• Nenhum resultado encontrado

As reacções às primeiras leis que atingiram a Igreja Católica

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 55-62)

DA EXPECTATIVA BENEVOLENTE AO EPISÓDIO DA PASTORAL

1. As reacções às primeiras leis que atingiram a Igreja Católica

A inquietação existente nos sectores mais tradicionalistas não se revelou des- cabida. O governo parecia disposto a tudo fazer para, rapidamente, conseguir a laicização da sociedade e pôr fim à influência da Igreja Católica em Portugal. A legislação publicada no primeiro mês do novo regime é reveladora da pressa que tinham os detentores do poder. Revela igualmente ser este o campo sobre o qual era preciso actuar para conseguir construir a sociedade sonhada. É interessante que, ao compararmos a actuação do Governo Provisório com a que viria a ter o

Gobierno Provisional da República no início dos anos 30, em Espanha – onde a luta

anti-religiosa revestiu uma impressionante crueldade – não podemos deixar de contrapor a moderação mostrada neste país ao radicalismo português. O governo espanhol, com três ministros católicos, guardou para as Constituintes a tomada das grandes disposições reclamadas pelo sector anticlerical – a existência de con- gregações religiosas, a lei do divórcio, a separação Estado-Igreja46.

Em Portugal, os primeiros meses do novo regime registaram um grande afã na promulgação de legislação respeitante às relações entre o Estado e a Igreja. À publicação do decreto de 8 de Outubro seguiram-se outros. A 12 de Outubro foi apresentado o calendário dos feriados: o dia 1 de Janeiro, consagrado à fraterni- dade universal, o 31 de Janeiro, devotado aos precursores e mártires da República, o 5 de Outubro, em honra dos heróis da República, o 1º de Dezembro, dedicado à autonomia da Pátria, e o 25 de Dezembro, reservado à família. Às municipalidades era concedida a faculdade de considerar feriado um dia por ano, à escolha, dentro da área dos seus concelhos. A 18 de Outubro foi abolido o juramento de carácter religioso. A 21, o bispo de Beja era suspenso de todas as temporalidades, alegada- mente por ter saído do país sem autorização47. O decreto de 22 suprimiu o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e normais. Outro diploma, com a mesma data, ordenava a rigorosa observância do art. 137.º do Código Penal, respeitante aos ministros da religião que, na igreja ou no exercício do seu mester, atacassem os poderes do Estado. A 23 era extinta a Faculdade de Teologia e abolido o juramento dos lentes, alunos e pessoal da Universidade de Coimbra, bem como o juramento da Imaculada Conceição48. O decreto de 26 de Outubro, dando, de certo modo, continuidade ao publicado no dia 12, considerava úteis e de trabalho todos os dias

46 Julio de La Cueva Merino, “El anticlericalismo en la Segunda República y la Guerra Civil”, cit., pp. 214 e ss. 47 O bispo de Beja, surpreendido pela revolução quando realizava uma visita pastoral, foi avisado de que não

devia voltar à sede do bispado, pois a sua vida corria perigo. Aconselharam-no a refugiar-se em Espanha, onde aguardaria o evoluir da situação. Cf. Fortunato de Almeida, ob. cit., pp. 506-507.

48 A laicização da Universidade completar-se-á com a promulgação do decreto de 21 de Janeiro de 1911

que extinguiu o culto religioso na capela da Universidade. Essa medida impunha-se, dado que as ciências haviam entrado “definitivamente no período da sua emancipação de todos os elementos estranhos à razão”. Cf. A. Morgado, ob. cit., tomo V, p. 67.



santificados pela Igreja, com excepção do domingo49. A 28, eram autorizados os governadores civis a substituir as mesas ou corpos administrativos das irmandades e confrarias por novas comissões – naturalmente mais da confiança dos gover- nantes. A 3 de Novembro era publicada a lei do divórcio, sem dúvida a medida que originou maior discordância por parte dos sectores ligados à Igreja, que a encararam como um atentado ao carácter sacramental do casamento e à própria família. No seguimento desta lei, foram publicadas, no dia 25 de Dezembro, as chamadas leis da família, onde se afirmava, logo no art. 1.º, ser o casamento um “contrato” celebrado entre duas pessoas de sexo diferente. A lei reconhecia direitos aos filhos nascidos fora do casamento, bem como às mães desses filhos. Os mais conservadores encaravam tais leis como um sério atentado ao matrimónio e à família, constituída de acordo com princípios considerados intocáveis.

Caídas assim, de chofre, sem uma pedagogia preparatória e esclarecedora, sobre uma população com um forte peso de analfabetismo e ruralidade, mui- tas das disposições deixavam de sobreaviso mesmo os que haviam recebido as alterações políticas sem grandes reservas. Contudo, elas representavam, como afirma Fernando Catroga, “o ponto de chegada de uma tendência secularizante de longa duração”, inaugurando “uma ruptura, pois, pela primeira vez na história portuguesa, foi instituída uma forma de poder político que dispensava qualquer legitimação de índole religiosa”50.

Embora algumas leis não levantassem muitas reservas aos católicos, mesmo aos padres, o certo é que aqui e ali se ia detectando algum descontentamento. A 10 de Novembro, o pároco de Macedo de Cavaleiros assegurava que o clero, que declarara dias antes confiar no “esperançoso regime”, acatava e respeitava as novas instituições “sem ânimo reservado” e obedecia “sem hesitação nem repugnância” a todas as leis “que não estejam em manifesta oposição com os legítimos direitos da Igreja Católica e imutáveis princípios do cristianismo”51. Detectam-se, assim, algumas reticências que terão a ver, não só com o pacote de medidas que afectava a Igreja mas, certamente, também com as notícias sobre violências cometidas em diversos lugares do país. Do mesmo modo, o género de vocabulário utilizado pela imprensa afecta ao novo regime não era de molde a atrair os que se conservavam numa atitude de expectativa. “Masmarros” e “estúpidos”, eram termos usados com grande frequência nesses jornais em relação aos homens da Igreja. Um periódico

49 Nas escolas e tribunais continuavam os tradicionais períodos de férias, coincidentes, quase sempre, com

as grandes festas religiosas. De 24 de Dezembro a 1 de Janeiro e do dia de Ramos a 2ª feira da Páscoa seriam períodos de férias. Também haveria férias de 16 de Agosto a 30 de Setembro e igualmente na 2ª e na 3ª feiras de Carnaval. Idem, ibidem, tomo I, p. 71.

50 Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal…, cit., p. 361.



algarvio, que se intitulava “republicano anticlerical”, inseria uma referência ao pároco de Boliqueime, falando ao povo do “altar-mor do seu curral”52.

A adesão à República por parte de indivíduos conhecidos como monárquicos – apontados, sarcasticamente, como adesivos – era recebida por essa imprensa com comentários mordazes. A atitude do reitor de Freixo de Espada à Cinta foi alvo de grande chacota na imprensa republicana. Segundo constava, o padre, conhecido pelas suas ligações à Monarquia, enviara ao governador civil de Bragança um tele- grama, comunicando a sua adesão ao novo regime, ao qual desejava prosperidades. O representante do governo respondera. “Não aceito nem preciso da sua adesão. Tenha vergonha”53. Comentários deste tipo podiam funcionar como dissuasórios para comportamentos idênticos.

Assim, não obstante as numerosas declarações indiciadoras de que desejavam viver em paz com os novos detentores do poder, um grande número de sacer- dotes, já com ideias reservadas em relação à República, deixaria entrever, junto dos paroquianos, um futuro de sobressaltos. Os ditos e as histórias corriam. Não seriam os padres os únicos propaladores. Outros cidadãos revelariam, com certeza, idênticas apreensões. Mas as autoridades – escolhidas, na medida do possível, entre os mais anticlericais – voltavam a sua atenção preferencialmente para os elementos do clero, cientes do predomínio que eles mantinham, sobretudo nas zonas rurais. Alguns padres que se permitiram fazer comentários, interpretados como crítica às novas instituições, foram intimados a comparecer perante os administradores concelhios. Em meados de Novembro de 1910, o Governador Civil da Guarda, escrevendo para o administrador de Manteigas, informou ter-lhe constado que os padres desta vila andavam a perturbar a tranquilidade das famílias, afirmando que, a partir de Janeiro, os cemitérios se destinariam aos cães e aos burros. Quanto aos cadáveres das pessoas, seriam queimados. Pedia-lhe informações sobre o que, na verdade, se passava, lembrando-lhe o cumprimento da portaria de 22 de Outu- bro último54. Alguns clérigos do concelho de Mogadouro, “estúpidos e boçais”,

segundo a classificação de O Mundo, foram chamados ao administrador, acusados de fazerem crer aos paroquianos que a República era um regime do inferno que tinha a intenção de destruir os templos55. No distrito de Coimbra, o velho pároco

de Alfarelos foi levado a tribunal, pronunciado por fazer propaganda contra as instituições vigentes e dirigir insultos aos membros do Governo Provisório. Em concreto, o que acontecera? Nos inícios de Novembro de 1911, encontrando-se na sacristia com os membros da Irmandade, em conversa informal, alguns irmãos

52

O Povo Algarvio (Loulé), Ano II, nº 60, 14/1/1911, p. 1, col. 5.

53 A Voz do Povo (Porto), Ano IV, nº 182, 13/11/1910, p. 2, col. 3.

54 Arquivo Distrital da Guarda, Livro do Copiador da Correspondência Expedida pelo Governo Civil,

16/11/1910.



aludiram à lei do divórcio, publicada recentemente. O pároco fez algumas aprecia- ções desfavoráveis à lei. Possivelmente, confiando no espírito de fraternidade dos homens que estavam na sua companhia, teria usado um tom demasiado caloroso. Em tribunal de nada lhe valeram as alegações da defesa e as testemunhas que depuseram a seu favor, tendo sido condenado56.

Episódios como estes não chegam para destruir a ideia de que o novo regime foi acolhido com uma expectativa cautelosa e, até benevolente, por muitos católi- cos. Isto porque a crise em que Portugal mergulhara parecia tão grave que, mesmo entre quem não apreciava a actuação republicana no que concerne à Igreja, existia uma forte esperança de que os novos governantes conseguiriam moralizar a vida nacional. Algumas iniciativas tomadas foram vistas com agrado pelos conserva- dores. São exemplares, neste aspecto, as tendentes a reprimir a publicação e venda de livros e folhas pornográficas, bem como as que pretendiam moralizar a vida das cidades, nomeadamente no respeitante à repressão do jogo e da prostituição57.

Com o passar dos dias, sem que se verificassem gestos de resistência por parte dos vencidos, mesmo os mais renitentes se mostraram dispostos a aceitar a Repú- blica. Possivelmente, haveria a esperança de que as leis persecutórias se ficassem pela extinção das congregações religiosas. Quanto à intranquilidade existente em alguns lugares, pensar-se-ia que a calma regressaria em breve, em consonância com a acalmação dos ânimos.

Mas a aceitação da República e a ausência de gestos de oposição não signi- ficam inércia absoluta perante a legislação considerada hostil à religião católica. Logo em Novembro, os bispos enviaram às instâncias governamentais uma nota colectiva contendo sugestões sobre a lei de separação prevista. Por outro lado, confiando nas promessas de liberdade religiosa e respeito pelas crenças, uma comissão, integrando católicos bem conhecidos pelas suas posições conservadoras, como Pinheiro Torres, Leite de Amorim e Sebastião de Vasconcelos, promoveu, em Novembro de 1910, uma angariação de assinaturas para uma representação ao governo no sentido de pôr fim às “violentas medidas” contra a Igreja. A ideia da representação revela a crença, talvez ingénua, de que o Governo Provisório, no cumprimento, aliás, das promessas feitas no tempo da propaganda, queria seguir a vontade popular. A iniciativa foi bem acolhida por muitos párocos e, com o seu apoio, as listas chegaram às aldeias mais isoladas. Nesse texto, os “católicos de Portugal” afirmavam que, fiéis aos seus princípios, se haviam submetido aos novos poderes constituídos. Contudo, usando do direito de representação, “garantido em todos os regimes livres”, afirmavam a sua mágoa pela orientação tomada pelo Governo Provisório em assuntos religiosos. Lembravam que eram cidadãos portu- gueses, constituindo a grande maioria do povo português. Não era lícita, portanto,

56 Gazeta da Figueira, Ano XIX, nº 1951, 21/12/1910, p. 2, col. 5.



a coacção feita sobre as suas consciências, forçando-os a aceitar um estado de coisas que os tornava “estranhos na própria Pátria”. Pediam que os seus direitos fossem respeitados e, acima de “indicações teóricas, contestáveis”, se colocassem os “sagrados interesses da nação”. O texto da representação – em português e em francês – foi publicado no diário A Palavra que, em 11 de Dezembro, afirmava ter mais de quatrocentas mil assinaturas58.

As reacções dos detentores do poder não se fizeram esperar. Pensariam, porventura, que estavam em presença de uma contra-revolução avançando silen- ciosamente. O governador civil de Viana do Castelo, Alfredo de Magalhães, por telegrama, pediu nota das pessoas que andavam angariando assinaturas59. Um semanário de Lamego, referindo-se ao assunto, publicou o ofício circular enviado pelo administrador de Celorico de Basto aos párocos do seu concelho, denun- ciando o “acto de hostilidade“ contra as instituições, cujas leis os párocos, “como os outros funcionários públicos”, tinham o estrito dever de respeitar. Conside- rando que exigir ou solicitar assinaturas à “gente do povo rude e inculta”, na sua maior parte, constituía uma burla, os párocos eram convidados, “a bem dos seus interesses”, a ponderar a questão. Sobre este assunto recomendava-se vigilância aos regedores, que deviam levar ao conhecimento dos seus superiores imediatos qualquer infracção ao estabelecido60. O governador civil de Braga decidiu-se por uma estratégia com um verniz mais democrático. Começou por determinar que fossem cassadas as listas com as assinaturas. Contudo, manifestou o desejo de que se facultasse aos católicos “o mais livre direito de representação”, abrindo-se nas sedes dos concelhos, perante o administrador e, nas freguesias rurais, perante os regedores, a inscrição de todos os cidadãos que desejassem “honesta e cons- cienciosamente” protestar contra as medidas da República. As autoridades foram advertidas, no sentido de darem conhecimento aos párocos, que só seriam válidas as listas organizadas nas administrações dos concelhos ou nas secretarias ou resi- dências dos regedores61.

Disposições deste tipo, de dissuasão a qualquer iniciativa que pretendesse pôr em causa a legislação já publicada, não foram casos isolados. Nos inícios de Janeiro, no Correio do Norte, afirmava-se que o administrador de Vila Nova de Cerveira, à semelhança de muitos dos seus colegas, perseguia os párocos que andavam a angariar assinaturas para a representação62.

58

A Palavra, Ano XXXIX, nº 111, 11/12/1910, p. 1, col. 6. “Nous avons déjà plus de 400000 signatures” – informava A Palavra. O jornal publicou em vários números listas de cidadãos que tinham assinado a representação.

59

O Valenciano, Ano XXXII, nº 2875, 11/12/1910, p. 2, col. 3.

60 A Semana (Lamego) Ano XIII, nº 656, 28/11/1910, p. 1, col. 4-6. 61 Pátria Livre (Esposende), Ano I, nº 2, 1/12/10, p. 2, col. 3.



Tais factos não facilitavam o desenvolvimento de laços de simpatia dos cató- licos para com os novos governantes. Por outro lado, aqui e ali, verificavam-se incidentes de natureza diversa, havendo mesmo interrupções do serviço religioso por parte de assistentes que, descontentes com as prédicas do oficiante, desatavam aos vivas à República63.

À medida que o número de incidentes se avolumava, crescia na imprensa apoiante do novo regime a denúncia desses padres, que eram chamados “à ordem” pelos administradores. Referindo-se à prisão do pároco de Monte Agraço – um republicano que, a acreditar no jornal O Mundo, se tornara, em apenas dois meses de República, “o mais encarniçado inimigo” dos republicanos –, seguida de liber- tação, por ter sido paga fiança, explicava-se que a quantia necessária fora satisfeita por dois clérigos, “dos muitos que não foram atingidos pela benéfica vassoura do digno ministro da Justiça”64.

A mudança verificada neste sacerdote, quanto ao modo de encarar a República, não é isolada. Outros eclesiásticos revelavam a mesma desilusão. O padre António da Silva Gonçalves, pároco em Vandoma, no concelho de Paredes, afirmava-se um republicano de “antes do 5 de Outubro”. A partir de 13 de Novembro de 1910 passou a dirigir um semanário – Defesa – que se dizia “republicano, católico e noticioso”. Declarava ser republicano por convicção, porque considerava ser a República a forma de governo mais perfeita, “mais em harmonia com o espírito rasgadamente, genuinamente liberal do Evangelho”. Tendo em consideração os desmandos e cobardias da Monarquia, opinava que o novo regime constituiria um remédio salutar para a Pátria. Poder-se-ia inferir, destas declarações, estarmos em presença de uma atitude de oportunismo e subserviência para com os novos senhores. Seria um juízo precipitado. Esse género de discurso parece revelar a per- manência do espírito dos meados do século XIX, em que a República, com o seu projecto de fraternidade, era visionada em torno do «sans-culotte» Jésus65. Aliás, o padre Gonçalves não calava o que sentia, declarando-se contra “o republicanismo que fazia propaganda ateia”66. Em meados de Janeiro, depois do ataque ao Correio

da Manhã, quando os autores da “proeza” continuaram em liberdade, enquanto

que o tipógrafo do jornal era metido na cadeia, o sacerdote parecia ter perdido a confiança nessa República – na qual afirmava imperar o “despotismo, o arbítrio e

63

Aconteceu assim em Ramada Alta, no Porto, segundo notícia inserida no jornal socialista A Voz do Povo (Porto), Ano IV, nº 183, 20/11/1910, p. 1, col. 4.

64 O Mundo, nº 3641, 18/12/1910, p. 1, col. 4 e p. 2, col. 4.

65 Maria Manuela Tavares Ribeiro, “O Cristianismo Social de 1848”, in O Sagrado e o Profano, Revista de

História das Ideias, nº 9, Coimbra, IHTI, 1987, p. 484.

66 Defesa (Paredes), Ano I, nº 15, 13/11/1910, p. 1, col. 3. Este padre viria a ser eleito senador nas eleições

de 13 de Junho de 1915, as primeiras em que os católicos concorreram organizados como União Católica. Veja-se Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Cristã…, cit., p. 263.



a força” – que, com “tantas asneiras” cometidas, “radicou em todas as consciências honestas” a convicção de que toda a esperança foi vã67.

A linguagem do padre Gonçalves não era de molde a agradar aos jacobinos. Devido às dificuldades criadas, o seu jornal cessou a publicação. E, em Fevereiro de 1911, o administrador de Paredes deslocou-se a Vandoma para «convidar» o eclesiástico a ir à administração do concelho, a fim de prestar declarações. Era acusado de manifestar, através da imprensa e de prédicas à missa conventual, a sua oposição às instituições republicanas. Mas a notícia de que iam levar o seu pároco não foi bem acolhida pelos habitantes. Os povos da freguesia e os de duas aldeias vizinhas – Baltar e Astromil –, ao som dos sinos que tocavam a rebate, amotina- ram-se e acompanharam o padre até Paredes. Forças militares de Penafiel e Porto chegaram a Paredes, seguindo alguns soldados para Vendoma, a dar protecção ao presidente da comissão municipal republicana68. A autoridade administrativa, devido ao compromisso tomado com os populares, libertou o padre69.

Conhecendo a influência da Igreja nos meios rurais, sobretudo no norte do país, diversos governadores civis e administradores concelhios intentaram aliciar os membros do clero, procurando convencê-los a tomar posição a favor das novas instituições. A convite do governador civil de Viana do Castelo, os clérigos do distrito assinaram declarações de respeito, submissão e obediência à República e seus funcionários, bem como aos seus decretos e leis, naquilo que se não opusesse à Igreja Católica. A parte final da declaração, indiciando alguma reserva relati- vamente às disposições republicanas, parece não ter agradado aos responsáveis de O Mundo, que a classificou de “alçapão” de que os “reverendos” pretenderiam servir-se relativamente a tudo o que dissesse respeito ao registo civil, divórcio, ensino laico e outras medidas que considerassem contrárias à sua “intolerante ortodoxia”. Segundo o articulista, mais uma vez se provava que muitos, que se diziam seculares, eram, “pela hipocrisia, ainda piores do que os que francamente se apresentam como frades e como jesuítas”. A conclusão era claramente ameaçadora: Mas a República a todos há-de fazer entrar na ordem, a bem, se eles quiserem, ou a mal, no caso contrário”70.

O tom usado pelo jornal revela a profundidade do fosso existente entre o radicalismo anticlerical e grande parte do clero que, parecendo querer evitar envolver-se em confrontos com o novo regime, ia sendo arrastado para o campo de batalha.

67

Defesa, Ano I, nº 24, 15/01/1911, p. 1, col. 2.

68 Echos do Minho (Braga), Ano I, nº 14, 23/02/1911, p. 2, col. 3. 69 O Grito do Povo, Ano XII, nº 612, 25/02/1911, p. 3, col. 5. 70 Transcrito em O Grito do Povo, nº 613, 4/03/1911, p. 2, col. 6.



No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 55-62)