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O tratamento penal dispensado aos “inimigos” do estado: a construção de um direito penal da exclusão

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ANGEL FRANCISCA PINTO DA SILVA

O TRATAMENTO PENAL DISPENSADO AOS “INIMIGOS” DO ESTADO: A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO PENAL DA EXCLUSÃO

Ijuí (RS) 2018

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ANGEL FRANCISCA PINTO DA SILVA

O TRATAMENTO PENAL DISPENSADO AOS “INIMIGOS” DO ESTADO: A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO PENAL DA EXCLUSÃO

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso – TCC.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Dr. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Ijuí (RS) 2018

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Aos meus irmãos, Anthony, Arthur e Luiz Augusto, que me ajudam e atrapalham na mesma medida.

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“A lei não é a pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares.”

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RESUMO

A temática a ser abordada no presente trabalho de conclusão de curso é a da seletividade do sistema penal e processual penal pelo viés do Direito Penal do Inimigo, tese desenvolvida pelo jurista alemão Günther Jakobs no ano de 1985. Trazendo a doutrina eficientista para o cenário brasileiro, verificaremos, através deste escrito, qual o perfil do encarcerado no Brasil, ou seja, quem foi o ―inimigo‖ adotado pelo sistema para ser combatido e excluído por meio da prisão. Ainda, far-se-á breve análise do Direito Penal do Inimigo nos Estados Unidos, verificando de que forma o país e as práticas punitivas lá adotadas influenciaram as brasileiras. A metodologia empregada foi a de pesquisa hipotético-dedutiva, com adoção de técnica de pesquisa bibliográfica e virtual. De modo geral, o trabalho tem por escopo alertar acerca da infiltração desta doutrina repressiva nos Estados Democráticos de Direito, bem como mostrar como determinados grupos acabam sendo responsabilizados apenas por conta de suas características pessoais.

Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo. Seletividade. Estado Democrático de Direito. Brasil. Estados Unidos.

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ABSTRACT

The subject to be approached in the present work is the selectivity of the criminal and procedural criminal system by the bias of the Criminal Law of the Enemy, a thesis developed by the German jurist Günther Jakobs in the year 1985. Bringing the efficiency doctrine to the Brazilian scenario, we will verify, through this writing, the profile of the prisoner in Brazil, that is, who was the ―enemy‖ adopted by the system to be fought and excluded by means of the arrest. Also, a brief analysis of the Criminal Law of the Enemy in the United States will be made, verifying how the country and the punitive practices adopted there influenced the Brazilian ones. The methodology used was that of hypothetical-deductive research, with the adoption of a bibliographical and virtual research technique. The purpose of this work is to alert the infiltration of this repressive doctrine in the Democratic States of Law, as well as to show how certain groups end up being held accountable only for their personal characteristics.

Keywords: Criminal Law of the Enemy. Selectivity. Democratic state. Brazil. United States of America.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

1 DIREITO PENAL DO INIMIGO: A TEORIA DE GÜNTHER JAKOBS 10

1.1 Conceito e características do Direito Penal do Inimigo 11

1.2 O Direito Penal do Inimigo como direito penal simbólico e como direito penal do

autor 18

1.2.1 Direito Penal Simbólico e os Movimentos de Lei e Ordem 19 1.2.2 Direito Penal do Autor e Direito Penal do Fato 22 1.3 A (in)compatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o Estado Democrático de

Direito 25

2 OS ESTADOS UNIDOS E OS INIMIGOS (DE GUERRA) 31

2.1 Tolerância Zero: a prisão como substituto do gueto 322

2.2 A política de segurança nacional norte-americana 400

2.3 A configuração de um Direito Penal de Guerra 44

3 DITADURA SOBRE OS POBRES: O DIREITO PENAL DO INIMIGO NO BRASIL 522

3.1 O perfil do inimigo do Direito Penal no Brasil: novos rótulos para antigos

estereótipos? 533

3.2 Traços do Direito Penal do Inimigo no tratamento dispensado aos criminalizados no

Brasil 59

3.3 O controle dos miseráveis pela força: técnicas e políticas punitivas de segurança

made in USA 644

CONCLUSÃO 688

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta um estudo acerca das noções de Direito Penal do Inimigo, conforme proposições do penalista alemão Günter Jakobs, desde o ano de 1985, a fim de estabelecer críticas ao modelo proposto e verificar se este se coaduna com o Estado Democrático de Direito. Essa busca mostra-se necessária ao levarmos em consideração o cenário político atual, de reiterado desrespeito a direitos fundamentais, ainda que assegurados por Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

A ideia de punição e desconsideração de garantias guarda relação com a tese de Jakobs, uma vez que o objetivo do Direito Penal do Inimigo é justamente a eleição de indivíduos dotados de características físicas específicas, os quais receberiam tratamento desigual em relação aos cidadãos comuns. Nesse cenário, a função dos penalistas que defendem o Estado Democrático de Direito, com aplicação igualitária do Direito Penal, é, de acordo com Luis Flávio Gomes (2007), criticar modelos como este, evidentemente de origem nazista, tendo em vista que sua missão primária é a de tutela de bens juridicamente relevantes, e não de discriminação e ampliação das desigualdades.

O presente estudo pretende responder se é legítima a aplicação do Direito Penal do Inimigo, nos moldes propostos pelo penalista alemão Günther Jakobs, bem ainda se tal tese/modelo se coaduna com o Estado Democrático de Direito – presente nos dois países analisados neste estudo (Brasil e Estados Unidos). Trazendo para o contexto pátrio, busca também verificar em que medida esta teoria está inserida nas práticas punitivas brasileiras, e se o Brasil estaria se encaminhando para um sistema semelhante ao adotado pelo Estado norte-americano, pautado pelas ideias de ―caça‖ e ―combate‖ ao inimigo.

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Ainda, visa estudar a tese proposta por Günter Jakobs, expondo a opinião do autor sobre o direito penal do inimigo e o direito penal do cidadão, bem como o tratamento que deve ser dispensando a cada uma das categorias inventadas pelo penalista; analisar a aplicabilidade do Direito Penal do Inimigo nos Estados Unidos, a partir de sua política de segurança nacional – notadamente acerca do tema ―Guerra ao Terror‖ –, mostrando seus ―inimigos‖ notórios, e fazendo uma retomada histórica que encerra com comentários acerca do inimigo contemporâneo; averiguar a aplicabilidade, ou não, do Direito Penal do Inimigo no Brasil, enfocando no perfil do processado, e verificar, por fim, se o país estaria se encaminhando para um modelo semelhante ao adotado nos Estados Unidos.

Para a realização desse trabalho foram efetuadas pesquisas bibliográficas e por meio eletrônico, bem como a análise de textos legais que integram o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de aprimorar o texto elaborado e aprofundar o estudo de assunto que se mostra tão impertinente na atualidade, mas de discussão premente.

A princípio, no primeiro capítulo, será elaborada abordagem da teoria do Direito Penal do Inimigo conforme os escritos de seu inventor, Günter Jakobs, sendo que serão ressaltadas as principais características deste tipo de Direito Penal e o porquê dele se diferenciar tanto do Direito Penal normal do Estado Democrático de Direito. Ainda, serão trazidas críticas de criminólogos acerca do assunto, e a forma como enxergam a existência e aplicação do DPI.

No segundo capítulo, a tese de Jakobs será cruzada com as políticas adotadas nos Estados Unidos — tanto em relação à sua população interna marginalizada, como em relação aos estrangeiros, notadamente o de origem islâmica — a fim de demonstrar que a nação se dedica a dispensar um tratamento penal diferenciado àqueles que elege como inimigos, agindo de maneira truculenta e fora dos limites delineados pelo Estado Democrático de Direito. Nesta parte, serão abordados episódios específicos da história americana, como o ataque ao World

Trade Center, em 11 de setembro de 2001, e as guerras empreendidas contra o Oriente Médio.

Para além, será esboçado o quadro da população afro-americana no país, e como são os principais alvos do poder punitivo estatal.

Por derradeiro, o terceiro capítulo fará verificação acerca da incorporação no Direito Penal do Inimigo no Brasil, buscando analisar quem o Estado escolheu quando se trata de punir. Além disso, investigará os traços da tese proposta por Jakobs no tratamento penal

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dispensado aos criminalizados no estado brasileiro, inclusive refletindo acerca das legislações penais promulgadas e, ao final, serão tecidas considerações sobre a possibilidade de estar o Brasil adotando comportamento semelhante ao dos Estados Unidos, tido como exemplo mais extremo de Direito Penal do Inimigo na atualidade.

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1 DIREITO PENAL DO INIMIGO: A TEORIA DE GÜNTHER JAKOBS

O debate acerca do Direito Penal do Inimigo é, na atualidade, predominantemente acadêmico, e sua aplicação prática – descomprometida, portanto, com aspectos teóricos – tem sido aplaudida pela mídia e setores conservadores da política brasileira, ainda que os movimentos de Lei e Ordem não sejam assim intitulados nos meios de comunicação, tampouco vistos, pela maioria das pessoas, como algo a ser contido, já que operam sub-repticiamente. Não há maiores preocupações em proporcionar ao ―inimigo‖ um direito e um processo penal de garantias, mas busca-se a relativização destas, com vistas ao punitivismo-eficientismo penal.

Em uma sociedade em que a criminalidade assume cada vez mais formas, com o despontar de grupos organizados como o Primeiro Comando da Capital (PCC) no Brasil e facções criminosas das mais variadas vertentes – que visam a atentar contra a hegemonia do Estado – o direito penal do inimigo surge como um modelo de direito penal de emergência, próprio para conter o clamor social por segurança – uma resposta quase ―mágica‖ para o problema da criminalidade. Em nome da segurança a qualquer custo, admite-se a adoção de medidas extremas, tais como aquelas cunhadas na tese proposta pelo jurista alemão Günter Jakobs.

Contrário aos princípios liberais do Estado Democrático de Direito e, inclusive, aos direitos fundamentais reconhecidos nas Constituições de países democráticos e Declarações Internacionais de Direitos Humanos, o direito penal do inimigo prega a supressão e relativização das garantias constitucionais do acusado considerado inimigo, o qual é despersonalizado como ser humano. Este modelo penalista acaba por fomentar a metodologia do terror, chegando a punir o autor por suas características particulares, e não por fatos praticados.

Sabe-se que a intervenção do Estado por intermédio do direito penal deve ser sempre pautada pelas regras constitucionais, com consequente preservação das garantias do processado. E, como assevera Zaffaroni (2006), não se pode permitir que tal modelo de direito penal/processual penal se infiltre no Estado Democrático de Direito, tendo em vista a dissonância com os princípios de nosso ordenamento, o qual visa a um direito penal e

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processual penal de garantias, sendo estas consagradas pela Carta Magna. Nesse contexto, o Estado de polícia que o Estado de direito carrega em seu bojo – envolto numa couraça de contenção – deve ter suas pulsões contidas pelo Estado de direito, uma vez que, quando este deixa de fazê-lo, o Estado de polícia avança.

Feitas essas primeiras colocações, esclarece-se que o presente capítulo tem por escopo analisar a tese proposta por Günter Jakobs, expondo a definição do autor acerca do direito penal do inimigo e do direito penal do cidadão; bem como o tratamento que, no entender dele, deve ser dispensado a cada uma dessas categorias pelo direito penal e processual penal. Ainda, haverá definição dos modelos de ―direitos penais‖ associados à tese (direito penal simbólico, direito penal do autor e direito penal do fato), verificando-se, por fim, a (in)compatibilidade com o Estado Democrático de Direito.

1.1 Conceito e características do Direito Penal do Inimigo

Em razão de repetitivos ataques terroristas contra a humanidade, alguns pensadores, como o alemão Günter Jakobs – bem como governantes, legisladores, e cidadãos comuns –, passaram a defender a aplicação de um direito penal preventivo, de caráter repressivo e emergencial, na ânsia de combater a criminalidade organizada e as novas formas assumidas pela criminalidade na contemporaneidade (com emprego de novas tecnologias, terrorismo, etc.). O sentimento de insegurança na população como um todo – sentimento criado, notadamente, pela mídia – vê este modelo de direito penal como uma solução rápida e eficaz para o problema da delinquência, primando pelo recrudescimento das leis penais.

Este nuevo autoritarismo, que nada tiene que ver con el viejo o de entreguerras, se propaga desde um aparato publicitario que se mueve sólo, que ha cobrado autonomía y se ha vuelto autista, que impone una propaganda puramente emocional que prohíbe denunciar, y que, además – y fundamentalmente – sólo cabe caracterizarlo con la expresión que los mismos medios difunden y que señala entre los más jóvenes lo superficial, lo que está de moda y se usa distraídamente: es cool. Lo es porque no se lo asume como una convicción profunda, sino como una moda, a la que es necesario plegarse, sólo para no ser considerado o estigmatizado como anticuado o desubicado y para no perder espacio publicitário (ZAFFARONI, 2006, p. 24).

Nesse panorama, surge o Direito Penal do Inimigo, teoria desenvolvida pelo penalista alemão Günter Jakobs (2015), no ano de 1985, a qual preleciona que devem existir dois tipos de direito penal, sendo que um estaria voltado para o ―cidadão‖ e o outro para o ―inimigo‖ –

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compreendidos, aqui, por ―inimigos‖, aqueles indivíduos que buscam destruir o ordenamento jurídico – ainda que pertencentes ao mesmo contexto jurídico-penal.

Além disso, o autor assevera em sua tese que se o Estado é compreendido como um contrato (Hobbes, Rousseau, J. H. Fitche, Kant), o delinquente estaria infringindo este contrato, de modo que já não participaria dos seus benefícios, e não poderia viver com os demais dentro de uma relação jurídica. Ou seja: pode-se, então, ―perder‖ o status de cidadão. A tese também se baseia na premissa de que o Direito Penal tem a função primordial de proteger a norma, e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais, o que justificaria a separação entre ―inimigos‖ e ―cidadãos‖.

Jakobs (2015, p. 27-28) usa Kant para fundamentar seu entendimento, referindo que, de acordo com o autor, ―quem não participa na vida em um ‗estado comunitário-legal‘ deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impelido à custódia de segurança); em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser ‗tratado como um inimigo‘.‖ Isso porque aquele que não faz parte do contrato social – ―que se encontra em um mero estado de natureza‖ –, ou, ―quem não se deixa entrar em um estado cidadão‖, priva da segurança necessária, e lesiona, por conta desse estado, aqueles que fazem parte do contrato, em razão de se mostrar como uma ameaça constante ao bem-estar destes.

Na visão do catedrático de Bonn, os indivíduos que insistem em delinquir retornam ao seu estado natural, anterior ao Estado de Direito, sendo o de natureza ―um estado de ausência de normas, isto é, de liberdade excessiva, tanto como de luta excessiva. Quem ganha a guerra determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a esta determinação‖ (JAKOBS; MELIÁ, 2015, p. 35).

No entender do mencionado autor, devem ser vistos e combatidos como inimigos os responsáveis por crimes econômicos, pelo terrorismo e pela criminalidade organizada, no caso dos delitos sexuais e outras infrações penais consideradas socialmente perigosas, classificando o atentado ocorrido em 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center de Nova Iorque como um ato típico de inimigo. Em consonância com Jakobs (2015, p. 28-29 e 39, grifo nosso):

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O Direito Penal do cidadão é um Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa. Mas o Direito Penal do inimigo é Direito em outro sentido. Certamente, o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que reincidem persistentemente na comissão de delitos. (...) Ainda mais: os cidadãos têm direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à segurança (...) O Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito

Penal do Inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos.

Assim sendo, o Direito Penal do Cidadão (Bürgerstrafrecht) estaria reservado aos indivíduos que não delinquem reiteradamente, e que oferecem garantias mínimas de que terão um comportamento pessoal adequado; ou seja, que não se desvirtuaram por completo, ainda obedecendo às normas do ordenamento jurídico, até por seus delitos não representarem ameaça significativa ao Estado. Por outro lado, o Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) destina-se àqueles que ―abriram mão de suas características de cidadão‖, os quais, em tese, não teriam interesse nas normas de direito, tornando-se não-pessoas ao quebrarem o pacto social (JAKOBS; MELIÁ, 2015, p. 24-25).

No contexto idealizado pelo penalista alemão, apenas o cidadão (―pessoa‖) merece ter asseguradas as suas garantias penais e processuais penais, pois, a partir do momento em que se retira o caráter de pessoa de um indivíduo, não possuiria mais ele acesso aos direitos fundamentais, o que legitimaria um procedimento de guerra contra si pelo Estado, visto que, se o Estado ainda o tratasse como ―pessoa‖, vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. O cidadão, como mero autor de um fato normal, não é visto como um inimigo a ser destruído. É, por outro lado ―uma pessoa que, mediante sua conduta, tem danificado a vigência da norma e que, por isso, é chamado – de modo coativo, mas como cidadão (e não como inimigo) – a equilibrar o dano, na vigência da norma‖ (JAKOBS; MELIÁ, 2015, p. 31).

Resta evidente o tratamento penal diferenciado dispensado aos ditos inimigos, os quais, por não terem as mesmas características do ―cidadão‖, devem sofrer consequências diversas por seus delitos. Configura-se, assim, o direito penal do inimigo como um direito oposto ao direito penal do cidadão, visto que este último considera que a conduta praticada pelo delinquente-cidadão não põe em risco a vigência da norma (função preventiva integradora ou reafirmadora da norma), e não possui força para destruir o ordenamento jurídico.

A reação do ordenamento jurídico, frente a esta criminalidade, se caracteriza, de modo paralelo à diferenciação de Kant entre estado de cidadania e estado de

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natureza (...) pela circunstância de que não se trata, em primeira linha, da compensação de um dano à vigência da norma, mas da eliminação de um perigo: a punibilidade avança um grande trecho para o âmbito da preparação, e a pena se dirige a fatos futuros, não à sanção de fatos cometidos. (JAKOBS; MELIÁ, 2015, p. 34, grifo nosso)

Para Jakobs (2015, p. 38), o processo contra o ―inimigo‖, como dito, corresponde a um procedimento de guerra, no qual há flexibilização ou supressão total das garantias fundamentais do acusado, com vistas à eliminação do perigo que ele representa, atuando o ente estatal de modo ―juridicamente ordenado‖. Nesse contexto, o inimigo não se afigura como um sujeito processual, pois não é um delinquente – designação que cabe somente ao cidadão – e, por tabela, não pode contar com direitos processuais mínimos, como o de se comunicar com advogado constituído:

(...) as regras mais extremas do processo penal do inimigo se dirigem à eliminação de riscos terroristas. Neste contexto pode bastar uma referência à incomonucabilidade, isto é, à eliminação da possibilidade de um preso entrar em contato com seu defensor constituído, evitando-se riscos para a vida, a integridade física ou a liberdade de uma pessoa. (JAKOBS; MELIÁ, 2015, p. 38)

Acerca do tema, teceu considerações o jurista italiano Luigi Ferrajoli (2007, p. 13, grifo nosso), ressaltando o caráter de seletividade deste modelo:

En el [direito penal do inimigo], la predeterminación legal y la averiguación judicial del hecho punible ceden el puesto a la identificación del enemigo, que inevitablemente, al no estar mediada por la prueba de actos específicos de enemistad, se resuelve en la identificación, la captura y la condena de los sospechosos. En efecto, el enemigo debe ser castigado por lo que es y no por lo que hace. El presupuesto de la pena no es la realización de un delito, sino una cualidad personal determinada en cada ocasión con criterios puramente potestativos como los de “sospechoso” o “peligroso”. Ni sirven pruebas sino diagnosis y prognosis políticas. Y es claro que el esquema puede ampliarse en múltiples direcciones: hacia los pedófilos, los mafiosos, las diversas categorias de marginados sociales; todo invariablemente según la concepción del delincuente político como ―enemigo‖ a suprimir por el interés general, a partir de su identificación extra legem según criterios sustancialistas y por procedimientos inquisitivos. Conforme a este modelo, lo que cuenta es la eficiencia, junto con la idea fácil, propia del sentido común autoritario, de que la justicia debe mirar al reo por detrás del delito, a su peligrosidad detrás de su responsabilidad, a la identidad del enemigo más que a la prueba de sus actos hostiles.

Quanto à pena, importante salientar que o termo – coação portadora da resposta penal adequada ao fato delituoso de uma pessoa racional – só cabe à sanção do cidadão. O inimigo, no entender de Jakobs, deve suportar ―medida de segurança‖, aqui definida como coação portadora da resposta penal adequada ao fato delituoso de um indivíduo perigoso, visto que as

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medidas de segurança são sanções sem os limites nem as garantias das penas. O inimigo seria, portanto, objeto da coação, não um sujeito de direitos.

A medida de segurança, segundo Jakobs (2015, grifo nosso), não só contempla retrospectivamente o fato passado que deve ser submetido a juízo, mas também se dirige e, sobretudo, ao futuro, no qual uma tendência a cometer fatos delitivos de considerável gravidade poderia ter efeitos perigosos para a generalidade. Se um indivíduo é considerado

não-pessoa ele se torna perigoso, e deve, por conta disso, ter sua conduta interceptada no

estágio prévio (antecipação da tutela penal para alcançar os atos preparatórios), a fim de evitar a concretização de um mal maior para a sociedade, a qual, supostamente, pode prever as ações dele.

A atribuição taxativa, dessa forma, depende não apenas de características pessoais, mas comportamentais. O delito fica em segundo plano, uma vez que se está mais interessado em observar o autor. É por conta disso que se entende que ―el Derecho penal del enemigo no estabiliza normas (prevención general positiva), sino demoniza determinados grupos de infractores.‖ (JAKOBS; MELIÁ apud HAZRÚN, 2012, p. 8).

De acordo com Luiz Flávio Gomes (2016), a teoria do direito penal do inimigo, que era meramente descritiva quando da sua concepção pelo doutrinador alemão em 19851, passou a ser defendida como modelo a ser incorporado aos ordenamentos jurídicos no ano de 1999, sendo, a partir de então, encarada como legítima por Jakobs. Este alega que a distinção entre Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão é necessária para a proteção e manutenção da legitimidade do Estado de Direito e da ordem jurídica. Eugenio Raúl Zaffaroni (2007, p. 160-167), por outro lado, reprova a teoria, asseverando que Jakobs deve ser criticado pela introdução de elementos próprios do Estado absoluto no interior do Estado de direito, sem se dar conta de que isso o implode, e diz que a teoria alemã é o ―remédio que mata o paciente‖.

Sendo um direito penal do autor, pune o sujeito pelo que é, atuando de modo tão repressivo que aplica a sanção pela simples cogitação do crime, pelo mero pensamento (por ele ter tido pensamento contrário à norma). Atualmente, o direito penal do inimigo está mais

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presente em países beligerantes como os Estados Unidos, e nos periféricos, como o Brasil e outros latino-americanos, sendo que o risco que a teoria apresenta nestes últimos é enorme, porque neles o poder punitivo bruto sempre encontra mais adeptos que nos países centrais (GOMES, 2016).

Luigi Ferrajoli (apud SIQUEIRA, 2008) também estabelece críticas à teoria do direito penal do inimigo, destacando sua ambiguidade, vez que não há uma definição clara de quem seria o inimigo. Sendo assim, qualquer indivíduo poderia ser enquadrado, ou confundido, com o inimigo, e o Estado estaria autorizado a processá-lo sem as garantias do devido processo legal. Sustenta o autor, ainda, que, por força do princípio da igualdade, todos são cidadãos, e não podem, desse modo, serem tratados de forma diversa.

Creo que hay que reconocer con absoluta firmeza que hablamos de un oxímoron, de una contradicción en los términos, que representa, de hecho, la negación del derecho penal, la disolución de su papel y de su íntima esencia, dado que la figura del enemigo pertenece a la lógica de la guerra, que es la negación del derecho, del mismo modo que éste es la negación de la guerra. (FERRAJOLI, 2007, p. 7)

O teórico garantista entende que o direito penal do inimigo configura uma contradição – um oximoro –, a negação do direito penal, e, portanto, não poderia ser denominado como ―direito‖ penal. A luta contra o inimigo, pois, pertence à lógica de guerra, e a guerra é a negação do direito, não podendo estes coexistirem. Ainda, a concepção do terrorista como inimigo é suficiente para suprimir todas as garantias atinentes ao direito penal, ―desde el principio de legalidad al de culpabilidad, desde la presunción de inocencia hasta la carga de la prueba y los derechos de la defensa‖ (FERRAJOLI, 2007, p. 7).

Para o jurista italiano, a criminalidade terrorista, ou de qualquer modo organizada, deve ser tratada como um fenômeno criminal, não um fenômeno bélico, visto que somente se repele com ato de guerra contra um Estado agressor a própria guerra, enquanto que a um crime, ainda que gravíssimo, se responde com o direito penal, com a devida sanção aos culpados – sob pena de a repressão perder sua eficácia. A partir do momento em que o Estado equipara o terrorista (inimigo) a ele, se comporta como terrorista, e o não observar das garantias mínimas em favor do processado deslegitima a atividade estatal de repressão do delito. Ao mesmo tempo, ocorre descarada discriminação de um determinado grupo:

La etiqueta ―terrorismo‖, como sinónimo de pulsión homicida irracional, sirve para caracterizar al enemigo como no-humano, no-persona, que no merece ser tratado con

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los instrumentos del derecho ni con los de la política. Es el vehículo de una nueva antropología de la desigualdad, marcada por el carácter tipológicamente criminal, demencial e inhumano, asociado al enemigo, y, de este modo, también de una nueva y radical asimetría entre ―nosotros‖ y ―ellos‖. (FERRAJOLI, 2007, p. 11-12) A quebra de todas as garantias processuais, por conseguinte, faz do próprio julgador um inimigo do processado, o qual, de acordo com Cesare Beccaria (1999) perde, inevitavelmente, toda a sua imparcialidade. Nesse panorama, o processo se converte em um ―processo ofensivo‖, em que o juiz já não busca a verdade de fato, mas tão somente ―el delito en el encarcelado‖, e, obviamente, a fim de não sair desacreditado de sua infalibilidade, estará mais propenso à condenação (FERRAJOLI, 2007, p. 13-14).

Um dos principais motes do direito penal do inimigo é a necessidade de eleição de um inimigo (GOMES, 2016), o qual, no entender de Zaffaroni (2006), assume as mais variadas formas com o passar do tempo — nem que para isso tenha de ser inventado. Os primeiros inimigos foram os hereges, feiticeiros, curandeiros, ‗bruxas‘, etc., queimados em nome de Cristo na Santa Inquisição – notadamente mulheres (BRAICK; MOTA, 2007). Posteriormente, a busca pelo inimigo passou a contar com o apoio da ciência médica — como exemplo, as teses lombrosianas — a partir da qual o criminoso era visto como um ser inferior, pouco evoluído, ―um animal selvagem‖.

Com o advento da Revolução Industrial vemos o incremento do sistema da divisão de classes, e para o controle da massa miserável e seus delitos surge a instituição da polícia. Já no princípio do século XX, contudo, o inimigo será aquele de raça degenerada, período em que nascem os movimentos autoritários (nazismo e fascismo) na Itália e na Alemanha — os nazis, a propósito, criaram um sistema penal paralelo, exercendo seu poder sem leis justas. Com a queda do Muro de Berlim e a passagem do poder para a mão dos Estados Unidos no final do século passado, será identificado como inimigo o comunista, de acordo com as doutrinas de segurança nacional do país da época; e, posteriormente – notadamente após o episódio do 11 de setembro – se difunde a política do terror e o terrorista se torna o novo inimigo da contemporaneidade (ZAFFARONI, 2006).

Na opinião de Gomes (2016), no direito penal do inimigo observa-se, resumidamente: (a) oposição ao Direito Penal do cidadão (no qual vigoram todos os princípios limitadores do poder punitivo estatal); (b) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); (c) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da

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exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; (d) aumento desproporcional de penas e criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); (e) endurecimento sem causa da execução penal; (f) exagerada antecipação da tutela penal; (g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais; (h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito (delação premiada, colaboração premiada etc.); (i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); (j) infiltração de agentes policiais; (l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebras de sigilo não fundamentadas ou contra a lei); e (m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros, etc.).

Considerando tais características, Rogério Greco (2016) refere que o direito penal do inimigo pertence ao ramo do Direito Penal de Terceira Velocidade2 (Direito Penal Máximo), a qual se caracteriza como uma velocidade híbrida – uma mistura dos direitos penais de primeira e segunda velocidade – com a finalidade de aplicar penas privativas de liberdade – característica do direito penal de primeira velocidade, do ‗cárcere‘ –, com uma minimização das garantias necessárias a esse fim – característica do direito penal de segunda velocidade. Reúne, portanto, os piores aspectos dos dois sistemas.

1.2 O Direito Penal do Inimigo como direito penal simbólico e como direito penal do autor

Sendo o direito penal do inimigo um ―não direito‖ – a negação dos preceitos constitucionais – e caracterizando-se como um direito penal prospectivo, o qual encontra fundamento no positivismo criminológico de Lombroso, Ferri e Garófalo (GOMES, 2016), não se preocupa com o fato criminoso, mas com o agente ativo e sua potencial periculosidade. Evidencia-se, assim, como um verdadeiro direito penal do autor.

2

Acerca das ―velocidades‖ do direito penal, Silva Sánchez (2001) leciona que a primeira velocidade refere-se ao direito penal do cárcere, no qual devem manter-se rígidos os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais. A segunda velocidade engloba os casos que não envolvem penas privativas de liberdade, e sim as restritivas de direitos ou pecuniárias, em que por não tratar-se de encarceramento, os princípios e regras que regem o direito penal podem sofrer certa flexibilização, até mesmo pelo fato de a sanção vir em menor intensidade. Hodiernamente, fala-se, ainda, em uma terceira velocidade de direito penal, decorrente da expansão deste, em que há uma sobreposição das duas velocidades, havendo junção da ideia de encarceramento com a ampla relativização das garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais penais.

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De outra banda, o modelo proposto por Jakobs é um dos representantes do Direito Penal Máximo, e, portanto, preza mais por oferecer respostas imediatas ao problema da criminalidade do que em combatê-la eficazmente. Dessa forma, é, também, um direito penal simbólico, o qual guarda intrínseca relação com os movimentos midiáticos de Lei e Ordem, geradores do sentimento de temor e insegurança, bem como propensos ―solucionadores‖ das questões levantadas cotidianamente no âmbito penal.

1.2.1 Direito Penal Simbólico e os Movimentos de Lei e Ordem

A influência midiática, de acordo com Rogério Greco (2016), acaba por propagar e divulgar, desde o final do século passado, os movimentos de Lei e Ordem, na medida em que jornalistas, repórteres e apresentadores de programas de entretenimento, dentre outros profissionais que não possuem formação na área do Direito, invocaram para si a responsabilidade de criticar as leis punitivas, incentivando o seu recrudescimento, bem como a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de garantias processuais.

Os discursos midiáticos levam a população a crer que o incremento dos tipos penais e a supressão de garantias são as soluções mais adequadas para o problema da criminalidade. Em conformidade com Greco (2016), ―a violência propagada em ‗cadeia nacional‘, somados ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares‖ (sic).

Nesse panorama, o sentimento de insegurança da população se torna um potencializador do apoio a estas medidas drásticas, mais ainda considerando as notícias transmitidas pelos meios de comunicação em massa sensacionalistas, que apresentam a violência de forma espetacularizada. Segundo Zaffaroni (apud GOMES, 2016), o Direito Penal na atualidade é puramente promocional e emocional, mostrando-se fundamental projetar a dor da vítima nos canais de televisão; o autor chega até mesmo a dizer que das TVs é preciso ―sair sangue‖, com anúncios de guerra, mortos, cadáveres, etc.

Nesse panorama, com a população aterrorizada, o direito penal surge como solução para aniquilar o inimigo, apresentado pelos políticos governantes, que se aproveitam da onda de temor para angariar votos com o direito penal simbólico ou de emergência e reformas

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penais que fazem frente à criminalidade, de modo a passarem a impressão de que estão dando uma resposta imediata para a questão (ZAFFARONI, 2006).

No entender de Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth (2011, p. 54-57), as respostas ao crime que possam ser tidas como veementes, efetivas e expressivas são as mais atraentes, enquanto as interpretadas como retratação, reconhecimento de fracasso ou dissociadas do sentimento público são consideradas inconvenientes.

Entre as razões principais da utilização política do Direito Penal encontra-se o fato de que, por meio dele, o legislador adquire uma ―boa imagem‖ em face da sociedade, na medida em que, a partir de decisões político-criminais irracionais atende às demandas sociais por segurança, obtendo, assim, reflexamente, um grande número de votos. Não obstante isso, a utilização do Direito Penal simbólico representa a alternativa mais ―barata‖ na hora de articular soluções para problemas sociais, visto que as medidas e programas sociais sempre são mais custosos do ponto de vista financeiro.

Como resposta ao medo e ao sentimento de insegurança da população, os partidos políticos, visando atender às demandas por resultados rápidos e eficientes, ―respondem cada vez mais debilitando as garantias atinentes à segurança jurídica, por meio de medidas legislativas‖. Nesse contexto, o direito penal adquire um caráter simbólico, vez que produz resultados político-eleitorais imediatos a partir da criação, no imaginário popular, da impressão de que as leis estão sendo produzidas com atenção e voltadas para a contenção dos delitos. Teriam as leis, então, a função não apenas de censurar o crime, mas ―confortar o público, uma vez que são aprovadas no calor da indignação popular em face de crimes violentos marcantes‖ (WERMUTH, 2011, p. 58-59).

Ainda, de acordo com David Garland (apud WERMUTH, 2011, p. 59), tal legislação tem o selo de qualidade ―feita para a televisão‖, visto que sua preocupação principal é demonstrar que o Estado está disposto a usar seus poderes para ―manter a lei e a ordem e proteger o público cumpridor da lei‖.

Pode-se citar, também, o entendimento de Ana Isabel Pérez Cepeda (apud WERMUTH, 2011, p. 61), que aponta para a busca pelo eficientismo a qualquer custo:

[o eficientismo penal] es la nota del Derecho penal en esta era de la globalización. Lo que importa es que el sistema sea eficiente, que alcance sus resultados programados, aunque con un alto coste en el recorte de los derechos y garantías fundamentales.

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Seria possível, ademais, subdividir as normas penais em dois grandes blocos, sendo um composto pela legislação que tem por objetivo reagir diante das novas formas assumidas pela criminalidade na sociedade contemporânea (notadamente o crime organizado e o terrorismo); e do outro fariam parte as normas que se baseiam na ideia de repressivismo/punitivismo como resposta imediata ao problema da criminalidade (WERMUTH, 2011).

O direito penal do inimigo abriga o fenômeno criminal do simbolismo do direito penal, além do punitivismo expansionista — que se traduz em conservadorismo e liberalismo penal (CALLEGARI; GIACOMOLLI, 2015), pois se mostra como um modelo de solução rápida para o problema da criminalidade organizada e do terrorismo.

A política de Tolerância Zero implementada nos Estados Unidos no começo da década de 1990, na Cidade de Nova Iorque, é uma das vertentes do mencionado movimento de Lei e Ordem. Por meio deste movimento, pretende-se que o direito penal tutele todos os bens jurídicos existentes na sociedade – até mesmo os insignificantes – o que faria com que o autor de qualquer infração sofresse consequências graves. Assim, ―se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social, tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a vontade do legislador‖ (GRECO, 2016).

Conforme assevera Cláudio do Prado Amaral (apud GRECO, 2016):

(...) usa-se indevidamente o Direito Penal no ledo engano de estar dando retorno adequado a toda criminalidade moderna, mas que em realidade não faz mais que dar revide a uma reação meramente simbólica, cujos instrumentos utilizados não são aptos para a luta efetiva e eficiente contra a criminalidade.

De acordo com o pensamento de Lei e Ordem, o direito penal deve ser utilizado como

prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção estatal, desempenhando um papel de

caráter educador e repressivo, não permitindo que condutas socialmente inaceitáveis deixem de ser punidas, ainda que se tratem de atos insignificantes. Acerca do tema, Luiz Luisi (apud GRECO, 2016, grifo nosso) faz a seguinte reflexão:

(...) no nosso século têm sido inúmeras as advertências sobre o esvaziamento da força intimidadora da pena como conseqüência da criação excessiva e descriteriosa de delitos. Francesco Carnelutti fala em inflação legislativa, sustentando que seus

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efeitos são análogos ao da inflação monetária, pois desvalorizam as leis, e no concernente as leis penais aviltam a sua eficácia preventiva geral.

A lógica do simbolismo penal, em que pese possibilite certo conforto à coletividade – evidentemente falso – não pode prevalecer. Não apenas porque a sociedade não toleraria a punição de todos os comportamentos considerados antissociais, os quais pratica reiteradamente, mas porque a aplicação rígida do Direito Penal (Direito Penal Máximo) sempre estará voltada contra o ―outro‖, o ―inimigo‖.

1.2.2 Direito Penal do Autor e Direito Penal do Fato

Quando se fala em combate à criminalidade, ganha espaço o direito penal do autor, que nada mais é do que uma faceta do direito penal do inimigo (GOMES, 2016). O próprio Günter Jakobs foi um doutrinador a discorrer sobre o tema, detalhando, nesse ramo, o modo de ser do criminoso e as características de sua personalidade como o crime em si. As medidas adotadas contra esse tipo de autor se justificariam pela periculosidade do agente, e contra ele não basta meramente punir o fato cometido, mas ―observa-se (...) a atitude interna jurídica corrompida do criminoso‖ (MOHAMED, 2010, p. 4).

Importa salientar que as características observadas no direito penal do inimigo serão as mesmas no direito penal do autor, vez que em ambos os sistemas se pune o indivíduo – aqui entendido como o agente contumaz – por suas características pessoais, sendo a infração, quando cometida, apenas uma escusa para analisar a prejudicialidade do indivíduo à coletividade.

No direito penal do autor é permitido se punir de forma mais contundente indivíduos que por sua maneira de vida, por seu comportamento social, representam uma ameaça aos padrões morais aceitáveis pela maioria dos cidadãos. Prostitutas, drogados, alcoólatras, jogadores inveterados e toda sorte de desajustados sociais podem ser segregados independentemente de terem ou não cometido um fato tipificado do diploma penal. Ou então se pode agravar consideravelmente uma pena levando-se em conta características pessoais do autor, como ser ou não reincidente, ser autor de delitos habituais ou permanentes, ou ainda com personalidade distorcida voltada para a prática de crimes. (MOHAMED, 2010, p. 4-5)

A característica mais marcante desse modelo de direito penal é a atuação repressiva pela simples cogitação do crime, oportunidade em que se passa a controlar – ou prever – o pensamento das pessoas, ferindo diversos princípios penais como o da lesividade, da

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ofensividade e da materialização do fato, sem mencionar que a teoria em si desconsidera os princípios da dignidade da pessoa humana e da culpabilidade (MOHAMED, 2010).

No entender de Gomes (2016), o direito penal do inimigo não reprova a culpabilidade do agente, mas sim, sua periculosidade. Tanto é que enquanto para o cidadão é destinada a pena, para o inimigo aplica-se a medida mais gravosa, sem os limites e as garantias legais – podendo se cogitar até mesmo a eliminação deste inimigo. Não há proporcionalidade na punição daquele considerado não-pessoa, visto que não se está a falar dos danos causados pelo fato delituoso por ele cometido, mas no risco que representa às demais pessoas, devendo ser ele interceptado no estágio prévio – fase de cogitação – do crime.

Portanto, ainda que não haja ataque a qualquer bem jurídico (violação subjetiva da norma), o direito penal do autor atinge a liberdade do cidadão. No entender de André Mohamed (2010), trata-se da extirpação – neutralização – de cidadãos aparentemente prejudiciais ao Estado ou potencialmente nocivos, apenas por suposições sem conteúdo fático.

Analisando a história do exercício real do poder punitivo, tem-se que o conceito de inimigo nada mais é do que um rótulo que se distribuiu sempre com a mais vasta arbitrariedade, a ponto de todos encontrarem-se sujeitos a serem eventualmente rotulados como inimigos, de acordo com a pretensão do Estado (ZAFFARONI, 2007, p. 102).

São identificados traços do direito penal do autor durante a época do nazismo alemão, haja vista a demonização de determinados grupos de infratores (judeus e outros socialmente indesejáveis).

Sobre a incidência de estereótipos, preconceitos e teorias do senso comum na aplicação da lei penal, o professor Alessandro Baratta (2011) salienta que existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento conforme a lei dos indivíduos que pertencem aos estratos médios e superiores da sociedade, ocorrendo o inverso com os provindos de estratos menos abastados:

Em referência aos delitos contra o patrimônio tem sido mostrado o predomínio destas duas tendências opostas, conforme a extração social do acusado. (...) Também nos critérios que presidem à aplicação da suspensão condicional da pena, elementos relativos à situação familiar e profissional do acusado jogam um papel decisivo. Estudos nesse campo mostram que estes critérios são particularmente favoráveis aos

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acusados provenientes das camadas superiores e desfavoráveis aos provenientes das camadas inferiores. Considerando, enfim, o uso de sanções pecuniárias e sanções detentivas, nos casos em que são previstas, os critérios de escolha funcionam nitidamente em desfavor dos marginalizados e do subproletariado, no sentido de que prevalece a tendência a considerar a pena detentiva como adequada, no seu caso, porque é menos comprometedora para o seu status social baixo, e porque na imagem

normal do que frequentemente acontece a indivíduos pertencentes a tais grupos

sociais, enquanto, ao contrário, para reportar as palavras de um juiz pertencente a um grupo sobre o qual foi dirigida uma pesquisa, ―um acadêmico na prisão ... é, para nós, uma realidade inimaginável‖ (BARATTA, 2011, p. 177-178)

Nesse cenário, o modelo de direito penal proposto por Jakobs, de acordo com Zaffaroni (2006), é necessariamente um exemplar de direito penal do autor, vez que seleciona grupos de indivíduos com características peculiares, a fim de puni-los de maneira diferenciada e pretensamente mais eficaz, fazendo oposição ao direito penal do fato, que analisa o agir, a conduta delituosa, para então punir o agente por conta de suas ações.

O direito penal do autor vai de encontro ao sistema penal estabelecido constitucionalmente, o qual pressupõe investigação prévia que traga elementos de prova sobre fatos praticados e seus autores correspondentes – se trata do sistema acusatório, em que a pessoa toma conhecimento da acusação que está a lhe ser feita e tem a oportunidade de apresentar defesa frente aos fatos imputados (TÁVORA; ALENCAR, 2013), para que o julgador possa apreciar o fato de maneira adequada, de preferência, isento de valores morais, políticos e das paixões despertadas pelos fatos (MOHAMED, 2010, p. 11).

De outra banda, o direito penal do fato (ou do ato) tem sido posto em evidência como corolário do princípio da culpabilidade. De acordo com este modelo, ninguém é culpado de forma geral, mas somente em relação a um determinado fato ilícito, concebendo-se o crime como um conflito que, a partir de um ato humano autônomo de um ente responsável (pessoa), produz uma lesão jurídica, que pode ser reprovada, na medida da culpabilidade e da autonomia de vontade com que atuou (MOHAMED, 2010).

Conforme Mohamed (2010, p. 24), a violação da norma no princípio do fato pode ocorrer de duas formas: pela incriminação direta de atitudes internas ou pela punição de fatos carentes de lesividade, utilizados como sintoma de ânimo.

Somente o direito penal do fato se mostra como um direito penal constitucional, visto que os indivíduos devem responder por suas ações, e não pelo que são; desse modo, a

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criminalização deve recair sobre o ―fazer‖ e não sobre o ―ser‖. Ainda, consoante Mohamed (2010), qualquer pretensão de um direito penal do autor é contrária à Constituição Federal, bem como aos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos subscritos pelo Brasil. Desse modo, jamais há de se admitir o abjeto direito penal do autor, que se apresenta, na verdade, como conteúdo do direito penal do inimigo.

1.3 A (in)compatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o Estado Democrático de Direito

Como conquista do povo na luta contra os poderes soberanos nasceu o Estado Democrático de Direito. Com o advento das revoluções liberais, vemos o surgimento de Constituições escritas e deste modelo de Estado baseado na democracia, no qual tanto governantes como governados devem obediência às leis. O Estado de Direito acabou por ser desvirtuado por Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, razão pela qual, após o episódio, passou-se a falar em Estado Democrático de Direito, onde ainda se tem presente o princípio da legalidade, desde que atenda aos ideais de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Há, então, a partir daí, clara limitação do poder do Estado (SANNINI NETO, 2016).

O Estado Democrático de Direito encontra sua fundação nas três gerações de direitos humanos, estando, no Brasil, previsto abstratamente na Constituição Federal de 1988. De acordo com André Copetti (2000), a consolidação do conceito de Estado Democrático de Direito passa, num primeiro momento, pela instituição do Estado Liberal de Direito e, num segundo, pelo de Estado Social de Direito, para, num momento final, no pós-guerra, chegar ao modelo que se tem atualmente em nosso texto constitucional.

A instituição do Estado de Direito, inobstante estar ligada conceitualmente ao pensamento germânico dos séculos XVII e XVIII, tem suas raízes em tempo muito anterior a estes. Num lapso temporal de mais ou menos mil anos, observa-se a construção de uma série de ideias que desaguaram na concepção única do Estado de Direito. Assim, temos na filosofia grega as idéias de dike (processo), themis (direito) e nomos (lei); na antiguidade a idéia de uma constituição mista carregava consigo a pretensão de um poder regulado, moderado, em contraposição à tirania ilimitada; a idéia de vinculação do soberano às leis fundamentais do reino; as doutrinas de resistência contra tiranos e do contrato social; e, por fim, o pensamento medieval da liberdade no Direito, ou seja, a liberdade a partir de um determinado estatuto que conduziria à idéia de liberdade natural do homem. (sic) (COPETTI, 2000, p. 52, grifo nosso)

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Dessa forma, a ideia de Estado Democrático de Direito está fundada na limitação do poder estatal soberano, que deixa de ser absoluto e passa a ser regulado por leis. E, nesse panorama, ainda que seja o Estado o detentor do ius puniendi, este não pode ser exercido a qualquer custo, como quer sugerir Günter Jakobs com sua teoria do direito penal do inimigo, desrespeitando garantias fundamentais pertencentes àqueles que atuam de maneira contrária às regras impostas pelo ente estatal. O controle social realizado pelo Estado não deve ser ilimitado, vez que consiste em invasão ao direito de liberdade de cada indivíduo.

Assim, a teoria do doutrinador alemão entra em conflito com os princípios constitucionais do Estado de Direito, em que é impossível a existência de indivíduos que sejam tratados como objetos de direito, quando deveriam ser tratados como sujeitos de direito. Bem ainda, tratar o criminoso como inimigo, suprimindo-lhe garantias processuais básicas como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, é descaradamente inconstitucional.

Coloca-se em risco o Estado de Direito no momento em que se permite a introdução da lógica da guerra – ―suja‖ (ZAFFARONI, 2007, p. 148) – pois haverá punitivismo exacerbado, arbitrário, destruindo por completo o princípio da razoabilidade, assegurado constitucionalmente.

Os direitos e garantias fundamentais próprios de um Estado de Direito, quais sejam: princípio da legalidade, da igualdade, da intervenção mínima e da culpabilidade, bem como o direito à presunção de inocência, à tutela judicial, ao devido processo legal etc, são pressupostos irrenunciáveis da própria existência do Estado de Direito. Promover e/ou permitir a derrogação destes direitos e garantias constitucionais, mesmo em casos extremos e considerados excepcionais, é admitir o desmantelamento do Estado de Direito. É admitir que o direito penal se transforme em um direito a serviço do Estado, uma vez que o direito passa a se submeter aos interesses que em cada momento determine o Estado ou aqueles que controlam ou monopolizam o poder. (ROSA, 2016)

Zaffaroni (2007) tratará muito bem a respeito do assunto ao referir que a abertura de espaço para o direito penal de emergência e a concessão de poder demasiado ao Estado fará com que este caminhe, inevitavelmente, na direção de um regime totalitário, isso, pois, há um deslocamento natural do poder punitivo, que tende a se alastrar, ainda que de início tenha lhe sido cedido pouco espaço. O mestre argentino é claro ao dizer que a adoção de procedimentos com lógica de guerra contra o inimigo não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.

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O conceito de ―inimigo‖, como assevera Zaffaroni (2006), retomando as teses de Carl Schmitt — reconhecidamente nazista e a quem termos como este eram bastante caros —, pertence a um Estado puramente absoluto, sendo inaceitável no direito normal do Estado de Direito.

O Estado de direito concreto invocado pelo professor de Bonn [Jakobs] (...) anula o Estado de direito abstrato, ou seja, cancela o próprio princípio do Estado de direito, ficando o limite do poder em mãos de um soberano que individualiza inimigos por decisão política e contra quem não se pode oferecer resistência. A prevalência de uma pretensa razão instrumental – cuja base empírica, aliás, é falsa – leva à razão de

Estado e à conseqüente negação do Estado de direito (sic) (ZAFFARONI, 2007, p.

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O autor também refere que os Estados de Direito ―não são nada além da contenção dos Estados de polícia, penosamente conseguida como resultado da experiência acumulada ao longo das lutas contra o poder absoluto‖. O Estado de Polícia estaria encapsulado no interior do Estado de Direito, sendo a ele concedida pequena liberdade, vez que mais se presta a atender os preceitos do Estado absoluto, embora necessário no Estado de Direito para a contenção dos delitos. Para o penalista argentino, ―o verdadeiro inimigo do direito penal é o Estado de polícia, que, por sua essência, não pode deixar de buscar o absolutismo‖ (ZAFFARONI, 2007, p. 169-175).

Destarte, não é legítima a aplicação do direito penal do inimigo em meio a um Estado Democrático de Direito, pois a tese não se coaduna com os princípios básicos deste. A limitação de direitos fundamentais com o escopo de punir mais facilmente os violadores da lei se caracterizaria como verdadeiro retrocesso – a instalação de um sistema totalitário dentro de uma sociedade democrática – haja vista a dificuldade na conquista dos direitos fundamentais da humanidade.

Permitir a introdução de tais elementos no Estado de Direito é permitir a configuração de um Estado de Polícia, que mais se afina ao Estado absoluto. De igual forma, é fomentar a existência do Estado de Direito apenas no plano formal; isso porque sua aplicabilidade, seus princípios e suas garantias se encontrarão comprometidos, pois incompatíveis com o Direito Penal do Inimigo (ROSA, 2016).

Ademais, considerando que o crime organizado e o terrorismo, etiquetados como inimigos na atualidade, não têm o poder de colocar em risco a ordem estatal vigente, tampouco as instituições essenciais, contra esses inimigos só se justifica o direito penal

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normal do Estado de Direito; o direito penal de garantias; o direito penal do cidadão (ZAFFARONI, 2006).

Ainda, tem-se que o direito penal do inimigo é a quebra do Estado de Direito, caracterizando-se como um direito de exceção — próprio de estados de exceção (e.g., de emergência, de sítio) — no qual o poder punitivo estatal não encontra limitação em critérios seguros. Isso porque a tese proposta caracteriza-se pela transposição dos limites impostos ao Estado no exercício do poder punitivo, com normalização do tratamento diferenciado quando se está lidando com partes específicas da sociedade ou determinados tipos de delitos. Deixa, dessa forma, de ser um estado excepcional para tornar-se um estado permanente (CALLEGARI; LINHARES, 2016).

A fórmula é, por si só, um Direito Penal de exceção, o qual Ferrajoli (2002) caracteriza em dois aspectos: a legislação de exceção em relação à Constituição e, portanto, a mutação legal das regras do jogo; e a jurisdição de exceção, por sua vez degradada em relação à mesma legalidade alterada, de tal forma que legitima-se a negação do Estado de Direito com vistas à sua defesa.

Tal espécie de direito penal é identificada por Francisco Muñoz Conde (apud CALLEGARI; LINHARES, 2016) como um tipo de Direito Penal excepcional violador de princípios intrínsecos do Estado de Direito, como o da legalidade, da proporcionalidade, da culpabilidade, de presunção de inocência e do devido processo legal. É a lógica da proteção do Estado a todo custo, onde direitos são sacrificados em prol da proteção integral, semelhante ao quadro que se desenhava na Alemanha nazista liderada por Adolf Hitler (AGAMBEN apud CALLEGARI; LINHARES, 2016).

Evidente que tal tese, nestes moldes, não abarca o conceito de Estado de Direito, de priorização do interesse comum, com a atividade estatal — sendo esta limitada pela lei (constitucionalismo) — voltada à proteção das liberdades individuais e garantia da possibilidade de desenvolvimento pessoal dos cidadãos, bem como com reconhecimento dos direitos básicos. Em um Estado de Direito, outro Direito Penal não pode haver que não um de garantias, uma vez que estas estão atreladas ao próprio Estado de Direito, para contenção do poder desmedido e do Estado de polícia.

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Enfim, o conceito de inimigo nunca é compatível com o Estado de Direito, em virtude de que, diante da limitação das liberdades individuais a fim de selecionar os inimigos — com criação de sujeitos com níveis distintos de respeito e proteção jurídicos — acabam sendo suprimidas as possibilidades de defesa dos cidadãos perante o Estado (ROSA, 2016). Dessa forma, os responsáveis pela comissão de delitos devem ser submetidos a um processo penal e eventual execução de pena dentro de um sistema penal fundado em garantias constitucionais, em acato aos preceitos do Estado Democrático de Direito.

Acerca da questão, oportunos são os apontamentos de Muñoz Conde (apud CALLEGARI; LINHARES, 2016), que critica a normalização do estado de exceção, fazendo referência ao risco de que isso venha a alimentar novas práticas excepcionais dentro do Direto Penal, excessos do poder estatal, que passaria a dar respostas igualmente terroristas às ações terroristas do ―inimigo‖ e a tendência à introdução de medidas cada vez mais rigorosas:

¿Qué pasaría si después de convertirse este Derecho penal del enemigo en realidad habitual y corriente en nuestras democracias, siguen cometiéndose o incluso se incrementan las acciones terroristas y las respuestas también terroristas del Estado a las mismas? ¿Se reintroducirá la tortura como medio de investigación?; ¿se abrirán campos de concentración para los enemigos? ¿se admitirá la detención policial, sin intervención judicial? ¿se generalizará la aplicación de la pena de muerte y se encargarán de ello Tribunales militares de excepción? (CALLEGARI; LINHARES, 2016, p. 74-88)

O poder, pois, deve sempre preservar o indivíduo diante do arbítrio estatal, com a não concessão de poder absoluto ao Estado perante seus cidadãos – que deixaram, há muito, de ser

súditos – ainda que sob a escusa de que se volta à conservação do próprio Estado. Isso porque

quando se concede poder de controle desmedido ao ente estatal, sem um necessário sistema para contê-lo, o próprio Estado pode se tornar o inimigo.

Num cenário em que se introduz o conceito de inimigo — aceitável somente no direito de guerra — para designar o infrator, não existem impedimentos para o contágio pelo terrorismo político e para a instalação do absolutismo. É a dissolução do princípio da legalidade (FERRAJOLI, 2007), com a adoção de práticas que refogem ao Estado Democrático de Direito, e que podem se implementar mesmo em Estados que se denominam democráticos.

Lamentável que a práxis do direito penal do inimigo esteja se instalando nas sociedades modernas, contrariando a defesa das garantias fundamentais defendidas pelos

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Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Como maior expoente da aplicação no ocidente desde o final do séc. XX e após o início do séc. XXI, desponta os Estados Unidos da América, em que a ideia de punitivismo ganha força por suas formas de contenção da criminalidade, provando que nem mesmo o ―guardião‖ da democracia após o final da Segunda Guerra Mundial está imune à sedução do estado de polícia.

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2 OS ESTADOS UNIDOS E OS INIMIGOS (DE GUERRA)

Amedrontado pela ―ameaça fantasma‖ representada pela figura do terrorista e acuado pela sensação de insegurança, o povo norte-americano é, hoje, um dos que melhor recepciona a tese do inimigo teorizada por Günther Jakobs, tendo a mesma sido determinante para a elaboração das medidas voltadas para a segurança nacional. Tal visão se legitima e ganha força quando reproduzida por seus políticos, em especial governantes — figuras presidenciais — e por seus meios de comunicação em massa, naturalizando o comportamento racista e xenofóbico na nação, especialmente após o atentado contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.

O episódio envolvendo os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono desencadeou uma onda de terror em âmbito nacional, que justificou a adoção de práticas tidas como invasivas de direitos em relação a americanos residentes no país e, mormente, no que se refere a estrangeiros. Em nome da segurança nacional, sob o estandarte da ―Guerra ao Terror‖, passou-se, até mesmo, a se admitir a adoção de práticas desumanas quando se trata deste inimigo — a título de exemplo, a existência de prisões como Guantánamo e Abu Ghraib.

Se na Alemanha Nazista eram os judeus retratados como ratos aos olhos arianos, o ―homem-bomba‖ terrorista, oriundo do Oriente Médio e praticante da religião islâmica representa o monstro que o governo estadunidense escolheu para combater no século XXI.

A postura combativa, contudo, não se limita apenas a estrangeiros — aqui entendidos como latinos, árabes e, no passado, comunistas — e imigrantes em geral, mas à própria população negra e marginalizada do país, sendo esta vítima de abusos de longa data, mais precisamente desde que os negros passaram a se estabelecer nos grandes centros estadunidenses. Ou seja, a postura repressiva sempre esteve presente no ideário americano de Direito Penal, sendo que este se confunde, e muito, com o Direito de Guerra a depender do tipo de criminalidade ou grupo que a pratica.

De visão puramente economicista, por ser o representante máximo do capitalismo desde a Guerra Fria, os Estados Unidos pouco experimentaram do Estado-providência,

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adotando-se, ao revés, a postura de incriminador da miséria. Fundado no mito do individualismo possessivo e na descentralização e fragmentação do campo burocrático (WACQUANT, 2001), foi a partir do governo de Reagan que teve início o declínio do Estado de Bem-Estar, com paulatina diminuição das intervenções sociais. As críticas ao Estado caritativo se davam, precipuamente, em razão da existência de políticas que visavam a inclusão da população negra. É a partir do final do séc. XX, no entanto, que se deixa de combater a pobreza, para se combater os pobres, o que desembocou no encarceramento em massa destas populações marginalizadas.

Feitas essas primeiras colocações, esclarece-se que o presente capítulo tem por escopo analisar o Direito Penal do Inimigo dentro do estado norte-americano, fazendo uma análise breve de seu histórico de práticas punitivas, visando identificar traços da doutrina de Jakobs. Ainda, far-se-á uma análise dos episódios mais marcantes dentro do cenário estadunidense que ensejaram a aplicação prática do DPI, iniciando-se pelo panorama da política de Tolerância Zero, passando pelo ―11 de Setembro‖ e, por fim, pelas guerras travadas no Oriente Médio, com vistas a demonstrar que o exemplo americano de tratamento dispensado ao inimigo afigura-se como o mais extremo dentre os estados democráticos na atualidade.

2.1 Tolerância Zero: a prisão como substituto do gueto

Para sufocar os tumultos populares provocados pela Guerra do Vietnã e pela mobilização dos negros em favor da igualdade civil, políticos conservadores de vertente republicana e democrata fazem da ―luta contra o crime‖ seu principal contra-ataque à expansão do Estado Social, a começar por Nixon na campanha presidencial de 1968, com o discurso de law and order3 — demonstração clara de descaso em relação às reivindicações negras.

De acordo com Loïc Wacquant (2001, p. 24), o governo republicano de Ronald Reagan, nos anos 1980, nos EUA, iniciou verdadeira política de desengajamento social, com cortes de programas assistenciais anteriormente voltados para a população carente. Atribuiu-se aos socialmente vulneráveis a responsabilização por aceitarem passivamente sua condição econômica, chegando-se a mencionar que a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos

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