• Nenhum resultado encontrado

2 OS ESTADOS UNIDOS E OS INIMIGOS (DE GUERRA)

2.3 A configuração de um Direito Penal de Guerra

No melhor estilo ―olho por olho, dente por dente‖, os EUA logo iniciaram – mais precisamente, no mês seguinte aos ataques – seu revide contra o Afeganistão, país em que se acreditava estar refugiado, à época, o líder da Al-Qaeda (A Base)8. Nesse mesmo período, com o governo Bush exigindo a entrega do terrorista e a destruição das bases da organização de Osama bin Laden, este convocava os muçulmanos para uma ―guerra santa contra os infiéis do Ocidente‖, sem muito respaldo. O contexto era de governo talibã apoiado por países como Paquistão, Emirados Árabes e Arábia Saudita. Contudo, quando anunciada a caça aos terroristas, tais países cortaram relações com o Afeganistão, deixando-o isolado (BRAICK; MOTA, 2007, p. 715).

Em conjunto com o Reino Unido, os Estados Unidos, em outubro de 2001, iniciaram bombardeios às principais cidades afegãs (Cabul e Kandahar) e às bases da Al-Qaeda, causando a morte de centenas de civis. Incapaz de resistir, o governo talibã – que, a título de exemplo, pregava doutrinas religiosas extremistas e podava direitos das mulheres – caiu, entrando em seu lugar um novo que representava diversas forças políticas do país (chefes tribais, grupos étnicos e monarquistas ligados ao rei deposto) com o apoio da Organização das Nações Unidas e dos EUA.

Posteriormente, em 13 de novembro de 2001, o presidente Bush assinou a ordem militar que permitiu que inimigos estrangeiros fossem julgados por Comissões Militares, mesmo que nunca tenha sido declarada guerra oficialmente pelos Estados Unidos contra qualquer país do Oriente Médio, até porque a Al-Qaeda e outras organizações da mesma natureza são integradas por cidadãos de diversas nações diferentes. Ainda assim, no momento em que a Suprema Corte norte-americana decidiu que não era necessária a declaração de

8

De acordo com Braick e Mota (2007), a Al-Qaeda trata-se de um grupo criado no final dos anos 1980 por Osama bin Laden com o objetivo de reunir os árabes que lutaram no Afeganistão contra os soviéticos. Suas metas são a criação de um califado pan-islâmico e a expulsão dos ocidentais dos países muçulmanos.

guerra para que os Estados Unidos pudessem tratar um inimigo como inimigo de guerra, todas as práticas passaram a ser aceitáveis.

A campanha militar denominada Guerra ao Terror foi mostrada a nível global como estratégia de combate ao terrorismo provindo do chamado ―Eixo do Mal‖, expressão utilizada pelo presidente Bush para se referir aos governos que ele considerava hostis e detentores de armas nucleares de destruição em massa. Em verdade, tratavam-se de países do Oriente que mostravam alguma resistência aos norte-americanos e que contestavam seu poder. Em seu discurso do Estado da União, em 2002, Bush apontou Irã, Iraque e Coréia do Norte como ―Estados vilões‖, uma vez que o Afeganistão já tinha sido neutralizado no ano anterior. Nos dizeres do chefe de Estado americano:

Estados como estes, e os seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal, armados para ameaçarem a paz no mundo. Por procurarem armas de destruição massiva, estes regimes são um perigo grave e crescente. Eles podem dar estas armas a terroristas, dando-lhes os meios para combinarem os seus planos. Eles podem atacar os nossos aliados ou tentar chantagear os Estados Unidos. Em qualquer um destes casos, o preço da indiferença seria catastrófico (WASHINTON POST, 2002)

Por meio da estratégia de segurança nacional ou ―Doutrina Bush‖, os EUA se acharam no direito de tratar como terroristas os países que acreditavam abrigar ou dar apoio a grupos extremistas, justificando com isso a invasão ao Afeganistão e a outros países após o 11 de setembro. A política se ampliou com o tempo para autorizar a guerra preventiva, que possibilitava a deposição de regimes estrangeiros que representassem ameaça à segurança nacional, ainda que esta não fosse iminente.

Dessa forma, os Estados Unidos agiam militarmente em nome da autodefesa, com base em decisões tomadas por seu governo e por sua Suprema Corte, sem consulta a órgãos de segurança internacionais. Refere Judith Butler (2006, p. 184-187) que ―[t]ragicamente, parece que os Estados Unidos buscam antecipar-se à possibilidade de sofrer violência cometendo violência primeiro. No entanto, a violência que temem é aquela que engendram.‖

Desde a Guerra do Golfo (1990-1991) que as relações entre Estados Unidos e Iraque já se encontravam tensas. Ainda que os países acusados de possuírem armas nucleares negassem as acusações, operações do serviço secreto estadunidense tentaram derrubar o governo de Saddam Hussein, presidente iraquiano à época.

Concomitantemente, Bush exigiu da ONU uma ação mais efetiva para desarmar o Iraque e afirmou que atacaria Bagdá caso o governo do Iraque não destruísse seu arsenal nuclear. Porém, em março de 2003, contrariando disposições da ONU, a coalização anglo- americana iniciou uma guerra contra o Iraque, com as tropas avançando rumo à capital. Com a deposição de Saddam Hussein, o país mergulhou em uma guerra civil que perdura até os dias atuais envolvendo sunitas e xiitas (BRAICK; MOTA, 2007).

Após isso, constatou-se que o Iraque não possuía nenhuma das armas que motivaram a invasão, apesar de haver indícios de que tal fato já era de conhecimento das autoridades inglesas muito antes da invasão. Ainda assim, nenhuma punição foi aplicada aos Estados Unidos pelo desrespeito às disposições da ONU (BRAICK; MOTA, 2007).

Judith Butler (2006) menciona que na campanha inicial da guerra contra o Iraque, os Estados Unidos propagandearam seus feitos militares com um efeito visual esmagador, tanto que a operação foi nomeada ―shock and awe9‖. A autora descreve que o espetáculo visual tinha por objetivo entorpecer sentidos e anular a capacidade de raciocinar, uma produção que visava atingir não somente a população iraquiana, no solo em que se daria o combate, mas também os consumidores da guerra, que a acompanhavam passo a passo por intermédio de emissoras internacionais como a CNN e a FOX.

O efeito visual, portanto, faria parte da própria estratégia de guerra contra o terror, de forma a mostrar ao mundo inteiro que podiam e seriam igualmente destrutivos, ―como um sinal desvairado de um poder americano ressuscitado‖ (BUTLER, 2006, p. 184-187). Contou o governo, para tanto, com o auxílio de grandes redes e jornais:

[...] o New York Times, embora mais tarde tenha se posicionado contra a guerra, também adornou suas primeiras páginas diariamente com imagens românticas de material bélico militar em contraste ao sol poente iraquiano ou de ―bombas explodindo no ar‖ sobre as ruas e casas de Bagdá (as quais, não surpreendentemente, são ocluídas da visão).

É no comportamento adotado pelo governo americano como nação, frente ao terrorismo, que reside o exemplo mais grave de direito penal do inimigo na atualidade, consistindo suas ações na negação do Direito, ao mesmo tempo em que não pode ser chamado

de guerra. Nos dizeres de Zaffaroni (2006), trata-se de uma ―guerra suja‖, em que se faz uso do aparato de legalidade apenas para não sofrer represálias da comunidade internacional, mas que, em verdade, não há a aplicação do direito penal normal tampouco das regras da Convenção de Genebra, reguladora do direito de guerra.

Com as guerras empreendidas pelos Estados Unidos, detenções ilegais e outros tratamentos desumanos foram autorizados no Afeganistão, no Iraque, na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, e na base naval de Guantánamo, convertendo-se estes em verdadeiros ―limbos jurídicos‖ ou ―buracos negros‖ – dentro do Estado Democrático de Direito – em que os detentos não veem garantia processual alguma (EICHENBERG, 2011):

Em nome da Guerra ao Terror, o governo americano não mediu esforços para capturar suspeitos no exterior, cometer abusos em interrogatórios nas prisões secretas da CIA fora dos Estados Unidos e enviá-los para Guantánamo por tempo indeterminado, em regime jurídico de exceção. O tempo, auxiliado por protestos da sociedade civil e de documentos confidenciais vazados pelo grupo WikiLeaks, revelou as aberrações da prisão. Os arquivos secretos mostram casos kafkianos de detenção de pessoas diagnosticadas com problemas mentais. (EICHENBERG, 2011)

Conforme os ensinamentos de Cervini (2010), o inimigo aprisionado em Guantánamo, quando lhe é possibilitado um julgamento, é submetido a processos com advogados, promotores e juízes militares. As provas são secretas, não sendo permitido à defesa acesso aos autos e os advogados são gravados durante as entrevistas com os presos, em total desrespeito ao sigilo advogado-cliente. Ademais, há interceptação de sua comunicação telegráfica e telefônica. Não bastasse, existem evidências de torturas e interrogatórios ilegítimos. Em suma, não existem garantias processuais, e até o ano de 2006 não se admitia que a eles fosse aplicada a Convenção de Genebra.

Acerca da tortura, importante frisar que os Estados Unidos foi o primeiro país a institucionalizar a prática, na era moderna, como meio de obtenção de prova legítimo — os Manuais Kubark10 tornaram-se o Malleus Maleficarum do séc. XXI. Aliás, o país criou uma série de anomalias jurídicas para justificar seus atos, como a ―Teoria do Cenário da Bomba- relógio‖, que autoriza a tortura de um terrorista suspeito de saber o local em que uma bomba

10

Nome oficial dos ―Manuais de Tortura‖ usados pela CIA e pelas forças militares americanas, geralmente relacionados a métodos e práticas eficazes de tortura, os quais foram objeto de experiências em seres humanos dentro do Projeto MKULTRA e que são transmitidas pela Escola das Américas, inclusive para a América Latina.

prestes a explodir está localizada, por ser uma situação justificável em face de um bem maior, ou um mal menor (RAMSAY, 2009).

Consoante Cretella Neto (2009), o que desejam os terroristas é mudar os sistemas democráticos ocidentais (ou pró-ocidentais) por meio da força e da violência, sempre dirigidas indiscriminadamente contra civis inocentes. Aparecer na mídia, portanto, é mero reflexo da brutalidade de suas ações, jamais seu objetivo primordial. Ocorre, entretanto, que os Estados Unidos, da forma como estão estruturados, tratam o terrorista como inimigo e não como criminoso (FERRAJOLI, 2007; ZAFFARONI, 2006), dispensando a ele tratamento estranho ao direito penal normal.

No entendimento do penalista argentino Eugenio Zaffaroni (2006), falar em periculosidade de uma pessoa é falar em direito penal do inimigo. É a dita ―teoria da guerra suja‖, a qual, em prol da segurança nacional, mistura a ideia de criminoso/delinquente com a de inimigo, adotando-se procedimentos de guerra no lugar do processo de garantias. Pode-se falar em flexibilidade da legalidade tradicional, como a que ocorreu em Nuremberg com o inimigo nazista.

O autor também menciona que este autoritarismo sinala uma deterioração da cultura estadunidense, com um perigoso abandono dos princípios fundadores da Democracia. Caracteriza-se ―por su desesperación para conseguir un enemigo que llene el vacío que dejó la implosión soviética‖ (ZAFFARONI, 2006, p. 22). Ainda em consonância com o pensamento de Zaffaroni, as medidas adotadas pelos Estados Unidos acabam por ter consequências planetárias em razão da globalização.

De cualquier manera, si bien este nuevo enemigo es peligroso, no legitima la represión sobre lós disidentes internos ni sobre los molestos (pequeños delincuentes comunes), pero como pretende justificar un control mayor sobre toda la población para evitar la infiltración de terroristas, facilita y refuerza también el que se ejerce sobre éstos, especialmente sobre los extraños (extranjeros). Debe señalarse, asimismo, que como la identificación de un nuevo enemigo siempre refleja uma lucha de poder entre agencias, la que resulta hegemónica termina imponiendo su propio discurso de emergencia y desplazando a los anteriores, en una pugna en que se juegan presupuestos siderales, pero, por efecto de la globalización, la decisión en esas luchas de agencias dentro de los Estados Unidos acaba teniendo consecuencias planetarias. (ZAFFARONI, 2006, p. 22)

Acerca do rótulo de periculosidade e da contenção do inimigo, a filósofa Judith Butler (2006) discorre acerca da desumanização do sujeito tido como hostil, facilitando a supressão de seus direitos mais básicos:

Si una persona o un grupo son considerados peligrosos, y no es necesario probar ningún acto peligroso para establecer la verdad de este hecho, entonces el Estado convierte a esa población detenida en peligrosa, privándola unilateralmente de la protección legal que le corresponde a cualquier persona sujeta a leyes nacionales e internacionales. Se trata ciertamente de personas no consideradas como sujetos, de seres humanos no conceptualizados dentro del marco de una cultura política en la que la vida humana goza de derechos legales y está asegurada por leyes -seres humanos que por lo tanto no son humanos-. (BUTLER, 2006, p. 108)

No caso de Guantánamo, Butler (2006, p. 109) ressalta que há uma redução dos indivíduos detidos ao status de animais, um animal que se apresenta como descontrolado e que precisa necessariamente ser contido. A pesquisadora fala num processo de ―bestialização‖ do homem, em que não se observa as intenções; mesmo que algumas das pessoas presas ali tivessem intenções violentas ou estivessem envolvidas em atos violentos, como o assassinato de outrem, existem maneiras de tratar o criminoso de acordo com as leis criminais e internacionais. Contudo, os Estados Unidos optaram por enquadrá-los numa categoria de ―pessoas excepcionais‖, que não são diretamente pessoas, e que devem ser mantidas no cárcere para que não matem outra vez; ―que son reductibles al simple deseo de matar, y que el código criminal e internacional en uso no es aplicable a dichos seres.‖

Para a professora da Universidade da Califórnia, o tratamento dispensado a estes prisioneiros considera-se como uma continuação da guerra e não como uma questão que demanda julgamentos e penas apropriadas. Refere, ademais, que os líderes podem se expressar de maneira violenta, porém, isso não significa que cada indivíduo detido representa essa posição, ou que se encontre interessado no prosseguimento da guerra. Alguns detidos no ano de 2003 seriam menores de idade — entre treze e dezesseis anos; além disso, oficiais de alto escalão chegaram a admitir que nem todos os detidos seriam assassinos, porém ―el riesgo de liberarlos es demasiado alto‖ (BUTLER, 2006, p. 110).

Cuando le preguntaron al fiscal general Haynes si ―sería de hecho capaz de tener a esa gente por años sin ningún cargo, simplemente retirada de circulación, aun si no están acusados de nada‖, contestó: ―Tenemos el derecho de hacerlo, y no creo que nadie pueda discutir que podamos detener al enemigo mientras dure el conflicto. El conflicto sigue desarrollándose, sin un final a la vista por ahora‖ [...] (BUTLER, 2006, p.110)

Verifica-se, portanto, que os Estados Unidos não veem gravidade alguma em sua ―Cruzada‖ contra o terrorismo, entendendo as barbáries como plenamente viáveis. Desconsideram, ainda, as regras da Convenção de Genebra:

En los últimos años, en varias ocasiones los Estados Unidos han declarado el poder de la Convención de Ginebra como no vinculante. Un buen ejemplo es la declaración que en apariencia respeta la Convención, es decir, que los Estados Unidos están actuando de modo consecuente con la Convención o, alternativamente, que los Estados Unidos actúan de acuerdo con el espíritu de los Acuerdos de Ginebra. Decir que los Estados Unidos actúan de modo consecuente con los acuerdos es decir que los Estados Unidos actúan de modo tal que no contradice los acuerdos, pero no dice que los Estados Unidos, como firmantes de los acuerdos, se consideren sometidos a los acuerdos. Reconocerlo significaría reconocer los límites que los acuerdos internacionales imponen a los reclamos de soberanía nacional. Actuar ―consecuentemente‖con los acuerdos supone que uno todavía se reserva el derecho de determinar sus propios actos y que considera que dichos actos son compatibles con los acuerdos, pero que rechaza la noción de que los propios actos estén sujetos a los acuerdos. (BUTLER, 2006, p. 111)

A autora ressalta a gravidade do fato de que escutamos que nenhum dos detidos de Guntánamo vai ser considerado prisioneiro de guerra de acordo com a Convenção de Genebra, bem como que nenhum deles faz parte de um exército regular. Em linhas gerais, é o governo americano que estipula acerca de quem pode e quem não pode ser considerado um prisioneiro de guerra, descartando assim os acordos internacionais, embora aleguem estar agindo em conformidade com eles (com isso, de acordo com Butler, buscam dizer que não estão regidos por eles).

Destarte, a Lei não se configura como aquilo a que o Estado esta sujeito, tampouco distingue algum ato de governo como legítimo ou ilegítimo, mas passa a ser entendida como um instrumento que pode ser utilizado ou suspenso de acordo com a vontade dos governantes, o que configura claro arbítrio:

Relegando la ley a instrumento del Estado y suspendiendo la ley en beneficio de los intereses del Estado, los Estados Unidos muestran desprecio por su propia Constitución y los protocolos del derecho internacional. Cuando un periodista les preguntó a funcionarios del Departamento de Defensa por qué se necesitaba un sistema de tribunales militares, si ya existían cortes civiles y militares, respondieron que necesitaban otro ―instrumento‖, dadas las nuevas circunstancias. [...] La soberanía consiste hoy por hoy en la aplicación variable de la ley, en su tergiversación y en su suspensión. Bajo su forma actual, constituye una relación de explotación de la ley, instrumental, desdeñosa, sustitutiva, arbitraria. (BUTLER, 2006, p. 114, grifo nosso)

Evidente, dessa forma, que os Estados Unidos incorporaram de maneira satisfatória a teoria proposta por Günter Jakobs, pois fazem a discriminação inimigo e cidadão, convertendo-se o seu Direito Penal em Direito Penal de Guerra – ainda que se trate de uma guerra que não segue os parâmetros da guerra convencional. O mais preocupante, contudo, é que tais práticas estejam sendo incorporadas por outros países capitalistas, em especial os subdesenvolvidos, como o Brasil, em que a tese ganha cada vez mais força e se alastra no plano criminalista, com vistas a aplacar a sensação de insegurança generalizada.