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O jacobinismo perante a recusa das pensões

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 114-117)

A IGREJA CATÓLICA PERANTE A LEI DA SEPARAÇÃO

4. O jacobinismo perante a recusa das pensões

Decorrido o tempo de expectativa quanto à reacção do clero, a imprensa repu- blicana rompeu em diatribes contra os eclesiásticos que recusavam o favor do governo. Uma boa parte da opinião pública parecia dar-se conta de que um clero unido em torno dos bispos podia ser um inimigo de temer. Alguns anticlericais começaram por tentar disfarçar o sentimento de desaire, acentuando que a rejeição era boa para as finanças da República. Como seria grotesco acusar alguém de não aceitar algo que sobrecarregaria as finanças públicas – a rejeição podia ser vista como desinteressado amor pelas instituições republicanas – exprobravam-se todos esses padres de hostilidade para com o regime e, mesmo, de traição à Pátria. Um

137

A Defesa, Ano I, nº 4, 22/09/1911, p. 1, col. 1 e 2.

138 O Livre Pensamento, Ano I, nº 39, 3/11/1912, p. 2, col. 3. 139 Afonso Costa, ob. cit., pp. 85-86.

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jornal de Esposende via a recusa da pensão como um “estratagema para a guerra santa”141.

A imprensa democrática apresentava os não pensionistas como traidores, monárquicos, amigos de Paiva Couceiro. No semanário Alma Algarvia, comen- tando-se o facto de, no Algarve, até à data, só seis padres terem requerido a pensão – ou seja, “acataram a lei” – opinava-se que, todos os restantes, entre Portugal e Roma, haviam optado por esta, “como estrangeiros que são”142. Um periódico de Oliveira do Hospital espantava-se com o desinteresse dos padres e comparava essa actuação com o comportamento antigo, exigindo aos paroquianos todas as “benesses” consignadas na lei. Só encontrava uma explicação: a Companhia de

Jesus dominava todo o clero. Para além deste argumento, agitavam-se outros, que

tinham mais a ver com as antigas acusações lançadas sobre os governos monárqui- cos, incidindo nos escândalos orçamentais. Assim, asseverava-se que o clero estava “de mãos dadas com os couceiros e companhia, com todos os traidores à pátria e com todos os comedores dos dinheiros da nação […]”143. O deputado Ribeiro de Carvalho, director do semanário O Radical, de Leiria, em Carta a um padre – talvez um determinado padre ou, de um modo indefinido, todos os padres – manifestava tristeza porque o destinatário da mensagem havia recusado a pensão:

“Procedeste assim, para te colocares em rebelião manifesta contra o Estado, contra o governo do teu país, contra a tua Pátria”144.

Certamente, estes sacerdotes, que seguiam as orientações dos seus bispos, revelavam-se diferentes do retrato que muitos tinham interiorizado e que nos é mostrado pelo mesmo articulista, na citada Carta a um padre:

“Não sei se tens crenças. Homem liberal, espírito desempoeirado e recto, pai de filhos, cavaqueador galante, língua por vezes mais dada a anedotas picantes do que a rezas devotas – tu eras para mim o símbolo daqueles padres justos e independentes que, nem por serem sacerdotes de uma religião deixavam de ser verdadeiros homens”145.

141

Pátria Livre, Ano I, nº 25, 11/05/1911, p. 1, col. 1 e 2.

142 Alma Algarvia, Ano I, nº 18, 9/07/1911, p. 1, col. 2.

143 Notícias da Beira (Oliveira do Hospital), Ano I, nº 43, 20/7/1911, p. 1, col. 3.

144 O Radical, Ano I, nº 29, 17/08/1911, p. 1, col. 1. Ribeiro de Carvalho e o jornal que dirigia irão abandonar

esta posição radical e adoptar uma atitude moderada relativamente à Lei da Separação, defendendo a sua revisão. O deputado integrará a corrente evolucionista. Veja-se a este respeito os escritos de Joaquim Ribeiro de Carvalho, in A. H. Oliveira Marques (coord.), Parlamentares e Ministros da 1ª República (1910-1926), Lisboa, Ed. Afrontamento, 1999, p. 153.

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O Defesa, de Coimbra, seguia a mesma via. Apontava o padre de Souselas que, antes de todas estas dissensões, era um rapaz alegre, liberal, com numerosos ami- gos. Afinal, contra o que esperavam os seus amigos liberais, não aceitara a pensão, passando, por isso, a ser olhado com azedume pelos republicanos. O redactor assegurava que o presbítero em causa se mostrava obediente a Roma, porque o

Sillabus o condenava ao inferno e porque era monárquico146. Mas o jornal acusava

sobretudo os bispos. Eles é que haviam induzido os padres a rejeitar as pensões. Eles é que eram os principais responsáveis. Aliás, segundo opinião expressa no mesmo jornal, tudo fazia parte do plano traçado por Paiva Couceiro147.

As increpações de falta de patriotismo, dirigidas aos padres não pensionistas, compreendem-se, se tivermos em conta que, cada vez mais, os jacobinos tinham tendência a identificar a República à Pátria. Sendo assim, “en son ambition d’unité et d’unanimité” – utilizando uma expressão de Maurice Agulhon a propósito do caso francês148 –, só os maus portugueses rejeitariam a República149.

Conquanto o clero fosse, no conjunto da população, um grupo social par- ticularmente visado pela vigilância republicana, tendo-se verificado prisões de alguns sacerdotes nos primeiros meses do novo regime150, a má vontade contra

eles incrementou-se à medida que crescia a convicção de que a maioria recusava os favores estatais. O governo republicano e os militantes radicais passaram a encarar a recusa da pensão como uma declaração de guerra às instituições. O administra- dor do 4º Bairro de Lisboa, num ofício escrito ao prior de Santos intimando-o a abandonar a residência paroquial, apoiava-se, entre outros factos comprovativos do desprezo pela República por parte do prior, no facto de ter renunciado à pen- são151. Estes sacerdotes, nos meios mais radicais, arriscavam-se a viver momentos muito difíceis. Em Agosto de 1912 um semanário descreveu o que sucedera ao pároco da Moita. O sacerdote, que havia sido encarregado da paroquialidade de Alhos Vedros, numa ocasião em que, nesta freguesia, se preparava para passar uma certidão de baptismo que lhe fora solicitada, foi intimado por um grupo de populares a abandonar a igreja. Os contestatários declararam não o reconhecer como encarregado da paróquia, visto ter recusado a pensão. Revelara, deste modo,

146

Defesa, Ano IV, nº 332, 29/08/1911, p. 2, col. 3.

147

Idem, nº 318, 11/07/1911, p. 1, col. 2.

148

Maurice Agulhon, Marianne au Pouvoir – L’imagerie et la symbolique républicaines de 1880 à 1914, Paris, Flammarion, 1989, p. 319.

149 A 27 de Julho de 1911, Afonso Costa declarou na Assembleia Nacional Constituinte: “se não fosse o

respeito que a República tem de ter pelo direito de defesa, não precisávamos de ouvir os acusados [conspi- radores], porque, em Portugal, desde 5 de Outubro e depois dos dois últimos reis, quem proferir a palavra monarquia, o homem que o fizer será condenado para sempre como um criminoso, como um traidor, seja ele quem for”. Cf. Afonso Costa, ob. cit., p. 22.

150 Vasco Pulido Valente calcula que, de Fevereiro a Julho de 1911, 168 padres teriam sido detidos pelos carbo-

nários. Cf. Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo – A Revolução de 1910, Lisboa, Publ. Gradiva, 1999, p. 190.

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ser inimigo da República. Afirmaram ainda que o patriarca não mandava nada, só Afonso Costa podia conceder autorização para o exercício dos cargos. Quando se encontrava fora da Igreja, foi alvo de impropérios e apupos. Rasgaram-lhe o chapéu e foi apedrejado por um bando de garotos152.

Os radicais compreendiam que, devido ao desinteresse revelado pela maioria do clero, o efeito político das pensões era nulo. Assim, as vozes dos adversários do subsídio governamental, mesmo daqueles que tinham entendido a intenção que lhe estava subjacente, iam subindo de tom. Em 1914, quando se anunciava a discussão da Lei da Separação, requerida pela ala mais moderada do Congresso, a

Associação do Registo Civil mostrou-se disposta a defender a supressão das pensões.

A notícia levou a perturbação aos pensionistas. A propósito do assunto, A Luta ridicularizou as aflições desses padres que, vendo contra si “essa Potência” – a poderosa Associação – dirigiram-se “tremendo”, a S. Bento, para que o alvitre não fosse por diante. No mesmo tom de mofa, concluía o articulista: “Que Deus se amerceie de suas reverências”153.

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 114-117)