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«A presença recorrente da peste vai constituir a fonte principal de aprendizagem das comunidades humanas pré-modernas na luta contra a doença e a morte.»

Jon Arrizabalaga, (Int). Regiment Preservatiu e Curatiu de la Pestilència de Lluís Alcanyís (c.1490)

Nos tratados de peste que foram objecto de estudo neste trabalho, Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo referem os tópicos da pobreza e da necessidade de haver Casas de Saúde150 (sobretudo para tratar os mais desprotegidos), como temas essenciais. Por um lado, realçam o lado profilático que têm estas instituições durante um surto epidémico e, por outro, tornam explícito um problema que se deve combater, haja ou não uma calamidade de saúde pública, que é o da pobreza. Estes dois assuntos relacionam-se na medida em que as Casas de Saúde contribuem para a resolução imediata de “uma doença contagiosa de mortalidade elevada”, e a pobreza, considerada um problema de salubridade nas habitações, má alimentação e ausência de condições de higiene, agrava substancialmente a eficácia das medidas de combate e prevenção desta, ou de qualquer doença.

Rodrigo de Castro, relativamente a estes tópicos, equaciona as seguintes questões: as Casas de Saúde podem ser tanto para os ricos, como para os pobres,

150 Rodrigo de Castro define por: “Nosocomium, seu, (ut alibi uocant) sanitatis domus” - “Nosocómio Público, ou, como lhe chamam noutros lados, Casa da Saúde” (MOTA et al 2021: 98 - 99); Ambrósio Nunes:

“Casa de Salud” (NUNES 1601: Cap. V, ff. 86r); Curvo Semedo: “Casa da Saúde” (SEMEDO 1680: 50).

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homens ou mulheres, desde que se mantenham separados; os ricos deverão tratar-se às suas expensas; os pobres deverão ser levados para as Casas de Saúde da maneira mais incógnita possível, na nossa opinião, para evitar alarmar a vizinhança. Em relação à zona onde deverá ser construída a Casa de Saúde afirma que esta deverá situar-se fora da cidade, mas relativamente perto, para maior comodidade no transporte dos doentes;

convém que tenha muitas divisões (para que seja possível separar os doentes, como atrás foi referido); que esteja virada para “o orto ou para o setentrião”; e, absolutamente essencial, que esteja situada perto da água, para que a higiene de doentes e das roupas se faça mais facilmente.151

Para Ambrósio Nunes as Casas de Saúde destinam-se essencialmente aos pobres, até porque será de grande proveito para a cidade retirar os doentes mais desfavorecidos para aquele local defendendo os outros cidadãos de se infectarem; deverá haver muito cuidado para se evitar a promiscuidade entre homens e mulheres nestas casas, pelo que devem ser mantidos separados; é essencial ponderar o tempo de permanência a observar e o que se deverá fazer depois com os doentes, sobretudo os pobres, que se curarem. Relativamente à zona mais propícia para se construir esta Casa, reitera exactamente as mesmas ideias de Castro: que seja construída fora da cidade mas relativamente perto para comodidade dos doentes, e, condição fundamental, que esteja perto da água para facilitar toda a higiene que é necessária.152

151 Como diz CASTRO: “Quanto ao referido Nosocómio Público, ou, como lhe chamam noutros lados, Casa da Saúde, escolha-se fazê-lo fora da cidade, virado para o orto ou para o setentrião; poder-se-iam encontrar, nas vizinhanças, muitos edifícios extremamente apropriados para este uso. Deve ter-se, no entanto, o cuidado de que não estejam situados longe da cidade, para que os doentes possam ser para aí transferidos mais comodamente. Convém que estejam repartidos em muitas divisões, para separar os homens das mulheres, os ricos dos pobres, os infectados e periclitantes dos convalescentes. Estejam também situados perto de água, para que as roupas de linho e os restantes bens dos infectados possam ser purgados mais facilmente. Com estes recursos, os pacientes poderiam ser aí alimentados e curados convenientemente e será muito fácil encontrar uma via sem detrimento para o erário público” (MOTA, et al. 2021: 57, 63, 83, 87, 89, 93, 95, 99).

152 As palavras de Ambrósio NUNES são as seguintes: “Será necessário que o conselho dos Médicos (se os houver), ou quem tiver este cargo, trate de fazer uma casa de saúde e atribuir lugar aos que estiverem impedidos. Uma coisa e outra precisa de um Médico prudente que saiba escolher os lugares que convêm conforme o mal e o tempo que faz, e a disposição do lugar onde se vai construir. Começando pela casa da saúde, parece que foi bem escolhido o lugar onde agora se encontra (a dita casa) nesta cidade de Lisboa, por ser (um lugar) onde se podem curar os doentes sem prejuízo dos vizinhos, e ter outra comodidade necessária para a saúde que se pretende, porque não está muito afastada da cidade e podem levar-se até ela os doentes com pouco trabalho, e tem água perto para a limpeza, e, aumentando os doentes, como vão aumentando, tem outras quintas vizinhas onde se poderão acomodar e tratar com maior facilidade, que tudo isto se tem de considerar antes de ordenar a tal casa, a qual parece que deve servir só para os pobres e para as demais pessoas que não tiverem possibilidade de se curarem nas suas casas.

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Curvo Semedo coloca o problema da formação dos enfermeiros para tratarem os doentes na Casa de Saúde, que deverão ser os mais caridosos, “porque se forem ambiciosos, e faltos de piedade, morrerão primeiro os doentes de desamparo, que do achaque”153 e alerta ainda para a condição física dos mais desfavorecidos que requer um tipo de tratamento diferenciado.154

Segundo as antigas indicações aristotélicas, a utilização de água limpa era fundamental para a saúde, e a utilização das “águas sujas” era destinada a outros fins;

esta será uma das medidas que irá ter consequências sanitárias importantes (tal como a escolha dos locais mais salubres para se edificar uma habitação, que também pode ser uma Casa de Saúde). “As cidades devem ter fontes e cursos de água próprios e em quantidade suficiente, se tal não existir, uma boa solução seria construir grandes e numerosas cisternas para a captação da água da chuva”, como disse Aristóteles.155

Na verdade, desde a Roma republicana e imperial que se utilizam sistemas de recolha e abastecimento de água tais como aquedutos, cisternas, canais e fontes, tanto para regar os campos como para o abastecimento das cidades, onde também se desenvolveram sistemas de evacuação de águas residuais com cloacas e latrinas.156 Já foi notado que, na Europa latina, a maioria das práticas de saneamento romanas e na Península Ibérica também as de origem árabe, foram sendo assimiladas progressivamente a partir dos séculos XI e XII, influenciando o resto da Europa. 157 Ainda que tenha sido um processo moroso, o saneamento das cidades,158 a contratação

Primeiramente, a casa de saúde fez-se para dois fins: o primeiro é defender a cidade de se infectar; o segundo: para que os enfermos se curem e não pereçam à míngua” (NUNES 1601: 86r-91r).

153 Cf. SEMEDO 1689: 50.

154 Cf. SEMEDO 1689: 12.

155 Aristóteles, Política 1330b5-16; trad. AMARAL e GOMES 1998: 521. Francisco de HOLANDA na sua obra Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, de 1571, no capítulo VI, intitulado “Dagoa Livre”, dava conta das deficientes condições de higiene em Lisboa e da carência do abastecimento de água: “E Lisboa, onde todos bebem água, não tem mais que um estreito chafariz para tanta gente e outro para cavalos; (…) Ora se Lisboa tem a presunção da maior e mais nobre cidade do mundo, (…) como não tem água para beber a gente do mundo?” (SEGURADO 1970: 99). O Aqueduto das Águas Livres, que Holanda reclamava neste seu livro para trazer água para Lisboa, começou a ser edificado cento e cinquenta e oito anos depois, no reinado de D. João V, em 1729.

156 Sobre o sistema de saneamento urbano na antiguidade romana: Cf. SCOBIE 1996: pp. 399 – 433.

157 Cf. ARRIZABALAGA et al. 2008: 57.

158 Refere o Olisipógrafo José Sarmento Matos: “No século XVI, quando Lisboa era assolada por epidemias de peste, sabe-se que o rei D. Manuel mandou abrir valas comuns para recolher cadáveres pestíferos, quer por as igrejas estarem sobrelotadas, quer para evitar contágios. Sabe-se mesmo que uma dessas valas foi aberta não longe da zona do actual Poço dos Negros, então área erma na periferia da cidade”

(MATOS 2012).

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pública de sanitários (ou cloacas) e o socorro aos pobres (como consequência da luta contra as epidemias) foram as principais áreas em que se concentraram as estratégias da saúde pública,159 o que nos indica que a pobreza e a peste foram, ao longo dos séculos, um dos pretextos principais que desencadearam a reflexão sobre os problemas de higiene e de salubridade urbanas. E neste domínio as memórias do passado greco-romano e a influência árabe160 contribuíram decisivamente para o aperfeiçoamento da saúde (no sentido lato do termo) que se foi tornando cada vez mais pública.

Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo que, se pensaram bem, escreveram melhor, deixaram claro nos seus tratados uma preocupação não só para com o doente, mas também para com a sociedade no seu todo. Na tentativa de resolverem os mais variados problemas sociais e humanos, estes médicos (entre tantos outros) com a autoridade de quem luta contra a doença e a morte quiseram contribuir de alguma maneira para melhorarem a sociedade em que nasceram.

159 Cf. Romero M. B. Gandra: “Portugal foi profundamente influenciado pelas conquistas e descobertas, porém, independentemente de um sem número de situações e casos clínicos novos com que se defrontavam os médicos da época, avulta a Assistência Hospitalar com cerca de 600 Hospitais entre Lisboa e o Oriente e a Fundação das Misericórdias (Lisboa, 1498, e Porto, 1499). Paralelamente há todo um desabrochar de especialidades médicas e cirúrgicas, sendo de realçar: a Medicina Tropical (Garcia de Orta), a Sifilografia (R. Dyas d’Isla), a Assistência Psiquiátrica (S. João de Deus), a Ginecologia (Rodrigo de Castro), a Higiene com a publicação, em 1580, do Regimento do Provedor-Mor da Saúde, a Medicina Legal expressa nas Ordenações Manuelinas e Filipinas assim como a Medicina Missionária” (GANDRA 1990: 22);

Sobre a criação das Misericórdias Cf. Lemos: “A criação das Misericórdias fez-se por diligência de um religioso trinitário espanhol, fr. Miguel de Contreras que tendo vindo para Portugal em 1481, começou a pregar o socorro à pobreza e o alívio e tratamento dos doentes, como as manifestações mais levantadas da piedade” (LEMOS 1899: Vol. I, 116 – 117).

160 Cf. REAL 2014: 272-292.

57 Capítulo V.

Tradução de castelhano para português de oito capítulos do tratado de Ambrósio Nunes sobre peste (1601).