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As discórdias no seio das populações

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 190-193)

PADRES PENSIONISTAS E PADRES NÃO PENSIONISTAS

3. As discórdias no seio das populações

Em Portugal, as clivagens na classe sacerdotal estiveram muito longe de assumir a gravidade do que aconteceu em França durante a Revolução Francesa, com os jacobinos a pretender obrigar os sacerdotes a proferir um juramento cívico, que envolvia o acordo à Constituição Civil do Clero42. Esse facto esteve na

origem de um verdadeiro cisma, com o clero profundamente dividido – os cons- titucionais opostos aos refractários e vice-versa. No caso português, o número relativamente reduzido dos pensionistas e as hesitações da hierarquia eclesiástica em penalizar esses padres evitaram que a situação atingisse a intensidade do acontecido em França. Mesmo assim, os problemas que dividiam o clero, em Por- tugal, reflectiram-se no seio das populações, que nem sempre compreenderiam o porquê de tantas polémicas. As pensões aos padres surgir-lhes-iam como uma generosidade da República que, interessando aos párocos, serviam igualmente os paroquianos, que deixariam de ter a responsabilidade pelo sustento daqueles. Possivelmente, num primeiro momento, não haveria da parte da maioria da população qualquer relutância em recorrer aos serviços dos pensionistas. Mas, desde que começou a constar que esses eclesiásticos eram excomungados e que os actos de culto orientados por eles não tinham validade, em muitas paróquias instalou-se o desassossego. Aos habitantes das aldeias mais remotas chegava a posição dos católicos mais informados e mais intransigentes, que reclamavam dos bispos uma atitude firme, não consentindo que os pensionistas continuas- sem à frente das paróquias. Na base desta postura estava a condenação da Lei

da Separação feita pelo Papa na encíclica Jamdudum de 24 de Maio de 1911.

O protesto colectivo dos bispos, ao traçar os dois caminhos inconciliáveis que se abriam aos padres – “obediência ou apostasia” – dava a entender que os pen- sionistas eram apóstatas “e, por consequência, excomungados”43.

Num grande número de povoações, cujo pároco era pensionista, os ânimos foram-se exaltando. Nos primeiros meses de 1912 o povo de Paul, no concelho da Covilhã, levantou-se contra o pároco pensionista, obrigando-o a retirar-se da

42 Pela Constituição Civil do Clero, que foi adoptada a 12 de Julho de 1790, era confiada a eleição dos novos

responsáveis pela Igreja a todos os cidadãos activos, incluindo os não católicos. Em meados de 1791 tinham prestado juramento 60% dos curas e sete bispos. Cf. Jacques Solé, A Revolução Francesa em Questão – Novas

Perspectivas, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1989, pp. 97-98. Como aconteceria em Portugal,

mas atingindo outras proporções, em França divulgou-se o mito de que os refractários eram os santos e os constitucionalistas os maus padres. Mas também aqui não pode haver generalizações. Muitos destes foram excelentes sacerdotes e tentaram, entre grandes dificuldades, constituir uma Igreja mais democrática e mais próxima do povo. Se houve mártires entre os refractários, sobretudo no Ano II (2ª metade de 1793 e 1ª metade de 1794), quando a Convenção empreendeu uma política anti-religiosa, também os houve entre os constitucionais, mas esses foram esquecidos pela Igreja vitoriosa. Cf. Pierre Pierrard, L’Église et la

Révolution – 1789-1889, Paris, Éditions Nouvelle Cité, 1988, pp. 93-94.

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freguesia. A população queria um padre que não recebesse a pensão44. Por essa época também a população de Ferragudo, no Algarve, vivia em estado de alvoroço. Segundo se escrevia num semanário algarvio, nessa localidade “as beatas” acha- vam que as missas do padre, que recebia a pensão, não tinham valor. Reduzir os descontentes a “beatas” poderia agradar ao jornalista, mas talvez não corresponda à realidade. Na povoação verificaram-se graves tumultos quando o pensionista foi impedido por quinhentas pessoas – homens e mulheres – de dirigir o culto. O governador distrital tentou conciliar os ânimos e, com o auxílio de uma força de polícia, conseguiu que o sacerdote entrasse no templo para celebrar a missa. Assistiu somente uma dúzia de pessoas, quase todas da família do celebrante. Ape- sar de, num primeiro momento, o periódico ter pretendido que os adversários do pároco trabalhavam “às ordens da reacção”, alguns dias depois trazia a público dados reveladores de que esse padre, durante a Monarquia, fora um fiel franquista, com rancor aos republicanos. Por isso, nesta questão de incompatibilidade com a população, muitos republicanos não o apoiavam. Quanto ao povo revoltado, o mesmo redactor que, dias antes, mostrava uma população conduzida por reaccio- nários, concordou que, aquando da manifestação, não houvera qualquer desacato contra a República45.

Os detentores do poder político colocavam-se ao lado dos pensionistas. O pároco de Várzea da Serra, no concelho de Tarouca, que aceitara a pensão, tinha contra si grande parte dos seus paroquianos. Cerca de trinta descontentes desloca- ram-se a Lamego, com o objectivo de solicitar a sua substituição, junto do bispo. Ao ter conhecimento dessa diligência, a autoridade administrativa chamou à sua presença os recalcitrantes e procurou intimidá-los, ameaçando-os com a prisão46.

De pouco adiantariam estas atitudes, quando as populações estavam decididas a recusar os serviços de um pároco que ousara afrontar a vontade dos seus supe- riores, colocando-se às ordens do inimigo. Em Setembro de 1912, na freguesia de Porches, cujo pároco fora forçado a exilar-se, alguns “jacobinos”– designação usada pelo semanário A Guarda – pretenderam realizar uma festa para cumprimento de um legado pio. Convidaram para pregar um padre pensionista, que se encontrava suspenso. Apesar de estar acompanhado pelo administrador, regedor, polícia, a gente da terra pretendeu embargar-lhe a entrada no templo. Como não o puderam impedir, não entraram na igreja para assistir à cerimónia. Assim, a procissão não pôde ter lugar, por falta de participantes47.

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A Guarda, Ano VII, nº 339, 14/04/1912, p. 2, col. 4.

45 Alma Algarvia, Ano II, nº 59, 21/04/1912, p. 1, col. 3, nº 64, 26/05/1912 e nº 65, 2/06/1912, p. 2, col. 3.

Aos republicanos radicais toda esta situação não deixava de trazer satisfação porque esperavam encerrar o templo, vender “os santos” e abrir uma escola.

46 A Voz da Verdade, nº 38, 21/09/1911, p. 453. 47 A Guarda, Ano VIII, nº 363, 29/09/1912, p. 2, col. 3.

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No Verão de 1913, na freguesia de Gozende, concelho de Castro Daire, grande parte da população estava cansada de dirigir pedidos ao bispo e ao administrador para que fosse dali retirado o padre pensionista. Como não eram atendidos, os populares invadiram a sua residência e colocaram-lhe a mobília na rua. O sacerdote solicitou a ajuda do administrador que, tendo-se deslocado à povoação, verificou que era inútil impor a presença de um pároco que tinha contra si a grande maioria dos habitantes da aldeia48.

Algumas populações viveram em estado de cisma, divididas entre dois párocos. A freguesia de Quatro Ribeiras, no concelho de Praia – Açores –, atravessou um período em que podia optar pelos serviços de dois presbíteros – um pensionista e um fiel à hierarquia. O administrador, evidentemente, protegia o pensionista, chegando a proibir o outro padre de exercer o culto na igreja paroquial, certamente para não tirar assistentes ao seu protegido. Na intenção de mostrar aos habitantes que eram válidas as cerimónias cultuais deste, deslocou-se à freguesia e assistiu à missa. Para prevenir o irromper de um levantamento popular, avisou o não pensionista que o tornava responsável pela alteração da ordem49.

Nesta época de grande turbação nos espíritos, o sentimento de raiva podia con- duzir a actos que estavam em contradição com a fé que se proclamava. Na freguesia de Rossas, concelho de Arouca, a maior parte do povo preferia assistir à missa de um sacerdote que vinha todos os domingos ali celebrar, abandonando o seu antigo abade, que recebia a pensão. Mas alguns crentes continuavam fiéis ao padre pen- sionista. Um desses apoiantes convidou-o a celebrar missa e pregar o sermão numa capela da freguesia, em cumprimento de uma promessa. Alguém – pertencente ao campo contrário – penetrou no templo e sujou o púlpito com dejectos50.

Antagonismos deste tipo, no interior das freguesias, que atingiram maior dramatismo nas localidades em que se constituíram associações cultuais, não se registaram somente nos primeiros anos do novo regime. Em 1915 o estado de confronto permanecia em algumas localidades. O caso de Dardavaz, no concelho de Tondela, é exemplar, tendo sido mesmo levado ao Senado pelo evolucionista Ricardo Pais Gomes. O pároco, que aceitara a pensão, fora substituído por outro, originando um verdadeiro cisma que separou os partidários do pensionista – em número muito reduzido, segundo informava O Dia – e os do novo pároco. No dia de Natal de 1915, o pensionista, que então exercia funções de administrador do concelho, acompanhado por uma força militar, foi prender o outro padre – a pretexto de falta de licença – que se encontrava celebrando missa numa capela

48 O Dia, nº 534, 16/07/1913, p. 4, col. 1. Estados conflituosos idênticos haviam sido vividos em algumas

localidades durante o «cisma», nos primeiros anos após a vitória liberal. Cf. Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, “Liberalismo, religião e política...”, cit. Ver também Manuel Clemente, ob. cit., p. 124 e ss.

49 A Verdade (Angra do Heroísmo), Ano II, nº 55, 4/01/1913, p. 3, col. 2. 50 Gazeta de Arouca, Ano I, nº 17, 24/02/1912, p. 3, col. 1.

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da freguesia. Deteve igualmente os fiéis que assistiam ao acto religioso. A chegada dos prisioneiros à sede do concelho provocou grande agitação, tendo o padre sido libertado pelos populares. Adivinha-se que, por trás deste incidente, existia um estado de conflito que, a todo o momento, podia provocar grande violência. O administrador acusou de tentativa de homicídio os crentes que acompanhavam o padre no momento da detenção, dado que, dois dias antes, alguém teria dispa- rado sobre as janelas da sua residência. Mas esses fiéis foram libertados pelo juiz no dia seguinte. Quanto ao padre, que o povo livrara, apresentou-se às autoridades, sendo solto horas depois, por determinação do poder judicial51.

Neste mesmo ano de 1915, o concelho de Trancoso foi agitado pelo julgamento do padre José Maria Dias, pároco de Freches e Fiães. Aparentemente, o problema que esteve na origem do processo judicial era de ordem estritamente religiosa. Uns dois anos atrás, um homem e uma mulher, moradores numa destas freguesias, tinham realizado o seu casamento, segundo o rito católico, mas sem a presença do pároco. Haviam optado por um padre pensionista que abandonara a sua freguesia e “andava a dar aula por conta do governo”52. Encontrava-se, assim, em situação irregular dentro da Igreja. Como à luz do direito canónico o casamento teria de ser celebrado na presença do pároco ou do ordinário – ou de um sacerdote delegado por qualquer deles – esta união não tinha valor dentro da instituição eclesiástica. Pouco depois a mulher adoeceu gravemente e pediu a presença do pároco. Este fez-lhe ver a neces- sidade de regularizar a situação perante a Igreja. Marido e mulher concordaram e o casamento realizou-se, tendo a doente morrido pouco depois. Tudo isto poderia não interessar a ninguém. Seria um assunto controverso, mas só parecia dizer respeito aos intervenientes. Não aconteceu assim e o padre, alguns meses depois, foi preso, acusado de ter desacatado as leis da República. Este julgamento, num país com uma Constituição que remetia as crenças e as cerimónias de culto para o domínio do privado, apresentava características bastante estranhas, com o tribunal a discutir se o primeiro casamento, segundo o rito católico, era válido ou não.

O caso, com o seu quê de anedótico, mostra as dificuldades da própria autori- dade civil perante a Separação Estado – Igreja e até que ponto a prática regalista, de interferência do poder civil no domínio religioso, insistia em fazer-se sentir.

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 190-193)