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nos conventos, sustentava que “cada praga começa numa região”, sendo transportada de um lugar para outro de várias maneiras; para alcançar uma pestilência universal, portanto, alguma mudança universal teria de facilitar o surgimento da peste em muitas localidades (uma pestilência universal diferia de uma epidemia, que tinha causas locais).

Um evento celestial seria suficientemente grande para afectar todas as regiões.115 Desta forma, uma dificuldade científica era resolvida com o melhor conhecimento disponível na época.

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se ocupavam deste assunto e tentavam resolver as dificuldades nele encerradas.

Rodrigo de Castro formula assim a maior dificuldade:

se a peste provém da vontade divina, mas nenhum dos mortais pode fugir dela furtivamente, em vão se aplicarão diligências e esforços para a afastar ou curar.118

O facto de a cura para a peste ser um dos temas incluídos nos tratados que lhe eram dedicados obrigava à inserção de um argumento que advogasse uma posição diferente.

Noutro passo, afirma:

Uma vez que é evidente, a partir de Prognósticos, 1, de Hipócrates, que existe algo divino nas doenças, é certo que nesta [i.e. na peste de Hamburgo de 1596], se em alguma, se encontra, sempre, algo divino e sobrenatural, que é a marca da vingança divina, como lemos em diversos passos das Escrituras e, entre muitos outros lugares, em Reis 2.24.119

Outros autores costumavam discutir o divino a propósito de Hipócrates, Prognósticos 1. Ao comentar o texto hipocrático no tratado sobre a peste do ano de 1577, Girolamo Mercuriale perguntou-se “o que quis Hipócrates dizer ao escrever que o médico deve prestar atenção ao que é divino nas doenças quando deseja fazer prognósticos”, e se é verdade “que as constituições do ar que não são quentes e húmidas nunca originam a peste.” Mercuriale relembra que Galeno parece ter concluído que, segundo Hipócrates, não há nada de divino nas doenças excepto as intemperanças (ou constituições) do ar, mas aponta que é difícil encontrar outros passos em que Hipócrates utilize a palavra “divino” referindo-se à constituição do ar, preferindo pensar que o médico grego se referia a uma constituição e qualidade secreta.120 Ambrósio Nunes inicia a parte I do capítulo XI do seu Tratado da Peste exactamente com esta indagação e, recorrendo aos médicos Jean Fernel (1497 – 1558) e Girolamo Fracastoro (c.1483-1553), apresenta um raciocínio muito semelhante:

118 MOTA et al. 2021: 103.

119 MOTA et al. 2021: 69.

120 MARTIN 2022: 44 e 45.

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Sendo, pois, a peste uma enfermidade comum e epidemia perniciosa, e que vem e nasce de causa comum, necessariamente há-de ter por causa o ar, por ser também comum a todos sem excepção. E não bastará ter-se entendido em geral ter-ser o ar a causa das pestilências epidémicas, mas é necessário saber, em particular, qual é a mudança que, para isso, é necessária no mesmo ar. Esta mudança, dizíamos que não podia ser nenhuma das que se manifestam pelo calor, frio, humidade e secura, nem outra semelhante, seja natural ou sobrenatural em relação ao tempo; assim, concluímos que a tal mudança e alteração será aquela, à qual Galeno chamana substância toda e que consiste numa certa propriedade oculta que não se pode alcançar pelos sentidos. A ela dizem alguns doutos Varões que Hipócrates chamou Divina, quando disse que se tinha de considerar, nas enfermidades, se teriam algo divino, ainda que Galeno entenda, por esta palavra, o ar, ao qual os antigos chamaram Divino.121

Na interpretação destes autores, no passo hipocrático, o conceito de divino, mais do que possuir uma dimensão transcendental, aproximava-se do conceito do elemento ar, que seria o responsável e a origem das pestilências.122

Se, por um lado, estes autores reconheciam que o mal associado à peste tinha de ter uma origem divina, por outro lado, sentiam como necessário diferenciar o alcance do poder divino do poder terreno (ou da sabedoria humana) que assumiam estar nas mãos dos médicos. Este diálogo (e duelo) entre a ciência e a divindade foi sempre difícil.123 Mas Castro apresentou uma solução clara para o problema:

121 NUNES 1680: Parte I, Cap. XI, ff. 30v-32r. Todas as traduções de passos de Ambrósio Nunes ao longo deste trabalho são da nossa autoria.

122 O filósofo grego Empédocles (c.495-435 a. C) sugeriu que os quatro elementos (água, ar, fogo e terra) e as suas características (temperatura, humidade, secura) poderiam explicar a existência de qualquer substância. O ar seria a origem das pestilências porque sofreria corrupção, de acordo com a teoria aristotélica da geração e da corrupção.

123 Segundo Ottó GECSER, existiu, desde o início do cristianismo, uma tensão entre a medicina e a religião, nomeadamente no que diz respeito às explicações sobre as epidemias de peste, e, embora os médicos não rejeitassem que a peste pudesse ser um castigo divino, começaram, a partir de finais do século XIV, mas sobretudo nos séculos XV e XVI, a procurar uma explicação mais ampla, que será difundida, sobretudo, através dos vários tratados sobre a peste (GECSER 2015: 46-47).

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Com efeito, tal como lhes cabe a eles (teólogos) ensinar o conhecimento de Deus e livrar a alma das suas afecções, assim cabe aos médicos perscrutar as obras da natureza e libertar o corpo humano das enfermidades. Por este motivo, a Medicina é merecidamente designada por Demócrito como «irmã da sabedoria», sabedoria esta à qual corresponde a Teologia.124

Em O Médico Político, confirma a mesma ideia:

Dizia Demócrito que o conhecimento da sabedoria é irmão da medicina, porque da mesma forma que a sabedoria liberta a alma das paixões, assim a medicina afasta do corpo as doenças.125

De resto, a própria medicina teria uma origem divina segundo Castro, que atribui as origens da medicina ao Deus do Antigo Testamento com base nas conhecidas palavras do livro de Ben Sira onde a medicina e os médicos são elogiados (38, 1-15) e afirma que as origens divinas desta arte estão relacionadas com a obrigação de os homens se dedicarem ao culto da medicina e à procura de remédios naturais para preservar ou restaurar a saúde.126

Ambrósio Nunes defende o mesmo e afirma que o combate a esta “fera cruel”

se faria com “os médicos doutos, que nunca fugiram de tratar as ditas febres malignas”

e o fazem através da sua arte, ainda que a peste possa ser um castigo divino, “com a autoridade do próprio Salomão”.127 O mesmo se pode dizer de Curvo Semedo, que é da opinião de que o primeiro passo será sempre o de aplacar a fúria divina e, depois, chamar um médico e confiar no seu saber.128

124 MOTA et al. 2021: 69 e n. 25.

125 DIAS 2011: 81.

126 Cf. ARRIZABALAGA 2009: 117. De resto, CASTRO é inabalável na sua crença na eficácia da medicina:

“Daí vermos que muitos, tendo tomado os remédios a tempo, se restabeleceram e salvaram. Assim sendo, logo que alguém sentir em si, ou em alguém da casa, um vestígio deste mal, deve recorrer imediatamente ao médico ou a medicamentos, para que, por ignorância ou negligência, a doença, desprezada, não chegue a aumentar, e não rejeite a medicina, de outro modo útil à saúde” (MOTA et al. 2021: 103).

127 Cf. NUNES 1601: Cap. VI, ff. 91v-95r.

128 Cf. SEMEDO 1680: 1 e 2.

45 Capítulo IV: Casas de Saúde, higiene e pobreza.