• Nenhum resultado encontrado

A Peste bubónica: é causada sempre pela mesma bactéria e tem sempre o mesmo vector de infecção?

«Trata-se de uma febre de carácter tifoide, mas acompanhada de abscessos e de vómitos. Fiz incisões nos abscessos. Pude, assim, recorrer a análises em que o laboratório julga reconhecer o bacilo da peste. Para ser preciso, é necessário dizer, entretanto, que certas modificações específicas do micróbio não coincidem com a descrição clássica.»

A Peste (1947), Albert Camus

A explicação anterior, sobre um mesmo agente ter causado (e ainda poder causar) uma mesma doença (a peste bubónica) ao longo dos séculos, continua, ainda hoje, a ser debatida. A discussão centra-se na questão de ter sido (ou não) a bactéria Yersinia pestis, sofrendo mutações52, a causadora da infecção que provocou os três grandes surtos epidémicos de peste53 que marcaram a história da humanidade: a peste antiga (ou de

51 Cf. CUNNINGHAM, “Transforming plague: the laboratory and the identify of infectious disease”, in, Andrew Cunningham and Perry Williams (eds), The laboratory revolution in medicine, Cambridge University Press, 1992, pp. 209–44; (apud NUTTON 2008: 6, n.31-32); Segundo Monica Green, realçando a importância dos estudos científicos sobre esta doença, reafirma a importância do que significa a pós descoberta da bactéria Y. Pestis para definir o que é a peste: “Plague, as Andrew Cunningham has most incisively pointed out, is a construct of modern biomedicine, built on a foundation of laboratory science, epidemiological studies, entomology, and zoology which together have contributed to our understanding that ‘plague’ is a disease caused by an infectious microorganism (Yersinia pestis), transmitted by flea bites or other means, presenting certain characteristic clinical signs and affecting the human body through physiological processes known through countless clinical observations and laboratory studies of afflicted humans and animals both pre- and postmortem. Absent that laboratory, there is no ‘plague’ in this sense”

(GREEN 2014: 52).

52 Cf. NUTTON 2008: 13.

53 Cf. NUTTON 2008: 13; CHARMICHAEL 2008: 17; COHN 2008: 74-75; ARRIZABALAGA 2008: 9; FRITH 2012:

11.

23

Justiniano, com início por volta de 540 d.C.)54; a medieval (a Peste Negra de 1347-53); e a oriental (séc. XIX). A primeira prolongou-se de meados do século VI até ao século VIII;

a segunda, a mais famosa de todas e, provavelmente, a mais mortífera, iniciou-se em meados do século XIV, e prolongou-se na Europa Ocidental até ao primeiro quartel do século XVIII, mantendo-se regionalmente no Médio Oriente e no Mediterrânio Oriental até meados do século XIX; a terceira iniciou-se no Extremo Oriente em meados do século XIX, acabando por se espalhar por toda a parte, chegando à Europa na viragem do século XIX para o século XX e contaminando e criando focos enzoóticos (ou seja, depósitos da bactéria entre as populações de roedores locais) nas até então intocadas Américas e estabelecendo definitivamente focos na África Subsariana.

Acreditava-se, desde 1951 e até recentemente, que cada uma das três pandemias se definia não só pela ocorrência cronológica mas também pela predominância de estirpes (biovars)55 que se distinguiriam entre si por pequenas diferenças genéticas com influência na acção da bactéria: antiqua, a variante responsável pela Peste Justiniana e pelas suas réplicas; mediaevalis, a estirpe que provocou a Peste Negra e os subsequentes surtos da Segunda Pandemia; e a orientalis,56 que se desenvolveu no sul da China e se tornou responsável pela esmagadora maioria dos surtos dos últimos 150 anos e pelo conjunto da Terceira Pandemia, sendo a única que mantém estatuto pandémico ainda hoje.

No entanto, a relação directa entre cada uma das pandemias e das respectivas variantes genéticas ainda é debatida. As novas investigações, fruto da renovação constante dos conhecimentos sobre a história natural da doença, determinaram um dos grandes debates da historiografia da Peste Negra das últimas décadas sobre a verdadeira identidade da doença, ou seja, levantaram a questão se seria possível que a disseminação dessas pandemias pudesse ter tido a sua origem em causas distintas e diferentes agentes de infecção.

54 Sobre a peste de Justiniano cf. GREEN 2014: 31.

55 Cf. CHARMICHAEL 2008: 17; NUTTON 2008: 13; GREEN 20014: 27-29.

56 No seu artigo “The History of Plague – Part 1. The Three Great Pandemics” Frith afirma: “uma análise paleomicrobiológica descrita por Drancourt em 2004 indicou que as três pandemias foram muito provavelmente causadas pelo biovar Orientalis” (FRITH 2012: 11, n. 6 e 7).

24

A divergência entre historiadores e biólogos57 sobre as diferenças identificadas nos surtos epidemiológicos de peste dos séculos XIX-XX e da Peste Negra do século XIV, tornou as teorias sobre a bactéria Yersinia Pestis ter sido ou não o mesmo agente da infecção irreconciliáveis. Nutton chegou a separar as duas facções designando-as, de um lado, os “cépticos”58 e, do outro, os “crentes” ou “optimistas”.59 Nos últimos anos desta polémica, destacou-se, do lado “negacionista” (ou céptico), o britânico Samuel K. Cohn.

Não cabendo aqui aprofundar esta disputa, salientamos sucintamente que Cohn manifesta, no artigo “Epidemiology of the Black Death and successive waves of plague”, um grande cepticismo relativamente ao facto de uma infecção causada por um mesmo agente patogénico poder ter apresentado manifestações tão díspares ao longo dos séculos, ainda que, segundo as novas investigações arqueológicas e com a tecnologia das análises de ADN60, se pareça ter confirmado a responsabilidade da Y. pestis como agente dos três principais surtos de peste. Cohn, com efeito, não deixa de realçar, por exemplo, que a epidemiologia do “terceiro surto” diferia radicalmente dos dois primeiros, o que obrigaria a levantar outras hipóteses diferentes das já apontadas.61

Também a historiadora Ruth Mackay, no seu livro Life in a Time of Pestilence – The Great Castilian Plague of 1596-1601, ao mencionar o debate acérrimo travado nas últimas duas décadas pelos historiadores de medicina sobre qual teria sido efectivamente o agente patogénico que causou a morte a milhões de pessoas durante a “segunda pandemia” (a que abarca um arco temporal desde o século XIV até ao século

57 Segundo Monica Green: “At the conference ‘Human Evolution, Migration and History Revealed by Genetics, Immunity and Infection’, which was held in London in 2011, the organizers (two biologists and a physician) expressed concern that relying on what was already known to historians offered too limiting a view of the history of pathogens and human evolution” (GREEN 2014: 30).

58 Cf. CHARMICHAEL 2008: 17-18.

59 Cf. NUTTON 2008: 9, 10 e 16.

60 Segundo Monica Green: “Microbiologists have broken through the nineteenth-century barrier of laboratory medicine. Nearly all modern laboratory samples of plague and other pathogens have been collected in just the past 150 years. But aDNA research reaches beyond that chronological limit, reconstructing and identifying old organisms in a way that microbiologists themselves now believe is possible (even if they still argue among themselves about best methods) and that connects plausibly with the narratives of pathogen evolutionary history created by genome-based phylogenetics. ‘Retrospective diagnosis’, in other words, now has a completely new meaning, one based on assessment of a material substrate of the past rather than cultural products alone” (GREEN 2014: 52).

61 Cf. COHN 2008: 100; Segundo Monica Green, mesmo os autores que aceitam a teoria da bactéria Y.

Pestis não deixam de ser cépticos: “But the skeptic will ask: So what if we can say definitively that people died of Y. pestis infections in disease outbreaks of the past? How does that change the work of historians or those working in other historicist disciplines? (…) to return to the skeptic’s “So what?” question about the significance of the new plague science posed at the beginning of this essay. My response is: “Because it gives us something to think with.” (GREEN 2014: 29 e 53).

25

XVIII), salienta que a literatura científica revela que as doenças sofrem mutações e que a identidade dos hospedeiros e dos vectores podem ter variado ao longo do tempo, o que torna impossível resolver a questão com o simples paradigma das “pulgas” e dos

“ratos”.62 E o professor de História da Medicina e da Ciência Jon Arrizabalaga, acrescenta que, a partir da década de oitenta do século XX, a história “oficial” da peste é duplamente contestada. Por um lado, os historiadores que se dedicam ao estudo das epidemias questionam os termos clínicos e epidemiológicos que identificam a Peste Negra e os subsequentes surtos, desde a idade média até à idade moderna, com a peste bubónica tal como é definida actualmente; por outro lado, a nova história cultural sobre esta doença põe em causa o próprio conceito de “peste”, desenvolvendo outra definição nosológica sobre a doença. Os autores destas novas perspectivas defendem que a peste pré-moderna e a peste moderna respondem a critérios de identificação diferentes, sendo a peste moderna uma construção própria do século XIX e, mais concretamente, uma consequência da (nova) teoria bacteriológica63, enquanto a “peste” ou

“pestilência” da era pré-bacteriológica consistia em qualquer infecção epidémica de mortalidade elevada (ARRIZABALAGA 2008: 10).