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oferendas costuras feridas: gritar por outras vozes

Na tela do computador aglomeram-se imagens. Embaixo do teclado, elas reverberam, impressas em diferentes papeis, gramaturas diversas; tudo o que foi possível fazer com os materiais disponíveis na papelaria da cidade e com o que sobrou do salário do mês. Passam-se dias. meses.

As imagens passam as pupilas, chegam no

cristalino, invertem-se nas retinas.

Arrepiam os pêlos do braço. Dão nós nas tripas. Emaranham as cordas vocais.

Desvio o olhar; no canto embaçado da visão- periferia desestruturada.

Sinto no pescoço que elas espreitam. Ouço as vozes que gritam desde dentro delas; me cantam uma canção. “clique, clique, clique; tantantan tantan; voa semente”.

As vozes me encaram, me perguntam: Que quer nos perguntar? Que quer? Quequer? Q?

Encontrar com imagens

Que querem as imagens? O que as imagens querem é não serem interpretadas, decodificadas, veneradas e nem tampouco embelezar seus observadores. Possivelmente nem sempre querem ser merecedoras de valor pelos ‘interpretadores’ que pensam que toda imagem deve ser portadora de características humanas. As imagens podem projetar-nos a aspectos inumanos ou não humanos (...) O que por último querem as imagens é serem perguntadas sobre o que querem, com o subentendido de que inclusive pode não haver resposta. (MITCHELL, 2015, p. 187)

O que pode estourar quando as imagens se apresentam para um encontro, e não como um objeto a ser destrinchado?

Em seu texto sobre cartografia, Luciano Bedin da Costa afirma que o encontro “é da ordem do inusitado e nunca se faz sem um grau de violência [...] porque nos desacomoda e nos faz sair do mesmo lugar” (2014, p. 72); em outras palavras, um encontro nos dá a pensar. Deleuze, na série de entrevistas que compõe o Abecedário de Deleuze (1988), alerta que os encontros não se dão com pessoas, mas com coisas, com obras. O filósofo se refere aos encontros que dão a pensar, que mobilizam o pensamento; assim desfoca da pessoa como sujeito da cultura- escapando da ideia de erudição- e propõe sair à espreita de encontros, com quadros, com filmes. Nesse sentido, podemos sair à espreita de encontros e encontrar com imagens.

Perguntar às imagens sobre seus desejos, como sugere Mitchell, desloca o sensível para um movimento ziguezagueante (COSTA, 2014, p. 72) e singular que se abre ao risco do encontro (inclusive à possibilidade de que ele não aconteça).

Aqui, especificamente busco pensar com imagens fotográficas de Moisés Patrício, Rosana Paulino e Ayrson Heráclito. Fotografia que é material mesmo da arte (no caso de Moisés), mas que também é captura de outros materiais – como os bastidores de Rosana e as performances-rituais de Ayrson; nesses casos, fotografias-fantasmas de outras sensações propostas, e que cambiam entre o registro de uma obra e uma criação afetada pelas forças dos trabalhos fotografados.

São imagens que dizem das (im)possibilidades de existências desses corpos negros -identidades marcadas- nos fluxos de relações com o urbano, os objetos, os símbolos, as memórias, os racismos cotidianos, as forças in-visíveis dos orixás...

Nas escolhas estéticas dos artistas, os corpos-imagens movimentam as próprias marcações identitárias, abrindo terrenos para atravessamentos singulares da imagem

como superfície. Mais que representação das experiências desses sujeitos na realidade brasileira e mais que ilustração da matriz africana presente no país, essas imagens atuam como captura de forças (DELEUZE, 2002, p.62) invisíveis tornadas visíveis nos enquadramentos, cores, materiais.

É comum que o encontro entre escola e imagens fotográficas e cinematográficas seja permeado por pretensões de realidade e verdade que estariam contidas na representação.

A escola, assim como a sociedade ocidental, em geral toma a imagem fotográfica como documento da realidade, por sua capacidade de informar dados, lugares, pessoas, épocas. É a fotografia percebida como um “pacote de informações”, de acordo com Alik Wunder (2006, p.2). Perceção esta que embute em si a noção de que existe de fato uma realidade mais “real” acessada pela fotografia: como é obtida a partir de recursos técnicos – câmeras, por exemplo- anula-se a ação manual do fotógrafo que recorta, cola, dobra e compõe com a realidade.

Por isso, a autora ressalta que, ao mesmo tempo, a fotografia também pode ser percebida como uma “nuvem de fantasias”, “um discurso visual mediado pelas subjetividades daqueles que fotografam e daqueles que observam fotografias” (SONTAG, 2004 apud, WUNDER, 2006, p.4).

Talvez fosse interessante pensar nos trânsitos entre essas percepções, nem realidade, nem fantasia (ficção), mas realidades que vão se combinando e se construindo no ato de construção da imagem.

Assim, convidar essas imagens para conversar na escola implica “Perceber que na busca pela verdade (aparentemente contida na representação do real) a fotografia é suscetível ao jogo da reversibilidade que combina e compõe realidades e ficções” (LEITE, 2016, p. 257). Nesse movimento de jogo, a própria ideia de que existe uma realidade passível de ser apreendida pela linguagem (pela imagem), contraposta à fantasia e ficção, poderia ser questionada.

Trata-se, então, de considerar a fotografia – que aqui ampliarei também para as imagens em movimento do cinema- menos como prova de realidade ou suporte de conteúdo a ser desvendado e mais como invenção (que por isso não deixa de ser realidade), tanto em sua produção quanto nos encontros que estabelece com outros observadores. Trata-se de considerar o movimento inventivo das imagens -na sua produção e na sua observação- como um exercício também de criação de pensamentos.

Como ressalta Amanda Leite, não se trata aqui de pensar em oposições entre o real e o irreal; a questão, coloca Rancière, não é dicotomizar historiadores e poetas -fatos e ficções-, mas potencializar os trânsitos entre realidade e ficção, entre discursos históricos e narrativas estéticas, já que “O real precisa ser ficcionado para ser pensado” (2005, p.58).

Assumir, assim, o potencial de produção de saberes- e realidades- que se movimenta nas perambulações do ficcional, implica “Um movimento marginal” (LEITE, idem, p. 300), de deslizamentos e fissuras, de “aprendizagem surpreendente” (BÁRCENA; VILELA, 2006). Implica em compreender imagens não como objetos, mas como coisas.

Levando adiante a tese de Heidegger, o antropólogo Tim Ingold diferencia objeto e coisa: enquanto o primeiro traz uma noção de fato consumado, de superfície externa e congelada, de dado já terminado, a coisa seria “um certo agregado de fios vitais” (2012, p.29), em comunicação aberta com o exterior, já que os fios que a constituem não estão contidos apenas nela, mas no exterior e em outras coisas...os fios “ deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas”. (idem, ibidem)

A aposta de Ingold nas coisas se faz potente para pensarmos também a educação visual: uma educação que se dá no encontro com imagens, com subjetividades, com instituições que vazam. Imagens em porosidade com as coisas que as cercam e não imagens que se fecham, oferecendo um dado representado; imagens que vazam para além da presença de um observador humano (que trocas potentes podem haver entre imagens e coisas escolares? Imagens-em-bebedouros, lousas-nas-imagens?)

Quando se pergunta “Onde começa a árvore e termina o resto do mundo?” (p.28), Ingold propõe o exercício de pensar sobre as permeabilidades entre as superfícies, pelas quais circulam forças de vida que geram movimentos incessantes – os quais reconstroem as superfícies, sempre temporárias. A árvore é uma coisa na relação íntima que trava com os pequenos seres em seu tronco; a pipa não é um objeto ao qual daremos vida (sobre o qual temos agência) ou que tem um princípio de agência próprio que nos afeta, mas uma

coisa: trazida à vida na relação com o vento, uma “pipa-no-ar”. Nesses fios que compõe

as coisas, a vida acontece: as coisas surgem, trombam-se, entrelaçam e se recriam continuamente.

Não estamos falando, nesse caso, de conexão ou de agência, como pontua o autor. Não é o caso de dois pontos que se ligam, ou de uma polarização objeto-sujeito em que um tem agência sobre o outro; mas de um fluxo, um movimento no qual os pontos de perdem pois o que importa é o trajeto: é no trajeto-processo que a vida acontece, incontida apesar das tentativas de delimitá-la em superfícies organizadas. Esses fluxos de vida estão pulsando nos materiais do mundo, ao contrário da ideia de matéria (ou materialidade) que precisa da força humana para torna-la forma. Assim, “onde quer que olhemos, os materiais ativos da vida estão vencendo a mão morta da materialidade que tenta tolhê- los” (p. 37), seja a erva-daninha rompendo o asfalto, sejam as “ignorâncias” e “caracóis” na sala de aula.

A percepção para as coisas e os fluxos de vida no leva a perguntar: onde termina a imagem e começa a escola? Se pensarmos nas superfícies das imagens e em seus materiais como feixes de fios, porosas, quais as relações potentes que estabelecem na educação escolar? Onde termina a imagem e começa o professor? Que pequenos seres habitam nesses vazamentos? Que fios soltos permitem ser vislumbrados numa pesquisa? Questões que tencionam trazer as imagens-coisas de volta a vida na escola, ou mais precisamente, descobrir a vida que pulsa nas imagens-coisas, em geral contida em superfícies bem organizadas e legendadas no cotidiano escolar.

E sobre o “trazer de volta a vida”, Ingold retoma a ideia de seguir as forças dos materiais elaborada por Paul Klee, de itinerar nos fluxos, como compõem Deleuze e Guattari (2007). Trazer de volta a vida- a criatividade- é um movimento de “ler as coisas ‘para a frente’” (p. 38), ou seja, de não percorrer novamente os pontos já traçados, tentando conectá-los, mas de seguir no processo do trajeto; seguir para a frente, seguir as forças dos materiais, seguir os fluxos dos emaranhados de linhas, em movimentos de “descarga e vazamento”, no contrário da captura e contenção.

Embora o texto de Ingold trabalhe articulando oposições (objeto e coisa, agência e vida, materialidade e material), é importante considerar que os movimentos de captura e os de vazamento -assim como espaços lisos e estriados (DELEUZE; GUATTARI, 2007) , ou, no limite, realidade e ficções, como já comentado- não são excludentes entre si. Se fossem, seria fácil cairmos na armadilha de substituir um movimento pelo outro como proposta de resolução dos problemas escolares.

O que nos interessa é a composição desses movimentos que sempre se reorganizam e se transmutam: os espaços lisos que se convertem em estriados, os estriados que remontam a lisuras, os movimentos de vazamento que tentam ser

capturados – inclusive esse é um grande desafio desse processo de escrita- e as capturas que podem vazar. É nos fluxos desses movimentos que propomos os encontros com as imagens de arte, entendendo-as coisas.

Coisificar, então, as imagens que perambulam e constituem os espaços é também entendê-las intercessoras do pensamento, em movimentos de vazamento. Assim, perceber as vibrações da força de vida de seus materiais, sem dissociar as imagens de suas superfícies: imagens impressas, imagens em livros, imagens recortadas, imagens projetadas sobre, imagens em sarjetas... os materiais do mundo e os materiais das imagens em contaminação incessante nos fios soltos que vazam de suas superfícies. Assumir imagens-coisas para lê-las para frente, sem desejo de buscar nelas verdades ou representações, mas querê-las parceiras nos delitos confabulatórios. Ser arrebatada por suas forças, seguir em suas vagas, inventar COM. Resistir aos murais explicativos que paralisam seus fluxos: insistir em sentir a pulsação poderosa da vida das imagens-coisas.

15

15 Moisés Patrício, série Aceita? (2013-2017), fotografia digital. Seleção de selfies postadas no aplicativo

Instagram (montagem minha). Disponível em: <http://instagram.com/moisespatricio>. Acesso em 28 de julho de 2018.

Aceita?

Eu olho para ela, ela olha para mim. Eu não sei o que ela quer dizer mas parece que é comigo que ela quer falar. E não sei, é bonita e me faz sentir livre, mas tem as cordas...Ela me faz não ter certeza, parece que tem muitas coisas para falar ao mesmo tempo. E silêncio. Ela me faz não ter certeza.

A palma da mão direita, aberta, ocupa o centro das fotografias e é emoldurada, acima e nas laterais, pelos objetos e texturas do fundo, que com ela dialogam. Mas o braço que sustenta a mão escapa da moldura inferior e se prolonga para além do quadro fotográfico, remetendo ao corpo-artista que captura o instante em imagem; talvez nos lançando a um “fora” da imagem que também constitui seus sentidos possíveis.

Nas palavras do próprio artista, a mão, na relação com os objetos, ativa-os16. Os

objetos, recolhidos de descartes, de margens, do que se (não) vê em trajetos. Como as crianças moçambicanas, que nos movimentos corpos-descartes inventam veículos, a mão potencializa novas inventações para os objetos-restos.

A mão-braço, também, carrega uma marca identitária na cor da pele, na pulseira de búzios. Não estamos nos conectando aqui com qualquer tipo de ativação: a mão contextualiza as percepções e afetos do artista paulistano negro, em atitude de oferenda que remete aos rituais das religiões de matriz africana. É uma mão oferecendo, mas em tal ponto de vista que poderia ser a mão de quem observa. O braço vaza.

A composição da série lembra o retrato, quase o retrato 3x4 (não fossem as dimensões do quadro), em que a figura humana é captada de frente, diante de um cenário; a mão aberta remete à cabeça e o braço ao pescoço e ombros. Nas fotografias 3x4, a intenção é clara: a identidade se mostra no rosto do indivíduo, por isso o cenário procura ser o mais neutro possível. Na série de Moisés, não há rosto, mas a identidade se afirma; não é identidade de um indivíduo, porém, mas de todo um grupo marcado por experiências históricas, sociais e culturais que ressoam nos corpos em suas relações com os espaços que ocupam – ou dos quais se ausentam.

É interessante que o centro seja a mão. É a mão que oferece, mas também é a mão que se relaciona ao trabalho manual, na dicotomia -aqui inventada, em licença poética- com o rosto dos retratos tradicionais, que remetem ao trabalho intelectual. A divisão entre trabalho manual (braçal) e trabalho intelectual, que estruturou processos de ensino e divisão de funções sociais, é um resquício do processo colonizatório brasileiro que ainda encontra ecos nos dias atuais.

16Entrevista realizada por Patrícia Costa para o site Afreaka, em que o artista afirma: “Eu parto

do discurso dele de pegar um objeto que não tenha nenhum traço humano, nenhum gesto, e tento ativar na minha mão”, referindo-se à influência de Duchamp em seu trabalho. Disponível em: <http://www.afreaka.com.br/notas/arte-e-o-candomble-nas-maos-de-moises-patricio- aceita>. Acesso em 30 jun. 2017.

A relação do artista negro urbano com as ressonâncias do passado colonial expressas nas repetições do racismo emerge na construção poética de Moisés Patrício e nos objetos-produtos que nos são oferecidos nas fotografias (as quais, vale ressaltar, foram selecionadas de acordo com recorte temático dentro de uma produção que extravasa estes conteúdos).

Aceita cocadas? – pergunta a voz silenciosa da fotografia. À primeira vista, sobre o fundo branco onde se projeta oblíqua sombra da mão, parece óbvio o que nos oferece o artista com duas cocadas, uma branca e uma preta, em um país em que o construto étnico e racial17 baliza-se pelo fenótipo, em especial pela cor da pele. A cocada também

é um doce gestado nos engenhos de cana-de-açúcar e, se por um lado remete à escravização, por outro é elemento de resistência das negras de tabuleiro, que, na comercialização de produtos- entre os quais, a cocada- rompiam os modelos de dominação e inovavam nas possibilidades de relações sociais e comerciais na sociedade escravista (FIGUEIREDO, MAGALDI, 1985).

Outra voz inquere: Aceita? Essa não diz o que traz, apenas emite sorriso enviesado. Pois, sobre a lona preta que reflete a luz na lateral direita, sobre o prato imaculadamente branco, a mão segura um arranjo verde -quase buquê- amarrado pelo complementar tecido vermelho. É guiné, a erva amansa-senhor, que as mulheres escravizadas adicionavam secretamente na alimentação dos senhores assediadores, envenenando-os até a inanição e a apatia. Com poderes mágicos, os banhos da guiné também protegem e curam o corpo e o espírito. Parece um buquê, mas é quase uma arma.

Outra imagem ri: sobre o tapete plástico preto, um saco vazio de açúcar, de nome

Colonial. A mão, lado a lado com a marca, sustenta grãos brancos que parecem escapar

entre os dedos. Quão materiais podem ser as memórias da sociedade escravista no século XXI?

Para além de discursos colonialistas e decoloniais, a banalidade da marca do açúcar reitera os absurdos cotidianos que levam a questionar a divisão clara entre passado e presente. Mais que uma denúncia da permanência do pensamento colonizador, a composição- que me parece rir ironicamente- ganha potência ao estremecer a própria construção de um tempo linear, encadeado e organizado, e também de um tempo que se repete em círculos. As camadas da superfície fotográfica sobrepõem tempos -passados,

17Raça é utilizada aqui como construção social e política, e não biológica, em conformidade

com as reflexões de pensadores negros brasileiros que ressignificam o termo nos movimentos sociais do século XX e XXI (GOMES, 2003).

presentes, futuros- e talvez sua potência resida justamente na “criação de novas condutas temporais que alteram o estatuto da memória, da repetição, da gênese (...)” (PELBART, 2009, p.30).

Rastros dessas forças se insinuam em outra imagem. Um nude, tipo de fotografia selfie que em geral tem uma intenção de sedução e sensualidade. Sobre um tecido verde, estendem-se as pernas do artista e, entre elas se coloca a mão que oferece. O tecido amassado no canto superior direito -talvez uma calça- parece reforçar ainda mais a ideia de nude feito em casa, no quarto, no âmbito particular para depois circular pelas redes perambulando pela esfera pública. Embora os membros que aparecem na imagem remetam ao corpo nu, não há pose de sedução: as pernas e braço esticados parecem quase inertes. E, em primeiro plano, é oferecida a palavra MANUSEIE, em letras maiúsculas no papel recortado de tal maneira que guarda a presença de seu suporte anterior: um jornal? Uma revista? Uma embalagem de algum objeto? O imperativo torna objeto o corpo do artista, passível de manuseio.

E é um corpo negro que será manuseado. Impossível pensar em forma qualquer de manuseio, porque a cor da pele arrasta para a imagem histórias e estórias de abuso, de sexualização, de objetificação e de naturalização dessas práticas. A fotografia não apresenta apenas um passado silenciado que precisa ser desvelado; é presente e futuro em uma trama movediça que poderia -talvez?- reestruturar o estatuto da memória nessa temporalidade insuspeitada (pegando de empréstimo os termos usados por Peter Pal Pelbárt, 2009, p. 31): memória talvez não seja o que se deve lembrar, mas aquilo que se inventa na relação com as experiências, com os materiais, com o espaço, com as culturas, os corpos...com as coisas, enfim.

Se neste texto procuro ouvir as vozes mudas das fotografias, travestindo-as de características humanas, não é por entender-lhes enquanto antrópicas de fato; busco um recurso compositivo da própria escrita que capte a força da tática de Moisés Patrício: o título que inquere o observador e a mão que pergunta em silêncio tensionam as relações entre os universos e experiências pessoais do artista- que oferece- e do público- que decide se aceita ou não. Em especial nas fotografias selecionadas, oferecem-se sensações e situações que preferimos não ver, nem falar. E, embora carreguem violências, ao mesmo tempo são visualmente prazerosas. Estão ali, estendidas ao olhar do observador que se vê entre a aceitação do trabalho do artista e de todo um repertório simbólico afrodescendente -o que é palatável- e a aceitação das situações de opressão que se insinuam nas imagens.

Talvez, em última instância, perguntemos o que realmente querem essas imagens, como sugere Mitchell (2015). Os dedos muito abertos, as palmas voltadas para cima e as composições com cores e formas que evidenciam o simbólico dos signos oferecidos levam a dizer que essas imagens querem ter voz, mesmo que seja a voz de um riso mudo. Uma voz que caminha em estratégias de resistência à história e à identidade fixa e que, para resistir, precisa ser tão inventiva quanto os mecanismos de