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Traços do Direito Penal do Inimigo no tratamento dispensado aos criminalizados no Brasil

3 DITADURA SOBRE OS POBRES: O DIREITO PENAL DO INIMIGO NO BRASIL

3.2 Traços do Direito Penal do Inimigo no tratamento dispensado aos criminalizados no Brasil

Como mencionado no tópico anterior, a questão social e racial interfere de maneira substancial quando estamos diante do tema do Direito Penal do Inimigo, analisado dentro do contexto brasileiro. Do perfil analisado, desponta claramente o tipo de indivíduo que vem sendo contido, processado e encarcerado, e que representa risco às classes dominantes e à propriedade privada.

Em consonância com o pensamento do professor Jessé Souza (2009), os problemas estruturais do país influenciam de modo radical na aplicação da norma nas dimensões material e processual, estendendo-se os conflitos históricos de classe da sociedade ao Estado e à aplicação do Direito Penal, de modo que reproduz ele a desigualdade social. Assim, o processo penal é orientado por conflitos e hierarquias próprias da realidade social, que acabam por determinar a escolha dos princípios e regras usadas na concretização do Direito.

O autor refere que as instituições atuam num padrão de má-fé institucional, sendo que, num primeiro nível, onde se dá a interação entre o aplicador do Direito e o ―réu da ralé‖, vê-se tanto a insensibilidade de classe quanto um certo ―sadismo‖ por parte dos aplicadores mais conservadores. A insensibilidade compõe, de acordo com Souza, o ―éthos11‖ de parte da magistratura brasileira, podendo esse tipo de postura ser reproduzida porque ganha ressonância diante da sociedade, considerando que esta teme o delinquente e clama por medidas cada vez mais duras e racistas.

O sociólogo também traz a ideia de inimigo quando analisa o desenrolar do processo penal pátrio, usando em seus escritos exemplos práticos observados nos documentários

Justiça e Juízo, dirigidos por Maria Augusta Ramos:

A visão da sociedade cindida em ―amigos‖ e ―inimigos‖ é claramente demonstrada na fala de um magistrado entrevistado por nós. Ele opina sobre as condições da grande maioria dos presídios no Brasil:

...tem que ser humanitário, mas não é humanitário [com relação aos presos] nesse auê de direitos humanos! Que os presos tão lá na cadeia em condições subumanas... e as vítimas deles? Eu vejo muitos direitos humanos de bandido, não sei o quê, não vejo ninguém falando das vítimas.

Apesar de conhecer teoricamente os direitos do preso e saber que, na prática, eles são cotidianamente violados, o magistrado mostra toda a insensibilidade aos absurdos enfrentados pelos detentos. A condição de ―inimigo‖ supera em muito a qualidade de sujeito de direito. (SOUZA, 2009, p. 333)

Num segundo nível, o que se observa é que a histórica desigualdade construiu instituições que não consideram as características de uma classe social específica e esquecida enquanto classe, uma vez que os pertencentes a esse grupo seriam indivíduos desprovidos de disciplina e comportamento prospectivamente orientado, não tendo chances de inserção bem- sucedida no mercado de trabalho e, pior, devido à forma de socialização adquirem disposições que guardam afinidade com a prática delituosa. Não há, de acordo com o sociólogo, a percepção de que a sociedade brasileira é estratificada por classes sociais definidas não só pela renda, ―mas pela capacidade diferencial de incorporação de disposições e de conhecimento‖ (SOUZA, 2009, p. 335).

Souza (2009, p. 336) também menciona em sua obra que, no Brasil, a legitimidade da polícia está relacionada à interpretação do que deseja o Estado para a sociedade, e não ao que

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a sociedade deseja para si mesma, e se indigna: ―[m]as que Estado é esse, que tem ―desejos‖ autônomos e ―pensa‖ sozinho? Como ele pode estar separado da sociedade?‖

Afora as questões sociológicas, observam-se exemplos práticos de utilização da lei em prejuízo apenas do grupo tido como inimigo. Um deles é o que traz o penalista argentino Eugenio Zaffaroni (2007), referindo que a prisão preventiva em casos de crimes tidos como graves tornou-se regra, não havendo prazo-limite para a sua duração, tal como as medidas de segurança que Jakobs mencionava que deviam ser destinadas ao inimigo.

Nesse panorama de desconsideração com o inimigo, ignora-se o princípio da presunção de inocência; ou seja, pessoas que são, em tese, inocentes, já se encontram segregadas com fundamento na garantia da ordem pública, pois representam risco ao Estado e à sociedade (punidas pelo que são e não pelo crime que cometeram). Não difere tal pensamento do trazido por Jessé Souza (2009) quando diz:

―[...] a única forma de proteger a sociedade, na qual não se incluem os seus inimigos — não apenas aqueles que sistematicamente atentam, como também aqueles que simplesmente se presume que possam atentar contra a vida e contra a propriedade privada —, é encarcerando aqueles que a apavoram.‖ (SOUZA, 2009, p. 339, grifo nosso)

Em síntese, apesar de ser o direito penal do autor corrente criticada por pensadores e doutrinadores, está fortemente presente na operatividade do sistema jurídico penal na atualidade, trazendo a seletividade para o campo da Justiça, sendo que o sujeito considerando anormal deve ser afastado da sociedade, mesmo que não tenha praticado o delito (JUNQUEIRA, 2004).

Já para Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini (apud MARTINS; ESTRADA, 2009), a política criminal repressiva no Brasil se baseia no incremento das penas (penalização) e na restrição e supressão de garantias do acusado durante a etapa processual.

E não apenas as penas são incrementadas para afetar parcela da população, mas os próprios tipos penais trazem em seu bojo a ideia de seletividade, a começar pela legislação especial de drogas — Lei n. 11.343/2006, que substituiu a Lei n. 6.368/1976 — que visa a repressão do tráfico de drogas no Brasil, dado seu alastramento sistêmico. O próprio processo

investigativo envolvendo a abordagem de indivíduos em atitude suspeita tão somente no interior de comunidades vulneráveis, com empenho do setor policial nesta contenção.

Ademais, a Lei de Tóxicos traz inúmeros verbos para definir condutas criminosas – todas as possivelmente imaginadas pelo Legislador, fechando todas as possibilidades de incriminação —, cujas penas são idênticas, não se podendo falar em proporcionalidade na aplicação da pena. Isso porque o grande traficante e o pequeno traficante acabam por receber penas muito semelhantes.

Conhecidamente, o tráfico de drogas é, hodiernamente , utilizado como fonte de obtenção de renda, substituindo os delitos patrimoniais na criminalidade de rua. Com altas penas previstas para o tipo em comento, por óbvio que haverá o encarceramento em massa de indivíduos mais vulneráveis que se submetem à prática do crime, recebendo penas que inevitavelmente levam ao cárcere, tanto por se tratar de delito equiparado a hediondo – com início do cumprimento da pena em regime fechado – como por possuir penas elevadas, uma vez que já partem do mínimo de cinco anos. A intenção é punir o traficante e o usuário de drogas baratas.

Na legislação especial penal brasileira, observam-se também resquícios de autoritarismo na Lei de Crimes Hediondos, editada em 1990, e que surgiu, importante frisar, como legislação penal de emergência, em vista da estrondosa repercussão no cenário nacional do ―caso Daniela Perez‖, e que demandava uma pronta resposta do Estado na forma de lei mais dura para os crimes considerados grotescos como o homicídio qualificado.

Desde a sua concepção que a legislação em comento apresenta anomalias do prisma principiológico-constitucional, no entanto, ao longo dos anos, tudo o que o STF conseguiu foi amenizar seus ―estragos‖. A exemplo, de se citar o julgamento do HC n. 82.959/SP que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei, que determinava o cumprimento integral da pena no regime fechado em hipótese de enquadramento em crime hediondo, vedando a progressão de regime. Somente em 2007, com a entrada em vigor da Lei n. 11.464, passou-se a permitir expressamente a progressão do regime nos crimes hediondos e equiparados.

Outros exemplos significativos do Direito Penal para inimigos em nossa legislação são: (i) o Decreto-lei n.º 314/67, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem

política e social e dá outras providências, e que autorizou, durante o regime militar, a caça dos ―subversivos‖ (que a lei não definia quem eram); (ii) o instituto da suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal), que requer a análise do requisito ―personalidade do agente‖ para a concessão do benefício; (iii) o Código Penal, em seu art. 323 e a Lei de Contravenções Penais (art. 59), que trazem termos como ―réu vadio‖ e a tipificação da vadiagem; e (iv) a Lei n. 12.850/2013 (do Crime Organizado), que separa o indivíduo que, segundo Jakobs, deve ser combatido como inimigo.

Evidente que com a Lei de Tóxicos e a Lei do Crime Organizado tem-se por escopo atingir determinados grupos de indivíduos, que é justamente quem se enquadra no perfil delineado nos dispositivos legais.

Quando nos voltamos especificamente para a execução penal vemos mais exemplos da impregnação da doutrina do direito penal do autor. Com efeito, um dos objetivos da pena – legalmente declarado – é a ressocialização/reeducação do apenado. No entanto, as condições do cárcere têm se mostrado tão degradantes que poderia muito bem ser este um local para ―eliminação‖ do encarcerado. Não há grandes preocupações com a dignidade do recluso, sendo a Lei de Execução Penal uma utopia em contraponto com a realidade brasileira.

Por fim, há o exemplo trazido por Zaffaroni (2007) e Bittencourt (2011) como DPI na prática das prisões brasileiras: o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Previsto no art. 52, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), é admitido quando do cometimento de falta grave que se configure como crime doloso e quando ocasione a ―subversão da ordem ou disciplina internas‖.

Destaca-se que está sujeito ao RDD tanto o recluso condenado quanto o provisório. Conforme a legislação, tal espécie anômala de regime de cumprimento de pena, que corre de forma concomitante aos demais regimes, tem duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada. Consiste em recolhimento em cela individual, visitas semanais de duas pessoas, com duração de duas horas, e saída da cela por duas horas diárias para banho de sol.

A Lei de Execuções Penais, no tocante à descrição do Regime Disciplinar Diferenciado, refere que poderá o mesmo abrigar aqueles que representem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade, tudo com base em traços subjetivos. Bem ainda, poderá ser submetido a tal regime o preso sobre o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

Com o proliferar de organizações criminosas que se autodenominam ―facções‖, pode- se ampliar a aplicação do RDD dentro dos estabelecimentos prisionais, sem que isso fosse encarado como violação da norma ou de direitos, considerando sua previsão legal, independentemente do fato de que o acusado pode ser submetido a um sistema de isolamento completo, em cela individual, desde o início da execução.

Da observância dos requisitos, constata-se que o segregado pode ser encaminhado ao RDD mediante mera suspeita de participação em organização criminosa, quadrilha ou bando. Tal previsão, aliás, já fazia Jakobs (2015), quando dizia que o ―inimigo‖, entendido como o terrorista ou o integrante de organização criminosa, deveria ver restringidas suas garantias fundamentais pelo simples fato de fazer parte desta organização, ainda que não esteja efetivamente cometendo crimes enquanto encarcerado. Observa-se o ―quem‖ — personalidade, registro e características — e não mais fatos praticados.

3.3 O controle dos miseráveis pela força: técnicas e políticas punitivas de segurança