 e ss.

54 Fernando Catroga, “O Livre-pensamento contra a Igreja…”, cit., p. 334. 55 Idem, A Militância Laica…, cit., p. 474.

(26)



Tenta-se muitas vezes minimizar a luta empreendida pelo liberalismo mais radical – e o radicalismo em muitos casos não ultrapassou os limites do campo reli-gioso – contra a Igreja Católica em Portugal56. Todavia, para um grande número de

militantes, o republicanismo português, esvaziado do seu anticatolicismo, não tinha qualquer sentido. Apercebemo-nos dessa realidade ao ler os textos dos discursos que os militantes arengavam ao povo que acorria aos comícios. Aliás, o republicanismo português não constituía excepção no panorama ideológico da Europa Ocidental. Como faz notar Maurice Agulhon, a propósito do sucedido em França, durante décadas a aceitação da luta de classes como «motor da história» fez esquecer que, nos inícios do século XX, os trabalhadores revolucionários exibiam muito mais ódio contra os padres que contra os patrões e que as perturbações suscitadas pelos conflitos em torno do uso dos sinos eram dez vezes mais numerosas que as que estavam centradas nas subsistências57. No mesmo sentido vai Manuel Suárez Cortina ao afirmar, referindo-se à Espanha do virar do século XIX para o século XX:

“La religión y no el sistema productivo, los eclesiásticos e no los patronos se convirtieron en los representantes de este universo dualizado entre reacción y progreso, entre la oscuridad y la luz, entre un pasado ciego e ignorante y un futuro prometedor y culto”58.

Nesta conformidade, não será descabido afirmar que o combate pela laicização da sociedade foi o cimento agregador que permitiu a união, na luta contra a Monar-quia, de militantes provenientes de diferentes campos políticos e sociais59. Todos os agrupamentos funcionavam como grupos de pressão incidindo sobre os governos. A força de que dispunham, pelo menos entre a população da capital, ficou demons-trada no cortejo cívico que percorreu as ruas de Lisboa a 2 de Agosto de 1909. Tratava-se de reclamar do governo a satisfação de um conjunto de exigências, que iam desde a instituição do registo civil ao cumprimento das leis anticongreganistas60.

56

Em França aconteceu o mesmo. M. Vovelle refere-se à “tradição jacobina” que, durante muito tempo, minimizou o episódio da luta pela descristianização. Cf. Michel Vovelle, A Mentalidade Revolucionária –

Sociedade e Mentalidades na Revolução Francesa, Lisboa, Edições Salamandra, 1987, p. 166

57

Maurice Agulhon, “Préface”, in Jacqueline Lalouette, La Libre Pensée en France 1848-1940, Paris, Éditions Albin Michel, 1997, pp. 11-12. Jean-Marie Mayeur assevera que o livre pensamento revestiu « des formes vulgaires et sectaires sur lesquelles les historiens ont parfois préféré passer ». Jean-Marie Mayeur, « Introduc-tion » in Libre Pensée et Religion Laïque en France – de la fin du Second Empire à la fin de la Troisième

Répu-blique, journée d’étude tenue à l’Université de Paris XII 10 Novembre 1979, Strasbourg, Cerdic-Publications,

1980, p. 8.

58 Manuel Suárez Cortina, “Anticlericalismo, religión y política en la Restauración”, in Emilio La Parra

López y Manuel Suárez Cortina (eds), El anticlericalismo español contemporáneo, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1998, p. 171.

59 Fernando Catroga, “O livre-pensamento contra a Igreja…”, cit., p. 340.

60 Idem, Militância Laica…, cit., p. 539. Esta luta em torno da questão religiosa sentia-se igualmente em

(27)



Com a vitória republicana, a pressão dos sectores que combatiam a influência do catolicismo intensificou-se, pelo que a laicização da sociedade se apresentava como “a tarefa de mais urgente concretização”61. O II Congresso Nacional do

Livre-Pensamento, que teve lugar entre 13 e 18 de Outubro de 1910, insistia nas reivindicações de leis laicizadoras62. Perante a força numérica ostentada pelos

organizadores dessas manifestações, os primeiros governos republicanos ter-se-ão sentido, de certo modo, pressionados. Na euforia da tomada de poder, a facção mais radical imaginou que era possível queimar etapas e alcançar a vitória mais rapidamente do que se pensara em períodos anteriores. Parecia tão fácil como tomar o poder político.

Essa confiança é compreensível, se pensarmos que a Igreja não parecia encon-trar-se em condições de opor grande resistência. Para muitos liberais, ela surgia como uma instituição em decadência, com reduzida credibilidade. A má reputação afectava de um modo especial o clero. A convicção de que os membros desta classe, na sua maioria, eram ignorantes, interesseiros e devassos, incapazes de se preocuparem com questões morais ou espirituais, estava generalizada. Se tivermos em conta testemunhos que nos chegam, com origem em diferentes quadrantes ideológicos, pode dizer-se que as opiniões a esse respeito, são, de alguma forma, consensuais. Segundo acusava um radical do anticlericalismo, o padre tomava ordens e dizia missa como quem seguia uma indústria ou lia uma gazeta63. Na

opinião de outro, disputava as “freguesias chorudas, os canonicatos rendosos, as “prebendas pingues”64.

A imprensa anticatólica enfatizava os casos escandalosos que envolviam eclesiásticos, usando-os como material de propaganda. A literatura deleitava-se com exemplos de padres cúpidos e dissolutos. Haverá, certamente, algum exagero nessas avaliações. Aliás, histórias idênticas circulavam em outros países onde se travava uma guerra contra a influência da Igreja Católica65. Mas, exageradas ou não, revelam a opinião de muita gente, sobretudo nos meios urbanos. Um grande número de livres-pensadores exultaria até por encontrar tantos vícios entre o clero. Como diz Jacqueline Lalouette, “Ils y voyaient les plus sûrs garants de leur victoire

edifícios religiosos na cidade de Barcelona. Sobre estes acontecimentos, veja-se William J. Callahan, La Iglesia

Católica en España (1875-2002), Barcelona, Crítica, 2003, pp. 73 e ss.

61

Fernando Catroga, “O Livre-Pensamento contra a Igreja…”, cit., p. 341.

62

Idem, ibidem, p. 345.

63 José Caldas, cit. por Eurico de Seabra, A Egreja, as Congregações e a Republica – A Separação e as suas

causas, Lisboa, Typographia Editora José Bastos, s. d., p. 1093.

64 Eurico de Seabra, ob. cit., p. 1098.

65 Veja-se Jacqueline Lalouette, La Libre Pensée…, cit., pp. 250 e ss. Sobre os comentários saídos na imprensa

espanhola, nos inícios dos anos 30, veja-se Julio de la Cueva Merino, “El anticlericalismo en la Segunda República y la Guerra Civil”, in Emilio La Parra López y Manuel Suárez Cortina (eds.), El anticlericalismo

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prochaine”66. Nos países onde a influência do clero católico continuava a impor-se, não obstante as alterações introduzidas pelas revoluções liberais, os intelectuais laicos que escreviam nos jornais e livros de propaganda, ao enfatizarem os actos de imoralidade dos padres – verdadeiros ou inventados – ou ao aproveitarem simplesmente a existência de ressentimentos para com um ou outro membro do clero, punham em causa a sua capacidade para guiar espiritualmente as populações e procuravam substituir esses tradicionais formadores das consciências e juízes do valor ético das acções humanas67.

Não se pense, contudo, que as opiniões negativas sobre o comportamento do clero partiam somente de sectores anticatólicos. Como faz notar José Maria Díaz Mozaz, anticlericalismo não significa incredulidade, pois também o homem reli-gioso, “y a veces precisamente por serlo, es sacudido por vientos anticlericales”68. O sentimento de que muitos padres traíam a sua missão e o espírito do cristianismo aparece com frequência. No início do século XX, Raul Brandão, ao lamentar que se encarasse o sacerdócio como um modo de vida, apresenta-nos “o padre eleiçoeiro, o padre janota, mamando charutos à porta das tabacarias, o padre intriguista, fazendo cerco às viúvas ricas […] amigados, criando mulheres e filhos, jogadores correndo as feiras, bêbados e devassos […]”. Mas, para Raul Brandão, pior do que estes, era o “padre banal e charro”, o padre que confessava, absolvia e baptizava como um director de secretaria despachava. O escritor apodava de ateu este padre, para quem o sacerdócio era um ofício69. Reconhecia, porém, que nem a todos os eclesiásticos se aplicava este figurino.

Em 1903 o núncio, cardeal A. Aiuti, num relatório enviado à Secretaria de Estado do Vaticano, retrata o clero português de uma forma bem pouco lison-jeira. Mostra padres “pouco instruídos e imorais, tendo não raras vezes mulheres e filhos”. Envolviam-se nas lutas políticas, para que, quando o partido que apoiavam subisse ao poder, conseguissem uma boa colocação eclesiástica e civil70.

Os próprios bispos não estavam livres de ser acusados de negligência no cumprimento dos seus deveres. Um caso exemplar seria o de D. António Xavier

66

Jacqueline Lalouette, La Libre Pensée…, cit., p. 250.

67

Sobre este assunto veja-se Ma. Pilar Salomón Chéliz, “Republicanismo y rivalidad con el clero: moviliza-ción de la protesta anticlerical en Aragón 1900-1913”, Stvdia Historica. Historia Contemporánea, Salamanca, Ediciones Universidad, 1983 e José Álvarez Junco, “Los intelectuales: anticlericalismo y republicanismo”,

Los orígenes culturales de la II República – IX Coloquio de Historia Contemporánea de España, dirigido por

M. Tuñón de Lara, Madrid, Siglo XXI de España Editores, S. A., 1993.

68 José Maria Díaz Mozaz, Apuentes para una Sociologia del Anticlericalismo, Barcelona, Editorial Ariel, 1976,

p. 109.

69 Raul Brandão, O Padre, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1901, p. 19. Contudo, Raul

Brandão admirava as congregações religiosas, sobretudo as femininas, que se dedicavam aos pobres e à educação. Ibidem, p. 20.

70 A. Pinto Cardoso, “A fundação do Colégio Português em Roma e a formação do clero em Portugal no

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