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Confabulações no meio fio : itinerâncias entre imagens, africanidades, escolas e cidade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação

ANA CAROLINA BRAMBILLA COSTA

CONFABULAÇÕES NO MEIO FIO:

itinerâncias entre imagens, africanidades, escolas e cidade

CAMPINAS 2018

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ANA CAROLINA BRAMBILLA COSTA

CONFABULAÇÕES NO MEIO FIO:

itinerâncias entre imagens, africanidades, escolas e cidade

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Educação, na área de concentração Educação.

Orientadora: ALIK WUNDER

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DE DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA CAROLINA BRAMBILLA COSTA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ALIK WUNDER.

CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

CONFABULAÇÕES NO MEIO FIO:

itinerâncias entre imagens, africanidades, escolas e cidade

Autor : Ana Carolina Brambilla Costa

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Alik Wunder

Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Junior Profa. Dra Davina Marques

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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AGRADECIMENTOS

Quando venho agradecer, é como se reencontrasse de novo com todas as trajetórias que alteraram as minhas próprias, arranjando-se insuspeitadamente no espaço que habito. Agradeço a todos os intercessores do pensamentos, a todas as multidões sem nome que povoaram essas experimentações, habitando, transtornando, estourando certezas de direções. Muito obrigada a toda equipe da Secretaria de Pós Graduação da Faculdade de Educação. Pelas orientações e pela paciência infinita!

Agradeço ao carinho cuidadoso da Alik Wunder. Por apresentar todo um infinito e deixar que eu dançasse nele, por apontar potências, por alimentar esse corpo com textos, cânticos, chás e desejos vários de criar, de seguir, de ser fluxo.

Agradeço muito à generosidade das leituras de Amanda Leite, Wenceslao Oliveira Jr. e Antonio Carlos Amorim, que impactaram profundamente nas direções e nos arranjos de trajetórias aqui agrupadas.

À Marli Wunder, um abraço apertado. Pela generosidade, pela energia criadora, pelas intensas fotografias, e por me mostrar um dia, ao redor de uma roda, numa Pajelança, como olhar o mundo pelo buraquinho dos dedos.

Agradeço às leituras e discussões sempre estimulantes dos colegas do Humor Aquoso; e um obrigada especial às companheiras de delícias e angústias acadêmicas, Rafa e Sara: pelas conversas nos vãos entre correrias, pelos e-mails para situar lugares e horários, pelas sugestões literárias e pelo mapa-astral. Um outro obrigada apertado aos companheiros de longa data, interestaduais, mas sempre pertinho no coração: Elvis e Carol.

Agradeço muito a toda equipe das escolas municipais de Descalvado, “Padre Orestes Ladeira” e “Maria Sylvia Traldi de Marco”, por abrirem as portas e janelas e portões, por confiarem e abraçarem as incertezas dessa pesquisa; um obrigada especialíssimo às (aos) estudantes, criadores, intercessores que me punham pulgas e mais pulgas atrás das orelhas: Gaby, Melissa, Júlia Camily, Duda, Sâmoa, Cassiana, Fernanda, Isabella, Luis Henrique, Thamires, Suyane, Lorena, João Vitor.

Um obrigada intenso ao Grupo Galhofas, em especial ao Felipe, parceiro que me habita os fluxos e leva em seu corpo esses desejos meus-nossos: por abraçar comigo a potência criadora da arte, por me dar colo quase sempre e chacoalhões quando preciso.

Obrigadíssima à minha irmã Kari, que me emprestou um livro sobre como escrever um projeto de mestrado em 2015 (sim, era um livro de Engenharia) e que me deu casa, comida, colo, carona e muitas risadas nesses quase três anos de percurso. Opa, 29 anos de percurso, não é?

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Ao Gustavo, companheiro do início desse processo, e que o tornou possível também, mesmo que nossas trajetórias tenham variado e seguido caminhos diferentes.

Ao Luiz, que lindamente aconteceu e contribuiu para esses finalmentes suados se tornarem material palpável.

Aos meus pais, José e Irene, que não entendem muito essa pesquisa, mas ainda assim acreditam nessa trajetória, desde o primeiro livro, desde o primeiro pincel, e para muito mais adiante por acontecer, muito obrigada por tudo.

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RESUMO

As trajetórias deste trabalho se dão na proliferação de encontros: entre pesquisadora, escolas e imagens de artistas brasileiros contemporâneos que se debruçam sobre as questões raciais; contagiados pela rua, outros encontros: entre sarjetas, postes, imagens, museu, coletivo artístico e cidade. Intercessores do pensamento, Deleuze e Guattari, o conceito de coisa, de Tim Ingold (2012), e de espaço, de Doreen Massey (2006; 2009), instigam questões: quando imagens que carregaram identidades negras habitam a cidade e povoam o corpo-professora, que perturbações causam? Que gagueiras propõem aos discursos? Como afetam a experimentação de hiatos e silêncios em uma educação que extrapola os muros da escola e constrói o espaço da cidade? Que potências de vida as imagens em fluxo carregam? Interessa, assim, pensar na instauração dos modos de existência próprios das imagens na relação com a cidade e com as questões raciais, e experimentar suas potências, variando-as, proliferando-as, confabulando COM. Fazê-las existir mais, em seus silêncios e ecos, em seus versos de papel branco. Deixá-Fazê-las criar ruídos que incomodam, ressoam e transitam entre modos de existir. Por fim, entre os movimentos de fuga e de captura em que dançam as imagens, fazer dançar o sensível e proliferar pensamentos sobre escolas, imagens e relações raciais em uma cidade do interior de São Paulo.

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ABSTRACT

The trajectories of this work occur in the proliferation of encounters: between researcher, schools and images of contemporary Brazilian artists that focus on racial issues; infected by the street, other encounters: between gutters, posts, images, museum, artistic collective and city. The intercessors of thought, Deleuze and Guattari, the concept “thing” , by Tim Ingold (2012), and “space” concept, by Doreen Massey (2006; 2009), instigate questions: when images that carried black identities inhabit the city and populate the body-teacher, what disruptions do they cause? What stutterers do they propose to the speeches? How do they affect the experimentation of gaps and silences in an education that goes beyond the walls of the school and builds the space of the city? What powers of life do flowing images carry? It is therefore important to think of the establishment of the modes of existence of the images themselves in relation to the city and the racial issues, and to experiment with their powers, varying them, proliferating them, confabulating WITH. To make them exist more, in their silences and echoes, in their verses of white paper. Let them create noises that bother, resound and move between modes of existence. Finally, among the escape and capture movements in which the images dance, make the sensitive dance and proliferate thoughts about schools, images and racial relations in a city in the interior of São Paulo.

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SUMÁRIO

1 PROVOCAÇÕES PARA UM CORPO 11

2 MOVIMENTOS CONFABULATÓRIOS I: miradas 24

3 MOVIMENTOS CONFABULATÓRIOS II: oferendas costuras feridas 38

4 MOVIMENTOS CONFABULATÓRIOS III: corpo-ladeira 65

4.1 Inventos A: corpo-muro-cinza-azul 70

4.2 Inventos B : barranco-caracol 82

5 MOVIMENTOS CONFABULATÓRIOS IV: museu-sarjeta 101

6 VIRAÇÃO 124

BIBLIOGRAFIA 130

Apêndice A- Glossário dos curtas utilizados 133

Apêndice B- Planejamento das oficinas 135

Anexo 1- Textos utilizados na intervenção ruídos 140

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Na parede branca descascada, catorze quadrângulos1 de papel impresso pendurados

com fita adesiva me olham. Na superfície, com jato de tinta a laser, cores, texturas e formas que vivificam corpos. A mão negra que oferece, o rosto negro afundado no acarajé, um corpo negro com joelhos no chão, brinquedo de um outro corpo, infantil e branco. Dez dedos brancos digitam num papel virtualmente branco pequenas marquinhas pretas que deveriam gerar sentido. Deveriam? Pergunta que ecoa: “o que vive nesses corpos-imagens, imagens-corpos?”2.

Um vento bate e mostra o avesso dos retângulos de papel. Brancos, sem corpos, corpóreos ainda assim. O que permite vislumbrar esses versos virados? O vento é gelado e incontrolável, vira e desvira as imagens justapondo e recombinando e descombinando e...conexões potenciais imprevisíveis.

O vento infinita o espaço aberto, simultaneando estórias no entre-verso-impresso-imagem-corpo, grudado com durex, mas se movimentando, rachando outros espaços até dentro do tórax, onde vibra meu diafragma porque me deu soluço a imensidão de (im)possiblidades.

O verso das imagens viradas esgota. Boca seca, sem nenhum cuspe.

Se faltam palavras. Invento? In-vento.

1 São as impressões das fotografias dos artistas Moisés Patrício, Rosana Paulino e Ayrson Heráclito, além

de produções em oficinas a partir dessas imagens. Esses quadrângulos são as reproduções impressas dos trabalhos artísticos que perambulam por essa pesquisa.

2 Questionamento feito por Amanda Leite na qualificação desta pesquisa.

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Escuto as vozes que gaguejam e gritam desde o dentro-fora das impressões, entremeadas pelo ruído cinematográfico do vento (o próprio vento, uma voz?). São línguas menores3, que desviam daquele lugar de afirmação que parece ser o currículo

formal. São perigosas: criações poéticas e políticas4 que não aceitam os espaços

reservados – a duras penas, a duras lutas - dentro do cotidiano escolar para a discussão racial.

As imagens carregam narrativas, estórias, memórias e provocações que se adensam,

adensam

,

adensam

diante do corpo por elas permeado. Arrastam corpos negros

brasileiros para uma moldura de ângulos retos. São superfícies: cores, luzes e texturas que atingem o corpo no umbigo e fazem dançar o desejo de explicação (ah, as legendas dos materiais didáticos!) numa ciranda espiralada.

“Os corpos nos trazem o outro como presença”5. Li enquanto o vento virava também

as janelas na tela do computador. Os outros nos trazem o corpo como presença. Presença e outro: quem são? Estar presente, ser pungida, me outro-estar, é essa a questão?

Levanto, sento, ando até uma linha de sol. Balanço as pernas incontrolavelmente. O que nessas imagens move esse corpo-pesquisa?

No encontro com imagens de arte que arrastam para si corpos e experiências corpóreas negras, algo me move nos fluxos, algo me inquieta, me agita as pernas, me aperta o estômago.

Fere a pergunta: qual a cor da sua-minha pele? O quanto de pele branca sustentando esses dez dedos que escrevem? 1, 924837655 m² de pele branca, responde o google.com com uma equação matemática que considera massa e estatura.

Se esse é o espaço da minha pele branca, se esse é o espaço em que silenciam e ecoam identidades, se esse é o espaço...poderia arriscar-me e pensa-lo como pensa Doreen Massey6? Quase arrancar a pele, nesse deslocamento perigoso e inventa-la

como espaço? E pensar esse espaço-pele não como uma extensão fixa a partir da qual se desloca minha subjetividade-identidade, mas como produto de relações-entre, sempre no processo de se fazer? Espaço como um aglomerado de heterogeneidades, simultâneas trajetórias até-aqui, que vão se arranjando em relação, ou se desarranjando: espaço aberto de infinitas composições entre “diferentes temporalidades

3 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix – Kafka: Por uma literatura menor. 1a Edição. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2014

4 RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

5 ARROYO, M. Imagens Quebradas – trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis: Vozes, 2009 6 MASSEY, D. Pelo espaço-uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

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e diferentes vozes” (2009, p. 166).Deslocando os conceitos da autora para as trajetórias coetâneas do corpo-pele, pensa-lo como espaço aberto e político.

E pensa-lo como Tim Ingold, como uma coisa em fluxo. Um agregado de fios vitais que vazam para além desse aglomerado de células de tecido que são chamadas de pele, em constante estado de encontro e permeabilidade: no entre.

A pele é o maior e mais pesado órgão do corpo. Medida em quilogramas e em porcentagem; e também em percursos de marginalização, segregação, invisibilização, embranquecimento. Escapa às medidas. A pele opera como marca identitária, que arrasta para si inúmeras marcas gravadas pelas histórias, por estórias, por geografias, por memórias, por ficções.

Marcas-identidades7 que se materializam no corpo-pele, mas que nem por isso são

imóveis e imutáveis, que nem por isso guardam correspondência direta com um “(...) povo, com uma história e uma ancestralidade partilhadas (...)” (HALL, 1990); com um “eu coletivo” imutável, que fixa e estabiliza o pertencimento cultural (HALL, 2000). No eco das vozes que gritam e murmuram desde o verso das fotografias impressas, entender as marcas-identidades como trajetórias múltiplas e multiplicáveis; fluxos que me antecedem e que meu corpo-pele tenta apanhar, como surfista pouco hábil que mal se equilibra na prancha, no instante ínfimo antes da queda em que será eco do movimento do mar.

Corpo-pele-quase-mar que marca identidades em fluxo, fragmentadas, fraturadas, em imprevisíveis arranjos. Processo que, lembra Stuart Hall, é ficcional, o que “não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva, material ou política (...)” (2000, p. 109). Meio-fio das identidades que bailam entre o liso e o estriado, entre a representação e fabulação...

No encontro com pequenos retângulos de papel em que se imprimem memórias fabuladas a partir das experiências e experimentações de artistas negros e negras do Brasil, minha pele branca reconhece que está cercada de outras peles brancas nos livros, nas carteiras escolares, nas salas de professores. Reconhece ausências. Mas minha pele é coisa, fluxo, porosa. Contaminase com o impresso nos papeis -peles de imagem8 - e racha a fixidez identitária na necessidade de movimento. O que

7 Em certa altura, titubeio. Por que falar em identidade? Sigo com Stuart Hall: “A identidade é um

desses conceitos que operam “sob rasura”, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga , mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas.” (2000, P. 104).

8 KOPENAWA, D. ALBERT, B. A queda do céu : Palavras de um xamã yanomami. São Paulo :

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pode ser produzido, em pensamentos e imagens que dobram e desdobram as questões raciais nas escolas, a partir desse encontro?

As fabulações dos artistas têm o potencial de presentificar essas experiências corpóreas. Em justaposições e (des)conexões com as imagens de que já estamos tão repletos9, instigam as certezas (clichês? representações?) ao movimento dançarino

embolado nesse fluxo de fios vitais.

Esse texto ressoa o impulso de um corpo em movimento, no balanço violento das ondas; corpo que quer dançar (mesmo sem saber como) o encontro com essas peles-corpos [in]contidas nas imagens. Corpo coletivo que anda e perambula, rasgando o pé no asfalto, empurrando com as costas o chão da sala de aula ao esvaziar os pulmões, colocando os dedos nas fotografias do museu apesar do aviso “NÃO TOQUE”. Desejo de tocar com a pele essas imagens de presenças e ausências de outras peles, não em busca de imagens justas10, que se incorporariam aos currículos e arquivos de

boas práticas pedagógicas para as relações étnico-raciais, mas arfando por justas-imagens, que itineram e revolucionam nos entres, fazendo dançar o corpo, fazendo dançar o pensamento. Poéticas e políticas.

***

9 DELEUZE, G. Conversações. 2 ed. São Paulo: Editora34, 1996 10 IDEM.

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Esta pesquisa é um apanhado de trajetórias, parcamente organizadas e delimitadas nessas caixas-textos. Porque essas trajetórias começam antes de um índice e uma apresentação; e escapam ao fechamento proposto numa conclusão. São trajetórias que itineram e ganham potência nos encontros com intercessores: escolas, artistas, cidade, museu, conceitos. É um trabalho em vários (DELEUZE, 1996, p.156).

Aproprio-me das palavras de Deleuze em Conversações (1996), capítulo Intercessores, para apresentar a origem dessa dissertação como um “se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga” (p. 151), uma inserção em ondas preexistentes, que por ora chamarei de “encontro”.

Encontro com a escola e com os adensamentos de imagens de africanidades que perpassam os pensamentos escolares nas questões raciais. Trajetória iniciada com desejo de certezas: quebrar os clichês, descolonizar o currículo; em muito pautada na legislação que indica a obrigatoriedade do trabalho com História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nos currículos regulares.

Como, porém, descolonizar se o próprio texto da lei (e suas reverberações no meu corpo-docente) desconsidera a multiplicidade e os pensamentos desses grupos culturais (por exemplo ao colocar no singular a História e Cultura, como se fossem únicas)? E como descolonizar meu próprio corpo-docente senão por um encontro que me trans-figure, que me tire os discursos e me sobre de silêncios, que esgarce minha pele até que eu não me reconheça apenas como identidade, mas também em fluxo? Como pensar desde dentro da instituição escolar?

Nas ondas de questionamentos tensionantes, os clichês deslizam e as certezas são chacoalhadas por vendavais de novos encontros: encontros com os conceitos de Deleuze e Guattari, Tim Ingold (2012) e Doreen Massey (2006; 2009); com as forças de vida das produções de Orlando Mesquita, Ayrson Heráclito, Moisés Patrício e Rosana Paulino; com espaços de criação coletiva, dentro e fora da escola; com a cidade.

Como camadas das experiências que atravessaram os encontros e encharcaram as palavras e imagens aqui dispostas, está a trajetória do estar-sendo professora de arte em uma cidade de pequeno porte do interior do Estado de São Paulo: Descalvado. Escola regular, pública, particular. Escola de pequena cidade, muito pequena, onde as pessoas se conhecem sem se conhecer.

De algum modo, transformei-me professora no contexto de escola moderna compromissada com a educação maior. Escola em que “A própria organização do currículo e da didática (...) foi pensada e colocada em funcionamento para, entre várias

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outras coisas, fixar quem somos nós e quem são os outros.” (VEIGA-NETO, 2001, p. 111). Escola em que senti a obrigatoriedade de trabalhar com “Africanidades” e “Cultura indígena”. Assim, com letras maiúsculas, e com conteúdos fixos e pré-definidos, como se essas narrativas já existissem de antemão, e não estivessem ainda por se fazer.

Simultâneo, o silenciamento. Silenciamento da alteridade no material didático, em que constam assustadoramente irreais, como se existissem apenas no plano do discurso

pedagógico. Outros destituídos de força de vida no(s) currículo(s)11. Silenciamento também dos professores e estudantes, frequentando uma escola de “excelência” em que o simples fato de estar dentro dela já oferece o status de “nós”, e vivendo o risco constante de que a instituição perceba que na verdade somos “outros”.

Poderia pensar, com Deleuze e Guattari (2007), na escola como o espaço do tecido estriado: está necessariamente delimitada de pelo menos um dos lados, com a tessitura perpendicular dos fios que permitem entrever um direito e um avesso. O espaço estriado se identifica com o poder da instituição, com a “educação maior”. Não há uma oposição, porém, a um espaço nômade, o liso, o identificado com a máquina de guerra, aberto para todas as direções:

[...] devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. Num caso, organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o deserto se propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 180).

Os movimentos de luta que estão na gênese da lei 13.639/03, alterada pela lei

11.645/08, em embate político por reconhecimento e direitos, são absorvidos pelo estriado da legislação e do currículo. Quais movimentos na educação poderiam tenciona-los em espaços lisos? Tendo clareza da possibilidade de que esses movimentos sejam de novo organizados pelo estriado, e que as lisuras e as estrias existam ao mesmo tempo, interpenetrando-se.

11 Utilizo aqui o plural para abarcar não apenas o currículo formal explícito e prescrito nos documentos

legais, mas também as manifestações curriculares ocultas nas práticas escolares e a transformação do currículo no cotidiano pedagógico (currículo em ação).

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De dentro do espaço estriado escolar em que habito, vez ou outra surfo no espaço liso, em meio a tentativas, incômodos e experimentações COM os estudantes. Apaixono-me - afetos e afectos. E pelo Apaixono-meio de tudo isso, deu-se o encontro com o cinema africano, principalmente as produções de Angola e Moçambique. Nem sei como cheguei a elas, talvez pelos estranhos mecanismos de pesquisa na web. Fato é que me atingiram, mudaram radicalmente as direções de minhas trajetórias, diminuindo a distância entre a sala de aula e as Áfricas possíveis, imaginadas, e não exaustivamente retratadas nas imagens de tragédia ou de natureza selvagem que rodeiam a escola.

Os filmes não representavam uma África ideal enquanto matriz da identidade brasileira, mas multiplicavam histórias sobre áfricas, indiscerníveis se realidade ou ficção porque questionam a própria polarização: são ficções

e

realidades. As imagens cinematográficas – em especial o curta “Rodas da Rua” (1995), de Orlando Mesquita- desterritorializaram (DELEUZE; PARNET, 1998) minhas imagens de áfricas e minha própria noção do que é ser docente e do que é pensar em um currículo que fale com áfricas.

Essa pesquisa vem desses encontros de formação-ação-profissão em que imagens artísticas e africanidades afetaram minhas experimentações com educação, atravessando meu estar em uma rede regular de “excelência”, em uma pequena cidade -como tantas outras - onde a tese da democracia racial se faz Verdade (com todas as maiúsculas), e onde o racismo espreita por trás da pacatez rural.

O que pode surgir, quando essas imagens de africanidades invadem as escolas – e a cidade (com todas as minúsculas)? Quais reconfigurações explosivas podem acontecer quando essas novas trajetórias passam a compor arranjos nesse espaço?

Se estas imagens-outras habitarem a cidade, que perturbações engendrarão? Que dissonâncias e cacofonias dizem as imagens quando atravessam? E como deixa-las atravessar, fraturando sua possibilidade de ser evidência, classificação?

Inquietações que atravessam e vão sendo elaboradas na prática de pesquisa, em diferentes movimentos que se interconectam nos encontros com intercessores. Esses movimentos organizam a escrita deste texto, embora não sejam sequenciais; são trajetórias de perambulações quase-simultâneas; composições e bricolagens a partir das escolhas de artistas, imagens e sons que ressoaram potentes ao pensamento, vibrando os músculos lisos do corpo que pesquisa.

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; movimentos a partir das imagens do curta “Rodas da Rua” (1995), de Orlando Mesquita e caraminholas sobre educação

e

; movimentos seguindo os fluxos dos trabalhos dos artistas Ayrson Heráclito, Rosana Paulino e Moisés Patrício

e

; movimentos desenrolados nas oficinas de criação de imagens realizadas em duas escolas municipais de Descalvado-SP

e

; movimentos disparatados pelo encontro com imagens do museu público de Descalvado e as sarjetas da cidade

Nas trajetórias que constituem o espaço, esse texto se faz como uma constelação de coisas-imagens e coisas-palavras justapostas em invenção. Movimentos-trajetórias-até-aqui de encontros, desencontros, reencontros, com as quais desenho mapas que não têm vontade de representá-los, mas que criam, em seus próprios desenhos, novas trajetórias possíveis.

São movimentos con-fabulatórios (ASPIS, 2011): fabulações com a intercessão de alguéns e intercessões nas fabulações de outrens.

Fabular é movimento que aparece e se indispensa nesse percurso de pesquisa-imagem-escrita, porque anseia o corpo no balanço do “entre”, da iminência e da imprevisibilidade dos arranjos. Não se cumpre uma criação possível, perambula-se atrás do que ainda é porvir; nem real nem ficção porque essas categorias já não bastam, já não se opõem, antes se amalgamam.

É movimento de “experimentação no real” (BOGUE, 2011, p. 22), na ânsia de liberação de tudo o que “esmaga e aprisiona” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.15). Desejo de criar vida, incontida, irrestrita, incontrolável: “[a] fabulação tem a força da linha de fuga, daquilo que escapa” (MARQUES, 2015, p.162).

Deleuze (1996) retoma a fabulação de Bergson entendendo-a em um sentido político. Aqui, fabular é movimento indispensavelmente político que se prolifera nos arranjos dos materiais poéticos: imagens em movimento, reproduções impressas de fotografias artísticas, palavras, sons, gestos.

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Como sinaliza Daniel Lins (2012), pensando estética como acontecimento, na Língua Portuguesa a palavra ética encontra-se contida em estética. Buscar por essa

est-ética na trajetória de pesquisa, que não tem desejo de “(...) uma verdade, de uma natureza

preexistente ou de uma vontade de fazer dela um dogma, uma opinião (...)” (2012, p. 20), mas que arfa por contaminações, forças múltiplas e multiplicáveis, invenções. Política e poética, uma est-ética. Amalgamar poética e política: est-ética.

Renata Aspis provoca: “No sentido político, talvez, a fabulação de Bergson seja confabulação, na medida em que não se pode fabular sem a intervenção de um ou mais intercessores, sem correr o risco de estar fazendo o discurso do colonizador, dos universais, da História.” (2011, p. 72). A autora, assim, instiga a pensar a fabulação como um movimento sempre em vários, no limiar, no entre-intercessores. Ser matilha, já que “O inventor nunca é um, mas multidões: intensidades andarilhas” (LINS, 2012, p. 20).

Deleuze e Guattari, Ronald Bogue, Davina Marques, Daniel Lins, Renata Aspis...são intercessores que instigam esta dissertação ao desafio de estar “em flagrante delito de fabular” (PERRAULT apud DELEUZE, 1996, p.157) COM imagens artísticas e questões raciais e escolas e cidade, para “criar novos modos de existir, insistir em existir, re-existir.” (ASPIS,2011, p.73 ).

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Se eu fosse desenhar um mapa de pesquisa... “...Trazendo para o mapa a possibilidade não apenas de orientar o navegador, mas feri-lo, na experiência do pungir.” (FERNANDES, 2017, p. 21)12

12 FERNANDES, R. E. O punctum na sarjeta: as redes sociais digitais e as histórias em quadrinhos. Tese

(Doutorado)- Universidade Estudal de Campinas, Faculdade de Educação. Orientador: Antonio Carlos Rodrigues de Amorim. 2017.

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Intercessores

ARROYO, M. Imagens Quebradas – trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis: Vozes, 2009

ASPIS, R. Resistência e confabulações. In: AMORIM, A. C.; MARQUES, D.; OLIVEIRA DIAS, S. Conexões: Deleuze e Vida e Fabulação e… Petrópolis/RJ; Brasília/DF; Campinas/SP: De Petrus; CNPq; ALB, 2011, p. 63-72.

BOGUE, R. Por uma teoria deleuziana da fabulação. In: AMORIM, A. C.; MARQUES, D.; OLIVEIRA DIAS, S. Conexões: Deleuze e Vida e Fabulação e… Petrópolis/RJ; Brasília/DF; Campinas/SP: De Petrus; CNPq; ALB, 2011, p. 17-35.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Parecer no 3, de 10 de março de 2004.

DELEUZE, G. Conversações. 2 ed. São Paulo: Editora34, 1996.

____________.; PARNET, C. Diálogos. (trad. Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998.

___________; GUATTARI, F. A Literatura e a vida. In: : __________________.

Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

_______________________. O liso e o estriado. In: __________________. Mil Platôs :capitalismo e esquizofrenia (v.5). São Paulo: Editora 34, 2007, p. 179-214.

_______________________. Kafka: Por uma literatura menor. 1a Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

FERNANDES, R. E. O punctum na sarjeta: as redes sociais digitais e as histórias em quadrinhos. Tese (Doutorado)- Universidade Estudal de Campinas, Faculdade de Educação. Orientador: Antonio Carlos Rodrigues de Amorim. 2017.

HALL, S. Quem precisa da identidade? Trad Tomaz Tadeu da Silva. In Silva Tomaz Tadeu (org) Hall, Woodward, Kathryn, Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis. Editora Vozes, p. 103-133, (1996), 2000.

INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012.

KOPENAWA, D. ALBERT, B. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo : Companhia das Letras, 2015.

LINS, D. Estética como Acontecimento. In: DIAS, S.O; MARQUES, D.; AMORIM, A.C. Conexões: Deleuze e Arte e Ciência e Acontecimento e... Petrópolis/RJ;

Brasília/DF; Campinas/SP: De Petrus; CNPq/MCT; ALB, 2012. p.17-36.

MARQUES, D. Entre fabulações de uma formação docente. Revista Digital do LAV. Santa Maria, vol. 8, n. 2, p. 160 - 174, mai./ago. 2015. Disponível em: <

https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/download/19870/pdf > . Acesso em 25 ago. 2018.

(23)

MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

RODAS da rua. Direção: Orlando Mesquita. Maputo: Promarte, 1995. 5 min. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=8pUgivNC6HI >. Acesso em 29 jul 2018. VEIGA-NETO, A. Incluir para excluir. In: SKLIAR, C; LARROSA, J. Habitantes de

babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 105-118.

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MOVIMENTOS CONFABULATÓRIOS I

MIRADAS

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Planos de ensino que se orientam em objetivos, conteúdos e metodologias entopem a mesa de trabalho. O que fazer, quando fazer, como fazer...é preciso antecipar. Planejar cada passo do estar-sendo na escola. Mirar onde se quer chegar, onde se quer que os outros cheguem.

Mas estar-sendo é variância imprevisível. E no meio dos papeis-planos tem arame, alicate, martelo. Tem vídeo do

youtube aberto. Que intercedem, proseando, vibrando os

objetivos... enlouquecendo as miradas, que se movem, bailam e suspendem os pés no infinito gostando de não saber o próximo músculo que se contrairá.

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MOVIMENTO CONFABULATÓRIO I = corpo-pele-professora + curta-metragem “Rodas da Rua” (Orlando Mesquita, 1995) + acontecimento + educação + criação com imagens-áfricas

Mirar, de acordo com o dicionário Houaiss é, entre outros significados possíveis,

“Fixar os olhos em; fitar; (...) fazer pontaria para (um alvo); apontar. (...)” (HOUAISS, 2009, p. 1297). Mirada teria, assim, uma ideia de ponto fixo que parte do sentido da visão. Miradas-objetivos, tão presentes no cotidiano das relações escolares.

Essa seção busca pensar nas movimentações das miradas advindas dos encontros com conceitos e com o curta “Rodas da Rua”13. Movimentações que proliferam os pontos: pontarias multiplicadas, pulverizadas; olhar que se movimenta do olho e caminha por todo o corpo: o mirar do ouvido, o mirar do tato, o mirar do olfato, o mirar do sensível que desperta nas sensações corporais disparadas pelo filme. Objetivos que não existem de antemão, mas vão se construindo nessa movimentação incessantes das miradas. E se desdobram com (im)possibilidades de pensamentos com áfricas e ruas e infâncias e escolas.

rodas

O que fica à margem – entulho, lixo e criança. À margem de uma cidade movimentada, à margem do sistema de organização do trânsito. Grandes quantidades de clichês deslizando; fotografia fácil de se formar na mente, diante de tantas e tantas imagens de crianças na rua, de tantas imagens de áfricas.

Este curta pode ser mirado de muitas maneiras em sua narratividade: crianças na rua, crianças olham carros, fabricam seus próprios carros, os galimotos (brinquedos artesanais típicos de algumas regiões africanas), e brincam com esses carros.

A câmera, entretanto, não pretende explicar uma realidade; não há um desejo de contextualizar essas crianças, seu país, suas (sobre)vivências em uma metrópole que-fratura de “evidências” escolares- se encontra em Moçambique. Não sabemos ao menos se são crianças em situação de rua, ou crianças que vão à rua para brincar.

Em zoom in somos aproximados do movimento que se desenrola na cidade: trânsito, pessoas penduradas nos ônibus, guarda de trânsito, crianças. Os

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enquadramentos são muito próximos dos rostos, olhares, mãos e ferramentas dessas crianças, enquanto que se abrem em contextualização quando apresentam os veículos “adultos” em sua precária organização, e o organizador, o guarda de trânsito.

A trilha sonora começa organizada, com os sons da movimentação rodoviária que já reconhecemos. Aos poucos, inicia uma música ritmada que vai contaminando os sons de trânsito: os apitos vão se adequando à música ou a música se adequa aos apitos do guarda? Quando as crianças começam a coletar os materiais, o áudio volta a retratar os sons que seriam do ambiente; porém são muitas camadas juntas de sons, muitas vozes - de crianças e de materiais que rangem, gemem, ressoam - em quase desordem que se ordena no ritmo das marteladas.

A justaposição das imagens das crianças e dos veículos na avenida sinalizada acelera num ritmo sonoro e visual que se desdobra num jogo. Cada vez mais próximos, os rostos e os veículos invadem a imagem. O ritmo acelera. Seria um diálogo? Uma brincadeira? A cidade se dá conta da invenção que vem sendo gestada às suas margens? E surgem, dos descartes, das mãos, dos alicates, pernas e risadas dessas crianças outros carros, outros veículos. Carros-galimotos que ficcionam a realidade. E que (ir)realidades são possíveis nesse jogo?

(28)
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O espaço das ruas – assim como o espaço das imagens- vai sendo ocupado pelos carros inventados, pelo galimoto em contra-plongée (que pedala em ritmo tão singular que dilata o tempo da imagem), pelos rolimãs, pelas crianças-veículos abrindo lugar para as brincadeiras. Crianças que se põem em cena (VILELA, 2010, p.51) com a intensidade de seus corpos.

Ainda persiste uma tentativa de organização nas placas de trânsito, que, aos

poucos, vão ficando menos inteligíveis até que...

STOP

!

O som suspenso espera pela resposta em imagem e:

uma criança mostra a língua para a câmera para a placa para o espectador

A partir daí, a camada principal de som será composta pelas vozes das crianças; ao fundo, o ritmo marcado pela percussão (talvez bateria?).

E os que eram antes margem, antes invisíveis porque fora dos limites de um “urbano desejável”, não só coexistem nas ruas, mas ignoram as sinalizações, desestabilizam as fronteiras...inventam as próprias sinalizações.

E aqui chamo Eugênia Vilela para conversar, ela que diz, a partir de Deleuze e Guattari, que “na filosofia ou na arte, criar é resistir” (2006, p.125). As forças de invenção dessa infância em África, que habitam o filme, seriam resistências? As visualidades e sonoridades organizadas no curta são afetadas pela energia brincante daquelas crianças, mas dobram-se e desbobram-se fazendo com que o filme invente também uma infância em áfrica, múltipla, vívida, escorregadia, brincante. Vilela considera – chamando Foucault- que a resistência existe na relação com o poder, e suas táticas e estratégias hão de ser tão inventivas quanto os mecanismos que produzem certos efeitos de poder.

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A potência do curta talvez esteja no fato de que o filme não oferece voz às crianças, tampouco fala por elas, ou sobre elas. É mais um contágio que se desenrola nos agenciamentos crianças-ruas-materiais-cinema. Criação e brincadeira acontecem, com a câmera, mas para além dela. Como se as imagens corressem seguindo os fluxos dos galimotos-brincantes.

A sequência nômade das imagens, em cenas que não se deixam ficar, movimentam-se pelo espaço, fazem-me pensar que a lógica da brincadeira invade a criação cinematográfica para criar não um filme sobre crianças de rua em Moçambique, mas um filme-criança-de-rua.

O ritmo do som e da justaposição das imagens inquieta o corpo que assiste, impele à ação, à perambulação, à manipulação, ao riso. Como quando somos crianças, à beira de uma brincadeira na rua, esperando aquele microsegundo em que algo acontecerá para entrarmos também no jogo. No filme, esse momento nunca chega, porque a imagem se abre, em zoom out, lembrando que estamos na verdade distantes, olhando de cima para uma cidade cheia de criações insuspeitadas. Movimento de captura das lisuras crianceiras pelo estriado urbano no zoom out? Movimento de ruptura do estriado-sistema-de-trânsito nas maquinações-galimotos?

Se penso nesse filme como resistência criativa, como lisura insurgente, como produção que pode desestabilizar as fronteiras e as certezas sobre infância e áfricas, não para colocás-la mais pra lá, mas para tornás-la incertas, frágeis, inquietas (VILELA, 2006, p. 109)... Quais as suas potências quando invade as linhas duras da escola?

Uma escola – que se desdobra no corpo-docente e na cidade - ávida por identificar e classificar, na demanda da obrigatoriedade da lei, aquele que é o outro: aquela que seria a África, aquele que seria o de fora, vítima e problema- a criança de rua. As rodas podem contagiar novas criações-resistências, que estremeçam essas linhas duras? Podem nos mobilizar a não entender o outro como objeto, mas a criar com ele?

***

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A imagem de áfrica que passava por essa mãe. A imagem de áfrica que passava pelo livro didático – manifestações a serem representadas. A imagem de áfrica faminta, seca, desolada. A imagem de áfrica do futebol, da vuvuzela, de Nelson Mandela. A imagem de áfrica da savana, no drama animal-familiar de Simba, o Rei Leão. A imagem de áfrica que reverbera na matriz brasileira. Tantas imagens deslizam, imagens capturadas, stills, que produzem discursos sobre a realidade, evidenciando um determinado momento estético, político ou social e construindo e reconstruindo a memória deste momento (ALMEIDA, 1999, p. 10).

O que pode acontecer na sala de aula, quando efervescem essas imagens? O que pode acontecer quando essas imagens se desdobram, multiplicam-se no encontro com imagens-outras, imagens insuspeitadas?

Talvez essa seja uma aposta desse percurso de pesquisa (ainda em multiplicação nas práticas de ser professora-artista): pensar uma educação visual disparada pela legislação que trata das relações etnico-raciais, mas afetada por outros corpos-imagens, que desviam do desejo de representação predominante na maior parte do sistema escolar básico.

Período pouco entre escolas, enfiando imagens impressas nas sacolas, engolindo o almoço goela-abaixo. Primeiro encontro de oficina, correria, ansiedade. Toca o telefone, pega o telefone, atende, alô?

- Escuta, aqui é a mãe de fulana, queria saber o que vai ser esse negócio de áfrica que vai ter na escola agora a tarde. Ela me deu um papel para assinar.

- Ah, vai ser uma oficina com objetivo de...

- Mas olha, o negócio é o seguinte, cês não vão ficar pelado, não, né?

- ...oi?

- Esses negócio de áfrica, sei lá, todo mundo fica pelado, cê não vai fazer isso, que ela é de menor, né?

- ...Não....nós vamos assistir uns filmes, ver umas imagens, discutir um pouco sobre preconceito, mas não tem sentido tirar a rou..

- Ah, então, tá, mas ainda vou ver, viu? Não sei, se nesses filmes vai ter alguma coisa, tem que ficar esperto, então tá, tchau.

O telefone me olhou desconcertado. Enfiei o almoço na sacola e engoli as imagens.

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Como as crianças do filme, perambular por esses lugares escolares, recolhendo o lixo que me convém para criar próprias rodas.

Não proponho gerar modelos de boas práticas, tampouco mapear os clichês sobre áfricas, nem substitui-los por outras imagens “mais verdadeiras”. Isso seria apenas deslocar a fronteira mais para lá, adensando novos clichês. Chacoalhar a fronteira é o que procuro, colocando em risco as certezas que tive. E falando em fronteiras, misturo – com consciência dos riscos dessa escolha- imagens de cinema e imagens de fotografia, artistas africanos e artistas afro-brasileiros. Chamo todos de áfricas (embora entenda as singularidades de contextos e questões), por pensar em forças-áfricas que podem ressoar nessas produções artísticas e reverberar no cotidiano (escolar).

E são os encontros entre as forças das imagens e as coisas escolares (eu, estudantes, espaços, objetos) que me pareceram potentes ao pensamento, que forçam meu pensamento a pensar (DELEUZE, 1998). Suely Rolnik, em palestra proferida para o cargo de professora titular da PUC/SP, diz: “o pensamento é fruto da violência de uma diferença posta em circuito” (1993, p. 145); os encontros de que falo são esses momentos no tempo-espaço escolar em que as coisas escolares, na diferença, entram em circuito.

Desses encontros, o que emerge nem sempre é esperado, nem sempre fala exatamente sobre o tema escolhido. Mas é essa justamente a potência, como pontua Amanda Leite (2016, p. 27) ao discorrer sobre devir e fotografia:

O movimento que a fotografia nos pede é o de procurar a diferença. Perceber que o mesmo não é mais o mesmo. De certa maneira, deixar-se atravessar pelo deixar-sensível. O deixar-sensível que entra em contato com a perdição para criar o novo, viajar e descobrir no risco algo ainda não dito.

A gente não aguenta mais ouvir professor falando de África e ficar passando slide e falando de racismo! Credo, chega, aquela professora [...] só fala nisso e se a gente abre a boca ela diz que a gente é racista. Eles falam falam falam, a gente cansa e eles não falam é nada.

(Melissa, em explosão depois do filme “Rodas da rua”. Caderno de campo, abril/ 2017)

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Na escola saturada de discursos a serem aprendidos, talvez uma educação que tenha como mira combater o preconceito racial tenha também que murchar de certezas e abrir-se para movimentos de “descobrir algo ainda dito”; deixar-se atravessar pelo sensível, por coisas (des)importantes. Como inspira Manoel de Barros (2015) :

O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis

Aprender ignorâncias me parece um desejo desviante dentro do sistema escolar em que tudo deve ser importante o suficiente para virar livro. A voz das águas e dos caracóis pede por essa outra aprendizagem que não tem um objetivo irredutível (uma mira?) a se perseguir, um caminho prévio a se trilhar, mas que se constroi na própria experiência com o trajeto e as coisas que o rodeiam.

A mirada do professor, como seria? Talvez cambiante, em derivas, soluçante, uma mirada “capaz de admirar-se face à aparente banalidade do cotidiano” (BARCENA, VILELA, 2006, p.18). Mirada

s

pulverizadas, que não esperam de antemão por algo, que não fazem pontaria, embora alertas em sensibilidade para o que pode estourar no momento.

Fernando Bárcena e Eugenia Vilela, pensando a educação a partir do conceito de

acontecimento 14, dizem que acontecimentos irrompem sem serem previstos, e

introduzem uma fratura no tempo, criando “certa descontinuidade” que nos dá a pensar. Ao contrário de um fato, porém, que pode dar-se a conhecer, o acontecimento é inenarrável: como dizer de um acontecimento? Com pistas em Deleuze, os autores consideram que “Dizer o acontecimento é nomear o que ocorre como dobra do real [...], é pensar o inesperado” (IDEM, p.18). Nessa dimensão do pensar, “um acontecimento não é aquilo sobre o qual experimentamos, mas justamente esse outro que faz experiência em nós, porque é algo que nos acontece e não nos deixa iguais.” (IDEM, p.18).

Considerando o conhecimento poético como o que nos permite a “aprendizagem do surpreendente”, Bárcena e Vilela ainda sugerem que pensar a educação como

14 Os autores, no texto citado, constroem o verbete Acontecimento para o Dicionário de filosofia da

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acontecimento significa pensar uma práxis poética em que a relação entre os agentes não é mais “classificatória, determinante”, mas que a deixa aberta a múltiplas proliferações e invenções de sentido; lugar em que se abandona a pretensão de condução do olhar do aprendiz para convergir um “olhar partilhado” (p.19).

Os encontros entre escola (em suas múltiplas dimensões: espaços, alunos, livros, currículos, professores) e imagens de arte-áfricas podem engendrar aprendizagens surpreendentes, se forem encontros repletos de atravessamentos e inquietações. Se resistirmos à “tentação difícil e/ou impossível de evitar”, de acordo com Skliar, que é “traduzir toda alteridade radical até transformá-la em próxima, fazer do outro uma elipse e eclipsá-lo, obrigando-o a se aproximar de nós” (2004, p. 74).

Nem fazer do outro uma elipse, substituindo-o por uma vírgula e sub-entendendo sua presença; nem fazer com o outro um eclipse, projetando-me sobre ele até obscurecê-lo total ou parcialmente. Que fazer então? Tornar outros intercessores do pensamento, contrair com outros núpcias, até que outros atravessem, ofusquem, desorganizem qualquer pretensão de certeza prévia.

Cavar brechas para que essas imagens-outras movam as imagens e desejos escolares, imagens-entre, em sobreposições e movimentos constantes que desassossegam o já visto, não para substituí-lo por outras imagens (nem imagens-outras), mas para instigar a invenção de imagens ainda por se fazerem.

Talvez deixar os corpos vagarem em uma aprendizagem das ignorâncias, em fluxos com as forças das imagens artísticas.

Inventar movimentos no encontro com os materiais-imagens, como o curta “Rodas da Rua”, que partilha a experiência que as crianças-galimoto inventam na itinerância com a sucata e a rua.

Con-fabular com essas imagens de artes-áfricas, seguindo com elas novos fluxos criativos, para deixar-nos afetar, pensar, cantar, perambular e rir nos ritmos das rodas.

Coexistir e estremecer o trânsito parcamente organizado das identidades na escola e suas reverberações nos corpos e na cidade.

[ Diafragma soluçante no desejo de encontrar nas escolas, nas imagens e nas ruas a força da vida -fratura fértil e incontrolável. ]

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7h

buzina sinal montinhos de coisas largadas nas sarjetas

cobertor papelão dois jornais um pé de chinelo haviana fio de cobre da construção da frente três punhados de palavras difíceis

pra fazer alguma coisa com isso tem que roubar alicate. martelo. faca Pá pá pá paá Trrrim trrrim irrchiii pá pá pá irrchiii

Trrrim trrrim irrchiii pá pá pá irrchiii

Trrrim trrrim tun tá pá pá Trrrim trrrim irrchiii pá pá pá irrchiii trrrim trrrim tun tá pá pá

O tun pá pá marteloso vai gritando eco no falatório cheio de silêncio Se pá sai coisa

13h

o asfalto quente come o giz.

as pedrinhas não deixam a letra ser certa

dá pra uma palavra e meia e queimar a ponta do dedo tentando terminar deixa meia palavra e meio silêncio

do lado da faixa de pedestre

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17h

carro carro carro carro carro ônibus moto carro carro carrinho carrão moto moto bicicleta pé com dedão sem tampa.

passam correeeeendooo

precisa apertar o olho pra ver no meio disso tudo veículo caracol

lambrecando a rua com melecas caracolescas que dão pra escorregar

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Intercessores

ALMEIDA, M. J. A educação visual da memória : Imagens Agentes do Cinema e da Televisão. Pro-Posições, vol. 10, n. 2 (29), p. 5-18,. Campinas, 1999.

BÁRCENA, F; VILELA, E. Acontecimento. In: CARVALHO, A. D. de (Coord.).

Dicionário de filosofia da educação. Porto: Porto Editora, 2006. p.14-19.

BARROS, M. de. Menino do Mato. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.

DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. (trad. Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998.

LEITE, A. M. P. Fotografia para ver e pensar. 2016. 343 f. Tese [Doutourado em Educação]- Progarma de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Ilha de Santa Catarina, 2016.

MIRAR (verbete). In: HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro, Ed. Objetiva, 2009.

RODAS da rua. Direção: Orlando Mesquita. Maputo: Promarte, 1995. 5 min. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=8pUgivNC6HI >. Acesso em 29 jul 2018. ROLNIK, S. Pensamento, corpo e devir : uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2, p. 241-251, São Paulo, set/fev. 1993.

SKLIAR, C. A Materialidade da Morte e o Eufemismo da Tolerância. Duas Faces, Dentre as Milhões de Faces, desse Monstro (Humano) Chamado Racismo. In: GALLO, S.; SOUZA, R. M. (orgs.). Educação do Preconceito: Ensaios sobre poder e resistência. Campinas, SP: Editora Alínea, 2004, p. 69-90.

VILELA, E. Resistência e Acontecimento: as palavras sem centro. In: KOHAN, W.; GONDRA (orgs). Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autência, 2006, p. 107-127.

__________. A infância entre as ruínas. In: PAGNI, P. A.; GELAMO, R. P. (orgs.).

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MOVIMENTOS CONFABULATÓRIOS II

oferendas costuras feridas:

gritar por outras vozes

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Na tela do computador aglomeram-se imagens. Embaixo do teclado, elas reverberam, impressas em diferentes papeis, gramaturas diversas; tudo o que foi possível fazer com os materiais disponíveis na papelaria da cidade e com o que sobrou do salário do mês. Passam-se dias. meses.

As imagens passam as pupilas, chegam no

cristalino, invertem-se nas retinas.

Arrepiam os pêlos do braço. Dão nós nas tripas. Emaranham as cordas vocais.

Desvio o olhar; no canto embaçado da visão- periferia desestruturada.

Sinto no pescoço que elas espreitam. Ouço as vozes que gritam desde dentro delas; me cantam uma canção. “clique, clique, clique; tantantan tantan; voa semente”.

As vozes me encaram, me perguntam: Que quer nos perguntar? Que quer? Quequer? Q?

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Encontrar com imagens

Que querem as imagens? O que as imagens querem é não serem interpretadas, decodificadas, veneradas e nem tampouco embelezar seus observadores. Possivelmente nem sempre querem ser merecedoras de valor pelos ‘interpretadores’ que pensam que toda imagem deve ser portadora de características humanas. As imagens podem projetar-nos a aspectos inumanos ou não humanos (...) O que por último querem as imagens é serem perguntadas sobre o que querem, com o subentendido de que inclusive pode não haver resposta. (MITCHELL, 2015, p. 187)

O que pode estourar quando as imagens se apresentam para um encontro, e não como um objeto a ser destrinchado?

Em seu texto sobre cartografia, Luciano Bedin da Costa afirma que o encontro “é da ordem do inusitado e nunca se faz sem um grau de violência [...] porque nos desacomoda e nos faz sair do mesmo lugar” (2014, p. 72); em outras palavras, um encontro nos dá a pensar. Deleuze, na série de entrevistas que compõe o Abecedário de Deleuze (1988), alerta que os encontros não se dão com pessoas, mas com coisas, com obras. O filósofo se refere aos encontros que dão a pensar, que mobilizam o pensamento; assim desfoca da pessoa como sujeito da cultura- escapando da ideia de erudição- e propõe sair à espreita de encontros, com quadros, com filmes. Nesse sentido, podemos sair à espreita de encontros e encontrar com imagens.

Perguntar às imagens sobre seus desejos, como sugere Mitchell, desloca o sensível para um movimento ziguezagueante (COSTA, 2014, p. 72) e singular que se abre ao risco do encontro (inclusive à possibilidade de que ele não aconteça).

Aqui, especificamente busco pensar com imagens fotográficas de Moisés Patrício, Rosana Paulino e Ayrson Heráclito. Fotografia que é material mesmo da arte (no caso de Moisés), mas que também é captura de outros materiais – como os bastidores de Rosana e as performances-rituais de Ayrson; nesses casos, fotografias-fantasmas de outras sensações propostas, e que cambiam entre o registro de uma obra e uma criação afetada pelas forças dos trabalhos fotografados.

São imagens que dizem das (im)possibilidades de existências desses corpos negros -identidades marcadas- nos fluxos de relações com o urbano, os objetos, os símbolos, as memórias, os racismos cotidianos, as forças in-visíveis dos orixás...

Nas escolhas estéticas dos artistas, os corpos-imagens movimentam as próprias marcações identitárias, abrindo terrenos para atravessamentos singulares da imagem

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como superfície. Mais que representação das experiências desses sujeitos na realidade brasileira e mais que ilustração da matriz africana presente no país, essas imagens atuam como captura de forças (DELEUZE, 2002, p.62) invisíveis tornadas visíveis nos enquadramentos, cores, materiais.

É comum que o encontro entre escola e imagens fotográficas e cinematográficas seja permeado por pretensões de realidade e verdade que estariam contidas na representação.

A escola, assim como a sociedade ocidental, em geral toma a imagem fotográfica como documento da realidade, por sua capacidade de informar dados, lugares, pessoas, épocas. É a fotografia percebida como um “pacote de informações”, de acordo com Alik Wunder (2006, p.2). Perceção esta que embute em si a noção de que existe de fato uma realidade mais “real” acessada pela fotografia: como é obtida a partir de recursos técnicos – câmeras, por exemplo- anula-se a ação manual do fotógrafo que recorta, cola, dobra e compõe com a realidade.

Por isso, a autora ressalta que, ao mesmo tempo, a fotografia também pode ser percebida como uma “nuvem de fantasias”, “um discurso visual mediado pelas subjetividades daqueles que fotografam e daqueles que observam fotografias” (SONTAG, 2004 apud, WUNDER, 2006, p.4).

Talvez fosse interessante pensar nos trânsitos entre essas percepções, nem realidade, nem fantasia (ficção), mas realidades que vão se combinando e se construindo no ato de construção da imagem.

Assim, convidar essas imagens para conversar na escola implica “Perceber que na busca pela verdade (aparentemente contida na representação do real) a fotografia é suscetível ao jogo da reversibilidade que combina e compõe realidades e ficções” (LEITE, 2016, p. 257). Nesse movimento de jogo, a própria ideia de que existe uma realidade passível de ser apreendida pela linguagem (pela imagem), contraposta à fantasia e ficção, poderia ser questionada.

Trata-se, então, de considerar a fotografia – que aqui ampliarei também para as imagens em movimento do cinema- menos como prova de realidade ou suporte de conteúdo a ser desvendado e mais como invenção (que por isso não deixa de ser realidade), tanto em sua produção quanto nos encontros que estabelece com outros observadores. Trata-se de considerar o movimento inventivo das imagens -na sua produção e na sua observação- como um exercício também de criação de pensamentos.

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Como ressalta Amanda Leite, não se trata aqui de pensar em oposições entre o real e o irreal; a questão, coloca Rancière, não é dicotomizar historiadores e poetas -fatos e ficções-, mas potencializar os trânsitos entre realidade e ficção, entre discursos históricos e narrativas estéticas, já que “O real precisa ser ficcionado para ser pensado” (2005, p.58).

Assumir, assim, o potencial de produção de saberes- e realidades- que se movimenta nas perambulações do ficcional, implica “Um movimento marginal” (LEITE, idem, p. 300), de deslizamentos e fissuras, de “aprendizagem surpreendente” (BÁRCENA; VILELA, 2006). Implica em compreender imagens não como objetos, mas como coisas.

Levando adiante a tese de Heidegger, o antropólogo Tim Ingold diferencia objeto e coisa: enquanto o primeiro traz uma noção de fato consumado, de superfície externa e congelada, de dado já terminado, a coisa seria “um certo agregado de fios vitais” (2012, p.29), em comunicação aberta com o exterior, já que os fios que a constituem não estão contidos apenas nela, mas no exterior e em outras coisas...os fios “ deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas”. (idem, ibidem)

A aposta de Ingold nas coisas se faz potente para pensarmos também a educação visual: uma educação que se dá no encontro com imagens, com subjetividades, com instituições que vazam. Imagens em porosidade com as coisas que as cercam e não imagens que se fecham, oferecendo um dado representado; imagens que vazam para além da presença de um observador humano (que trocas potentes podem haver entre imagens e coisas escolares? Imagens-em-bebedouros, lousas-nas-imagens?)

Quando se pergunta “Onde começa a árvore e termina o resto do mundo?” (p.28), Ingold propõe o exercício de pensar sobre as permeabilidades entre as superfícies, pelas quais circulam forças de vida que geram movimentos incessantes – os quais reconstroem as superfícies, sempre temporárias. A árvore é uma coisa na relação íntima que trava com os pequenos seres em seu tronco; a pipa não é um objeto ao qual daremos vida (sobre o qual temos agência) ou que tem um princípio de agência próprio que nos afeta, mas uma

coisa: trazida à vida na relação com o vento, uma “pipa-no-ar”. Nesses fios que compõe

as coisas, a vida acontece: as coisas surgem, trombam-se, entrelaçam e se recriam continuamente.

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Não estamos falando, nesse caso, de conexão ou de agência, como pontua o autor. Não é o caso de dois pontos que se ligam, ou de uma polarização objeto-sujeito em que um tem agência sobre o outro; mas de um fluxo, um movimento no qual os pontos de perdem pois o que importa é o trajeto: é no trajeto-processo que a vida acontece, incontida apesar das tentativas de delimitá-la em superfícies organizadas. Esses fluxos de vida estão pulsando nos materiais do mundo, ao contrário da ideia de matéria (ou materialidade) que precisa da força humana para torna-la forma. Assim, “onde quer que olhemos, os materiais ativos da vida estão vencendo a mão morta da materialidade que tenta tolhê-los” (p. 37), seja a erva-daninha rompendo o asfalto, sejam as “ignorâncias” e “caracóis” na sala de aula.

A percepção para as coisas e os fluxos de vida no leva a perguntar: onde termina a imagem e começa a escola? Se pensarmos nas superfícies das imagens e em seus materiais como feixes de fios, porosas, quais as relações potentes que estabelecem na educação escolar? Onde termina a imagem e começa o professor? Que pequenos seres habitam nesses vazamentos? Que fios soltos permitem ser vislumbrados numa pesquisa? Questões que tencionam trazer as imagens-coisas de volta a vida na escola, ou mais precisamente, descobrir a vida que pulsa nas imagens-coisas, em geral contida em superfícies bem organizadas e legendadas no cotidiano escolar.

E sobre o “trazer de volta a vida”, Ingold retoma a ideia de seguir as forças dos materiais elaborada por Paul Klee, de itinerar nos fluxos, como compõem Deleuze e Guattari (2007). Trazer de volta a vida- a criatividade- é um movimento de “ler as coisas ‘para a frente’” (p. 38), ou seja, de não percorrer novamente os pontos já traçados, tentando conectá-los, mas de seguir no processo do trajeto; seguir para a frente, seguir as forças dos materiais, seguir os fluxos dos emaranhados de linhas, em movimentos de “descarga e vazamento”, no contrário da captura e contenção.

Embora o texto de Ingold trabalhe articulando oposições (objeto e coisa, agência e vida, materialidade e material), é importante considerar que os movimentos de captura e os de vazamento -assim como espaços lisos e estriados (DELEUZE; GUATTARI, 2007) , ou, no limite, realidade e ficções, como já comentado- não são excludentes entre si. Se fossem, seria fácil cairmos na armadilha de substituir um movimento pelo outro como proposta de resolução dos problemas escolares.

O que nos interessa é a composição desses movimentos que sempre se reorganizam e se transmutam: os espaços lisos que se convertem em estriados, os estriados que remontam a lisuras, os movimentos de vazamento que tentam ser

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capturados – inclusive esse é um grande desafio desse processo de escrita- e as capturas que podem vazar. É nos fluxos desses movimentos que propomos os encontros com as imagens de arte, entendendo-as coisas.

Coisificar, então, as imagens que perambulam e constituem os espaços é também entendê-las intercessoras do pensamento, em movimentos de vazamento. Assim, perceber as vibrações da força de vida de seus materiais, sem dissociar as imagens de suas superfícies: imagens impressas, imagens em livros, imagens recortadas, imagens projetadas sobre, imagens em sarjetas... os materiais do mundo e os materiais das imagens em contaminação incessante nos fios soltos que vazam de suas superfícies. Assumir imagens-coisas para lê-las para frente, sem desejo de buscar nelas verdades ou representações, mas querê-las parceiras nos delitos confabulatórios. Ser arrebatada por suas forças, seguir em suas vagas, inventar COM. Resistir aos murais explicativos que paralisam seus fluxos: insistir em sentir a pulsação poderosa da vida das imagens-coisas.

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15

15 Moisés Patrício, série Aceita? (2013-2017), fotografia digital. Seleção de selfies postadas no aplicativo

Instagram (montagem minha). Disponível em: <http://instagram.com/moisespatricio>. Acesso em 28 de julho de 2018.

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Aceita?

Eu olho para ela, ela olha para mim. Eu não sei o que ela quer dizer mas parece que é comigo que ela quer falar. E não sei, é bonita e me faz sentir livre, mas tem as cordas...Ela me faz não ter certeza, parece que tem muitas coisas para falar ao mesmo tempo. E silêncio. Ela me faz não ter certeza.

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A palma da mão direita, aberta, ocupa o centro das fotografias e é emoldurada, acima e nas laterais, pelos objetos e texturas do fundo, que com ela dialogam. Mas o braço que sustenta a mão escapa da moldura inferior e se prolonga para além do quadro fotográfico, remetendo ao corpo-artista que captura o instante em imagem; talvez nos lançando a um “fora” da imagem que também constitui seus sentidos possíveis.

Nas palavras do próprio artista, a mão, na relação com os objetos, ativa-os16. Os

objetos, recolhidos de descartes, de margens, do que se (não) vê em trajetos. Como as crianças moçambicanas, que nos movimentos corpos-descartes inventam veículos, a mão potencializa novas inventações para os objetos-restos.

A mão-braço, também, carrega uma marca identitária na cor da pele, na pulseira de búzios. Não estamos nos conectando aqui com qualquer tipo de ativação: a mão contextualiza as percepções e afetos do artista paulistano negro, em atitude de oferenda que remete aos rituais das religiões de matriz africana. É uma mão oferecendo, mas em tal ponto de vista que poderia ser a mão de quem observa. O braço vaza.

A composição da série lembra o retrato, quase o retrato 3x4 (não fossem as dimensões do quadro), em que a figura humana é captada de frente, diante de um cenário; a mão aberta remete à cabeça e o braço ao pescoço e ombros. Nas fotografias 3x4, a intenção é clara: a identidade se mostra no rosto do indivíduo, por isso o cenário procura ser o mais neutro possível. Na série de Moisés, não há rosto, mas a identidade se afirma; não é identidade de um indivíduo, porém, mas de todo um grupo marcado por experiências históricas, sociais e culturais que ressoam nos corpos em suas relações com os espaços que ocupam – ou dos quais se ausentam.

É interessante que o centro seja a mão. É a mão que oferece, mas também é a mão que se relaciona ao trabalho manual, na dicotomia -aqui inventada, em licença poética- com o rosto dos retratos tradicionais, que remetem ao trabalho intelectual. A divisão entre trabalho manual (braçal) e trabalho intelectual, que estruturou processos de ensino e divisão de funções sociais, é um resquício do processo colonizatório brasileiro que ainda encontra ecos nos dias atuais.

16Entrevista realizada por Patrícia Costa para o site Afreaka, em que o artista afirma: “Eu parto

do discurso dele de pegar um objeto que não tenha nenhum traço humano, nenhum gesto, e tento ativar na minha mão”, referindo-se à influência de Duchamp em seu trabalho. Disponível em: <http://www.afreaka.com.br/notas/arte-e-o-candomble-nas-maos-de-moises-patricio-aceita>. Acesso em 30 jun. 2017.

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