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O agravar da questão a partir de Julho de

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 193-198)

PADRES PENSIONISTAS E PADRES NÃO PENSIONISTAS

4. O agravar da questão a partir de Julho de

A situação de numerosos pensionistas, hostilizados pelos seus colegas e pelos paroquianos, tornou-se insustentável em muitos lugares, especialmente nas zonas

51 O Dia, Ano XVI, nº 846, 6/01/1916, p. 1, col. 5 e nº 849, 10/01/1916, p. 1, col. 5.

52 Era assim que A Guarda se referia a esse padre. Cf. A Guarda, Ano XI, nº 492, 27/11/1915, p. 3, col. 1. Este

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rurais do norte do país. Se motivações de ordem económica os haviam levado a aceitar a pensão, percebiam que o negócio não fora assim tão favorável, pois não eram convidados para participar em festas nem lhes eram encomendadas missas de sufrágio. De certo modo, perdiam por um lado o que haviam ganho por outro.

Neste clima de tensão, muitos pensionistas foram abandonando as suas paró- quias, ou porque sentiam que não tinham condições para exercer o seu múnus junto de povoações que não os aceitavam, ou porque os superiores hierárquicos lhes criavam dificuldades, ou, muito simplesmente, porque entendiam que era possível ter uma vida mais agradável em outro sítio.

O afastamento destes padres – considerados amigos da República – contra- riava o espírito da lei que lhes dera a pensão para que, em troca, conduzissem os paroquianos na fidelidade e respeito pelas novas instituições. O governo sentiu a necessidade de construir uma base legal que impedisse a deserção desses clérigos. Na Câmara dos Deputados, na sessão de 3 de Julho de 1912, esteve em discussão um projecto, da autoria de António Macieira, que vinha introduzir alterações à

Lei da Separação. A ser aprovado, os pensionistas ficariam impedidos de sair das

suas paróquias sem autorização do ministro da Justiça53.

O projecto levantou uma onda de protestos. Num tempo em que a desarmonia se instalara entre as diversas facções republicanas, os críticos da política levada a cabo pelos democráticos entendiam que se estava a ir contra o princípio de neutralidade da República. Ao Estado devia ser indiferente se os padres cumpriam ou não os seus deveres de assistência religiosa.

Afonso Costa, na defesa do projecto de Macieira, tentou iludir a questão, ao afirmar que o padre, abandonando o seu lugar, ofendia os sentimentos católicos dos paroquianos, causando, desse modo, embaraços à República. Quanto ao direito do Estado em se envolver num assunto que pareceria dizer respeito somente à Igreja, concordou que o governo não podia dar ordens aos que haviam recusado a pensão:

“Aos não pensionistas não damos ordens, mas com os pensionistas já não sucede o mesmo”.

Perante a hipótese de um pensionista ter abjurado a religião – o que torna- ria a sua presença na paróquia inútil ou prejudicial –, Afonso Costa não cedeu. O ex-padre continuaria com direito à pensão, mas sempre no lugar onde exercera funções de pároco54. É evidente que a pretensão de que o autor da Lei da Separação

estava preocupado com os interesses espirituais dos católicos caía por terra.

53 Segundo afirmou Alexandre Braga nessa sessão, havia padres que, depois de lhes terem sido atribuídas

as pensões, se retiraram imediatamente das suas paróquias. Cf. Diário da Câmara dos Deputados, nº 156, de 3/07/1912.

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As declarações proferidas no Parlamento por Afonso Costa, bem como o art. 3.º da lei de 10 de Julho de 1912, publicada na sequência da aprovação do projecto de António Macieira, radicalizaram ainda mais as posições dos que viam na pensão “um laço para atrair à apostasia o clero católico”55. Vinham igualmente confirmar que o governo se considerava patrão dos padres pensionistas e que estes se encontravam fora da jurisdição dos seus prelados. O artigo aprovado obrigava os ministros da religião a exercer as suas funções, embora pudessem estar suspensos pelos seus superiores. Não poderiam mudar a residência sem licença da autoridade civil. A jurisdição do bispo não era tida em conta.

Apesar de se pretender, com a lei de 10 de Julho, que os pensionistas se conser- vassem nas suas paróquias, os casos de abandono continuaram. Nos anos seguintes, cento e quatro padres nessas condições pediram e obtiveram autorização governa- mental para se ausentarem dos seus benefícios56. Mas a pretensão subjacente à lei, de que o pensionista dependia somente do ministro da Justiça, acirrou as tensões em torno da questão. Os católicos mais intransigentes insistiam que a hierarquia e o Vaticano deviam actuar com maior rigor em relação a esses padres. Embora alguns bispos se mostrassem mais severos que outros ao lidar com o problema, de um modo geral, mesmo nos casos de maior confronto com os subordinados que aceitaram a aliança com o inimigo, foram fugindo de soluções que poderiam ser irreparáveis57. Esperavam que a Santa Sé se pronunciasse.

Perante a ameaça de uma tomada de posição do Vaticano, provavelmente desfavorável, frente à contestação das populações, talvez justificada pela falta de conhecimento sobre o assunto, os pensionistas sentiram que era urgente a organi- zação de um movimento que fizesse chegar à opinião pública as suas razões. Em finais de Agosto de 1912, a comissão central, representativa dos seus interesses, publicou um manifesto, através do qual pretendia justificar a aceitação das pensões e tranquilizar os crentes, garantindo que a Santa Sé não impusera quaisquer penas canónicas a esses sacerdotes. Por isso, as missas e todos os outros actos de culto

55 A Guarda, Ano VIII, nº 361, 15/09/1912, p. 1, col. 1-2.

O citado art. 3.º estabelecia: “Os ministros da religião católica, pensionistas do Estado, devem residir na sede dos respectivos benefícios, à disposição dos fiéis que precisarem dos seus serviços cultuais ou paroquiais, sob pena de perda da pensão e demais benefícios materiais do Estado”. O parágrafo 1º deste artigo dizia: “O ministro da Justiça poderá conceder licença aos ministros da religião católica, pensionistas do Estado, para se ausentarem dos seus cargos”. Cf. Carlos de Oliveira, ob. cit., p. 139.

56 Segundo os “relatórios” da Comissão Central de Execução da Lei da Separação. Os relatórios referentes

aos anos económicos de 1913-1914, 1915-1916 e 1916-1917 referem, respectivamente, 36, 34 e 34 autoriza- ções concedidas a padres que desejavam abandonar as suas freguesias. Cf. Apêndice ao Diário do Governo, 10/12/1915, 29/10/1917 e 26/02/1919.

57 O padre Elviro dos Santos, prior da freguesia de Santa Engrácia, em Lisboa, neste Verão de 1912, quando

o tema dos pensionistas estava na ordem do dia, declarou ter consultado o Vaticano para saber se devia aceitar a pensão. Tendo-lhe sido respondido que os bispos tinham instruções sobre o assunto, dirigiu-se ao seu prelado. Só à segunda tentativa recebeu uma carta em que D. António M. Belo lhe dizia “umas coisas” que não se entendiam bem. Cf. O Porvir (Famalicão), Ano XV, nº 239, 5/09/1912, p. 2, col. 2.

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não tinham menos valor que os celebrados pelos não pensionistas. Os autores do manifesto afirmavam desejar viver dentro do grémio da Igreja, como ministros de “uma religião de paz, de amor e de perdão”. Reiteravam o seu apoio às novas instituições, acreditando que “a prosperidade da Pátria se identifica com o regime republicano”58.

Mas a pressão continuava. O Seculo, nesse final de Agosto, com base em infor- mações recebidas, previa que, muito em breve, uma decisão da Santa Sé poderia colocar os padres contestados frente ao dilema: ou teriam de abandonar os bene- fícios concedidos pela República ou suportariam as consequências do seu acto de rebeldia, o que significava excomunhão59.

No receio de uma atitude drástica da Santa Sé os pensionistas adiantaram-se. Um novo manifesto, datado de 31 de Agosto, foi publicado no jornal O Seculo. Afirmavam que eram oitocentos – número contestado pela imprensa católica que apontava para um número mais reduzido –, um grupo numeroso que devia fazer pensar os responsáveis antes de tomar uma decisão. Dando a conhecer outra face do problema, revelavam que, em todas as dioceses, dezenas de párocos não pen- sionistas haviam abandonado as suas freguesias, procurando meios de subsistência em profissões profanas ou na emigração. Apontavam o exemplo dos concelhos de Barreiro, Loures, Vila Franca, Barquinha, onde todas ou quase todas as freguesias se encontravam sem pároco. Opinavam que, renunciando à pensão, se colocavam em guerra contra o Estado, o que, na sua perspectiva, iria contra “a missão de paz e equilíbrio social inerente ao sacerdócio”. Continuavam a manifestar o desejo de permanecer como padres católicos, ligados aos seus superiores em matéria religiosa. O manifesto terminava com uma ameaça:

“Aguardemos os acontecimentos e não seremos nós, os pensionistas, que tocaremos o clarim de revolta, abrindo uma cisão no clero português. Que essas tremendíssimas responsabilidades pertençam aos que cerram os ouvidos à ver- dade, à razão e desprezam as próprias conveniências da igreja. Somos cerca de oitocentos e neste número e na razão que nos assiste está a nossa força. Firmeza e prudência”60.

Talvez o receio de um cisma que piorasse o estado de coisas levasse o Vaticano a hesitar sobre a melhor atitude a tomar. Mas, finalmente, a 12 de Outubro, o Papa acabou por manifestar o seu pensar. Depois de ouvir o parecer dos membros da Sagrada Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários, proferiu uma declaração que, não sendo tão dura para os pensionistas como muitos desejariam,

58 O Século, Ano XXXII, nº 11026, 21/08/1912, p. 4, col. 3. 59 Ibidem, nº 11033, 28/08/1912, p. 1, col. 1.

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pareceu deixar um tanto aliviados os católicos, que estavam ansiosos por que a voz do chefe máximo da Igreja lhes desse razão. Lembrando que a Lei da Separa-

ção fora já condenada na encíclica Jandudum in Lusitania, o diploma reprovou o

decreto de 10 de Julho de 1912, lesivo da autoridade dos bispos. Referindo-se aos membros do clero, o Papa declarou que eram dignos de louvor os eclesiásticos que, “com admirável constância”, haviam renunciado à pensão. Quanto àqueles que, talvez forçados pela miséria, tinham sido induzidos a recebê-la, causando grande escândalo entre os fiéis, o Sumo Pontífice declarava ser “obrigação dos ditos pensionistas remover o escândalo e sujeitar-se nesta matéria às ordens do seu Bispo”61. Mas o texto não falava em excomunhão, remetendo para os ordinários a resolução do conflito.

Parece que o diploma não trouxe grandes alterações ao estado de tensão que se vivia no seio do clero português. Os católicos radicais, não se atrevendo a criticar abertamente a Santa Sé, desejariam que os prelados fossem mais severos para com os prevaricadores. Em 1915, no jornal O Dia, acérrimo defensor dos que haviam recusado a pensão, assegurava-se serem raríssimos os pensionistas que eram bons padres. Apesar das contínuas queixas de que eram perseguidos pelos seus supe- riores na hierarquia eclesiástica, somente pelo facto de terem aceite a pensão, as penas canónicas sofridas por uns tantos deviam-se à má conduta e não à condição de pensionistas62.

O arrastar do problema, o aparecimento de outras questões consideradas mais graves, contribuíam para que alguns desses padres conseguissem ser aceites, apesar do escândalo que isso provocava entre os mais severos. Em 1915, na festa da Ima- culada Conceição, um padre pensionista subiu ao púlpito na Igreja dos Mártires, em Lisboa. Revoltados, alguns fiéis abandonaram o templo. Outros, porém, não encontraram qualquer mal no convite dirigido ao sacerdote, de quem se abonavam as qualidades e serviços. O presidente da mesa da Irmandade do Santíssimo Sacra- mento argumentou que os padres pensionistas não estavam privados de jurisdição. O prior da freguesia, cónego Miguel Ferreira, declarou ter questionado o patriarca de Lisboa sobre o assunto, concluindo, pela resposta pouco clara recebida, que não havia qualquer diferença entre pensionistas e não pensionistas quanto ao exercício das suas funções63.

61 A Voz da Verdade, Ano XIX, nº 44, 31/10/1912, p. 519. A declaração foi publicada nas Actas Apostolicae

Sedis (Vol. IV, p. 645), de acordo com informação colhida em O Dia, nº 825, 13/12/1915, p. 1, col. 3. Através

de portaria datada de 21 de Janeiro de 1913 e assinada por Álvaro de Castro, ministro da Justiça do governo de Afonso Costa, recentemente empossado, o governo da República mandava que a declaração pontifícia, “ofensiva da Lei da Separação e atentatória dos direitos do Estado”, fosse “repelida in limine”, sendo-lhe negado o beneplácito do Estado. Veja-se O Elmano (Setúbal), Ano XX, nº 1622, 25/01/1913, p. 2, col. 2.

62 O Dia, nº 828, 16/12/1915, p. 1, col. 3.

63 O Dia ocupou-se com o caso em alguns dos seus números. Cf. O Dia, nº 822, 9/12/1915, p. 1, col. 6, nº

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No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 193-198)