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Guerra entre pensionistas e não pensionistas

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 182-190)

PADRES PENSIONISTAS E PADRES NÃO PENSIONISTAS

2. Guerra entre pensionistas e não pensionistas

Entre os padres lavrava a discórdia. Em alguns casos o conflito surgira logo durante a reunião ocorrida em cada arciprestado, para concertar formas de actua-

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A Verdade (S. Pedro do Sul), Ano II, nº 29, 11/02/1912, p. 2, col. 3. O articulista chamava “cobardão” a um tal padre Ramiro, republicano, que afirmara ter recusado a pensão por “espírito de camaradagem”.

20 O Grito do Povo, Ano XIII, nº 634, 29/07/1911, p. 2, col. 5. 21 A Fronteira (Elvas), Ano I, nº 5, 2/07/1911, p. 2, col. 4. 22 M. Abúndio da Silva, Cartas a um abade..., cit., p. 304.

23 Em A Fé Cristã, o padre João Vacondeus reconheceu que a própria imprensa católica acirrara excessiva-

mente a questão das pensões, conduzindo a “intransigências definitivas” e indo mais longe que as indicações da Santa Sé. Cf. A Fé Cristã, Novembro de 1913, p. 408.

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ção perante o decreto de 20 de Abril. Num encontro de membros do clero que teve lugar na igreja de Vila Cortês, no concelho de Gouveia, foram apresentadas duas moções: uma, da autoria do padre Gaspar, prior de S. Paio, procurava conciliar o apoio às leis da República com a solidariedade para com o bispo da Guarda, a quem era sugerido que, com os demais antístites, tentasse, junto do governo, ou a remodelação ou a suspensão da lei, até que fosse apreciada na Assembleia Constituinte. O arcipreste, prior em Melo, apresentou outra moção – que veio a ser aprovada –, menos conciliadora, de apoio ao Sumo Pontífice e ao prelado. O ocorrido não foi, certamente, muito diferente do que aconteceu em muitos outros lugares. Interessante é que o pároco de Vila Cortês, que serviu de anfitrião, receoso das consequências, se apressou a desculpar-se perante o administrador concelhio. Explicou ter cedido, muito contrariado, as chaves da sua igreja e ter assinado a moção vencedora julgando que estava assinando a outra. Temendo que a sua atitude viesse a prejudicá-lo relativamente à pensão, pediu que, das suas explicações, fosse dado conhecimento ao ministro da Justiça24.

A ruptura entre pensionistas e não pensionistas foi adquirindo um carácter irreversível. Quando se encontravam padres pertencentes aos dois campos, a vio- lência podia explodir. Em Soutelo Mourisco, no concelho de Macedo de Cavaleiros, num encontro de clérigos, com origem num funeral, um padre pensionista foi insultado. Um dos mais radicais declarou que os pensionistas eram traidores. Alguns dos presentes, apesar de terem recusado a pensão, mostraram-se modera- dos. Um deles chorou, desgostoso com o que via e penalizado com a guerra que se instalara entre os seus irmãos no sacerdócio25.

Os padres “do penso”, como alguns lhes chamavam26, eram votados ao ostra- cismo pelos colegas que haviam permanecido fiéis à hierarquia. Por ocasião das festas, usual tempo de encontro para os numerosos eclesiásticos convidados a participar, os padres fiéis negavam-se a comparecer, se o convite viesse de um pensionista ou mesmo, se um desses estivesse presente. No Verão de 1911, tendo

24 O Mundo, Ano XI, nº 3787, 16/05/1911, p. 4, col. 5. Este padre, Francisco Nunes Xavier, tão preocupado

com o que dele podia pensar o ministro da Justiça, veio a afastar-se da Igreja Católica, seguindo uma via anticlerical, o que é visível nos textos que escrevia, em 1913, para o periódico republicano A Justiça, da Covi- lhã. Não aceitava as advertências do Vigário Geral da diocese da Guarda – que substituía o bispo, exilado, a quem chamava “bispo de Poiares da Régua” (por ser a terra da naturalidade do prelado) – afirmando-se resolvido a não acatar o que contrariasse “as fórmulas do progresso e as leis da ciência tão manifestamente contrárias às leis obsoletas da Igreja Romana”. Cf. A Justiça (Covilhã), Ano I, nº 4, 27/04/1913, p. 2, col. 4. O fosso entre o padre e a hierarquia da Igreja alargara-se e, assim, não custa a crer que, como tantos dos seus colegas, pensionistas ou não pensionistas, viesse a abandonar a actividade eclesiástica, dedicando-se ao ensino, em Coimbra, como refere António dos Santos Pereira, O Parlamento e a Imprensa Periódica Beirã

em Tempos de Crise (1851-1926), Porto, Edições Afrontamento, 2002, p. 145.

25 Pátria Nova (Bragança), Ano III, 10/09/1911, p. 3, col. 3.

26 Um jornal de Póvoa de Varzim chamava-lhes “os do penso” ou “da palhada”. Cf. O Poveiro, Ano II, nº 56,

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falecido na freguesia de Souzela, no concelho de Lousada, um irmão do Visconde de Souzela, a família, desejando um funeral digno, convidou trinta padres das freguesias vizinhas. Os convidados escusaram-se, porque o abade de Souzela era pensionista27. O pároco de Paranhos, no concelho de Seia, recusou celebrar missa na sua igreja numa ocasião em que aí se encontrava um padre pensionista28 – o

célebre João Ferreira da Silva, natural daquela freguesia e que se tornara conhecido pelo seu apoio ao governo, na luta contra os prelados.

Neste período de afirmação de valores, de contestação a quem imaginava vencê- -los através do dinheiro, um sentimento de união passou a ligar os padres que não transigiam. Esse sentimento, composto de entusiasmo e, ao mesmo tempo, de des- prezo para com os pensionistas, foi capaz de atrair outros colegas que, mais fracos ou sem terem avaliado as consequências da sua opção, haviam cedido no primeiro momento. Assim, pressionados, alguns recuaram, decidindo-se a rejeitar aquilo que tinham aceite antes. Em Novembro de 1911, um padre, que aceitara a pensão, confessou que, tendo reconsiderado, vira que cometera um erro. Declarou que não quebraria “a solidariedade que é necessário existir entre a classe eclesiástica”29.

O arrependimento deste padre não foi isolado. Os casos de pensionistas que vieram a repensar a atitude tomada foram numerosos. Ou porque só depois tives- sem entendido a armadilha que lhes fora armada, ou porque o ostracismo a que tinham sido votados pelos colegas os desgostasse profundamente, vieram afirmar o seu arrependimento e rejeitar o benefício.

Os jornais ligados à Igreja Católica inseriam gostosamente nas suas colunas declarações de arrependimento vindas desses membros do clero. Tratava-se muitas vezes de clérigos pobres, pouco interessados em lutas políticas, como aquele pároco de Trevões e Várzeas, do bispado de Lamego, que enviou para os jornais uma declaração de renúncia. Confessou ter aceite anteriormente a pensão, por estar convencido que a lei seria alterada pelo novo Governo da República. Afirmou ter lido em alguns jornais que a Santa Sé recomendara aos bispos que não aplicassem castigos disciplinares aos párocos pensionistas e pobres. Humildemente confes- sou não ter tido a necessária discrição para avaliar a veracidade ou falsidade do que era afirmado. Sentiu vontade de continuar como candidato à pensão. Mas, em vista do desmentido, renunciara nos inícios de Dezembro de 191130. Com o padre Olímpio Rodrigues de Almeida, pároco de Velosa, no concelho de Celorico da Beira, passou-se algo de idêntico. Aceitara a pensão, na esperança de que a lei fosse alterada. Como tal não aconteceu, renunciou, “atendendo às condições

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O Seculo, Ano XXXI, nº 10678, 2/09/1911, p. 4, col. 1.

28 Arquivo Municipal de Seia, Copiador da Correspondência do Administrador para o Governo Civil, telegrama

de 18/10/1912. Devido a este facto, o administrador intimou o pároco a abandonar a residência paroquial.

29 Echos do Minho, Ano I, nº 91, 23/11/1911, p. 2, col. 2. 30 Correio da Beira, nº 83, 13/01/1912, p. 1, col. 2.

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Carta do Presidente da Relação do Porto de 30 de Agosto de 1911, anexando um mapa com a identificação dos párocos que não renunciaram à pensão e dos que a requereram. O mapa publica-se nas páginas seguintes. (Arquivo contemporâneo do Ministério das Finanças - CNPE/PTO/PENEC/007)

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humilhantes de que a pensão depende”. Afirmando preferir a fome à desonra, declarou ter em seu poder os avisos para receber a gratificação relativa aos últimos meses, que não havia cobrado31. Um outro, de Raiva – Castelo de Paiva – pedia

perdão pela rebeldia aos superiores32. Um presbítero do concelho de Arouca, ao decidir-se pela recusa, declarou que deixava de receber a pensão que requerera “irreflectidamente”33. Este padre, que assim se confessava vencido, alguns meses

antes escrevera num semanário que os seus colegas eram os seus maiores inimigos, que o lançavam ao escárnio e à vingança da populaça34.

A apresentação destes casos, que estarão longe de revelar o número de arre- pendidos, mostram as tensões a que estavam submetidos os pensionistas. Porém, se uns tantos não aguentaram a pressão, muitos outros, certamente a maioria, não voltaram atrás na decisão tomada. Alguns destes há muito estariam ansiosos por sacudir o jugo da disciplina eclesiástica, continuando ligados à Igreja somente por interesses materiais. Para esses a resolução seria fácil, visto que se encontravam em situação marginal relativamente à hierarquia eclesiástica. Mas outros eram vulgares homens da Igreja, sem grandes heroísmos, desejando continuar ligados à hierarquia, aos seus irmãos no sacerdócio, aos paroquianos. O medo da pobreza pode explicar a sua escolha.

O padre José de Oliveira Rebordão, pároco em Aldeia Nova e vereador da Câmara Municipal do Fundão, o único pároco do seu concelho a aceitar a pensão, esforçou-se por desfazer a ideia de que os padres santos se encontravam de um lado e os padres pecadores do outro. Queixava-se de perseguição por parte dos outros sacerdotes, apesar de ter um passado sem nuvens, sem irregularidades de maior. Por ter aceite a pensão, a licença para pregar não lhe havia sido renovada pelo prelado, o que o impediu de pregar na mais importante festividade do conce- lho, em honra de Santa Luzia, em Castelejo. Não houve sermão, porque os outros padres convidados para a festa escusaram-se a comparecer, por estar presente um padre “excomungado”. O marginalizado declarou reputar-se tão digno como muitos dos colegas e, mesmo, mais do que alguns “a quem emprestaram a auréola de virtude, para lhes ocultar a fealdade da alma”. Assegurou que nunca se desviaria do ideal de Jesus, “compêndio eterno da Igualdade, da Fraternidade e da Justiça”35.

Na mesma via se encontravam outros pensionistas, indignados com os cole- gas que lhes moviam perseguição, os quais eram tratados por “padres ateus e perversos”36.

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A Guarda, Ano VIII, nº 336, 17/03/1912, p. 3, col. 5.

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Ibidem, nº 354, 28/07/1912, p. 2, col. 4.

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Ibidem, nº 351, 7/07/1912, p. 2, col. 2.

34 Gazeta de Arouca, Ano I, nº 16, 17/02/1912, p. 1, col. 1-3. 35 Trovão da Beira (Fundão), Ano I, nº 5, 29/02/1912, p. 2, col. 1. 36 Sul da Beira, Ano I, nº 41, 5/08/1912, p. 2, col. 2.

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No periódico Sul da Beira, cujo director era filho de um presbítero republi- cano, movia-se guerra aos padres “solidaristas” – como designava os que tinham recusado a pensão – em resposta a “uma guerra desumana, cruel, aos seus irmãos em Jesus Cristo”. Segundo este jornal, os solidaristas pretendiam indispor com o povo “os únicos padres portugueses e católicos”. Apelava aos clérigos para que se unissem e representassem ao Parlamento, pedindo que fossem “limados uns bicos e umas arestas” da Lei da Separação. Defendia a constituição de Igrejas lusitanas com as quais Deus poderia comunicar melhor que com as outras37.

Nas suas páginas transparece um profundo ressentimento contra os padres não pensionistas. Em correspondência para o semanário, um leitor, que se auto- denominava “um padre liberal”, chegou a afirmar ser a luta entre padres mais terrível e de consequências mais graves do que a luta travada entre republicanos e monárquicos38.

Sendo tão intensa a animosidade entre os dois grupos de eclesiásticos, não espanta que se tivessem registado casos de pensionistas que aceitaram integrar bandos de activistas, em perseguição dos seus colegas. Segundo notícia inserida no semanário A Guarda, em Julho de 1912, um padre pensionista do concelho de Carrazeda de Anciães incorporou-se, armado, num grupo que foi prender o pároco da freguesia de Pereiros. Este padre, que afirmava não saber por que razão fora detido, quatro meses depois encontrava-se ainda sob prisão, em Bragança39. Não

foi caso único, como se verá.

Certamente, não é legítimo reduzir ao interesse material o sentimento dos pensionistas. Muitos – porventura a maioria – continuavam a sentir-se parte integrante de uma Igreja que parecia repudiá-los. Alguns desses presbíteros, da diocese da Guarda, subscreveram mesmo o protesto que o clero da diocese enviou ao Parlamento, manifestando-se contra a expulsão do prelado40. O padre Mamede,

que havia sido prior em Santa Comba, no concelho de Seia, ficou ofendido por não ter sido convidado a assinar uma mensagem dirigida ao bispo exilado. Gostaria de se ter associado aos seus confrades, mas, como não fosse possível, tomou a iniciativa de se dirigir particularmente a D. Manuel Vieira de Matos, de quem recebeu um cartão de agradecimento. Sentiu-se, certamente, muito confortado, pelo que comunicou a ocorrência ao jornal católico da sua diocese41.

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Ibidem, nº 17, 21/03/1912, p. 1, col. 1.

38 Ibidem, nº 40, 29/08/1912, p. 2, col. 4.

39 A Guarda, Ano VIII, nº 369, 10/11/1912, p. 2, col. 3. 40 Ibidem, nº 362, 22/09/1912, p. 1, col. 1-2.

41 Ibidem, nº 335, 10/03/1912, p. 2, col. 5. Este padre, tão preocupado em mostrar solidariedade para com

o bispo, virá a manifestar o seu arrependimento por ter recebido a pensão. Em Março de 1915, numa carta publicada no semanário A Guarda, pediu perdão, solicitando que o readmitissem. Veja-se A Guarda, nº 458, 3/04/1915, p. 3, col. 2.

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