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O abandono das paróquias

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 198-200)

PADRES PENSIONISTAS E PADRES NÃO PENSIONISTAS

5. O abandono das paróquias

Se parece incontestável que numerosos pensionistas abandonaram as suas paróquias, com autorização ou sem autorização da Comissão Central de Execução

da Lei da Separação, não se pode pensar que, do lado contrário, todos tinham alma

de lutadores e de mártires, permanecendo junto dos seus paroquianos em circuns- tâncias adversas. O desânimo atacou um elevado número de párocos, descrentes quanto à generosidade dos paroquianos. Pensavam que as populações, não sendo compelidas, como acontecia no passado, ao pagamento das côngruas, se negariam a contribuir, voluntariamente, para o sustento do pároco. Estes receios não eram destituídos de fundamento, pois que, em algumas freguesias, os paroquianos mostravam má vontade em pagar os serviços de alguém, que se recusara a receber um ordenado do Estado. Esta situação conduzia a um exame de consciência da própria instituição eclesiástica, que era levada a concluir que muitos padres não haviam sabido captar o afecto das populações, pouco se importando com a sua missão. O periódico Correio da Beira, a partir de Agosto de 1911, passou a inserir

Cartas aos párocos, no sentido de levantar os ânimos e incutir coragem. Pedia-se

aos sacerdotes que pensassem nos sacrifícios que era necessário fazer por Cristo “quando as portas do inferno tenta[va]m prevalecer contra a sua Igreja”64.

Um grande número dos que reuniam condições para requerer a aposentação optou por fazê-lo neste momento. Provavelmente, em condições normais muitos destes padres não teriam dado tal passo. Nas actuais circunstâncias, aproveitavam um direito que lhes assistia e que não significava um favor da República, suscep- tível de atrair a má vontade dos seus colegas. Segundo um relatório publicado pela Comissão Central de Execução da Lei da Separação do Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911 a 30 de Junho de 1913, cento e seis padres foram aposentados. No período imediatamente anterior, de Fevereiro de 1909 a 20 de Abril de 1911, apenas um padre se aposentara65. No ano económico de 1913-14 aposentaram-se

quarenta e seis. No de 1914-15 o número desceu para dezasseis e no ano seguinte foram somente oito. No respeitante a estes últimos, o relator fez notar que a apo- sentação lhes fora concedida, apesar de terem recusado a pensão. Possivelmente o mesmo acontecia com os restantes66. Aliás, um dos relatórios traduz alguma sur- presa, provocada pelo elevado número de pedidos de aposentação, pois que, tendo grande parte do clero nacional hesitado na aceitação das pensões ou recusando-as abertamente, não teve dúvidas em aproveitar as receitas provindas da execução da

64 Correio da Beira, Ano I, nº 43, 26/08/1911, p. 1, col. 5.

65 “Relatório da Comissão Central de Execução da Lei da Separação respeitante ao ano de 1912-1913”, in

Diário do Governo, nº 33, 10/02/1915 (2ª série).

66 “Relatório da Comissão Central de Execução da Lei da Separação do Estado das Igrejas, sobre a gerência

do ano económico 1915-1916”. Apêndice ao Diário do Governo, nº 323, 29/10/1917. Este relatório informa sobre o número de aposentações concedidas nos anos económicos anteriores, desde 20/04/1911.

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lei quando estas, suprindo as insuficiências dos fundos da Caixa de Aposentações, foram aplicadas a pagar pensões a cargo da mesma Caixa67.

Como nem todos se encontravam em condições de pedir a aposentação, alguns, simplesmente, deixavam as paróquias, como fez o pároco de Ferreira do Zêzere, que aí residira durante vinte anos. Não quis aceitar a pensão mas, talvez sem ânimo para arrostar uma vida de dificuldades, retirou para a sua casa, na Guarda68.

A maior parte dos clérigos ao serviço da Sé de Lisboa parece ter enveredado pelo mesmo caminho69. Não seria somente o espectro da pobreza que fazia partir os

sacerdotes. Em Julho de 1911, D. António Mendes Belo, numa carta dirigida ao ministro da Justiça, queixando-se de desconsiderações e ameaças de que eram vítimas muitos sacerdotes, não escondeu que numerosos membros da classe paro- quial se lhe dirigiam, pedindo para serem desligados do vínculo que os prendia às suas igrejas, onde sentiam que nenhum serviço podiam prestar. Requeriam “Letras Demissórias” que lhes permitissem ir prestar serviços em outras dioceses ou, mesmo, em países estrangeiros70. Presume-se que o próprio vigário geral do patriarcado, D. José Alves de Matos, arcebispo de Mitilene, não tenha conseguido aguentar as tensões provocadas pelo clima de ódio anti-religioso que se vivia na capital, tendo-se retirado para a terra de onde era natural, no concelho de Leiria. Não voltou a assumir as funções que desempenhara71.

Um grande número de eclesiásticos procurou recomeçar a sua vida no Brasil. Num tempo de grande incremento de emigração, faziam o mesmo que muitos milhares de portugueses que não encontravam em Portugal condições para levar uma vida com o mínimo de decência. O Brasil era, assim, o destino de membros do clero que saíam pelos mais diversos motivos: monárquicos que haviam feito parte das fileiras de Paiva Couceiro, pensionistas republicanos72 e tantos outros

que, apesar de não desejarem romper com os seus colegas no sacerdócio, não aguentavam a perspectiva de uma vida de miséria. Em Janeiro de 1913, a acreditar

67

“Relatório... respeitante ao ano de 1912-1913”, cit.

68

O Seculo, Ano XXXI, nº 10683, 7/09/1911, p. 4, col. 4.

69

A Defesa (de Paredes) informou da partida de alguns deles no seu nº 4, 22/09/1911, p. 2, col. 3. Através de uma carta do patriarca de Lisboa, datada de 27 de Agosto de 1913, fica-se a saber que, dos poucos que, nesta altura residiam em Lisboa, eram raros os que participavam nos actos de culto. Cf. Arquivo Histórico do Patriarcado, Correspondencia Official durante a residencia do Senhor Patriarcha em Santarém, nº 26, fls. 16.

70 A Voz da Verdade, nº 34, 24/08/1911, p. 400. 71 Fortunato de Almeida, ob. cit., p. 468.

Segundo informou um jornal de Viena, em Janeiro de 1912, o próprio patriarca de Lisboa manifestara a intenção de sair de Portugal e estabelecer-se em Roma. Contudo, tal procedimento não recebera aprovação do Vaticano. A comunicação foi feita pela Legação de Portugal em Viena. Cf. Arquivo Histórico Diplomático,

Relações diplomáticas com a Santa Sé, cit.

72 Como o padre Duarte Neto, residente em Lisboa, que, em carta a Bernardino Machado, em Julho de 1912,

lembrava um pedido feito anteriormente no sentido de lhe ser encontrada uma colocação eclesiástica no Rio ou em S. Paulo “ou em qualquer ponto bom e saudável do Brasil”. Cf. Casa-Museu Bernardino Machado, Famalicão, Correspondência recebida.

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em informações de um órgão ligado à Igreja, só no estado brasileiro de S. Paulo haviam sido recebidos mais de duzentos padres do clero secular73.

A partida de um tão elevado número de sacerdotes era vista com desconten- tamento por muitos católicos, que os acusavam de abandonar o seu dever. Deseja- riam que os padres colocassem acima dos interesses materiais a preocupação com os fiéis. Um membro do clero, em carta para O Grito do Povo, transcrita por outros jornais, considerava vergonhoso que um homem que envergava a batina dissesse que “a carreira de padre” nada dava e, por isso, a continuarem assim as coisas, procuraria em outras terras possibilidade de auferir maiores lucros. O sacerdote que lançava tais censuras declarou ter passado duzentos e setenta e cinco dias em oito prisões. Tinha duas irmãs para sustentar. Encontrava-se em liberdade há três meses, vivendo desde então da “esmola da missa diária”. Mesmo a viver em tais condições, confessava que ainda não passara fome e prometia não abandonar o seu posto74. As tensões a que estavam sujeitos numerosos padres, sobretudo em regiões

mais descristianizadas, justificam a sua emigração. Em Agosto de 1912, O Mundo noticiou a partida, rumo ao Brasil, de três “masmarros” – também chamados “seráficos” –, designados pelas alcunhas de “o Ventas”, “o Santinho” e o “Menino Jesus”, respectivamente priores de S. Clemente, Martinlongo e Porches75. O tipo de alcunhas por que eram conhecidos sugere tratar-se de clérigos que podiam ser incluídos dentro do grupo jesuítico, especialmente detestado: padres extremamente devotos, que levavam muito a sério as suas obrigações de catequização.

Perante o afluxo de tantos padres portugueses chegados ao Rio de Janeiro, teve lugar na catedral desta cidade uma reunião, dirigida pelo cardeal e com a presença de muitos sacerdotes e membros da colónia portuguesa. O cardeal prometeu dar colocação a todos os eclesiásticos idos de Portugal. Na reunião, foi igualmente deci- dido auxiliar com alimentos e roupas esses sacerdotes, enquanto não obtivessem colocação76. Nem todos tiveram a sorte de conseguir uma viagem sossegada. Em Novembro de 1911 foi preso o padre Joaquim Martins Pontes, de Vila do Conde,

No concelho de Famalicão, um dos três padres pensionistas, pároco em Sezures, optou por ir para o Brasil, devido às “perseguições” movidas por parte dos seus pares que não o convidavam para os funerais e festividades da suas paróquias. Cf. O Porvir (Famalicão) Ano XV, nº 235, 8/08/1912, p. 1, col. 2.

Os padres açorianos teriam preferido, talvez, os Estados Unidos da América. Um jornal de Angra do Hero- ísmo, em 18 de Maio de 1912, informou que partira para a América o padre José Patrício Lopes, que até aí dirigira o jornal. Três meses depois anunciou a ida do padre António Machado. Cf. A Verdade (Angra do Heroísmo), Ano I, nº 22, 18/05/1912 e nº 37, 31/08/1912, p. 3, col. 4.

73

A Fé Cristã, Ano I, nº 9, Janeiro de 1913, p. 431.

74 Este padre estava impedido de usar a igreja paroquial, dominada por um padre suspenso. Assim, concedia

os socorros da Igreja através do culto doméstico. Cf. A Guarda, Ano VIII, nº 368, 3/11/1912, p. 1, col. 4. Através das afirmações deste sacerdote adivinha-se mais um caso de guerra no interior de uma população dividida entre dois padres.

75 O Mundo, Ano XII, nº 4294, 21/08/1912, p. 5, col. 2. 76 Echos do Minho, nº 177, 22/09/1912, p. 1, col. 5.

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 198-200)