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XVIII), salienta que a literatura científica revela que as doenças sofrem mutações e que a identidade dos hospedeiros e dos vectores podem ter variado ao longo do tempo, o que torna impossível resolver a questão com o simples paradigma das “pulgas” e dos

“ratos”.62 E o professor de História da Medicina e da Ciência Jon Arrizabalaga, acrescenta que, a partir da década de oitenta do século XX, a história “oficial” da peste é duplamente contestada. Por um lado, os historiadores que se dedicam ao estudo das epidemias questionam os termos clínicos e epidemiológicos que identificam a Peste Negra e os subsequentes surtos, desde a idade média até à idade moderna, com a peste bubónica tal como é definida actualmente; por outro lado, a nova história cultural sobre esta doença põe em causa o próprio conceito de “peste”, desenvolvendo outra definição nosológica sobre a doença. Os autores destas novas perspectivas defendem que a peste pré-moderna e a peste moderna respondem a critérios de identificação diferentes, sendo a peste moderna uma construção própria do século XIX e, mais concretamente, uma consequência da (nova) teoria bacteriológica63, enquanto a “peste” ou

“pestilência” da era pré-bacteriológica consistia em qualquer infecção epidémica de mortalidade elevada (ARRIZABALAGA 2008: 10).

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escritas em abadias, cidadelas e principados de toda a Europa, aumentou exponencialmente o número de tratados sobre a peste escritos principalmente por médicos que exerciam e tinham formação universitária. Tratados que, já no século XV, acabaram por se tornar “uma das primeiras formas de literatura popular”65 (COHN 2008:

77).

No entanto, na opinião do historiador Vivian Nutton, uma apreciação histórica da doença correcta e fundamentada não começa a aparecer senão perto do final do século XVIII, com os estudos de Christian Gottfried Gruner (1744-1815), médico e historiador alemão que se dedicou à investigação sobre doenças epidémicas, e de Kurt Polycarp Sprengel (1766-1833), médico e botânico alemão que começou a coleccionar o maior número possível de fontes históricas e médicas sobre a peste negra com o imperativo de desvendar a morte de Laura, a paixão do poeta Petrarca.66

Ainda segundo Nutton, a própria expressão “Peste Negra” só terá sido aplicada ao surto de 1340, distinguindo-o de todos os anteriores, no século XVII, tendo entrado no uso da linguagem geral com Justus Friedrich Carl Hecker (1795 – 1850), outro médico e escritor alemão que alterou a percepção dos historiadores ao utilizar principalmente fontes históricas para criar um quadro realista dos efeitos dessa epidemia, a que Faye Getz, chamou espirituosamente, de “epidemiologia gótica”.67 Hecker, médico e professor de História da Medicina na Universidade de Berlim, reconhecido por ter produzido uma obra vasta e influente, começou a estudar a doença durante a segunda pandemia mundial de cólera, que, no seu tempo, afectou a Europa e produziu um impacto profundo na opinião pública e no imaginário coletivo. Foi a publicação, em 1832, da sua obra: Der schwarze Tod im vierzehnten Jahrhundert: Nach den Quellen für Ärzte und gebildete Nichtärzte bearbeitet, onde deu início a uma nova narrativa sobre a

65 Cf. ARRIZABALAGA 2008: 11-12; ARRIZABALAGA et al. 1998: 17; COHN 2008: 77. Em Portugal, um exemplo é o Regimento Proveytoso contra la Pestilencia traduzido por fr. Luis de Ras em 1496: “Começa-se um bom regimento muito necessário e muito proveitoso aos viventes. E per con“Começa-servação de suas saúdes e segurança das pestinências. Feito per o reverendíssimo Senhor Dom Raminto, bispo arusiense do reino de Dácia. E trasladado de latim per o reverendo padre Frei Luís de Rás, Mestre em Santa Teologia da Ordem de São Francisco” (cf. SOUSA e COSTA 2005: 841; LEMOS 1899: Vol.I, p.102; JORGE 1935: 4-7).

66 Cf. NUTTON 2008: 2-3.

67 Cf. NUTTON 2008: 3; GETZ 1991. A leitura da abordagem da Peste Negra por cronistas e historiadores, ao longo dos séculos, feita por Faye Getz é bastante clara; a classificação do tratamento oitocentista da Peste Negra como “gótico” foi retirado do seu artigo: GETZ, Faye Marie, “Black Death and the silver lining:

meaning, continuity, and revolutionary change in histories of medieval plague”, Journal of the History of Biology 24:2 (1991), pp. 265-89.

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Peste Negra, que impulsionou a historiografia sobre este tema. Este trabalho, que se pode já considerar um exercício de “história moderna”, recupera as expressões usadas por algumas crónicas em línguas germânicas para se referirem à Peste de meados do século XIV, tornando-as canónicas.68

Jon Arrizabalaga, em contrapartida, considera que a origem da expressão “Peste Negra” continua a ser um mistério. Segundo este autor, terá sido o historiador holandês Johan Isaksen Pontanus (1571-1639) quem, em 1631, pela primeira vez, a apresentou como sendo a designação popular da doença pestilencial de que foram vítimas os europeus de meados do século XIV. No entanto, há historiadores que reclamam o aparecimento desta designação décadas antes na literatura sueca, em 1555, e na literatura dinamarquesa, em 1601.69 Para Arrizabalaga, a expressão provavelmente deriva de uma tradução excessivamente literal do latim: pestis atra ou atra mors (ARRIZABALAGA 2008: 15, n.17).

Seja como for, a peste acabou por aparecer como uma doença distante, do passado, depois de a sua memória ter sido resgatada quase metafórica e moralmente pelos românticos do século XIX. Paralelamente, as descobertas de Pasteur (1822 – 1895)70 sobre a fundamental e revolucionária teoria dos germes, e as novas historiografia, biologia e medicina, levaram a que estes protagonistas de uma nova era tentassem (no que à peste diz respeito) resolver velhas questões com novas explicações.

68 Cf. NUTTON 2008: 3-7.

69 Cf. ARRIZABALAGA 2008: 15: “Swarta döden” (1555); “Den sorte Dod” (1601).

70 Pasteur (1822-1895) salientou o papel dos microrganismos como agentes infecciosos e demonstrou que a cada doença infecciosa correspondia um germe. Também contribuiu para a descoberta de um processo de aquecimento para destruir fermentos indesejáveis no leite (pasteurização) e desenvolveu a ideia de que as inoculações com estirpes atenuadas protegem contra a doença, o que levou ao princípio da vacinação. Sobre Pasteur cf. PORTER 1996: 181, 184, 185, 189, 230, 324, 366 e 376.

28 5. A descrição da peste no momento exacto

«Zenão - de todos os tratados da medicina antiga, sempre admirara o livro III das “Epidémicas”

de Hipócrates, pela exacta descrição de casos clínicos e respectivos sintomas, sua progressão diária e resultados.»

A Obra ao Negro (1968), Marguerite Yourcenar

Alguns dos autores que actualmente se dedicam ao estudo do fenómeno da peste negra e das várias pestes que se seguiram ao longo dos séculos são, de uma maneira geral, da opinião de que os historiadores e os médicos que relataram, estudaram e escreveram sobre os surtos dessas pandemias nas suas épocas (desde a Idade Média até ao século XVIII) o fizeram sensivelmente da mesma maneira, ou seja, de que a descrição desta doença maligna e dos sintomas que provocava se manteve estável ao longo do tempo, com ideias repetidas sem grandes alterações.

Por exemplo, o historiador Samuel Cohn anota, no seu estudo sobre a peste negra, a existência de “vários relatos de tumefações na virilha, nas axilas, ou no pescoço, logo abaixo das orelhas”; além disso, afirma que estas e outras observações recorrentes já vinham de autores anteriores e que, antes dos cronistas da Peste Negra, já Procópio de Cesareia (c.500 – c.565), tinha observado, durante o surto da peste de Justiniano, que os corpos das vítimas se cobriam de pústulas negras, e que Evágrio (c.345 – c.399), João de Éfeso (c.505 – c.585), e Gregório de Tours (538 -594) caracterizaram a doença como sendo muito contagiosa e que se espalhava muito depressa dentro dos agregados familiares.71

Também Vivian Nutton é da opinião que a informação médica criada na época da peste negra que devastou a Europa e o Médio Oriente foi utilizada posteriormente por gerações de médicos com o objectivo de combater a peste, não hesitando em afirmar:

A mesma linguagem, as mesmas observações, e até as mesmas recomendações, eram constantemente repetidas. (…) Os médicos não hesitaram em utilizar material anterior para os assistir nas suas próprias batalhas contra a peste.72

71 Cf. COHN 2008: 75-76.

72 Cf. NUTTON 2008: 2.

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Como exemplo, indica Girolamo Mercuriale (1530 – 1606)73, que, no seu tratado De pestilentia, publicado em 1577, para justificar as suas opções na grande praga de Veneza em 1576 (que se vieram a confirmar desastrosas), (re)utilizou as autoridades médicas e não-médicas do passado.74

Tal como Nutton e Cohn, a historiadora Ann Carmichael, ao discutir a Peste Negra dos anos de 1348-50, alega, da mesma forma, colocando os textos no seu contexto doutrinário próprio, que:

A tradição académica médica sobre a peste foi recuperada (depois da idade média), permanecendo essencialmente e consistentemente galénica, até aos séculos XVI ou XVII.75

Entre os pontos essenciais que afirma repetirem-se nos textos logo após esse surto específico, inclui: que a peste era uma doença contagiosa e se espalhava muito rapidamente, que apresentava uma mortalidade muito elevada e era praticamente desconhecida por parte dos médicos (o que fazia com que não houvesse remédios disponíveis), que os sobreviventes eram incapazes de descrever a situação terrível por que tinham passado e que a doença se mantinha durante meses nas localidades atingidas (CARMICHAEL 2008: 20).76

Na sequência destas observações, e como primeira nota, não se pode deixar de referir que os três médicos portugueses cujos tratados são objecto de estudo fazem

73 Sobre Mercuriale, ver Anexo I.

74 Cf. NUTTON 2008: 2.

75 Cf. CARMICHAEL 2008:21. Como se verá mais abaixo neste subcapítulo, sem contrariar a ideia da permanência do galenismo, alguns autores realçam o contributo de escolas posteriores, como Rodrigo de Castro: “Logo, não estamos de tal modo enfeudados só à autoridade de Galeno, que pareça que jurámos sob a sua fórmula, o que fazem aqueles que desprezam todos os árabes e bárbaros, já que os verdadeiros filósofos e os médicos devem ter essa liberdade para, à imagem das abelhas, escolherem o melhor. É, efectivamente, como se quem falou, fosse grego, árabe ou latino, tivesse dito apenas a verdade. De facto não ensinam religião, mas medicina” (DIAS 2011: 113).

76 Cf. CARMICHAEL 2008: 20. Alguns académicos de hoje, como Paul Slack, aconselham prudência na interpretação das descrições da peste de época: “One can never be entirely sure about the extent to which chroniclers of epidemics concentrated on social dislocation, the failure of doctors, flights to and from religion, rumours of poisoned wells, and similar phenomena simply because Thucydides and later writers down to Defoe taught them to look for them.” (apud MACKAY 2011: 8, n.20, onde se remete para Paul SLACK, “Introduction”, in Epidemics and Ideas: Essays on the Historical Perception of Pestilence, Cambridge, 1992; Daniel DEFOE (1660 – 1731) foi um escritor e jornalista inglês, que se tornou famoso pelo seu livro Robinson Crusoé, e que também escreveu, em 1722, Um Diário do Ano da Peste sobre a grande Peste de Londres de 1665.

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parte daquilo que se pode considerar a escola hipocrático-galénica; no entanto, embora Hipócrates e Galeno sejam referências de base citadas inúmeras vezes nos textos, também o são muitos outros, da época medieval, do Renascimento ou até contemporâneos77 dos séculos XVI e XVII. Além disso, a tradição incorporada inclui trabalhos de europeus, de persas e de árabes, como o central Avicena. Segundo Adelino Cardoso, investigador de história e filosofia da medicina, a tradição na medicina ibérica,78 e na portuguesa em particular, assume “um traço distintivo do humanismo médico” a partir dos séculos XVI e XVII que consiste na importância atribuída à medicina árabe. O mesmo também é comprovado, por exemplo, por Rodrigo de Castro:

É indispensável recorrer aos escritores árabes, sobretudo a Avicena, Averróis, Rhasis, Avenzohar, Mesué e Serapião, que devem ser recomendados acima de tudo pela excelente doutrina, por muitas coisas e pelos óptimos medicamentos de que se nos apresentam como

77Eis os autores dos séculos XVI e XVII mencionados nos tratados sobre a peste de Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo: Schröder, Johann (1530-1598); Falloppio, Gabriello (1523-1562);

Fernel, Jean (1497-1558); Francisco Valeriola (1504-1580); Gabriel Grisley; Helmont, Jean-Baptiste (1579-1644); Johann Freitag (1581-1641); Lange, Johann (1485-1565); Levinus Lemnius (1505-1568); Marsílio Ficino (1433-1499); Massaria, Alessandro (1510-1598); Mercuriale (1530-1606); Minderer (1570-1621);

Monardes, Nicolás Bautista (1493-1588); Pardoux, Barthélemy (1545-1611); Piemontese, Alessio (1471- 1566); Pietro Andrea Mattioli (1501-1577); Platero, Felix (1536-1614); Riverio, Lazare (1589-1655);

Rondelet, Guillaume (1507-1566); Sennert, Daniel (1572-1637); Victorio Faventino (1481-1561); Vittore Trincavello (c.1496-1568) e Zacuto Lusitano (1575-1642).

78 Cf. CARDOSO 2021: 253-4; A importância do legado árabe é realçada por inúmeros estudiosos. José Pedro SOUSA DIAS afirma que a reconquista de Toledo em 1085 veio pôr à disposição dos cristãos um apreciável conjunto de manuscritos árabes que aí se tinham acumulado desde a invasão em 711; que, por volta de 1135, o arcebispo da cidade criou uma escola de tradutores constituída por cristãos e judeus;

tendo-se o trabalho de tradução iniciado com o Corão, e prosseguido para obras de Ptolomeu e Aristóteles; que, em 1144, se juntou a esta escola Gerardo de Cremona (c. 1114-1187), que traduziu um total de 90 obras de várias áreas do saber, incluindo 24 de medicina; que entre os autores médicos traduzidos, se contam Galeno, Hipócrates, Al-Israili, Rhasis, Al-Wafid, Serapião, Abulcassis, Al-Kindi e Avicena, (SOUSA DIAS 2020: 25). ARRIZABALAGA realça que o tratado da peste do médico catalão Lluís Alcanyís recorre às autoridades médicas de Galeno, Rhasis, Avenzohar, Averróis, Avicena e Pietro d’Abano (ARRIZABALAGA 2008: 32). Garcia da Orta (1501 – 1568) inicia os seus Colóquios dos Simples, Drogas e Coisas Medicinais da Índia afirmando a importância da medicina árabe e referindo, entre os autores que considera fundamentais, Mesué, Rhasis, Averróis e Avicena, afirmando: “Não vos queria ver tão afeiçoado a estes escritores modernos, que por louvar e sublimar muito aos gregos, dizem mal dos árabes e de alguns mouros nascidos em Espanha, e de outros da Pérsia, chamando-lhes maometistas bárbaros (que eles têm por pior epíteto que quantos há no mundo), em especial os italianos (…)” (FIOLHAIS e PAIVA 2018: 61). Muitas outras fontes atestam a importância dos autores árabes e persas; ver, p.e., FICINO 1522, onde cita Avenzohar, Rhasis, Avicena e Serapião nas páginas 6, 8, 9, 10, 17, 35, 36, 39, 40, 43, 45 e 46; ou Pedro HISPANO (c. 1210 – 1277), apontado como um “continuador da tradição arabista” em LEMOS 1899:

Vol. I, Cap. II, p.29 (ver também, a este propósito, ROCHA PEREIRA 1973: 48-49).

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autores. É, portanto, despropositado o juízo daqueles que procuram deslustrar os árabes e as escolas que deles provêm (…).79

Como segunda nota, é de realçar que o mesmo se aplica à própria terminologia usada para descrever a peste. No mesmo artigo citado acima, Carmichael indica, adicionalmente, que se mantém, ao longo dos séculos, um vocabulário semelhante ao que já era utilizado na Idade Média para designar a “grande peste”.80 Segundo a opinião de Jon Arrizabalaga, contudo, as palavras “peste” e “pestilência” não esgotam os termos que eram empregues a partir da baixa Idade Média (até finais do século XV) por todos aqueles que lidavam com esta doença infecciosa de enorme impacto social, nomeadamente os médicos, embora estes termos forneçam ainda hoje uma “pista”

incontornável para se empreender um estudo histórico sobre este tipo de doenças contagiosas.81 É, portanto, legítimo acrescentar que a terminologia aparece com matizes mais elaboradas em Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo, que distinguem, por exemplo, uma enfermidade “pestilente” de uma “perniciosa”, ou seja, uma epidemia, de um surto de peste, e multiplicam as características com que descrevem a “cruelíssima fera”.82 Neste sentido, torna-se razoável pensar que este aumento de complexidade se estende a outros autores dos séculos XVI e XVII, o que requer estudos mais aprofundados até porque, o intervalo de tempo entre o século XIV

79 DIAS 2011: 112-113; cf. NUTTON 2008: 11, onde realça que os materiais árabes existentes em arquivos e bibliotecas ainda não foram totalmente explorados e que os estudiosos ocidentais capazes de os ler no original durante o século XIX eram muito poucos, mas tem aumentado desde a última metade do século XX, existindo agora estudos que podem rivalizar em detalhe com os que se dedicam à Peste Negra. Que os tratados sobre a peste de Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo citam autores árabes e persas reconhecidos como autoridades em medicina fica claro na tabela de médicos citados (ver, no final desta tese, o Anexo I. Rodrigo de Castro, p.e., realça a importância de ler os textos desses autores na língua original e, a propósito da formação dos médicos, afirma que: “Absolutamente necessário é o conhecimento das línguas (…) porque não é na língua materna que temos os escritos dos médicos, mas na grega, na latina e, por vezes, na árabe” (DIAS 2011: 100).

80 Cf. CARMICHAEL 2008: 19. A propósito das palavras usadas para descrever a peste negra Carmichael salienta que os autores contemporâneos utilizam o mesmo vocabulário com que foram descritas as pandemias medievais (séculos XIII e XIV), e que os médicos usavam geralmente pestilentia, epidemia, e, ocasionalmente, peste; mas realça que as palavras utilizadas tinham pouca importância, no sentido em que significavam genericamente que se tratava de uma doença de altíssima mortalidade.

81 Cf. ARRIZABALAGA 2008: 10.

82 SEMEDO 1680: 3, 12, 5; na última página citada, o texto remete, em nota, para Hipócrates, Carta a Artaxerxes, fol. 520 ib: “Non beligerantes debellamur, cum hostem habeamus bestiam illa ovillia devastantem.”

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(com toda a problemática que envolve o período da peste negra) e o século XIX (com as novas descobertas científicas) merece ser mais conhecido.

Como terceira nota, regista-se que a vivência da peste salientou uma característica ancestral: os pobres (sobretudo nas áreas urbanas) continuavam a ser os mais atingidos, um problema milenar que se mantém actual.83

Como quarta nota, deve realçar-se que Carmichael conclui que, independentemente das palavras utilizadas para designar uma “praga” mortífera e da doença a que a expressão se aplicava, a experiência originou, no âmbito da saúde pública, diversos métodos de combate a situações pandémicas, o que se tornou, indiscutivelmente, um progresso na história da humanidade, já que, na Europa, a doença se tornou, ainda que perigosa, controlada. Arrizabalaga, que defende que o termo “saúde pública” stricto sensu só surge entre o final do século XVIII e o início do século XIX, afirma, no entanto, que há uma relação entre as várias medidas sanitárias adoptadas para combater os surtos de peste e as sugestões propostas pelos médicos, já a partir da baixa Idade Média e que é um facto que estas propostas saem do âmbito estritamente académico e são acolhidas pelas cidades e pelos vários estados europeus, em termos gerais, como medidas socialmente eficazes.84

Os temas da higiene, das casas de saúde e da pobreza, segundo as opiniões descritas nos respectivos tratados de peste por Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo, serão abordados mais abaixo nesta dissertação.

83 Cf. CARMICHAEL 2008: 52.

84 Cf. ARRIZABALAGA 2008: 11. As propostas ao nível da higiene assimiladas fora da comunidade académica são referidas em textos de literatura já no século XIV, como por ex. no célebre Decameron de Boccaccio (1313 – 1375): “Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente. E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos” (Benedetti 2013:

21).

33 Capítulo III.

A peste segundo Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo

Pes·te (latim pestis, -is) nome feminino. Doença epidémica grave, infecto-contagiosa, provocada por um bacilo, em que a pele é geralmente atacada de bubões ou de úlceras. Medicina: Doença que causa grande mortandade; Figurado: Mau cheiro; Coisa perniciosa ou funesta; O que corrompe ou destrói, física ou moralmente. Peste bubónica: Medicina, doença epidémica altamente infecciosa causada pela bactéria Yersinia pestis, caracterizada por tumefacções ganglionares dolorosas. Peste negra: Designação dada à grande epidemia de peste, de tipo hemorrágico subcutâneo, que provocou grande mortandade na Europa Ocidental no século XIV.85