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Mesa: Colonização no interior do Brasil

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Anais da IX Jornada de Estudos Históricos Manoel Salgado do corpo discente do PPGHIS/UFRJ

Suplemento da Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº 10, Jan/Jul 2015 | www.historia.ufrj.br/~ars/ 76

Mesa: Colonização no interior do Brasil

OS BANDEIRANTES PAULISTAS E O MUNDO

ATLÂNTICO MODERNO: CIRCULARIDADES

ATLÂNTICAS E SUAS INFLUÊNCIAS NA VILA DE

SÃO PAULO DO SÉCULO XVII.

LUIZ PEDRO DARIO FILHO1 Resumo: A história atlântica vem surgindo, nas últimas décadas, como uma categoria teórico-metodológica inovadora no auxílio de historiadores na construção das suas pesquisas a respeito das sociedades do Antigo Regime. Sua principal contribuição é deslocar o eixo interpretativo do mundo moderno para o oceano atlântico, estabelecendo nele o seu principal centro de gravidade. Com isso, todos os continentes "unidos" através desse oceano - Américas, Europa e África - seriam conectados não apenas pelo mar, mas por todas as trocas que nele se estabeleceram durante o período das empresas coloniais. Fossem essas trocas econômicas, demográficas, culturais ou sociais. E seriam através delas, dessas circularidades atlânticas, que o mundo moderno teria se formado. O objetivo principal dessa comunicação é inserir a vila de São Paulo, da primeira metade do século XVII, dentro desse mundo atlântico. Pretendo demonstrar que o conflito entre jesuítas e bandeirantes, e seus respectivos projetos coloniais, não podem ser compreendidos, em toda a sua complexidade, sem levarmos em consideração as interdependências dessas trocas mediadas pelo Atlântico. Com a invasão e posterior estabelecimento dos holandeses no nordeste da América portuguesa entre finais da década de 1620 e ao longo da década de 1630, muitas das antigas rotas comerciais que alimentavam o mercado americano, internas ou externas ao continente, se perderam ou foram obstruídas. Esse abastecimento teve que ser provido através da ação de outros comerciantes e núcleos comunitários, com participação ativa dos colonos da vila paulista. Dessa forma, mesmo que indiretamente, as circularidades atlânticas afetaram de forma concreta a vida e as dinâmicas internas da vila paulista, sobretudo no que diz respeito à maior demanda de escravos e, consequentemente, à intensificação dos conflitos com os padres jesuítas. Com isso, ainda que de forma preliminar, concluirei que existem certos aspectos da conjuntura colonial paulista do século XVII que apenas são passíveis de serem compreendidas ao percebermos que o mundo moderno era, de uma certa forma, também um mundo atlântico. Palavras-Chave: história atlântica, jesuítas, bandeirantes paulistas.

Resumen:La historia atlántica ha surgido en las últimas décadas como una innovadora categoría teórica y metodológica para ayudar a los historiadores en la construcción de sus investigaciones sobre las sociedades del Antiguo Régimen. Su principal contribución es cambiar el eje de interpretación del mundo moderno hacia el Océano Atlántico, lo estableciendo cómo su principal centro de gravedad. Con esto, todos los continentes "unidos" a través de este océano - América, Europa y África - estarían conectados no sólo por el mar, pero por todos los intercambios que se establecieron durante el período de las empresas coloniales; sean estos económicos, demográficos, culturales o sociales. Seria a través de estas circularidades del Atlántico que el mundo moderno se habría formado.

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El principal propósito de esta comunicación es insertar el pueblo de San Pablo, en la primera mitad del siglo XVII, dentro de ese mundo atlántico. Tengo la intención de mostrar que el conflicto entre los jesuitas y los ‗bandeirantes‘- con sus respectivos proyectos coloniales- no se puede entender en toda su complejidad sin tener en cuenta la interdependencia de estos intercambios mediados por el Atlántico. Con la invasión y el posterior establecimiento de los holandeses en el noreste de la América portuguesa entre finales de los años 1620 ya lo largo de la década de 1630, muchas de las antiguas rutas comerciales que alimentavan el mercado americano, internas o externas al continente, se perdieron o fueron bloqueadas . Este suministro tuvo que ser proporcionado por la iniciativa de otros comerciantes y centros comunitarios, con la participación activa de los colonos de la aldea de San Pablo. Por lo tanto, mismo que indirectamente, las circularidades Atlánticas afectarón concretamente la vida y la dinámica interna de la aldea de San Pablo, sobre todo en lo que respecta a una mayor demanda de esclavos y, en consecuencia, la intensificación de los conflictos con los sacerdotes de la Compañía de Jesús. Con eso, aunque de forma preliminar, concluo que hay ciertos aspectos de la situación colonial de San Pablo del siglo XVII que sólo pueden ser entendidos si nos damos cuenta de que el mundo moderno era, en cierto sentido, también un mundo atlántico.

Palabras-Clave: historia atlantica, jesuitas, bandeirantes paulistas.

Introdução.

O livro A África e os Africanos no Mundo Atlântico (THORTON, 2003) é, até os dias atuais, uma das obras mais influentes no que diz respeito à compreensão da dimensão africana do processo colonial americano. Lançada no ano de 1992, ela colaborou de forma decisiva para retirar da marginalidade historiográfica os africanos e afrodescendentes que haviam participado de forma ativa e significativa da construção das sociedades do Novo Mundo. Contudo, a análise de John Thorton acabou também por revelar outras nuances da época moderna que iam para além destas contribuições africanas para aquele mundo colonial. Thorton resgatou o poder de negociação que os líderes locais africanos - os sobas - possuíam dentro das suas relações com as monarquias européias. E de como, ao contrário do que se pensava na época em que a obra foi lançada, muitas das trocas comerciais e do relacionamento entre esses líderes se dava em condições de igualdade e respeito. Ambos os Estados, europeus e africanos, buscavam estabelecer um comércio ―administrado‖, que ocorreria sob a sua tutela (THORTON, 2003: 100). O autor relativizou também, de forma eficaz, o predomínio do poder militar e marítimo dos europeus frente aos reinos africanos, afirmando que vários destes últimos possuíam uma cultura militar marítima considerável, capaz de repelir ataques externos (THORTON, 2003: 80-86). Ao menos até o século XIX. E que muitos destes reinos não eram dependentes dos produtos manufaturados europeus, que representavam apenas objetos de luxo, recorrendo a produções internas ou de comunidades de

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dentro do continente africano (THORTON, 2003: 89-91). Todo esse cenário traçado por Thorton produziu a quebra de imagens que tradicionalmente se tinham sobre a África do mundo moderno, evidenciando a necessidade de se repensar o seu papel dentro das dinâmicas sociais e políticas deste período. Isso tem aberto espaço para novas abordagens e novas leituras historiográficas a respeito do tema. É aí que entra a relevância que a história atlântica vem encontrando nos últimos anos.

A história atlântica é uma categoria analítica do campo historiográfico. Ela começou a ganhar corpo quando historiadores foram tomando consciência da importância do crescimento progressivo do Atlântico como base de trocas demográficas, econômicas, sociais e culturais durante o período moderno (MORGAN & GREENE, 2009: 3). E foram trocas que envolveram, de forma constante e irreversível, a transformação dos três continentes que nelas estavam inseridos: África, Europa e América. Jack Greene e Philip Morgan, dois dos principais teóricos a respeito da história atlântica, frisam que é importante entender que o Atlântico não pode ser compreendido como um sistema, ou uma civilização. Muito menos deveria se buscar nele uma unidade unívoca e fechada em si mesma. Para os autores é decisivo que os historiadores compreendam que existiu, durante o período moderno, a formação de um "mundo atlântico", que os projetos coloniais das monarquias européias movimentavam empresas que envolviam pessoas desses três continentes, resultando na estruturação de um mundo que possuía como eixo central o Oceano Atlântico. Com isso, a história atlântica necessita ser compreendida mais como um processo fluido e contínuo, do que como um sistema fechado e homogêneo (MORGAN & GREENE, 2009: 7-8).

Vejamos, então, alguns benefícios que a perspectiva de uma história atlântica pode fornecer para o campo de pesquisa do historiador. O primeiro, e talvez mais claro, é a maior equalização das relações de troca comercial, cultural, social e econômica que se davam entre os continentes africanos, americano e europeu. Os reinos africanos e as suas dinâmicas internas, antes negligenciadas e obscurecidas pelos olhares historiográficos, são considerados partes integrantes e igualmente importantes do campo da pesquisa histórica. Seu maior e melhor entendimento são decisivos para que essas trocas e esse mundo atlântico possam ser compreendidos2. Outra contribuição que a perspectiva da história atlântica traz é a questão, como a historiadora Joyce Chaplin chama a atenção, de resgatar e dialogar com sentidos vividos pelos sujeitos históricos daquele período. Divergindo de críticos da história atlântica,

2Francisco Carlos Teixeira da Silva apresenta um debate historiográfico onde demonstra que é apenas com o

aparecimento mais recente de estudos africanos, ou que dêem conta do papel da África nessas trocas, que se possibilitou uma melhor compreensão desse mundo atlântico. Ver: SILVA, 2013.

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que classificam-na como anacrônica e destituída de sentido para as pessoas e grupos estudados pelos historiadores, a autora defende que a sua utilização. Chaplin acredita que o conceito de "Atlântico" era possuidor de sentido para muitos daqueles atores, que tinham diversas experiências e vivências com o local físico e específico que era o Oceano Atlântico. E, ao resgatar essa dimensão "real" que o Atlântico detinha para aqueles seres humanos, podemos recuperar os sentidos e lógicas que regiam as dinâmicas sociais que estruturavam aquele mundo (CHAPLIN, 2009: 35). Tanto esses sentidos atribuídos pelos sujeitos históricos, como o papel das trocas atlânticas e as suas consequências posteriores, eram elementos centrais daquela realidade social e que necessitam ser levados em conta em qualquer investigação histórica.

A circularidade atlântica não abarcava apenas essas pessoas, mas também trocas comerciais. O comércio de escravos talvez seja o caso mais óbvio, mas não era o único. A própria moeda de troca para a obtenção desses cativos em Angola, a partir de finais do século XVII, seria a cachaça produzida em engenhos da América lusa3. Ao longo do século XVIII esse cenário se consolidará, com famílias de negociantes do Rio de Janeiro sendo os principais produtores da cachaça e intermediadores do comércio de escravos vindos de Angola para o território americano4. E, a esses laços econômicos que se estabeleciam entre brasílicos e africanos, somavam-se também ligações matrimoniais de comerciantes cariocas com mulheres angolanas. Foi uma forma eficaz que os primeiros encontraram de garantir a sua penetração e influência na comercialização dos escravos africanos embarcados em Angola.

Outras trocas que compunham essa circularidade atlântica, eram as trocas culturais. Como é o caso trabalhado pela historiadora Hebe Mattos (MATTOS, 2010). A autora argumenta que, dentro dos núcleos coloniais portugueses no continente africano, era comum a utilização de culturas e práticas militares dos guerreiros locais, que eram aliados da monarquia lusa, para a manutenção da sua soberania dentro das regiões colonizadas. Assim como a utilização destes guerreiros e dos seus líderes dentro de batalhas, aos quais se davam o nome de ―guerras pretas‖. Ela cita o caso do terço militar de negros formado pela Coroa na América portuguesa, sob a liderança de Henrique Dias, durante a guerra de expulsão dos

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José Curto apresenta como, em finais do Seiscentos, a cachaça vai substituindo o vinho como moeda de troca na obtenção de escravos em Angola. Ver: CURTO, 1999.

4Roquinaldo Ferreira apresenta o cenário das trocas comerciais que envolviam diversos portos coloniais do

império português, ressaltando o papel dos negociantes cariocas, ao longo do século XVIII, no comércio de escravos com Angola. Ver: FERREIRA, 2001.

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holandeses no século XVII. Mattos procura demonstrar as continuidades entre a formação desse terço militar de negros em Pernambuco e das ―guerras pretas‖ africanas, evidenciando a circulação de práticas culturais entre África e América lusitanas. Já Vanicléia Santos, em artigo recente (SANTOS, 2012), trabalha com a questão dos mandigueiros no império luso. A autora evidencia como a mandiga era associada, naquele mundo, mais aos praticantes de feitiçaria, sobretudo aos utilizadores de bolsas de mandiga para se proteger contra práticas mágicas, do que aos seres humanos pertencentes ao grupo étnico mandiga. Ela ressalta a influência das denúncias e perseguições do Tribunal do Santo Ofício português aos praticantes de mandiga – ou seja, os ―mandingueiros‖ - em diversos pontos do império como fator decisivo nessa reformulação perceptiva que o significado do termo sofreu. Com isso percebemos que ressignificações conceituais abrangiam todas as bordas do Atlântico - africanas, europeias e americanas. E que, consequentemente, essa circularidade atlântica também abarcava a dimensão discursiva, do campo das ideias.

Anthony J. R. Russell-Wood afirma, no artigo ―The Portuguese Atlantic. 1415-1808" (RUSSELL-WOOD, 2009), que o Atlântico era, na dinâmica interior do império lusitano, o seu centro de gravidade. E que seria um equívoco ver os seus diversos núcleos coloniais, e os sujeitos históricos que o compunham, apenas como partes isoladas que formavam um todo maior. Mesmo que eles estivessem espalhados por três continentes distintos. Para o autor, existiu, dentro do império lusitano da época moderna, uma interdependência entre as suas partes constituintes (RUSSELL-WOOD, 2009: 104). E que a base dessa interdependência era o oceano. Mesmo as vilas fundadas em regiões interiorizadas e de fronteira, distantes do mar, faziam parte dessa interdependência, influenciando e sendo influenciadas pelo mundo que conformava o Atlântico português. E é aqui que esse trabalho se localiza. Trabalharei com a vila de São Paulo de Piratininga em inícios do século XVII, as tensões entre jesuítas e bandeirantes pelo controle da mão-de-obra indígena e os conflitos daí decorrentes. Buscarei demonstrar como as dinâmicas atlânticas influenciaram de forma decisiva, mesmo que indireta, os rumos daquela comunidade.

A vila de São Paulo dentro das conjunturas do Atlântico.

O primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza, chegou à América portuguesa no ano de 1548. Viajando consigo vieram grupos de padres jesuítas, homens pertencentes a essa nova ordem religiosa que possuía projeto de colonização que se propunha a proporcionar contrapontos à escravização e à dizimação indígena implementada pelos

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colonos na América. Em 1554, 13 irmãos da Companhia de Jesus, após ultrapassarem zona serrana – hoje conhecida como Serra do Mar - chegaram a uma região planaltina e, lá estabelecidos, fundaram o Colégio de São Paulo. No ano anterior, um agrupamento de colonos haviam fundado, perto dali, uma vila chamada Santo André da Borda do Campo. Esses portugueses já se encontravam na região desde a década de 1530, se fixando na localidade através de alianças com grupos tupiniquins. Ambos os grupos, jesuítas e colonos, direcionavam as suas energias para o sertão, visando o controle dos ameríndios que se encontravam no interior. Eles encontravam-se, neste início, em situação de oposição, de disputa (MONTEIRO, 1994: 17-35). Contudo, as desagregações dentro do próprio grupo tupiniquim chegaram a um estado crítico, fazendo com que muitos deles se voltassem contra os colonos, instaurando, dessa forma, ambiente de forte hostilidade que colocava em perigo a própria existência física de ambos os núcleos colonizadores. Em 1558, o Governador-Geral Mem de Sá promove a extinção da vila de Santo André da Borda do Campo, mandando que os seus moradores se deslocassem para as imediações do colégio jesuíta, lugar onde foi criada a vila de São Paulo de Piratininga (MONTEIRO, 1994: 36-39). Jesuítas e colonos uniram forças para a defesa da vila recém-formada e, após 9 anos de cerco indígena e conflitos constantes, no ano de 1567 declarava-se o fim da Guerra dos Tamoios e pacificação, mesmo que momentânea, de toda a capitania de São Vicente.

Com esta pacificação, os habitantes da vila de São Paulo de Piratininga encontravam-se agora dentro de uma nova contenda que envolvia a questão dos projetos distintos que jesuítas e colonos locais possuíam para a utilização da mão-de-obra indígena e os caminhos que a empresa colonizadora teria na região. Ambos os grupos rechaçavam a legitimidade dos projetos de colonização e dos métodos utilizados pelos rivais para arrancar os índios das suas aldeias natais e trazê-los para dentro da tutela portuguesa. Com a questão do cativeiro dos nativos no núcleo da discussão, os direitos de administração do seu trabalho viraram questão decisiva para aqueles dois grupos, que tinham concepções bastante divergentes do local que o indígena deveria possuir dentro do mundo colonial. Entretanto, com todo o clima envolvendo o final da guerra e o seu impacto destrutivo, instaurou-se certo tom de flexibilidade em ambos os discursos (MONTEIRO, 1994: 40-42).

Adotado a política dos aldeamentos, ao longo da década de 1580 viu-se que este projeto de colonização mostrou-se problemático em diversos aspectos e revelou-se insuficiente para organizar esta sociedade que envolvia tantos conflitos e interesses. À medida que um número cada vez maior de nativos, advindos das mais diversas sociedades, eram

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subordinados à tutela dos jesuítas, rivalidades históricas que demarcavam a relação entre aqueles povos muitas vezes emergiam e o seu convívio dentro dos aldeamentos tornava esses núcleos coloniais concentrações improvisadas e instáveis. Fora isso, a questão do suprimento de mão-de-obra para trabalhar nas terras dos colonos se evidenciou também muito problemática. Não foram poucas as ocasiões onde os contratos estabelecidos com os padres para a efetuação de determinados trabalhos por parte dos índios não eram cumpridos da forma combinada por estes últimos que as deixavam inacabadas ou mesmo recusavam-se a realizá-las. Isso acabou por gerar insatisfação crescente por parte destes colonos em relação à tutela que os jesuítas possuíam sobre o trabalho dos nativos, e os levou a criticar veementemente essa intermediação, procurando em alguns momentos até mesmo excluí-la.

Foi dentro desta conjuntura sociopolítica de fracasso do projeto dos aldeamentos jesuíticos que os colonos, progressivamente, resolveram tomar as rédeas a respeito da questão do trabalho indígena. Na medida em que eles iam percebendo este processo colonizador como insuficiente no que dizia respeito à contratação e aos trabalhos prestados pela mão-de-obra indígena nas suas terras, esses homens começaram a buscar outros meios de recrutamento de índios para os serviços, partindo para a apropriação direta destes trabalhadores através de expedições predatórias ao sertão (MONTEIRO, 1994: 52-54).

O fato dos portugueses não conseguirem ―integrar as sociedades indígenas à esfera colonial sem antes destruí-las resultou na elaboração de formas de organização do trabalho historicamente novas‖, como foi o caso da escravidão indígena (MONTEIRO, 1994: 56). O profundo e intenso interesse de expandir a base produtiva colonial fez com que um contingente cada vez mais numeroso fosse necessário para dar conta das demandas daqueles homens e as expedições predatórias para o sertão surgiram como a alternativa viabilizadora deste projeto colonizador buscado pelos colonos, ao viverem a frustração que os aldeamentos jesuíticos representavam para o seu interesse econômico. Com a intensa demanda em relação a braços para trabalhar nas terras daqueles senhores, os modelos de apresamento foram sendo ampliados e aperfeiçoados, com um número cada vez maior de assaltos às aldeias circunvizinhas e a consequente migração de milhares de índios para as suas fazendas e sítios na condição de ―serviços obrigatórios‖ (MONTEIRO, 1994: 57-59).

Entretanto, essa maior número das expedições ao sertão não se deveu única e exclusivamente a maior demanda dos colonos pela mão-de-obra indígena. É necessário pensar essa questão da dinamização do apresamento e abastecimento de cativos indígenas na região

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planaltina, principalmente o ―surto bandeirante‖ entre 1627 e 16405

, para além da questão da estrutura econômica daquela sociedade, onde a escravidão indígena formava a principal base produtiva dos núcleos colonizadores. Os gêneros produzidos na vila de São Paulo de Piratininga, como se viu mais cima, não eram apenas destinados ao consumo interno, sendo parte considerável da produção destinada ao consumo de colonos das demais capitanias. E com o período de escassez vivido pelos núcleos coloniais do litoral da América portuguesa durante o estabelecimento do controle holandês sobre Pernambuco, a economia de plantação dos paulistas se transformou em um dos principais centros abastecedores desta região6. Logo, a essa questão estrutural ligava-se também uma questão conjuntural (SANTOS, 2010: 37-38), onde essa demanda cada vez maior de alimentos por parte das regiões da própria colônia brasileira teve influência direta na dinâmica da agricultura do Planalto, que necessitava de um contingente crescente de mão-de-obra indígena para dar conta desta produção.

E toda essa dinamização da economia planaltina que caminhava sobre as bases da escravidão dos ameríndios só fez recrudescer antigas rivalidades. Não foi porque, em finais do século XVI, o projeto jesuítico fracassou, que os padres da Companhia de Jesus iriam abrir mão dos ideais que eles possuíam a respeito do que deveria ser a colonização dentro da América portuguesa. O ideal de sociedade colonial destes homens, como se viu no tópico anterior, envolvia críticas à escravização dos ameríndios por parte dos colonos e o esforço por conferir aos nativos um lugar ―livre‖ dentro daquela comunidade política através dos aldeamentos. E essa disputa, já bem demarcada nos Quinhentos, se recrudescerá ainda mais nos Seiscentos.

E, concluindo, o efeito disso, dentro do âmbito local, foi o acirramento ainda maior desta rivalidade em um confronto que foi se tornando cada vez mais explícito. Os discursos de ambos os grupos iam se radicalizando e se tornando mais inflexíveis, de forma que a própria presença e as práticas dos seus membros se tornavam, por si só, uma ameaça para os indivíduos do grupo oposto. ―As diferenças irreconciliáveis entre as partes ocasionaram demonstrações de força de ambos os lados. Assim, diante das demandas dos jesuítas junto aos governos coloniais e ao Vaticano, que acarretaram novas medidas contra a escravidão indígena, os colonos não tardaram em responder, lançando mão da violência e expulsando [no

5Luiz Felipe de Alencastro afirma que as expedições militares organizadas pelos homens paulistas, neste

período, resultaram no apresamento de cerca de 100 mil indígenas. Seus principais alvos foram as reduções das províncias jesuíticas do Guairá e Tapes, e as missões de Itatim. Ver: ALENCASTRO, 2000: 192-194.

6Alencastro acredita que houve um desabastecimento da América portuguesa, tanto de produtos importados do

Reino, como produtos importados da África. E que isso se devia às guerras e azares das carreiras atlânticas, causadas, sobretudo, pelos conflitos contra os holandeses. Ver: ALENCASTRO, 2000: 194-196.

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ano de 1640] os padres da capitania de São Vicente‖ (MONTEIRO, 1994: 141-142). Na região do planalto paulista, onde esses dois projetos se chocaram de forma tão contundente, conformando essa oposição praticamente indissolúvel, apenas um poderia persistir fornecendo os paradigmas daquela colonização, o outro tinha que se retirar, nem que fosse à força. E o projeto vencedor, como as décadas seguintes evidenciariam, restringia ao indígena, dentro daquela sociedade, o lugar de cativo ou de dependente dos colonos que estavam ali estabelecidos.

Conclusão.

A história atlântica, como categoria analítica do campo da pesquisa historiográfico, procura fornecer um modelo teórico para auxiliar os historiadores em seus trabalhos investigativos. Para isso, enfatiza a importância de colocar o Atlântico como centro de gravidade das dinâmicas sociais que estruturaram a realidade vivida pelos seres humanos durante a época moderna. Eram inúmeras e recorrentes as trocas que ocorreram naquele período, tendo o Atlântico como base, e que envolviam os continentes africano, europeu e americano. Fossem essas trocas demográficas, sociais, culturais ou econômicas. Esse processo, segundo a história atlântica, definiu aquele mundo, moldou-o. E os historiadores que a defendem acreditam que ela é uma chave interpretativa importante para investiga-lo, compreende-lo. Colocar as trocas, e o oceano que as intermediava, como referência de análise possibilitaria, à investigação histórica, resgatar não apenas as estruturas daquelas sociedades, mas também suas relações, suas interdependências e o mundo do qual compartilhavam.

E, como espero ter deixado claro com o caso aqui analisado, a influência dessas circularidades atlânticas não atingia apenas as zonas litorâneas que delas participavam. Regiões que não eram abastecidas diretamente por essas trocas, pelo menos não de forma significativa, também foram atingidas pelas dinâmicas construídas dentro do mundo atlântico moderno. Mesmo vilas localizadas no interior dos continentes, como era o caso de São Paulo. Com a mudança dos fluxos de trocas atlânticas na primeira metade do século XVII, e a consequente maior demanda por abastecimento de gêneros alimentícios nas capitanias do norte, os colonos paulistas viram ali uma possibilidade de aumentar a produção daqueles gêneros e enriquecer com futuras trocas comerciais com homens daquelas capitanias. E, para isso, seria necessário dinamizar o número de expedições militares direcionadas ao sertão para o apresamento de ameríndios, pois apenas com o aumento do número de cativos indígenas na sua comunidade tal tipo de produção seria viabilizada. Contudo, tensões e conflitos já latentes

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com os jesuítas pelo controle da mão-de-obra nativa seriam igualmente intensificados. Oposição que já era claramente demarcada em inícios do século XVII, se tornaria intransponível a partir da década de 1630. E nesse embate que era, antes de tudo, entre projetos de colonização, venceu o projeto dos colonos, da escravidão e dependência indígena direta aos senhores paulistas. O Atlântico, dessa forma, envolvia bem mais do que as simples trocas que nele ocorriam. Os destinos dos mais diversos núcleos sociais da época moderna eram, direta ou indiretamente, por ele influenciados. Mesmo zonas continentais que se encontravam a quilômetros da costa. A compreensão do Antigo Regime, com isso, passa a depender de análises que levem essas influências em consideração. Que entendam que o mundo moderno era também, de uma certa forma, um mundo atlântico.

Referências

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