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DIREITO PENAL II. É assim unânime na doutrina que o Direito penal é hoje um Direito penal do facto, abarcando um duplo sentido:

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DIREITO PENAL II

TEORIA GERAL DO CRIME

A teoria geral da infração não surge, nas suas formulações tradicionais, como uma teoria da decisão penal, mas antes como uma teoria sobre a definição do crime. Assim, o que a teoria europeia de inspiração germânica costuma propor é o estudo da essência do crime a partir das características comuns a todas as figuras de crime contidas num código penal, propondo que se desenhem através dessa essência e dessas categorias os passos lógicos que conduzirão o intérprete no processo de qualificação de um facto concreto como crime.

Admite-se assim que todas as figuras previstas no CP como crimes – homicídios, roubos, violações, etc. – justificam a aplicação da pena respetiva, na medida em que são espécies de um mesmo género, o crime.

É assim unânime na doutrina que o Direito penal é hoje um Direito penal do facto, abarcando um duplo sentido:

1. Toda a regulamentação jurídico-penal liga a punibilidade a tipos de factos singulares e à sua natureza, não a tipos de agentes e à sua personalidade;

2. As sanções aplicadas ao agente constituem consequências daqueles factos singulares e neles se fundamentam, não são formas de reação contra determinado tipo de personalidade. Existem duas formas de definir o conceito:

a) A partir das qualidades dos entes que integram o conceito – definição em compreensão; b) Elencando os elementos relacionados com determinada categoria – definição em extensão.

Este grupo de objetos permite a ideia de determinada evolução, uma vez que determinado ente que surge posteriormente à criação deste grupo pode vir a integrar o mesmo, por corresponder a uma experiência semelhante à dos grupos originais.

Nesta aceção, deve ser dito que a construção dogmática do conceito de crime é, em última análise, a construção do conceito de facto punível.

O facto constitui então o fundamento e o limite dogmáticos do conceito geral de crime. A tentativa de apreensão dogmática do conceito jurídico-penal de facto ocorreu quase sempre, durante os dois últimos séculos, na base de um procedimento categorial-classificatório, através do qual se toma como base um conceito geral – o conceito de ação. Tal significa alcançar uma sua compreensão unitária através da consideração sucessiva dos seus elementos constitutivos através de uma sua compreensão lógico-sistemática.

Assim se chega à compreensão do facto – e, portanto, de todo e qualquer crime – como conjunto de cinco elementos:

1) Ação – comportamentos dominadas ou domináveis (no caso de negligência) pela vontade; 2) Tipicidade;

3) Ilicitude – não são justificados excecionalmente pela realização de valores juridicamente relevantes (como poderia acontecer, por exemplo, num homicídio em legítima defesa); 4) Culpa – não são desculpáveis por força de um qualquer estado psicológico de

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necessária uma certa medida de conhecimento, de capacidade e de liberdade de motivação pela norma.

5) Punibilidade.

 Evolução histórica da doutrina geral do facto punível

Distinguem-se três grandes períodos ou fases de evolução da doutrina do facto punível: ➢ Escola Clássica de BELING e VON LIZST

Tem uma notória influência naturalista e juspositivista. A conceção clássica assenta numa visão do jurídico decisivamente influenciada pelo naturalismo positivista que caracterizou o monismo científico próprio de todo o pensamento da segunda metade do séc. XIX.

O problema de que se ocupava esta escola era o de uma definição de crime que permitisse aos tribunais a qualificação dos factos como crime – o que está em causa é um conceito aparente (é apenas uma forma lógica que nos permite integrar e arrumar conteúdos conhecidos e dispersos).

Também o direito teria como ideal a exatidão científica própria das ciências da natureza e a ele deveria incondicionalmente submeter-se de modo a que, da mesma forma, o sistema do facto punível haveria de ser apenas constituído por realidades mensuráveis e empiricamente comprováveis, pertencessem elas à facticidade objetiva do mundo exterior ou antes a processos psíquicos internos (subjetivos).

A atividade criminal, para a escola clássica assenta no seguinte conceito: o crime deve ser uma ação típica, ilícita e culposa. A teoria clássica causal-naturalista concebeu este conceito de crime a partir de um método categorial-classificatório.

Esta definição acaba por se manter no direito penal continental, no entanto, o conteúdo dos elementos e a forma como os mesmos se relacionam terão mudado, não sendo sempre os mesmos. FERNANDA PALMA entende que parece ser correta a ideia de crime como conceito prático e funcional e não estático.

A bipartição defendida pela escola clássica assentava em duas vertentes distintas, que formariam o conceito de crime:

(a) Vertente objetiva – agrupa os elementos constitutivos da tipicidade e ilicitude, sendo que a ação seria o movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior, ligada causalmente à vontade do agente. Isto é, a vontade seria a chave mestra do conceito de ação aqui descrito, sendo a ação típica sempre que fosse lógico-formalmente subsumível a um tipo legal de crime, numa descrição completamente estranha a valores e a sentidos. Ação essa que se tornaria ilícita se no caso não houvesse uma causa de justificação, ou seja, uma situação que a título excecional tornasse a ação lícita, aceite ou permitida pelo Direito, como é o caso da legítima defesa.

(b) Vertente subjetiva – concentra-se na categoria da culpa. A ação típica e ilícita tornar-se-ia em ação culposa sempre que fosse possível comprovar a existência, entre o agente (imputável) e o facto objetivo, de um nexo psicológico, suscetível de legitimar a imputação do facto ao agente a título de dolo (conhecimento e vontade de realização do facto) ou de negligência (a conduta adotada não foi suficiente para impedir a prática do facto, deficiente vontade impeditiva de prever corretamente a realização do facto).

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3 ➢ Escola Neoclássica

Os seus fundamentos devem procurar-se no normativismo jurídico de raiz neokantiana das primeiras décadas do séc. XX. Sustentam que o importante no sistema são os valores por referência aos quais o sistema é construído e trabalhado; defende então a autonomia dos valores face à realidade empírica. Defende o tipo como fundamento do ilícito, mas mantém o caráter objetivo do mesmo, isto é, não inclui momentos de violação do dever, o dolo ou a negligência, senão em certos casos em que o tipo inclui explicitamente momentos subjetivos, como a exigência de uma especial intenção.

As causas de justificação são elementos negativos do tipo e a culpa tem uma componente psicológica, contida no dolo ou na negligência, e uma componente normativa, a censurabilidade ético-social do agente.

Escola Finalista de WELZEL

É orientada por uma conceção ôntica ou regional-ontológica do direito, ligada à fenomenologia e a uma filosofia material dos valores.

Mantém a perspetiva de um tipo indiciador e descritivo da Escola Clássica, mas inclui nele o momento subjetivo da ação, por força do conceito de ação final que propugna. Retira, assim, da culpa o dolo e torna a culpa um mero juízo normativo de censurabilidade do agente, esvaziando-a do objeto factual. A ilicitude é constituída pelo desvalor da ação e do resultado, sendo portanto um juízo normativo, mas também objetivo-subjetivo.

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4 Esquematizando as três Escolas:

Clássica Neoclássica Finalista

Ação Causal (conceito biológico de vontade; alguém condiciona e altera exteriormente o mundo); conceção tão ampla que permite ab initio considerar comportamentos como o da coação moral relevantes; MAS: os comportamentos omissivos e outros comportamentos

socialmente significativos eram, desde logo excluídos. Para que haja ação basta que exista a vontade como causa de um comportamento. A ação final orienta-se pela escolha de um determinado agente. Para esta Escola, o primeiro juízo de verificação do facto basta-se com uma constatação mínima de voluntariedade. (*1) Social Desvaloriza o conceito de ação; Preocupa-se mais com os significados sociais e culturais das ações; Ação como comportamento socialmente significativo; (*2) Final HANS WELZEL Valoriza o conceito de ação; O homem dirige finalisticamente os processos causais naturais em direção a fins mentalmente antecipados, escolhendo um meio para tal. Criticava o conceito amplo da escola clássica, considerando que este não exprime a especificidade do comportamento humano; Objetivo: procede a uma triagem fundamental de distinção dos comportamentos especificamente

humanos e aqueles que não o são; será aquela que exprima a liberdade de decisão do agente; Reconduz a negligência a uma finalidade potencial (à que poderia ter existido no sentido de evitar o resultado criminoso; WELZEL indica que a liberdade poderá ser potencial (o agente tinha condições de evitar aquele resultado) (*1)

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5 Típica A ideia de tipicidade não é

totalmente inovadora em BELING; corresponde a um tipo/ao conceito de Tatbestand de que BELING fala; Todavia, em BELING, numa primeira fase (teoria do crime; Die Lehre der Tatbestand) que é novo é uma certa definição de tipo, sendo para BELING o tipo um elemento autónomo do conceito de crime, assumindo uma função: a verificação da tipicidade é o primeiro elemento que se tem que verificar para se dizer que aquele matéria de facto corresponde a um crime;

O tipo para BELING é o tipo ilícito que é a parte objetiva do tipo que exprime ou que descreve a ação proibida – é, basicamente, a tipicidade objetiva;

Não mistura o objeto da valoração com a valoração do objeto (Importante). (*3)

Já não se faz uma descrição

formal-externa de

comportamentos, mas trata-se de uma unidade de sentido socialmente danoso, como comportamento lesivo de bens juridicamente protegidos, para os quais relevam não só elementos objetivos como subjetivos. (*4)

É logo na tipicidade que tem de se verificar se houve dolo;

A tipicidade vem constatar a finalidade da ação. O juízo do tipo indiciador é sempre um tipo descritivo; contrariamente, aqui o tipo é constituído por uma vertente objetiva (elementos descritivos do agente, da conduta e

do seu

circunstancialismo) e por uma vertente subjetiva (o dolo ou, eventualmente, a negligência).

Sobra apenas para a culpabilidade a censurabilidade – o comportamento é ético-socialmente

censurável? (não o dolo e negligência uma vez

que os nexos

psicológicos já estão tratados); é apenas um juízo negativo de valor.

Ilícita A ilicitude passa não só pela antinormatividade daquele comportamento como por não existirem causas de exclusão de ilicitude (como aqueles que vêm previstas no Código Penal (CP) ou outras disposições do OJ); Trata-se aqui de um juízo valorativo e não já meramente descritivo: facto ilícito é o que contradiz a Ordem Jurídica; atribui-se à tipicidade um mero papel de indício dessa contradição.

(*4) Só da conjugação das

duas vertentes (objetiva e subjetiva) da tipicidade pode resultar

o juízo de

contrariedade da ação à OJ, o juízo de ilicitude (que não será causal, mas sim pessoal); A ilicitude deixou de se basear no desvalor do resultado e passou a basear-se no desvalor da ação.

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6 Culposa Análise da parte subjetiva do

comportamento (nexos psicológicos estabelecidos entre o agente e o seu comportamento): a culpabilidade, que tem como elementos subjetivos o dolo e a negligência;

Volta a verificar-se se houve vontade com sentido doloso;

Comportamento de

inimputáveis: apontam que os comportamentos dos inimputáveis não seriam culposos. FIGUEIREDO DIAS critica tal solução, pois também o inimputável pode agir com dolo ou negligência. A culpabilidade é remetida para os momentos psicológicos; censurabilidade ética-social para além do dolo e da negligência. Há aqui um juízo valorativo importante a fazer que é o juízo de censura.

Temos agora apenas um momento de valoração de se o comportamento do agente é merecedor de censura ou não; a culpa já está despida dos elementos subjetivos (que passaram para o tipo);

Passa a ser um mero juízo de desvalor.

(*1) O conceito de ação causal não tinha as exigências para cumprir o princípio da legalidade (não incluía omissões); não tinha uma valia sistemática para gerar, por força da sua organização interna, critérios e soluções para problemas, embora tivesse uma valia classificatória razoável.

Pelo contrário, o conceito de ação final pretendia ser mais racional do ponto de vista das finalidades da responsabilidade penal porque procurava identificar como base da determinação da responsabilidade criminal as características do comportamento do humano que justificariam a responsabilidade penal.

Em termos de valia sistemática e de conceito, que permitia inferir outros conceitos ou critérios que permitem resolver problemas de responsabilidade penal, era um conceito com mais valia sistemática. No entanto, os críticos (e até WELZEL o reconheceu) acentuavam que se este conceito assentava na vontade, ainda assim não abarcava um grande valor classificatório e, nesse sentido, perguntavam para que é que servia este conceito que parece que se moldava apenas pelo comportamento ativo. HANS WELZEL entende que talvez não se tivesse exprimido com precisão, uma vez que nunca utilizou o conceito de fim como conceito associado a uma consciência refletida de um objetivo e à produção consciente de um objetivo e dá o seguinte exemplo: a criança que constrói castelos de areia, também há aqui uma ação final MAS na realidade para que é que se está a construir castelos de areia? Aqui não se pode dizer que não há uma conduta voluntária, mas não estamos diante de um comportamento com determinado fim ou meta. A ideia de fim para WELZEL era antes uma ideia de condutibilidade/de autonomia (no sentido de ser o agente que conduz até aos resultados e consequências o seu comportamento) (de condução final do comportamento). A ação especificamente humana é aquela que é controlável e conduzível pelo agente (que este controlou ou pode controlar).

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Assim, ambas as Escolas propõem como condição primeira da qualificação de um facto como crime a sua natureza de comportamento voluntário exteriorizado. A diferença essencial entre as duas consiste na compreensão da vontade e do conceito de voluntário significativos para o Direito penal:

(a) Para a Escola Clássica, a vontade compreende-se como causa de movimentos corpóreos numa perspetiva naturalística. O primeiro juízo de verificação do facto basta-se com uma constatação mínima de voluntariedade.

(b) Para a Escola Finalista, a vontade é uma especificidade do comportamento humano, correspondendo à condução/condutibilidade para fins ou objetivos concretos previamente selecionados. O primeiro juízo de verificação do facto exige uma ação final (real ou potencial). Quanto às omissões, WELZEL viria a concluir que ações reais e possíveis são iguais na respetiva dignidade ontológica, sendo a possibilidade efetiva de ação o momento pré-valorativo e objetivo em que se apoiaria o crime omissivo, para além da violação do dever.

(*2) Porque é que a escola neoclássica não se ocupa tanto com o conceito de ação? Há uma fonte filosófica – o pensamento de BELING e VON LIZST – exprimia um pensamento científico. Esta visão é completamente posta em causa pela Escola Neoclássica desde meados do séc. XIX

O papel de KANT na chamada teoria de conhecimento: superação de uma grande distinção de conceções de conhecimento:

a) Conceção racionalista – tem o seu apogeu em DESCARTES, que explica todo o conhecimento em função da razão. Os racionalistas fazem uma separação total entre a razão e a experiência. b) Tradição de LOCKE – toda a fonte do conhecimento é a experiência. Os empiristas dão um

papel bastante limitado à razão, dando ênfase à experiência.

KANT demonstra que o conhecimento depende de vários fatores, defendendo que o conhecimento não se pode alcançar nem sem a razão nem sem os dados da experiência. Na teoria da razão pura vem defender que o conhecimento depende de determinadas fórmulas, como o espaço e o tempo. O produto do conhecimento é uma modelação da realidade.

A ideia fundamental de KANT é a de que não podemos saber se existe Deus a partir da experiência, nem a partir das formas da razão pura. Temos antes de recorrer a uma razão prática que é chamada a intervir e a decidir como decidir a vida. É esta razão prática que estimula a necessidade de conduzir a vida e que suscita determinadas formas. Há um certo pragmatismo.

Os neokantianos vêm reconhecer que o conhecimento no Direito não tem a ver com a realidade sensível diretamente, mas também acabam por admitir que todo o conhecimento, seja nas ciências da natureza, seja nas ciências do espírito, normativas, é configurado pela razão do sujeito do conhecimento, mas esta configuração é produtiva e constitutiva, são as formas da razão prática que vêm retirar do pensamento de Kant esta ideia de autonomia da razão.

(*3) A tipicidade focava-se na espécie e no tipo de mudança exterior que ocorreu/objetivamente causada. A tipicidade era realmente elemento do crime, enquanto se focava na estrutura objetiva do facto causal.

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BELING teorizou, numa primeira fase, a tipicidade como um verdadeiro juízo autónomo; o crime seria, antes de mais, o facto (ação) análogo ou correspondente ao facto descrito na norma, que se idealizou como ilícito e culposo. A tipicidade seria uma qualificação lógica e classificatória do facto criminoso.

O tipo era também descritivo, de modo que a constatação da adequação do facto à lei era um mero juízo de facto sem ponderação valorativo.

A escola clássica entendia então o crime como um comportamento externo-objetivo, que fosse adequado à descrição do facto na lei penal, relativamente ao qual não existisse qualquer norma permissiva e em que o agente tivesse vontade, num sentido psicológico, de realizar o facto. A tipicidade seria então um elemento do crime, a par da ilicitude e da culpa.

BELING veio entender a tipicidade, numa segunda fase, não como uma valoração ou qualidade do facto criminoso, mas apenas um enquadramento ou delimitação da ilicitude; o tipo passou então a ser visto como a necessária referência de ilicitude (contrariedade ao Direito), um quadro legal da descrição do facto; MAS de facto na primeira fase – a mais marcante – realmente a tipicidade era um elemento do conceito de crime que correspondia à parte objetiva da ação.

Quanto à culpabilidade, para ela se remetiam os nexos psicológicos e a vontade do agente. A culpabilidade seria descritiva.

(*4) Os neoclássicos reconstroem toda a definição do crime a partir da fusão entre a tipicidade e ilicitude. O ponto de partida dos neoclássicos é a contrariedade a normas jurídicas.

Na sua construção sistemática, não há lugar à autonomização de um tipo indiciador do comportamento concreto à norma porque para eles a afirmação da tipicidade é já a afirmação da antinormatividade (é objetiva; os elementos subjetivos não cabem na tipicidade). A ideia é a de que, se o comportamento é típico, é proibido, porque coloca em causa um valor do Direito. A tipicidade é assim a razão de ser da ilicitude.

Os autores neoclássicos consideram que o tipo legal não é mais do que uma valoração de comportamentos lesivos de bens jurídicos e que é através da descoberta dessas valorações que se atinge o resultado final da qualificação jurídica do facto.

Enquanto a teoria clássica da ilicitude é adequada ao caráter secundário e sancionatório do Direito penal, a teoria neoclássica, com o seu normativismo penal, é a expressão de valorações específicas do legislador penal na incriminação das condutas e de uma justificação autónoma das normas penais. Estes autores, contudo, tiveram que reconhecer que há determinados casos em que esta visão só é possível em determinados tipos de crime, uma vez que em bom rigor, os elementos subjetivos não estão todos na culpa (exemplo típico: crime de furto – este tipo inclui desde logo a própria intenção de apropriação).

As causas de exclusão de ilicitude têm como papel, uma vez justificado o facto, excluir a valoração desse facto como contrário à OJ.

Como os neoclássicos não distinguem o tipo da ilicitude, surge um problema em termos de metodologia: numa primeira avaliação, o Tribunal vem reconhecer que há indícios de um crime de

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homicídio e, num segundo momento, esses indícios podem ser não confirmados mas sim infirmados porque, por exemplo, há uma legítima defesa.

MAS: para os neoclássicos, as causas de exclusão de ilicitude figuram na análise da tipicidade e assim, são elementos negativos do tipo.

FERNANDA PALMA sustenta que a tipicidade já contém um momento de imputação que pressupõe uma avaliação comparativa do sentido do facto legal e o facto concreto; contudo, é também verdade que a tipicidade não pode ser utilizada apenas como produto de uma valoração em concreto. Deve haver um primeiro momento, na qualificação de um facto como crime, em que se averigua a própria possibilidade de uma ulterior imputação. Afirmar a tipicidade não deve, assim, ser o mesmo que imputar definitivamente, mas verificar simplesmente os pressupostos lógicos e fáticos de uma possível (e ulterior) imputação, realizando uma leitura social do facto e analisando a sua coincidência lógica e social com o facto descrito na norma.

Em comum às três Escolas ficaram os tipos de categoria, a arrumação dos elementos psicológicos no tipo e a aceitação do ilícito pessoal.

O CONCEITO DE AÇÃO 1. Ação Final:

Os finalistas pretendiam realizar, através da técnica de imputação penal do crime, um modelo de responsabilidade baseado na ação livre e responsável dos indivíduos, em que eles agiriam em face das normas que lhes eram dirigidas, orientando assim a sua conduta.

A ação final é então baseada num relacionamento entre o indivíduo e a norma, tendo esta a função de o orientar para respeitar os valores jurídicos. assim, só as ações finais seriam objeto possível de proibição.

A ação final não dependerá, pois, de contextos culturais ou sociais, sendo antes vista como estrutura empiricamente observável, sendo o juízo de culpa dependente de critérios ético-sociais.

FIGUEIREDO DIAS critica este conceito final de ação, por não cumprir a sua função primária de classificação e por não abarcar a totalidade das formas básicas de aparecimento do facto punível – abrange apenas crimes dolosos de omissão, excluindo os crimes de omissão e de negligência.

2. Conceito Funcionalista:

Há já no pensamento finalista um sinal de funcionalismo, que concebe a definição do crime em função dos fins da sociedade ou de uma necessidade de estabilização das expectativas sociais.

O funcionalismo está preocupado em trabalhar o crime por referência aos fins do sistema. O pensamento funcionalista, aplicado à teoria geral da infração como uma nova opção de pensamento sistemático, reconstrói a lógica dos sistemas (clássico, neoclássico e finalista) através da ideia de adaptação funcional da própria definição de crime à tarefa de integração no sistema dos seus destinatários.

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(1) Teleológico (ROXIN e FIGUEIREDO DIAS) – para ROXIN, os fins do sistema são os fins das penas, sobretudo os fins de prevenção, à luz dos quais as categorias vão ser pensadas e trabalhadas. Assim, por exemplo, a inclusão do dolo no tipo justifica-se pela função (preventiva) de motivação de condutas atribuída à norma que justifica um ilícito pessoal. Doloso será o comportamento adequado à pena de dolo e cujas características são fixadas na base de decisões valorativas político-criminais e não resultam de quaisquer características ontológicas ou mesmo definidas socialmente do agir humano. Assim, o dolo eventual fronteiriço da negligência, corresponde a uma decisão pela possível lesão do bem jurídico, como expressão de uma superior motivabilidade pela norma e de uma consequente justificação de uma prevenção especial e geral mais intensa.

Diferentemente do funcionalismo sociológico, em que os valores do sistema não protagonizam as suas figuras e soluções, este funcionalismo coloca os conteúdos valorativos de um determinado sistema penal no plano central. A necessidade da pena, a prevenção especial, a dignidade da pessoa e os valores constitucionais do Estado de Direito são os crivos, os tópicos que decidem os critérios da responsabilidade e da graduação da pena.

A categoria geral da ação ou do comportamento humano não é o ponto central do sistema. É o comportamento típico, interpretado segundo os valores gerais do sistema, que expressará os valores particulares da situação concreta.

Este funcionalismo teleológico que, numa vertente mais moderada, integra o pensamento de FIGUEIREDO DIAS, tende a não extrair qualquer operatividade para as categorias de imputação penal de outros sistemas de construção ou definição da realidade.

(2) Sistémico (JAKOBS) – já para JAKOBS, o fim essencial é o de garantir a vigência das próprias normas. O ilícito pessoal já não tem a ver com a ação final. Para JAKOBS, o comportamento doloso define-se pela avaliação feita pelo agente, no momento de ação, de que a realização do tipo como consequência da ação não é improvável, prescindindo de qualquer relevância autónoma de momentos psicológicos (desejos ou estados mentais) ou, ainda, de momentos de atitude (decisão pela lesão de bens jurídicos); ou seja, a imputação objetiva exige que o agente crie um risco proibido.

JAKOBS afirma ainda que os autores negligentes afetam menos a validade da norma do que os dolosos, pois a negligência resulta da incompetência do autor para servir a sua própria esfera, não podendo avaliar, dada a sua desatenção, as próprias consequências do seu agir. Já para o autor doloso, as consequências fáticas e lesivas da sua ação são aceitáveis e a norma jurídica reguladora é diretamente posta em causa pela natureza da própria conduta.

O que resulta do critério de JAKOBS é que a função de preservação da validade das normas justificará, em situações concretas, que se prescinda de qualquer avaliação da atitude segundo critérios de valor (bem/mal) próprios da ética, admitindo-se a qualificação do comportamento como doloso, em última análise, onde a atitude do agente não revele uma carga ética muito intensamente negativa (como, por exemplo, não seria excluído o dolo eventual no homicídio provocado por um foguete mal lançado para o ar, numa festa desportiva, que mata, com um grau de probabilidade baixo, o espectador no outro extremo do estádio, num contexto motivacional próprio de uma festa de claque).

O critério de JAKOBS é o da evitabilidade: olhamos para o agente concreto e pensamos “se houvesse contramotivação (motivação de respeitar a norma), o agente podia ter atuado de

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maneira diferente da que atuou?”. Os comportamentos penalmente relevantes são aqueles que a pessoa podia ter evitado; os que não podia ter evitado não colocam a norma em causa.

FERNANDA PALMA – se o funcionalismo sistémico é redutor, porque aniquila as questões sobre as preferências ou opções normativas, retirando à decisão jurídica o seu nível tradicional de fundamentação, o funcionalismo teleológico incorre, se levado às últimas consequências, numa auto construção dos valores do sistema penal, perdendo igualmente a possibilidade de integrar no nível ético-jurídico a contribuição de outras experiências de pensamento.

No funcionalismo de LUHMANN, que mais tem influenciado o pensamento jurídico, a realidade (ações, pessoas, instituições, objetos) é toda ela reduzida a um sistema complexo de interações, apto a realizar determinadas funções exigidas pelo ambiente em que se integra. Assim, é o papel ou a função que define o objeto de conhecimento, que o cria enquanto tal, de modo que a leitura do real não é um retrato de entidades tal como estas se apresentam ao sujeito de conhecimento, mas depende de certo modo dos próprios critérios e perspetivas através das quais são conhecidas.

Este funcionalismo radical depende de uma perspetiva epistemológica diferenciada da que classicamente subjaz à teoria dos sistemas no Direito penal: o funcionalismo altera a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento e valoração pressuposta pelas orientações anteriores, na medida em que não concebe a realidade fora de um determinado modelo explicativo.

Não se trata de uma anteposição do ser ao ser (como pretende o ontologismo), nem do dever-ser ao dever-ser (como pretendeu o neokantismo), mas sim de uma determinação do dever-ser, neste caso a realidade das normas, pela adscrição de papéis e funções.

O funcionalismo, diferentemente do finalismo, não procura o modelo de comportamento livre, racional e vinculável – condicionante da implantação de uma ética de responsabilidade – mas constata que o subsistema penal, por ter a função de “estabilização contrafática das expectativas dos destinatários do sistema”, tem a sua validade ditada pelo sistema social, isto é, tem que apurar os seus critérios de atuação de acordo com essa mesma função para cumprir o desígnio da sua existência. Mas o funcionalismo, tal como o finalismo e o sistema neoclássico, tem uma lógica sistemática totalitária e reducionista quanto aos critérios de determinação da responsabilidade. O funcionalismo criou o seu modelo de soluções a partir da ideia de que uma solução disfuncional (que não serve a estabilização das expectativas do sistema) não é racionalmente defensável e não deve ser proferida. O funcionalismo não apela a uma legitimação extrínseca ao sistema, como um conjunto de valores superiores, mas apenas à necessidade pressuposta de preservação do sistema.

Prescinde da fundamentação no sentido próprio, mas ao fazê-lo, o funcionalismo mutila a necessidade imperiosa de critérios extrínsecos de fundamentação que permitam exigir o cumprimento de norma ou que a ela sujeitemos, isto é, suprime a necessidade de validar substancial e discursivamente o Direito nas sociedades democráticas respeitadoras dos direitos fundamentais e num certo direito à justiça, como se a ética não fosse igualmente uma necessidade humana e social e uma condição de aceitabilidade do sistema (FERNANDA PALMA).

3. Conceito Negativo:

Alguns autores pretenderam, partindo dos mais diversos supostos básicos, alcançar um conceito geral negativo de ação: “a ação no Direito penal é o não evitar evitável de um resultado”. Pensaram

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assim ter conseguido uma base sobre a qual se pode construir uma doutrina geral do facto, do ativo como do omissivo, do doloso como do negligente.

Parece claro, contudo, que sob qualquer uma das múltiplas formulações que o aludido pensamento pode assumir, a caracterização só abrange os chamados “crimes de resultado” e não os de “mera atividade” ou “mera omissão”, não cumprindo assim a função de classificação (pois não abrange todas as formas possíveis de aparecimento do comportamento punível).

O conceito, deste modo delineado, tem a ver com a doutrina da imputação objetiva e, por conseguinte, com problemas do tipo e não com a ação como tal. Poder-se-ia ainda apontar que este conceito operaria a pré-tipicidade da ação e faria perder a esta por inteiro a sua função de ligação.

4. Conceito Pessoal de Ação:

ROXIN veio ensaiar uma nova tentativa de construção de um conceito geral de ação capaz de realizar a totalidade das funções sistemáticas que dele se esperam. Um tal conceito pessoal de ação residiria em ver esta como “expressão da personalidade”, em abarcar nela “tudo aquilo que pode ser imputado a um homem como centro de ação anímico-espiritual”.

Este conceito normativo de ação cumpriria integralmente as funções de classificação, de ligação e de delimitação que dele se esperam; além de que o cariz pessoal de que se reveste teria a decidida vantagem de o pôr de acordo (função de definição) com uma doutrina pessoal do ilícito que deve na verdade sufragar-se.

Críticas (FIGUEIREDO DIAS):

a) O comportamento só pode muitas vezes, sobretudo ainda uma vez no campo da omissão, constituir-se como “expressão da personalidade” na base de uma sua prévia valoração como juridicamente relevante, também aqui se antecipando, nesta parte, a sua tipicidade e perdendo o conceito, nesta precisa medida, a sua função de ligação.

b) Não parece seguro que o conceito pessoal de ação possa cumprir capazmente a sua função de delimitação, uma vez que não é o conceito apriorístico de ação que cumpre a função de delimitação, antes são os resultados da delimitação que se reputam corretos, as mais das vezes obtidos em função das exigências normativas dos tipos, que depois vão ser atribuídos ao conceito, ao seu conteúdo e aos seus limites.

5. Teoria da Ação Comunicativa, Teoria Da Linguagem e a Racionalidade Interssubjetivamente Determinada (HASSEMER, FLETCHER, etc.):

Existe ainda um esforço para suscitar um novo impulso epistemológico no pensamento penal europeu, a partir dos desenvolvimentos da filosofia da ação e da teoria da sociedade.

A ideia mínima de um tal enquadramento teórico é a rejeição de uma racionalidade puramente jurídica e a constante imbricação da realidade social no Direito como instrumento da interpretação do Direito existente e da sua reconstrução valorativa.

A ação não é vista como um puro facto, uma substância ou um substrato físico-comportamental, mas não é também uma mera construção do sistema jurídico. Surge como interpretação normativa ou construção normativa (através das regras sociais) do mundo.

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Aparentemente, este conceito de ação não é mais do que a ação social que a teoria neoclássica viria a adotar. Todavia, neste entendimento de ação social está implicada uma inversão entre o método e o objeto do conhecimento relativamente à teoria da ação social neoclássica: o objeto do conhecimento não é já a determinação das características essenciais comuns a todo o comportamento com o valor de ação a partir de significado social, mas antes as regras da linguagem social (e dos respetivos contextos) que permitem designar validamente como ação (ou ação de um determinado tipo) um certo comportamento, num dado contexto.

Assim, tal como quanto à conceção de ação social, investigar-se-á quais as regras sociais que distinguem uma ação de um determinado tipo (ofensa corporal) de um puro facto ou de uma ação de um outro tipo (por exemplo, de uma intervenção cirúrgica); todavia, serão essas mesmas regras sociais, o seu modo de produção e a sua relatividade, a principal finalidade da análise e não a dedução a partir delas das características em geral dos comportamentos humanos.

A teoria da ação com interesse para o Direito penal seria, neste sentido, a teoria sobre as lógicas, as regras e as condições da comunicação entre os sujeitos sobre o que acontece, bem como a teoria da comunicação pelo Direito de tais lógicas, da qual derivariam as condições de validade das próprias designações das condutas penais como condutas de um certo tipo (ação, omissão, dolo, negligência, autoria, comparticipação, etc.).

Teoria dos Sistemas:

Quando se fala em sistemas, fala-se num sentido lógico. Estes não pretendem dizer o que é o crime, mas sim fazer uma escalpelização jurídica e uma organização lógica dos vários elementos para construírem um método para prossecução de determinados fins.

“Realidade” surge já com um sentido próprio e autónomo da perspetiva do Direito, mas que se impõe à perspetiva do Direito. A ideia de o nosso sistema estar dependente de uma estruturação da própria realidade social que se impõe aparece já um pouco em WELZEL: ação final é a estrutura ontológica em que assenta o agir humano livre e responsável e pode ser suporte de um conceito de crime destinado à censurabilidade das penas.

O estado psíquico interno dos agentes não é importante, na medida em que o que é essencial é o comportamento livre e responsável dos agentes

O ponto essencial numa teoria dos sistemas contemporânea é o de que os sistemas são formas de organização da própria realidade, quer no mundo natural quer no mundo social, que são independentes do sujeito do conhecimento; são, muitas vezes, espontâneas. A realidade constitui sistemas organizativos. A realidade organiza-se, por si, em sistemas, independentemente do nosso conhecimento; ou seja, a realidade tem padrões, formas de organização espontâneas.

LUHMANN propõe que se possa reduzir a complexidade dos outros sistemas através do Direito. Se o Direito é visto como um subsistema social, tendo como papel a redução da complexidade dos outros sistemas, então os elementos que constituem o Direito deverão ser identificados na medida em que sejam orientados para essa função do Direito.

O conceito de ação vai ser definido ou procurado, não para apreender uma realidade ontológica ou para estabelecer a relação entre as finalidades do Direito penal e o mundo social, mas como um conceito basilar no sistema que permita identificar a distinção entre ações legais e ilegais; essas

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distinções são as que exprimem a função do próprio sistema penal na sociedade. É uma espécie de estabilização contrafática das expectativas: as normas servem para assegurar as expectativas dos agentes que agem num sistema.

Problema: um conceito base de ação deve incluir elementos de causalidade, de consciência? Ou tem antes de ser configurado a partir de outra perspetiva?

A tendência do funcionalismo sistémico é a de abstração e de extrapolação dos elementos de causalidade, de consciência, de estados mentais, para categorias de resposta exigíveis pelo sistema, no sentido de ele funcionar. Uma dessas categorias será a da evitabilidade: interpretação dos comportamentos que poderiam ser motivados pelas normas. Quando existe uma evitabilidade que não se concretiza, o comportamento relevante está preenchido, podendo ser responsabilizado. Duas ideias:

1. Mesmo que o observador não utilize estas categorias, o que é certo é que não vai compreender a realidade social, nem vai fornecer ao sistema respostas que permitam que se mantenha ou que evolua.

2. Os sistemas em que a vida se organiza são fechados. Quanto mais complexos são, mais fechados são. Ou seja, são autopoiéticos. Os sistemas têm como principais características a comunicação e a ação; e quando atingem um determinado nível de complexidade, tornam-se sistemas de organização autoconscientes.

Um sistema evoluído, consciente, autorreferencial, é aquele que não tem nenhuma relação direta causal com as condições gerais exteriores da vida (económicas, políticas, etc.). No caso do Direito, este cria conceitos desligados de outros sistemas, tem os seus procedimentos próprios (procedimento legislativo, etc.) e resolve os conflitos sociais através da sua própria linguagem, dos seus próprios procedimentos.

 Função de delimitação da ação

Em alguns casos, a função de delimitação leva a respostas iguais por todas as Escolas relativamente à exclusão de certos comportamentos do conceito de ação: atos reflexos e coação física (não são comportamentos relevantes).

Há um aspeto que FERNANDA PALMA rejeita quanto às Escolas e o Funcionalismo de JAKOBS – o facto de serem excessivamente classificatórias, no sentido de que procuram instituir um sistema em que a ação tem determinado conteúdo, a tipicidade tem outro, a ilicitude outro, etc.; o que tende a orientar os intérpretes a utilizar o conceito de ação em termos classificatórias.

Não podemos resolver um problema suscitado apenas com um conceito de ação: antes de procedermos a uma classificação, temos de saber o que pretendemos com a atribuição de responsabilidade penal; há um diálogo entre os valores do sistema e uma certa organização da realidade socialmente significativa, não em função do Direito, mas sim para além do Direito.

Um comportamento a que se justifique uma atribuição de censura pessoal requer que tenha um determinado conjunto de requisitos que não são criados ou atribuídos pelo sistema, mas que imperam noutras abordagens em termos de linguagem social. O Direito tem de comunicar com outras linguagens sociais, com outros critérios de interpretação dos comportamentos sociais. Esta é uma visão anticlassificatória e antissistemática.

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15 Atos reflexos:

São reações imediatas em que não intervém a consciência; são atos em que intervêm aspetos periféricos do sistema nervoso, em que o cérebro apenas superficialmente intervém. É quase como uma reação fisiológica Ex: agitar o braço na sequência de uma picada de abelha.

Distinguem-se dos atos instintivos – atos em que há uma possibilidade, ainda que remota, de controlo. Há um querer primitivo, e uma possibilidade de inibição pelo agente. O agente pode “treinar” para não reagir de determinada forma.

Sonambulismo e hipnotismo:

A questão em torno dos sonambulismos e hipnotismos trata de saber até que ponto as ações durante a hipnose e o sonambulismo podem ainda ser expressivas de uma vontade do agente.

Relativamente ao hipnotismo, os autores tendem a aceitar que existe ação penalmente relevante. Há quem não acredite em estados de hipnose, afirmando que há sempre consciência. Também para ROXIN existe no hipnotismo um comportamento penalmente relevante, uma vez que o agente nunca fará nada sob hipnose que não faria se não estivesse hipnotizado.

Quanto ao sonambulismo, a doutrina tende a entender que não existe ação penalmente relevante. Para ROXIN, não há uma manifestação da personalidade, pois o agente está a agir num mundo que está na sua cabeça, ou seja, não está a interagir com o mundo exterior.

Para FERNANDA PALMA, inexiste aqui uma vontade do agente, a não ser nas situações em que o próprio agente se coloca nesse estado de sonambulismo ou hipnotismo para alcançar o seu fim; assim, por força do art. 20º/4 CP, não deixa de existir ação (actiones liberae in causa).

Automatismos:

Os automatismos são atos adquiridos pela experiência e pela repetição, como falar, conduzir, etc. Correspondem a um domínio do corpo sobre a vontade, dependente do grau de previsibilidade da situação ou do estímulo que suscita o ato.

1. Uma questão que se levanta a propósito dos automatismos é a de saber se, nos casos em que o automatismo intervém em lugar do comportamento controlado pela consciência, existirá ou não ação; ou seja, se em atos desta natureza existirá ainda o substrato comportamental exigido. É pacífico na doutrina que tem de haver uma direção mínima do agente conducente àquele resultado, tem de haver uma aceitação do risco para que se possa falar numa ação.

Os automatismos são geralmente mais complexos e, prima facie parecem não ser controláveis, mas, num segundo momento, percebe-se que poderão ser controlados pela intervenção da consciência. Estão preparados para um agir final mais rápido, mais eficaz. Os automatismos são ações finais (na teoria de WELZEL), pois para os finalistas a finalidade da ação não exigiria uma consciência reflexiva e controladora de todo o desenrolar de um comportamento.

2. Outra questão que se levanta é a de saber até quando se poderá recuar a comportamentos anteriores para justificar a responsabilização penal, sem que se esteja a incorrer numa antecipação da criminalização, caso em que se estaria a violar o princípio da legalidade:

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Para STRATENWERTH, a justificação assenta no pensamento do ato como uma globalidade, ou seja, desde que o processo de formação do ato se enquadre, esteja determinado ou seja explicável pela experiência, relacionada com a situação e eventualmente acessível a uma dirigibilidade consciente. Para JAKOBS, seria já a evitabilidade do comportamento, ou seja, o agente teria de poder evitar o automatismo para que ele tivesse relevância penal.

Para FERNANDA PALMA, os automatismos não poderão ser considerados ações onde não exista desde logo uma reconhecibilidade dos atos como elemento de um processo. A imprevisibilidade de um estímulo não permitirá orientar a ação que lhe dá resposta para a direção contrária; assim, torna-se critério a previsibilidade do estímulo externo e a sua contextualização para aferir torna-se é ou não uma ação. Um comportamento só é minimamente voluntário se a pessoa podia ter feito outra coisa. A fronteira entre o automatismo que é integrável numa conduta voluntária e aquele que corresponde apenas a um domínio do corpo sobre a vontade há de depender do grau de previsibilidade da situação ou do estímulo que suscita o ato.

Inconsciência:

Nos casos de embriaguez, em princípio, teremos ação penalmente relevante (a não ser que se trate de uma embriaguez extremíssima). De acordo com a teoria de ROXIN (conceito pessoal de ação), ainda há, no estado de embriaguez uma manifestação da personalidade.

 Ação e Omissão

A omissão surge como problema, na medida em que a perspetiva físico-causal, predominante na linguagem social, não atribui aos comportamentos omissivos um direto significado lesivo.

» FIGUEIREDO DIAS – a ação e a omissão são estruturalmente diversas. As omissões só serão punidas quando houver dever jurídico de não atuar.

» FERNANDA PALMA – a relevância penal da omissão tem de ser construída a partir de uma analogia com o comportamento ativo. Na linguagem normativa, as proibições podem integrar comandos de ações.

A relevância penal da omissão surge essencialmente como problema a partir da exigência de um requisito comportamental geral, comum a toda a responsabilidade penal. Até mesmo o afastamento de um tal requisito geral pelo normativismo ou funcionalismo teleológico não evita a interrogação sobre se as omissões terão, nos casos concretos, a necessária caracterização comportamental para suportarem as censuras de ilicitude e culpa.

Há uma constituição comportamental de todo o crime a que se tenham de referir os comportamentos omissivos penalmente relevantes?

MFP: Sim, temos um Direito Penal do facto e nega-se a pura ordem de obediência, correspondendo a uma vinculação do Direito às estruturas comportamentais identificáveis comunicacionalmente. Todavia, a questão fundamental será a determinação do quid comportamental exigível para que a omissão possa ser uma espécie de comportamento penalmente relevante. Como a definição da ação

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que importa à teoria da imputação não é naturalística, centrando-se antes na significação social dos comportamentos, a descoberta desse quid comportamental integrará uma problemática comum da relevância penal da ação e da omissão, tal como, por exemplo, a da evitabilidade das consequências.

A questão prévia, portanto, é se ações e omissões devem ser distinguíveis? O que nos permite distinguir uma

da outra?

MFP: Dependendo da resposta há consequências práticas grandes e distintas:

➢ Se se concluir que não há nenhuma distinção, os comportamentos típicos seriam indiferenciadamente ações e omissões. A recusa da diferenciação entre ação e omissão preenche imediatamente os tipos com comportamentos ativos e passivos. Esse ponto de vista não é o que o CP adota – não deve ser adotado até considerando a CRP.

→ Delimitação entre ação e omissão:

FIGUEIREDO DIAS: na senda da doutrina germânica, naturalisticamente, existe ação quando há uma introdução positiva de energia, por parte do agente, que causalmente determina a produção do resultado típico. Este critério tem de ser complementado com uma postura valorativa do sentido social do comportamento, distinguindo se o ponto de conexão da censurabilidade jurídico-penal se encontra num comportamento ativo ou omissivo.

Para KAUFMANN (propondo um princípio de subsidiariedade), só existe omissão relevante quando o comportamento não puder ser perspetivado como uma ação.

O ponto de vista de diferenciação entre ações e omissões cabe no art. 10º CP. Como afirma FERNANDA PALMA, a lei considera relevante uma diferenciação, sendo uma questão de lógica.

o EDUARDO CORREIA afirma que as normas da parte especial tanto incluem os comportamentos ativos como os passivos, pois as proibições que se inferem da parte especial tanto são violáveis por ação como por omissão. Esta interpretação deriva de uma literalidade do art. 10º/1 CP – se for proibido matar é proibido não impedir alguém de ser morto. Já o nº do art. 10º seria uma extensão restringida – todos os crimes podem ser praticados por omissão mas há uns que é por omissão e violação de dever jurídico.

o JAKOBS levanta a questão de saber se se mantém indispensável a especial delimitação das omissões relevantes por fatores normativos (dever jurídico, posição de garante) que não derivem estritamente do quid comportamental indispensável ao crime e comum a ações e a omissões.

Este autor defende uma indiferenciação entre ação e omissão nas situações em que se ultrapassem os limites gerais da liberdade no que se refere à configuração exterior do mundo. Ex: é equivalente atropelar uma pessoa por não travar ou por acelerar. A responsabilidade inerente à liberdade de configuração do mundo é que definiria os deveres de agir ou de evitar os resultados danosos. O que é importante é aferir se, ao organizar a sua própria liberdade, o agente interferiu na liberdade de outrem; ou seja, se violou um dever negativo. Como exemplo, não interessará, no caso de o cão de A morder B, se foi A que incitou o cão a morder B, ou se o ouviu rosnar e nada fez: o que é relevante é

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que o cão é de A (ou seja, é meio de que A dispõe para organizar a sua liberdade) e este não evitou o resultado.

A tese de JAKOBS conduz à fundamentação mais precisa das posições de garante em setores em que o agente tem um dever especial de organização do mundo exterior, sendo-lhe atribuídos deveres positivos mais específicos de atuação, que decorrem do seu estatuto específico para garantir a confiança na instituição que ele representa. Assim, é equiparável que o médico responsável pelo doente ligado à máquina a desligue ou pura e simplesmente não a volte a ligar: o que interessa é saber se, em função do seu estatuto, violou um dever negativo ou violou um dos deveres positivos que lhe eram especialmente impostos.

Esta tese não aceitará a equiparação da omissão à ação nos casos em que nem haja uma competência geral pela organização do mundo, da qual se possa derivar a responsabilidade pelo risco, nem um estatuto especial de que decorra uma específica competência para a proteção de bens jurídicos. Tal leva a admitir a ausência de relevância jurídico-penal da ação quando não exista posição de garante, no caso de um terceiro ou de um médico não responsável pelo serviço que desliga a máquina de um doente terminal (porque nesse caso não tem um estatuto específico que lhe impõe determinados deveres). Este ponto da tese de JAKOBS levanta problemas, uma vez que o terceiro, mesmo não tendo um dever positivo especialmente imposto, tem ainda assim um dever negativo, que neste caso estaria a ser violado.

Na doutrina de JAKOBS, a problemática da omissão relaciona-se com a questão dos limites do comportamento típico em geral, a dois níveis de abordagem:

1º Verificar se o comportamento omissivo é tipicamente equiparável ao ativo, na perspetiva de uma ação socialmente significativa. O que é importante é se, ao organizar a sua própria liberdade, o agente interferiu na liberdade de outrem; ou seja, se violou um dever negativo. Ex: automobilista que não para/acelera.

2º Identificar o comportamento como omissão seria essencial para não o incluir no tipo legal construído para um conceito de ação que não o inclui.

MFP: independentemente de se aceitar as teses de JAKOBS, não se pode utilizar uma teoria não naturalista sobre a ação, em geral, e simultaneamente praticar uma distinção entre ação e omissão naturalista, para o efeito de aplicação do art. 10º/2, remetendo para esse preceito tudo o que seja um “não fazer” em termos físicos ou naturalistas.

o Critério relacionado com a tipicidade: aumentou ou diminuiu o risco que já existia. Este é o critério de FIGUEIREDO DIAS e PAULA RIBEIRO FARIA;

o Critério da doutrina alemã (critério naturalístico): se o agente despendeu de energia e essa dispensa se tornou causal para o bem jurídico, temos uma ação; se essa dispensa não se tornou determinante para obter o resultado típico, temos uma omissão. Por exemplo, se uma mãe sai de casa e o filho sozinho em casa liga o bico do fogão e morre, o comportamento da mãe, à partida, é uma omissão, porque a energia que despendeu a sair de casa não é causal para a morte do filho.

→ ROXIN critica este critério, pois há casos em que isto não se verifica – casos de omissão através de comissão (ação).

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19 → Omissão através de ação:

Nem todas as omissões têm de ter uma estrutura passiva. Pode acontecer que, dada a configuração da norma concreta, um comportamento ativo possa ser visto como uma omissão.

Tal sucede quando o agente viola uma norma que impõe um comando de ação por comportamento ativo, mas esse comportamento ativo tem significado de omissão. O exemplo paradigmático é o de alguém que impede, mediante uma atuação positiva, o cumprimento do salvamento que ele mesmo já tinha posto em marcha: uma pessoa lança uma corda salvadora a quem se está a afogar, mas no último momento resolve retirá-la. Tem-se entendido que:

1. Se a pessoa no mar não conseguia alcançar a corda, não mudava nada no estado inicial dessa situação o retirar da corda, portanto este comportamento não prejudica a situação de corda lançada, havendo equivalência normativa a omissão. Ou seja, a situação aqui consiste na anulação de intenção de salvar pela própria pessoa que atua, originando uma situação semelhante à que existiria se a pessoa estivesse inativa desde o princípio.

2. Já será equiparável a ação se o agente tiver posição jurídica que o obrigue a agir (como ser nadador salvador, por exemplo). Se não tiver essa posição de garante, a omissão não cabe no art. 10º/2 e é apenas omissão. No caso de interrupção de salvamento, já é ação e a posição de garante já não é relevante.

ROXIN fala em quatro situações distintas:

(1) Omitir por comissão (tentativa interrompida de cumprimento de uma posição legal) – trata-se de caso trata-semelhante ao atrás mencionado: alguém com uma obrigação de agir impede, mediante uma atuação positiva, o cumprimento do imperativo que ele mesmo já tinha posto em marcha – ex: uma pessoa com a obrigação de auxílio lança uma corda salvadora a quem se está a afogar, mas no último momento resolve retirá-la.

Neste caso existe uma ação que teoricamente se podia punir como facto comissivo (concretamente como homicídio). A circunstância de que não se pôs em movimento uma cadeia causal que conduzisse diretamente ao resultado, mas apenas se interrompeu um processo causal que adivinhava a salvação, não impediria a subsunção num tipo comissivo. Contudo, neste exemplo, a situação consiste na anulação de intenção de salvar pela própria pessoa que atua, originando uma situação semelhante à que existiria se a pessoa estivesse inativa desde o princípio.

Deste caso deduz-se o princípio geral de que um “fazer” que se apresenta como desistência da tentativa de cumprir um imperativo, deve subsumir-se no tipo de crime por omissão, cujo imperativo fracassa pela atuação ativa.

Contudo, pode existir um momento a partir do qual a mudança de resolução já não aparece como omitir através de fazer, mas como um puro crime comissivo: se a vítima já agarrou a corda salvadora, a ação de arrancá-la realizada por quem está obrigado a agir deve encarar-se, caso acarrete a morte, como crime de homicídio, pois nesse momento a pessoa que deve ser salva tinha alcançado uma posição na qual podia prosseguir valendo-se de si própria, e destruí-la pesa mais que a mera inatividade.

Ou seja, omitir através de fazer transforma-se num crime comissivo logo que o cumprimento do imperativo passou do estádio da tentativa para o da consumação, ou seja, logo que o processo causal

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salvador alcançou a esfera da vítima. Para tal, nem é sequer necessário que a pessoa em perigo tenha fisicamente “na mão” o instrumento salvador, bastando que a pessoa se pudesse agarrar à corda salvadora sem ajuda alheia.

Assim, se o agente interrompe o processo de salvamento alheio, estará em causa uma ação (ex: chocar com a ambulância). Quando o processo já se tornou alheio, a vítima já se consegue salvar. A ideia central é saber se já atingiu a esfera da vítima.

(2) Omissio libera in causa – o caso paradigmático é o de uma pessoa que, juntamente com outras, conhece o plano de homicídio e se embriaga até perder o conhecimento, para não estar em condições de ir à polícia.

ROXIN sustenta que aqui, pese embora o “fazer” ativo, não se pode aceitar que exista cumplicidade no homicídio, mas sim autoria, ou seja, punição pelo tipo de um crime de omissão própria, pois para efeitos de punição, é indiferente o modo como a pessoa obrigada a denunciar consegue que não se efetue tal denúncia – quer atue ou omita uma atuação.

O sujeito que primeiro atua ativamente e depois se mostra incapaz de ação não omite nada e, não obstante, deverá ser punido pelo crime de omissão.

Este grupo de casos, contudo, coloca problemas de delimitação mais difíceis, sobretudo quando a ação de frustrar de antemão a própria colaboração também tem efeito sobre outra pessoa disposta a socorrer. Por exemplo, X está a afogar-se, A quer salvá-lo com o único barco disponível, pertencente a B; contudo, B impede que A se faça ao mar, retendo o barco com a consequência, por ele prevista, de que X se afoga, sendo certo que de contrário se teria salvo.

RANFT nega aqui um crime de homicídio, na medida em que B apenas impediu a “ingerência na sua esfera de domínio”: reter o barco era apenas o meio de não o entregar, ou seja, de uma omissão. Contudo, como afirma ROXIN, idêntico pressuposto de facto seria qualificado de homicídio se B impedisse violentamente A de realizar o seu propósito de salvar a vítima com o seu próprio barco (de A), na medida em que neste pressuposto se destrói, com consequências mortais, uma cadeia causal exclusivamente alheia que evitaria o resultado.

Ora, tal como existe um homicídio se B consegue violentamente fazer afundar o seu próprio barco com o qual A se aproximava da pessoa que se afogava, impossibilitando desse modo o salvamento, também se terão ultrapassado os limites de omissão própria se B destruir com dolo de homicídio o seu barco, que é o único existente para a ação de auxílio, antes que dele se aproxime um terceiro disposto a empreender o salvamento, com o objetivo de o subtrair do alcance deste – as consequências do facto e a energia criminosa de ambos são idênticas.

Nos casos de ingerência nos esforços de terceiros para impedir o resultado, somente existirá uma omissão através de fazer punível se existissem outros meios de salvação disponíveis, já que em tal caso a atividade dirigida contra um terceiro apenas poderia servir para negar auxílio, mas não impediria que outros salvassem a vítima.

(3) Participação ativa num crime de omissão – exs: quem instiga outrem a não remeter a carta secreta onde se planeia uma traição contra certo país; quem desencoraja o médico a ligar a uma chamada de socorro para sua casa; ou quem, em ambos os casos, fortalece com palavras persuasoras a decisão criminosa de quem permanece inativo.

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Nestes casos, o agente é punido, se se seguir a opinião dominante, por instigação ou cumplicidade, pelo tipo de um crime de omissão. Ainda que a participação seja uma causa de extensão da pena e, portanto, não seja típica em sentido estrito (ROXIN), em qualquer caso a punibilidade que aqui se aplica a quem atua positivamente é a punibilidade do crime por omissão.

KAUFMANN não admite estes casos de participação ativa no crime de omissão, pretendendo que seja punida como facto comissivo causador do resultado.

Este autor imaginou o seguinte caso: A altera a sua opinião depois de enviar a denúncia do crime, contudo não retira por si próprio a carta dos correios, mas serve-se para tal de B, a quem pôs ao corrente das circunstâncias. KAUFMANN sustenta que se deve punir B pelo crime de homicídio. ROXIN discorda: a circunstância de pedir a outro que retire a carta não pode indiretamente converter o agente, por meio da instigação, em autor. Apenas no caso em que B, contra a vontade de A, retira a carta dos correios, deveria ser punido por crime comissivo. Mas apenas quando age por sua própria iniciativa.

Não se trata de uma delimitação subjetiva: o que sente ou o que pretende quem interrompe o processo causal salvador é indiferente; decisivo é saber se atua junto e para a pessoa obrigada a auxiliar ou se o faz sob a sua própria responsabilidade e contra essa pessoa.

(4) Omitir impune através de fazer – este grupo de casos está “um passo à frente”, já não se fica pelo passo de distinção entre ação e omissão, mas já se prende com a tipicidade, saber se é punível ou não. Exemplo: se apenas se pune o remetente da denúncia juridicamente obrigatória de um crime que retira a carta antes que chegue ao destinatário, quem proceder da mesma forma face a um crime que não é obrigatório denunciar terá que permanecer impune, pese embora a causalidade da sua conduta para a produção do resultado.

Nestes casos, a pessoa limita-se a não fazer algo a que não está obrigada, sendo jurídica e penalmente irrelevantes tanto a sua atuação de impedir como a sua desistência. Quem não sendo obrigado a denunciar, se impossibilita de antemão de relatar o crime mediante uma atuação positiva, é em princípio impune (segundo grupo de casos); igualmente, fica impune quem, como participante, consegue que se deixe de fazer algo não requerido (terceiro grupo de casos).

Diversa é a situação dos comportamentos se atribuíram aos tipos comissivos: tais comportamentos não são impunes, já que, independentemente da existência de um dever de agir, continuam a ser puníveis do mesmo modo que o eram antes. Por exemplo, quem voltar a arrancar das mãos de um doente o medicamento salvador que antes lhe tinha dado, de modo a provocar a morte da vítima, comete um homicídio, mesmo que originalmente não se tivesse obrigado a entregar o medicamento (primeiro grupo de casos). O terceiro que, contra a vontade do remetente, impede que uma carta chegue ao destinatário com a denúncia do plano de roubo, é responsável por cumplicidade nesse crime, independentemente da não existência da obrigação jurídica de denúncia em tal crime (segundo e terceiro grupo de casos).

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22 ❖ CRIME DE OMISSÃO

Se há uma omissão, há um passo intermédio, antes da tipicidade, que é saber se existia um dever de atuar. Porque se não existia um dever de atuar, a omissão não é tipicamente relevante. Para sabermos se havia dever de atuar, devemos primeiro ver se havia dever/posição de garante.

O crime de omissão traduz-se numa violação de uma imposição legal de atuar, pelo que, em qualquer caso, só pode ser cometido por pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo a ação imposta e esperada.

Só numa minoria de casos (puros) é que a lei, de forma integral, descreve os pressupostos fácticos donde resulta o dever jurídico de atuar. Na maioria (impuros), basta-se com a cláusula geral de extensão da tipicidade do art. 10º/2 CP.

É com base nisto que surge a distinção entre Crimes Omissivos Puros e Impuros:

• Parte da doutrina fundamenta a distinção entre crimes puros ou impuros na referência expressa na Parte Especial à omissão como forma de integração típica, descrevendo os pressupostos de facto de que deriva o dever jurídico de atuar. Diversamente, delitos impuros ou impróprios de omissão seriam os não especificamente descritos na lei como tais, mas em que a tipicidade resultaria de uma cláusula geral de equiparação da omissão à ação, como tal legalmente prevista e punível na Parte Geral.

• ROXIN critica, afirmando que assim se encobre aquilo que verdadeiramente confere sentido à distinção. Puras são aquelas omissões típicas que não têm correspondência num delito de ação. Impuras aquelas outras para cuja tipicidade se torna necessária uma cláusula de equiparação à ação correspondente.

• Doutrina tradicional – devem considerar-se delitos puros ou próprios de omissão aqueles cujo tipo objetivo de ilícito se esgota na não realização da ação imposta pela lei (crime de mera atividade) e impuros ou impróprios aqueles outros em que o agente assume a posição de garante da não produção de um resultado típico (crime de resultado).

Deve concluir-se que o critério fundamental de distinção entre crimes de omissão puros e impuros passa pela circunstância decisiva de os impuros, diferentemente dos puros, não se encontrarem descritos num tipo legal de crime, tornando-se indispensável o recurso à cláusula de equiparação contida no art. 10/2º.

As omissões puras e as omissões impuras são subsidiárias: primeiro vamos ver se se pode punir por omissão impura, e só depois, se não for possível, se passa para omissão pura.

Assim:

 Crimes Puros/Próprios de Omissão

Nestes crimes de omissão, o próprio tipo integra a omissão, descrevendo os pressupostos fácticos de onde deriva o dever jurídico de atuar. É o caso da omissão de auxílio, prevista no art. 200º CP e da recusa de médico, prevista no art. 284º CP. Nunca se pode dizer que violação de dever de auxílio (art. 200º CP) é uma fonte de posição de garante. Essa violação apenas corresponde à tipicidade de violação do dever de socorro.

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23  Crimes Impuros/Impróprios de Omissão

Não estão especificamente descritos na lei como tais, mas em que a tipicidade resulta de uma cláusula geral de equiparação da omissão à ação, nos termos da cláusula de equiparação do art. 10º/1 e 2. Ou seja, temos tipos que parecem descrever/estar pensados apenas para ações (como o homicídio – art. 131º CP). Se esses tipos só preveem ações, então parece que esses crimes nunca poderão ser punidos por omissão (violaria o princípio da legalidade). É por isso que é fundamental o art. 10º/2, que estende a tipicidade.

O fundamento desta equiparação é que, para certo tipo de ilícito, o desvalor da omissão corresponde no essencial ao desvalor da ação. E isto quando sobre o agente recai um dever de evitar ativa ou positivamente a realização típica, i.e., obstar à verificação do resultado típico (que é o que significa ter um dever de garantia/dever de garante).

A norma constante do art. 10º/2 impõe a explicitação das condições em que é possível a equiparação prevista no art. 10º/1 das situações omissivas não compreendidas diretamente na descrição da ação típica (devido ao seu imediato significado social) ao descrito na ação típica.

A interpretação da Cláusula de Extensão da Tipicidade (art. 10º/2) implica a verificação sobre se a teoria tradicional das posições de garante é compatível com as exigências do princípio da legalidade.

o Para que os comportamentos que sejam naturalisticamente omissões sejam puníveis têm de obedecer ao art. 10º/2 CP.

o Critério lógico em que a diferenciação tem relevância normativa – não tem o mesmo valor violar uma proibição por ação ou omissão mas há relevância normativa.

o A cláusula do art. 10º/2 estende a tipicidade do crime quando há dever jurídico de evitar o resultado.

→ Fontes da Posição de Garante:

O art. 10º/2 afirma que tem de haver um dever de garante, mas não diz em que casos é que existe esse dever.

1. Fontes formais (teoria formal). Esta teoria está ultrapassada, estas fontes podem servir apenas como pontos de apoio, mas não é daqui que decorre a posição de garante.

o Lei o Contrato

o Ingerência – situação que alguém provoca situação de perigo para um bem jurídico e, por esse facto, fica investida na posição de garante (ex: provoca acidente, ajuda a vítima). Ou seja, alguém se intrometeu na esfera jurídica de outrem e por via dessa intervenção fica obrigada a evitar certo resultado.

• Ingerência a partir de ato ilícito corresponde a uma situação de perturbação de delimitação das esferas de organização da vida de cada pessoa em que o agente assume, sem lhe ser permitido, o controlo sobre os bens jurídicos alheios, retirando até, à vítima do primeiro comportamento ilícito, um poder de controlo sobre os seus bens jurídicos.

• Ingerência a partir de ato lícito é mais duvidosa – como ainda há uma ultrapassagem da esfera de risco própria e de violação, ainda que objetiva, do risco permitido – uma invasão da esfera alheia como consequência do normal

Referências

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