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57 Capítulo V.

Tradução de castelhano para português de oito capítulos do tratado de Ambrósio Nunes sobre peste (1601).

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que costumam fazer enfermidades gerais, comuns e particulares. Cap. XII (ff. 33-35)

SEGUNDA PARTE. Declara-se como se pega a peste, e as outras enfermidades contagiosas, e a diferença que nisto se encontra. Cap. IX (ff. 59-61)

TERCERA PARTE. Declaram-se outros sinais imediatos do mal, que o acompanham na maior parte. Cap. VII (ff. 75r-77r)

QUARTA PARTE. Como se há-de construir a casa de saúde, e arranjar lugar para os incapacitados, curando-se os que puderem nas suas casas. Cap. V (ff. 86r-91r);

Declaram-se os que devem sair logo da cidade, e as condições do lugar a que convém que vão, e quando poderão voltar. Cap. VI (ff. 92-95r); Os remédios universais que são úteis para a preservação da cidade, ou de qualquer outro lugar empestado. Cap. VII (ff. 96-99)

Os capítulos traduzidos foram escolhidos com a intenção de dar a conhecer a opinião de Ambrósio Nunes sobre as causas da peste, os seus modos de transmissão, o reconhecimento dos seus sinais – o que nos remete para as descrições semelhantes de Rodrigo de Castro e de Curvo Semedo e, seguidamente, salientar uma das opções (considerada essencial por Ambrósio Nunes e pelos outros dois autores) para combater este mal, que era a construção de Casas de Saúde com o intuito de defender a Cidade e acudir aos mais desfavorecidos.

59 2. Tradução.

PRIMEIRA PARTE

Epílogo de tudo o que está dito, com uma declamação das causas da presente peste.162 Cap. XI (ff. 30v-32r)

Fiz tão longo discurso sobre as causas da peste por entender que, no conhecimento delas, consiste em todo o método e artifício da preservação e cura, como adiante se verá. E, como o leitor ocupado e amigo da brevidade gostará de as ver recapituladas, pareceu-me importante fazer este capítulo como se fosse um epílogo de tudo o que anteriormente ficou dito, verificando-o com as [31r] causas desta peste actual, de que queira Deus livrar-nos. Sendo, pois, a peste uma enfermidade comum e epidemia perniciosa, e que vem e nasce de causa comum, necessariamente há-de ter por causa o ar, por ser também comum a todos sem excepção.163 E não bastará ter-se entendido em geral ser o ar a causa das pestilências epidémicas, mas é necessário saber, em particular, qual é a mudança que, para isso, é necessária no mesmo ar. Esta mudança, dizíamos que não podia ser nenhuma das que se manifestam pelo calor, frio, humidade e secura, nem outra semelhante, seja natural ou sobrenatural em relação ao tempo; assim, concluímos que a tal mudança e alteração será aquela à qual Galeno chama na substância toda e que consiste numa certa propriedade oculta que não se pode alcançar pelos sentidos. A ela dizem alguns doutos Varões que Hipócrateschamou Divina, quando disse que se tinha de considerar, nas enfermidades, se teriam algo divino, ainda que Galeno entenda, por esta palavra, o ar, ao qual os antigos chamaram Divino; mas, de qualquer maneira, que se declare: é certo que, diferindo a peste das outras enfermidades comuns epidémicas, ela há-de nascer de diferente mudança e alteração do ar. Esta pode ter dois géneros de causas. Umé daquelas que Galeno apontou e a que Avicena chama causas inferiores próximas, as quais, bem consideradas, são mais disponentes que não eficientes, porque só servem (quando as [31v] há) para preparar o ar, para que receba aquela qualidade oculta, que é a que faz as pestilências. O outro género é o das causas a que Avicena chama superiores remotas, que são aquelas figuras e formas com que os

162 Ou seja, do ano de 1598.

163 Cf. MOTA et al. 2021: 53; SEMEDO 1680: 1 e 31.

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céus influenciam as qualidades ocultas e que são as causas propriamente eficientes que causam as pestes que habitualmente vêm por causas naturais. E, ainda que destas causas não tenham feito clara menção nem Hipócrates nem Galeno, são muito conformes à sua doutrina e à experiência de muitas pestes que tivemos em Espanha e de que se padeceu noutras províncias e Reinos, nas quais não apareceu nenhuma das causas de que Galeno falou, e, se nalguma tivessem aparecido, serviriam só para dispor o ar para receber a qualidade pestilencial, como está dito e se pode ver, por ser certo que muitas vezes houve uma quantidade de corpos mortos por sepultar e vapores de lagoas e de poços que se destaparam, sem que sucedesse alguma peste epidémica;

poderemos assim afirmar com verdade que só as causas superiores podem causar pestilências, e que estas serão mais perniciosas e durarão mais tempo onde encontrarem as disposições que costumam vir das causas inferiores que Galeno apontou e de outras semelhantes.

Tudo isto se pode facilmente verificar, não só pelo que fica dito, mas também pela presente peste, que começou a revelar-se na Cidade de Lisboa no fim de Setembro do ano de 98, a qual teve duas cau-[32r]sas superiores. Uma foi o eclipse do Sol, que vimos neste mesmo ano, a 7 de março,164 um pouco antes das nove horas da manhã, que ocorreu a 17 graus e 4 minutos do signo de peixes, e que foi grande, e os Astrólogos que dele se ocuparam, entre outros males, prognosticaram que haveria peste em muitos lugares, como veio por nossos pecados, a que ajudou muito outra causa superior, que foi uma conjunção dos dois infortúnios, que são Saturno e Marte, e que aconteceu aos cinco graus e trinta minutos do signo de Caranguejo, a 27 de Agosto do mesmo ano de 1598. Desta conjunção costumam normalmente surgir enfermidades pestilenciais e outras calamidades que os Astrólogos anotado. Estas são as causas superiores que eu tenho por verdadeiras e próprias deste mal, as quais, sendo universais, causarão um mal universal e comum a todos aqueles lugares e pessoas que estão sujeitos aos signos que se fizeram as ditas conjunções e em que reinam as tais estrelas, e que durará enquanto

164 Segundo o cronista da época Pêro Roiz Soares (1565-1628): “Temendo-se mais a guerra este ano que outro nenhum por causa de nele haver três eclipses a saber um da lua a 20 de Fevereiro – e outro do sol a 7 de Março e outro da lua a 16 de Agosto todos dentro neste ano de 1598 sobre os quais se deitaram muitos juízos achando-se serem todos muito ruins e de mui ruins efeitos chegando a se pregar nos púlpitos que por pecados que cada vez iam em crescimento nos ameaçava Deus com eles”, (Cf. OLIVAL 2006: 84).

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durar a influência perniciosa que saiu dessas conjunções, a qual será mais prejudicial onde houver maior predisposição, como parece que teve a dita Cidade de Lisboa, por nela ter acontecido antes a queda de um pedaço do monte em Santa Catarina, que destruiu muitas casas, a vinte e três do mês de julho do ano de 1597, o qual começou a cair às dez horas da noite, e durou até às duas horas depois da meia-noite. [32v] Juntou-se também o grande terramoto, ainda que tenha durado pouco, pois só deu dois grandes abalos, que aconteceu neste mesmo ano de 1598,165 a treze de Agosto às cinco horas depois do meio-dia. E é de crer que, tanto do terramoto como do pedaço do monte que caiu, tenha saído da terra algum vapor poderoso que infetou o ar circundante, para receber a qualidade pestilencial que se esperava das ditas conjunções que depois começaram a exercer a sua influência e que foi, na Cidade, mais perniciosa, durando mais tempo que noutras partes e lugares do Reino em que se deu, por encontrar nela a disposição que anotei e se ter começado a revelar o mal no Outono e ser certo que as enfermidades outonais, são na sua maior parte mais perniciosas e duram mais tempo, principalmente as que chegam no Inverno,166 como ensinou Hipócrates nos seus aforismos,167 e o aprovou Galeno por várias razões que não vêm agora ao nosso propósito, que é mostrar como só as causas superiores são as que causam as pestes epidémicas e as inferiores servem apenas para predispor o ar para receber as tais influências, como penso que está suficientemente provado, e se poderá entender mais claramente sobre este mesmo mal, que adiante no seu devido lugar se declarará com o favor divino. Agora passemos a outro género de causas, que se verá no capítulo seguinte.

Põe-se outro género de causas que costumam fazer enfermidades gerais, comuns e particulares.

Cap. XII (ff. 33-35)

Alguns médicos antigos e modernos que trataram as causas das enfermidades comuns e particulares notaram que umas e outras costumam também sobrevir, por particular

165 O texto escreve, em muito provável erro, “89”.

166 Cf. SEMEDO 1680: 8.

167 Cf. MOTA et al. 2021: 55, n.11.

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permissão e mandato de Deus nosso Senhor. Trazem, para confirmação desta verdade, aquela grande mortandade que aconteceu em Israel quando Deus pelo pecado que havia cometido David (em mandar, por soberba e presunção, contar a gente de guerra que tinha no seu Reino), o castigou com o Anjo, o qual, em menos de três dias, matou setenta mil varões, como conta a Sagrada Escritura, na qual também lemos outra grandíssima enfermidade que o Senhor mandou sobre os Filisteus, quando tomaram a Arca do Testamento aos filhos de Israel, e a levaram para aquela sua grande Cidade, que se chamava Azota e a puseram no Templo de Dago, e logo os moradores da Cidade, e das outras que eles possuíam, começaram a sentir, nas partes secretas do seu corpo, uma podridão que os corrompia, e a outros apodreciam-lhes as entranhas, que, em espanhol, se chamam “assaduras”.168 Para a mesma confirmação podem trazer-se outras histórias da Sagrada Escritura e dos historiadores que contam enfermidades semelhantes, entre os quais me pareceu de referir aquela grande peste que houve no Ano do Senhor de trezentos e oitenta e oito, sendo imperador Maurício, na qual se viu o demónio com um assador na mão, com que dava pancadas nas partes das casas, e quantas pancadas dava, tantos morriam naquela casa. Os autores desta história são Necisaro no livro dezoito, capítulo XX, e Teófano, na vida do mesmo Imperador Maurício, que advertem que esta peste se seguiu a um grande Eclipse do Sol, e da Lua, que houve nesse ano. E penso eu que a peste que acima dissemos, que sucedeu na Babilónia por um soldado ter quebrado uma pequena arca de ouro que estava no Templo de Apolo, não pode ter sido como causa o ter saído ar corrupto daquela pequena arca, por ser certo que numa arca de ouro não se poderia corromper o ar, de maneira a infectar toda a cidade, e quase todo o mundo, como disseram os que escreveram a história, e, por isso se pode suspeitar que algum demónio estava metido naquela pequena arca e, ao sair, pôde fazer aquela universal peste, permitindo-o Deus Nosso Senhor. E não só enfermidades e mortes, universais e comuns podem vir por mandato e permissão divina, mas também as particulares, como foi a lepra de Guiezi criado do profeta Eliseu que se lê no livro quatro dos Reis, a qual lhe veio por ter ido falsamente pedir a Naaman, capitão general do Rei dos Assírios, dois talentos e uma vestimenta da parte do Profeta, o qual não havia querido tomar nenhuma coisa daquele grande

168 Samuel 5.1-8

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presente, que o mesmo general lhe havia mandado, pelo benefício de o ter curado da lepra que tinha, por mandá-lo banhar-se no Rio Jordão.169 O mesmo se pode confirmar pelas chagas com que Deus permitiu que o demónio chagasse ao inocente Job, as quais, diz a Sagrada Escritura que eram péssimas, e que delas estava chagado desde a planta dos pés até ao alto da cabeça.

E, no Santo Evangelho, lemos muitas outras enfermidades de que se padecia então, por o demónio estar nos corpos dos tais doentes, os quais o Salvador do mundo Jesus Cristo nosso Senhor curou e tornou sãos, mandando os demónios sair dos corpos que afligiam. E é muito sabido aquele muito grande milagre que a Sua Divina Majestade fez, de que tanto se espantaram as multidões de gente que o seguiram, quando tornou são aquele mudo, cego e surdo, mandando sair o demónio que lhe impedia aqueles sentidos, e, em saindo, logo falou o mudo, ouviu e viu. Muitos outros milagres semelhantes fez o mesmo Senhor e os seus Apóstolos e Discípulos e Sacerdotes, a quem a sua divina Majestade deu o mesmo poder de tirar demónios dos corpos humanos, ou que fazem as enfermidades que, não podendo curar-se com remédio algum de Medicina, se curam afastando-se o demónio, e saindo do corpo em que se causava a tal enfermidade, como o nota, entre outros médicos, Fernel,170 naquele livro doutíssimo que escreveu: As coisas desconhecidas. O mesmo vemos suceder nos enfeitiçados, enfermos de enfermidades que, com a Medicina, não se conseguem curar e só se curam com o desfazer dos feitiços, como se poderia facilmente provar por muitas histórias verdadeiras que, em muitos lugares são muito notórias, e de que tratam os Católicos Doutores Teólogos e Canonistas, que eu deixo por não vir ao nosso propósito, e, contudo, lembro que é proibido e não se pode recorrer a nenhum feiticeiro, para, com feitiços, curar os feitiços, nem as enfermidades que deles nascem, como ensinam os sagrados Doutores, Teólogos, com o bem-aventurado São Tomás, e que, porventura, poderíamos declarar aquela palavra que dizia o divino Hipócrates sobre este tipo de enfermidades que os demónios causam, porque, ao dizer que considerasse o Médico se havia algo divino nas enfermidades,171 se poderia suspeitar que tinha entendido que havia esse tipo de enfermidades, e que estas não se podiam curar por medicina, e, assim,

169 Reis 2.4.12 a 2.5.27; Cf. MOTA et al. 2021: 69.

170 À margem: Fernel; As coisas desconhecidas, 2.6.

171 Cf. Prognósticos 1; Littré 2.112-113; MOTA et al. 2021: 69, n. 23; SEMEDO 1680: 10 e 11.

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quando as houver, é necessário recorrer aos Sacerdotes e aos Religiosos que a Igreja Santa Católica tem, e deixar os feiticeiros mágicos, e as suas diabólicas artes, porque, ainda que possam fazer algumas coisas por causas naturais aplicando algumas ervas e outras coisas que têm virtude natural, como prova o bem-aventurado Santo Agostinho, contudo, na sua maior parte usam demónios com quem têm pacto, ou eles, ou os primeiros inventores, como provam o bem aventurado São Tomás, e muitos outros Varões Católicos. E com isto parece que podemos concluir esta primeira parte deste tratado.

SEGUNDA PARTE

(resumo do capítulo anterior Cap. VIII)

[f. 59] […] Por isso, podemos concluir este capítulo e dizer que, sendo a influência, ou influxo das estrelas, a verdadeira causa do mal, não há lugar certo por onde entre e, conforme a disposição que encontrar, assim entrará e existirá o mal, ou pela respiração, ou pelo movimento das artérias, ou pelos poros do corpo, sem deixar nenhum sinal nem rasto no lugar por onde entra. Verdade é, que, do efeito, se poderá entender se se deu nos humores, ou na substância, ou nos espíritos do coração, e se foi este o que primeiro sentiu o mal, ou se se lhe comunicou de outra parte, em que primeiro tocasse a influência ou o influxo pestilento. Este, não somente aos homens e animais terrestres e às aves se pode comunicar por meio do ar; mais ainda aos peixes, por meio da água. E, por isso, acontece algumas vezes haver peste num género de peixes, e, outras vezes, noutros, segundo a influência que a causou. Por isso, a sentença de Aristóteles que acima notámos, não se pode ter por verdadeira universalmente, ainda que o seja da maneira que declarámos. E isto baste para a determinação do primeiro ponto.

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Declara-se como se pega a peste e as outras enfermidades contagiosas e a diferença que nisto se encontra.

Cap. IX (ff. 59-61)

O outro ponto era declarar como se pega a peste, pergunta que é universal a todas as enfermidades contagiosas, e dela têm tratado muitos Varões muito doutos, que concluem, todos eles, que as enfermidades se pegam, ou por vapor, ou por alguma qualidade insensível que delas sai, que, dizem, tem propriedade certa de causar semelhante e não diferente mal. E assim, o sarnoso pega a sarna; o que tem bubões, bubões; o que tem laparões172 pega laparões; o oftálmico que tem inflamação dos olhos, oftalmia, que é a mesma inflamação; e o catarroso, catarro; e o tísico, tísica; e o apestado, peste; e os outros enfermos de semelhantes males contagiosos pegam os mesmos males, e não outros, pela razão que está dita. Esta, bem considerada, confessa que não se entende a causa do que pergunta, porque dizer “propriedade” é dizer uma coisa confusa geral que parece que sempre fica tão confusa como dantes. E, se, nas coisas que vemos e tratamos a toda a hora, não poderão, nem podem, os doutos varões, queimando as sobrancelhas, encontrar as verdadeiras e particulares causas dos efeitos, como as poderão dar das coisas que estão tão altas como as estrelas, que não se conseguem tocar e muito menos ver como influem e produzem os seus efeitos? Digo isto para que os homens letrados não se tornem soberbos e entendam a fraqueza do seu entendimento, que não consegue alcançar as obras daquela altíssima sabedoria Divina, com que criou e deu ser a todas as coisas visíveis e invisíveis, e, conforme o serviço de cada uma, lhes deu as propriedades que teve por bem dar-lhes, pela razão que só ele sabe, a qual os Médicos e Filósofos andam rastreando. Diz Galeno que a propriedade consistia naquela certa mescla de elementos que faz variar e diferenciar umas misturas de outras, como declarámos na primeira parte.173 Esta opinião, ainda que sirva aos Médicos para muitas coisas, noutras, não se pode defender. E uma delas é esta de que tratamos, porque a qualidade com que se pega a peste não é elementar para ter aquela propriedade que se dizia consistir na mescla dos elementos. E, por isso, alguns doutos varões dos nossos tempos, e mais antigos, como Mesué e outros Árabes,

172 Inflamação dos gânglios ou vasos linfáticos.

173 À margem: Os temperamentos 3.11.

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puseram-nas nos influxos com que as estrelas concorrem para a geração e corrupção destas coisas que se engendram e corrompem. Esta opinião parece mais conforme à Filosofia, tanto pelas razões que dissemos acima, como por esta que agora apontamos, e ser certo que, com o ser se dá a propriedade de tal ser, o qual dizem os Filósofos que dão os céus com as suas influências, não como causas principais e primárias, mas como instrumentais, e segundas com que Deus Omnipotente, primeiro princípio e primeira causa, opera, reservando para si a criação das almas racionais, no que as estrelas não têm qualquer parte, como ensinam os Sagrados Doutores e o confessou Aristóteles nalguns lugares. Tudo isto, provo-o mais amplamente numa grande narrativa que logo sobre o aforismo 24 do segundo livro.174 De tudo isto se pode concluir que, sendo a peste efeito da influência das estrelas, tem em si aquela propriedade de se pegar por certa qualidade que sai do tal mal. Galeno chama-lhe semente, e o mesmo nome poderemos chamar aos vapores e às outras qualidades que saem das outras enfermidades contagiosas pelas quais se pegam onde haja disposição e preparo, como se requer, como se verá na quarta parte.

E, ainda que este nome de semente seja comum a todas as enfermidades contagiosas, [elas] têm uma grande diferença, e é que a semente das enfermidades particulares não poderá produzir uma enfermidade universal, como vemos que produz e engendra a semente da peste e a de outras enfermidades epidémicas. E a razão é porque a semente de um mal particular não pode engendrar nem produzir senão um mal particular, e a semente do mal universal pode engendrar um mal geral, comunicando-se ao ar de onde nasceu. E assim vemos que um empestado pode empestar todo um lugar, quando, no ar, houver a disposição e preparo que se requerem para a tal semente poder criar raízes e brotar de si a peçonha que tem. Isto, não o poderá fazer a semente da enfermidade particular por não ter aquela semelhança, a que chamam em grego Sympathia, com o ar. E não se espantará o curioso Leitor com que digamos que é necessária disposição (f.60r) e preparo no ar para a semente da peste poder fazer o mal geral, pondo os olhos em muitos lugares que se empestaram por um só empestado entrar neles e noutros em que houve a mesma oportunidade para alguns rebates, que logo pararam sem ir adiante. E a causa não pode ser outra senão a que eu

174 Hipócrates, Aforismos 2.24.

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digo da disposição que se encontra, ou falta, no ar, sem a qual, nem a mesma influência poderá operar, como mais amplamente se dirá noutro lugar em que hei-de tratar desta disposição em particular e em geral.

Daqui se entenderá o que diz Gentile e outros práticos doutos, e que seguem normalmente muitos Médicos: que há peste de homem para homem, o que tem necessidade de limitação para ser verdade, e [a limitação] é que tal peste, ainda que pareça particular, é geral, pela causa de que procede, que é a semente que veio da influência geral, e, se se der o caso de se não comunicar senão a um só homem, perderá o nome de geral, o qual teria se encontrasse disposição no ar, ou se não se atalhasse com os remédios que porventura se fizessem, que poderiam eliminar toda a disposição e preparo do ar para não se infectar pelo tal empestado. Este, contudo, não se dirá que tem mal particular, nem que aquela peste era particular, porque repugna à essência da peste ser particular, como acima se provou bastantemente. E, com isto, poderemos concluir esta segunda parte, e o que faltar se encontrará na preservação, e se dirá na quarta parte.

TERCEIRA PARTE

Declaram-se outros sinais imediatos do mal, que o acompanham na maior parte.

Capítulo VII

Cap. VII (ff. 75r-77r)

Aos sinais do céu e do ar, acrescenta Avicena outros, que, na terra, se hão-de notar, pelos quais se poderão também prognosticar as enfermidades pestilenciais e os lugares onde sucederão e diz que, onde se engendrarem grande quantidade de sapos, lagartos, cobras, rãs pequenas, ratazanas, escaravelhos, gafanhotos, e outros semelhantes que nascem da podridão e são peçonhentos, se pode temer o mal pestilencial, porque mostram haver influxo venenoso, o qual, assim como produz estes animais peçonhentos, também engendrará enfermidades pestilenciais e peçonhentas. E, por isso, diz o mesmo Avicena que estes animais são como mensageiros que vêm diante do mal principal. Conta Paulo Orósio, no livro 5 da sua História, no capítulo XI, que, no ano

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da fundação de Roma de 628, sendo cônsules Marco Pláucio e Marco Fúlvio,175 houve uma grande peste em África, que matou oitocentos mil homens, que veio depois de uma grande multidão de gafanhotos que destruiu imensos frutos, e se, à multiplicação de tais animais se juntarem varíolas, sarampo, pintas e outras enfermidades contagiosas semelhantes, pode suspeitar-se de que o mal da peste está a começar porque estas enfermidades são já como o princípio de um grande mal, que começa sempre dissimulado e nas partes mais preparadas e onde haja maior disposição. E por isso começa-se por ver primeiro a multiplicação de animais que se engendram da podridão, como notou Aristóteles nos seus Problemas,176 onde diz que a multiplicação de rãs pequenitas, que são umas rãs verdes peçonhentas, é sinal de peste, pela razão que dizíamos, e porque, com o seu contínuo e importuno canto, infectam juntamente o ar e o dispõem para, com maior facilidade, receber o influxo pestilencial, como farão todos os outros animais peçonhentos e nascidos da podridão.

O bem-aventurado Santo Ambrósio, no livro que escreveu sobre Noé e da arca, diz que nenhum sinal é mais certo de haver peste, do que precederem mortes de outros animais. Este sinal, estabeleceram-no muitos médicos, e Aécio particularmente, diz que, quando se virem morrer as aves, [isso] é sinal de que a causa da peste é superior, e quando morrerem os animais terrestres, a causa é inferior.177 A estes sinais, juntam- se outros semelhantes, que são saírem os animais das suas covas, e andarem pelos campos como desatinados, deixando os filhos e os ninhos; e o mesmo o fazem as aves, não só quando sentem, no ar, alguma qualidade venenosa, mas também quando sentem alguma grande tempestade, como cada dia vemos as aves marítimas fugir do mar antes que venha a tempestade. E, ainda que estes sinais todos tenham força, porque são efeitos do instinto natural que não erra, contudo não são sinais próprios nem eternos de que haja peste matadora de homens, porque é certo que pode haver influxo pestilencial nos animais terrestres e nas aves, e não nos homens, e, inversamente, nos homens, e não nos outros animais. E, por isso, quando virmos a morte de animais terrestres, ou de aves, e que fogem e deixam os seus ninhos e filhos, poderemos com certeza dizer que há influxo peçonhento nos tais animais, e, juntando-se sinais

175 Em 125 a.C., os cônsules foram Marco Pláucio (e não Plauto, como o texto diz) Hipseu e Marco Fúlvio.

176 Problemas I.22.

177 Cf. MOTA et al. 2021: 59); SEMEDO 1680: 4.