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Dois pés em chinelo de dedos e uma sacola com restos de imagens recortados. Andam pelas ruas de uma cidade, procurando sarjetas. O par de pés e a sacola perambulam para pensar. Tentam reencontrar aquilo que passou há tempos. Fazem os mesmos caminhos pelo espaço da rua e esperam que o tempo volte.

Mas não é possível voltar no tempo-espaço. Porque o espaço é uma simultaneidade de histórias-até-agora, produto das relações-entre, sempre por se fazer (MASSEY, 2009, p. 29). Não podemos voltar no espaço porque as trajetórias que se arranjam e constituem o espaço mudaram. Estão mudando. O espaço já não é mais o mesmo.

É o que propõe Doreen Massey: quebrar com a ideia usual de que o espaço é uma superfície estática e fechada sobre a qual passamos e agimos; liberar, assim, a potência do espaço aberto, multiplicidade vívida em que “há sempre conexões ainda por serem feitas, justaposições ainda em desabrochar em interação (ou não, pois nem todas as conexões potenciais têm de ser estabelecidas)” (idem, p. 32).

Dois pés apoiados na massa asfáltica, leve sola de borracha que deixa sentir as pedrinhas engastadas. Preocupados em cartografar suas trajetórias, que podem fazer?

Podem encontrar de novo: reencontrar com histórias de outros até-agora; entrelaçar mais uma vez com outras dessas múltiplas trajetórias (MASSEY, 2006). Seguir os fluxos com as coisas, que continuam vazando (INGOLD, 2012).

Dois pés, que mal sustentam um corpo-professora-pesquisadora no espaço da cidade, continuam caminhando, encaixando-se um após o outro no espaço da sarjeta, raspando de leve a lateral no meio-fio, fazendo curvar o tronco para se equilibrarem, atraindo outros olhares- trajetórias de dentro do bar mais tradicional dessa cidade.

No “aqui-agora”, esses pés co-produzem o espaço da cidade enquanto enumeram as perguntas que fizeram disparar o movimento do primeiro músculo, que mudaram as direções, interromperam trajetórias e entrelaçaram novas trajetórias-outras nesse percurso.

De dentro da sacola, ebulem imagens-coisas, desejosas de entremear seus fios nos fios da cidade.

O que acontece quando imagens de arte que carregam experiências identitárias negras tornam-se intercessoras para povoar o agir e sentir de uma professora branca numa cidade do interior?

No limite, como se fazer vários com os artistas e com o espaço da cidade (que é constituído pela trajetória da escola, do museu, do corpo-docente...?)

Para pensar, intercessores que cutucam o pensamento. Conceitos e arranjos de pensamento e de visualidades que cutucam os movimentos do pensar aqui dispostos. Um

trânsito quase inadvertido entre esses intercessores, arranjo meio doido, talvez pouco rigoroso, que me faz, no meio da sacola de imagens, reencontrar conceitos de outro campo, de outra pesquisa, que me permearam em 2007.

Viração é um conceito construído por Maria Filomena Gregori (2000) em sua etnografia sobre meninos de rua. Durante quatro anos (1991-95), a autora coletou depoimentos de meninos e meninas que viviam nas ruas de São Paulo e de agentes institucionais que os atendiam. O movimento de viração é o movimento de sobrevivência dos meninos e meninas nas ruas: é o “se virar” na metróple. Para existirem, precisam aprender a lidar com cada espaço e pessoa; por isso diante do(a) educador têm uma conduta, diante de instituições de apoio, têm outra. Viração é a arte de viver no limite, sobre-viver.

Ela exige a circulação, uma espécie de perambulação ou nomadismo pela rua, que faz com que as ligações e vínculos sejam constantemente mutáveis e permeados pelo próprio movimento de circular.

Viração é o movimento da sobre-vivência, na concretude da violência em que crianças e adolescentes existem na situação de rua. E pode ser também a afirmação de um modo de existir na cidade, na linha de fuga que se cria implodindo as instituições que não dão conta de garantir cuidados a esses meninos e meninas. Um modo de existência no limite, na indigência, na quase sempre violência que deixa ver -embora ninguém queira ver- o testemunho desses corpos fora-de-lugar. Como sobreviver fora de lugar? Estar fora-de-lugar também é uma violência, uma linha de fuga?

Quando essas crianças e adolescentes fora-de-lugar criam suas estratégias próprias de sobrevivência, circulando, em viração, nas artes de viver no limite...racham também as imagens que de antemão poderíamos querer projetar sobre elas; racham quando gargalham, quando transitam entre a infância e a maturidade, quando fazem malandragens, quando inventam jogos e brincadeiras, quando exalam o cheiro que só tem quem é corpo-coisa com o asfalto. Crianças e adolescentes em circulação constante, movimentos indisciplinados em flagrante delito de existir e viver. Vívidas, construindo nos arranjos entre suas trajetórias e trajetórias-outras o espaço da cidade.

Viração me parece um conceito interessante para deslocar, pois articula a ideia de sobrevivência no movimento, em trajetos que não são traçados de antemão, mas que se fazem no próprio fluxo do material rua. A própria ideia de crianças de rua já coloca em cena a permeabilidade rua-criança, como a pipa-no-ar ou a pedra-rolando de que nos fala Ingold (2012). Ou ainda, a criança-galimoto que habita o curta de Orlando Mesquita.

A potência da viração das crianças e adolescentes na rua arrasta o pensamento para a possibilidade de viração das imagens. Imagens-coisas, inseparáveis de seus materiais, recortadas, habitando os vãos das sarjetas, os postes, o espelho no banheiro, os bebedouros...Não desejam o mural, não desejam ser reconhecidas pela instituição escolar, não desejam o arquivo do museu. Querem existir, no entre: entre lugares, nem ilustração, nem representação, mas coisa viva, vívida, incontrolável, que faz ruído, às vezes baixinho, aquele pequeno ranger de dentes que vai atraindo o olhar e incomodando o fígado.

Entre lugares, imagens fora-de-lugar. Porque sem legenda, sem autoria; imagens furtadas para serem intercessoras, para que se crie com elas para a frente. Imagens-coisas em fluxo, porosas, contaminando com seus fios o cotidiano organizado e deixando ver-se como testemunho do que talvez não se queria ver.

E imagens que se viram: viram massa molhada compondo chão com o asfalto quando chove; viram presente quando o olho e a mão encontram nelas carícia; viram alvo quando macumbam; viram caraminhola em uma dissertação. Viram silêncio no hiato de seus versos brancos: esgotam.

Pensar na viração das imagens de arte na rua se faz potente também para deslocar a ideia de agência dos sujeitos participantes sobre as imagens. Entender a imagem como coisa é insepará-la de seu material, e de suas linhas soltas, que intervém, e sobre a qual se intervém. Movimento de contaminação contínuo, que faz com que as coisas vazem e faz com que entendê-las só seja possível na relação: imagem-na-sarjeta; imagem-no-poste, imagem-na- lousa, imagem-no-livro.

Mas só se vira na circulação. No movimento constante do perambular, que vai alterando os arranjos que constituem o espaço. Deixar as imagens circularem, sem contê-las. Qual a potência dessa escolha ao pensamento? Ao pensamento de uma professora branca, atingida pelas imagens de artistas negras e negros, pelos silêncios na formação inicial, na escola, na cidade. Pela dor do racismo que nunca sentirá. Pela vontade de dizer COM, não como lugar de fala, porque corpo-pesquisadora também está fora-de-lugar, mas pelo desejo de se deixar contaminar, de não ser porta-voz, de descer das calçadas bem conservadas, escancarar as portas do museu e deitar de corpo inteiro na sarjeta.

O corpo-pensamento deseja confabular. Encontrar com intercessores e se virar em cada encontro, movimentando-se bailarino, mesmo sem saber dançar. Assim se fez esse percurso de pesquisa: movimentos dançarinos do pensamento, golpeados pelos encontros, rearranjando- se enquanto produzem o espaço.

Esses movimentos produzem o espaço, produzem pele. Inserir nas trajetórias organizadas que constituem o espaço-cidade-Descalvado as trajetórias gaguejantes de imagens-coisas, fora-de- lugar, carregando identidades negras, altera a configuração do espaço-cidade. Mesmo que incômodos, pequenos movimentos na relação com as imagens movem o pensamento sobre a educaçao para as relações étnico-raciais na cidade em que se acredita, como tantas outras, não haver racismo. Fato é a impossibilidade de convivência com essas imagens-coisas, com esses textos-coisas, quando saem dos espaços dos slides das aulas e invadem o agir e o sentir cotidiano na cidade. Poéticos e políticos.

Pensamento em viração, a cada movimento de encontros, reconfigura-se e pula de novo no abismo. Menos para se deixar ir e mais para sentir a velocidade do vento contra o corpo, o frio na boca do estômago do se arriscar ao circular, as artes de viver no limite.

Imagem-coisa variante, companheira de vertigem, induz muito questionar que se multplica e não se resolve. Os problemas são mais estimulantes que as respostas e a imagem-coisa em viração provoca, altera, reconfigura o espaço. Dá a pensar, enquanto se vira e deixa ver seus versos brancos, esgotados do sem-tinta. Imagem não-imagem, coisa-ainda, que faz transbordar os silêncios porque não houve dados, não houve certezas....que conclusões podem haver, além do incessante desejo de incandescer a potência do vívido?

**** As trajetórias que se deixaram capturar um pouquinho nas palavras e imagens que compõe essa dissertação não cessam quando termino de escrever. Vibram, em novos feixes de arranjos, em movimentos incessantes; faz-se necessário, porém, algum fechamento. Algum gesto que diga: “esse movimento de pesquisa vem até aqui, leitor”. Aqui-agora, o esforço para fechar esse apanhado material de folhas impressas (ou digitalizadas) que oficialmente concluem o percurso do mestrado. Fechar, mesmo que lhe escapem fios, que arranjarão outros fluxos, outras insurreições, para além dos últimos caracteres de um texto, é quase-abertura. Como aquelas janelas velhas de madeira que nunca se cerram por inteiras porque a madeira- viva deixa frestas, brechas, vãos tortos por onde entram luz e vento.

Ao confabular um fechamento, as palavras flertam com janelas velhas, tentando descobrir as forças de vida que se viram nos vãos.

Intercessores

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APÊNDICE A -Glossário dos curtas utilizados no processo de pesquisa