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O controle dos miseráveis pela força: técnicas e políticas punitivas de segurança made in USA

3 DITADURA SOBRE OS POBRES: O DIREITO PENAL DO INIMIGO NO BRASIL

3.3 O controle dos miseráveis pela força: técnicas e políticas punitivas de segurança made in USA

Delineado de maneira breve a situação do estado penal brasileiro e sua relação com o direito penal do inimigo, busca-se analisar, agora, verificar se houve, por parte do Brasil, a incorporação das práticas de contenção estadunidenses duramente criticadas por Wacquant, e para isso há que se ter em mente o fenômeno da globalização, que envolve a propagação não apenas de itens de mercado, mas também do Direito Penal.

Wacquant (2001) ensina que a redução do setor de bem-estar caminha de mãos dadas com o incremento do braço pena, sendo estes dois lados de uma mesma política. O governo norte-americano optou por dizimar o Estado de Bem-Estar — com a implementação de

estratégias que visavam minar a eficiência das políticas de bem-estar, que vão desde a estigmatização dos programas de políticas para pobres, associando-os com o movimento negro até a burocratização excessiva e proposital de acesso a auxílio social —, implementando com sucesso o Estado Liberal. Durante esse processo, que desencadeou o avanço do estado penal, os EUA tinham conhecimento de que usariam a repressão para suprir as lacunas deixadas, respondendo aos problemas sociais pela via do Direito Penal.

Nesse panorama, de acordo com SOUZA (2009, p. 336, grifo nosso), os Estados Unidos tornam-se um estado ―híbrido‖ — ou, nos dizeres de Wacquant, ―Estado-centauro‖ — , o que significa que não é nem protetor, nem propriamente um ―Estado mínimo‖, sendo guiado por uma cabeça liberal montada num corpo autoritário. Para o autor, ―[é] liberal com respeito à quase omissão no que se refere à correção das desigualdades sociais, mas repressor com respeito às consequências dessa desigualdade.‖.

Por se tratar os Estados Unidos da maior economia do mundo, cada passo dado pela nação em questão é acompanhado de perto, e não há dúvidas de que o direito penal do inimigo que pratica ultrapassa suas fronteiras, como tantos outros produtos que importa. Estamos, assim, diante do pior exemplo de repressivismo (dentre aqueles que mais se aproximam de nossa realidade), tratando-se de um Estado que despreza muitos dos preceitos do Estado Democrático de Direito, flertando com o autoritarismo.

Loïc Wacquant (2001, p. 10-32) fala em marketing ideológico para se referir às políticas de segurança norte-americanas que são vendidas a todas as nações, mormente para as de Terceiro Mundo, que compraram a ideia da Tolerância Zero quando proposta por Giuliani. O autor também menciona o ―bom senso‖ ou ―senso comum‖ penal, que consiste na adoção de noções, termos e teses importadas dos EUA sobre o crime, a violência, a justiça, a desigualdade e a responsabilidade – do indivíduo, da ―comunidade‖, da coletividade nacional, com redefinição do papel do Estado para se reduzir seu papel social e ampliar sua intervenção penal.

O sociólogo francês não é o único a tratar do fenômeno da ―penalidade neoliberal‖ inventada nos Estados Unidos. Zaffaroni (2006) denomina o fenômeno como autoritarismo

Este contexto obedece a que el nuevo papel de potencia más poderosa del planeta requirió um reforzamiento de su verticalismo interno. El discurso penal republicano desde 1980 es simplista: los políticos prometen más penas para proveer más seguridad; se afirma que los delincuentes no merecen garantías; se alucina una guerra a la criminalidad que, por supuesto, también es sucia, porque los delincuentes no son caballeros ; se afirma que los delincuentes violan derechos humanos; algunos gobernadores buscan su reelección rodeados de las fotografías de los ejecutados a quienes no les conmutaron la pena de muerte; un exitoso candidato a presidente cerró su campaña mostrando la placa de un policía muerto y prometiendo venganza; un alcalde invirtió grandes sumas en mejorar el servicio de seguridad, depuró buena parte de la corrupción policial y actuó en tempo de pleno empleo, pero pretende que su éxito estriba en la tolerancia cero y explica simplezas a ejecutivos latinoamericanos que le pagan cifras astronómicas por escuchar sus incoherencias publicitarias. (ZAFFARONI, 2006, p. 22)

Em que pese a base estrutural diversa, a preocupação era que o Brasil, e outros países de Terceiro Mundo de ideologia capitalista, seguissem na linha proposta pela nação americana, a começar pelo modelo de políticas públicas a serem adotadas.

No entanto, adaptando esses ―ensinamentos‖ e reproduzindo o paradigma norte- americano, o Brasil apresenta meios de lidar com a criminalidade muito semelhantes àqueles empregados na terra do Tio Sam, e não apenas o Brasil. Wacquant (2001) refere que por toda a América Latina os políticos importam técnicas agressivas de segurança forjadas na América do Norte, entre elas a política de Tolerância Zero.

A seletividade do sistema penal é algo que se enxerga tanto em território nacional quanto no modelo estadunidense, conforme demonstrado nos dados trazidos nos capítulos anteriores. Vê-se, com base nas informações do sistema prisional, que a questão da raça e da classe social interferem de maneira significativa no tratamento dispensado a determinados grupos, sendo idêntico o perfil do inimigo nos EUA — quando pensamos no tratamento da criminalidade dentro dos limites da nação — e no Brasil.

Evidente que o Brasil não possui inimigo tão expressivo como células terroristas orientais, porque não tem o mesmo perfil beligerante que a nação que serve de paradigma para a comparação. No entanto, o princípio acaba sendo o mesmo.

O mesmo autor (2001) refere, todavia, que a política de Tolerância Zero e outras metodologias estadunidenses de contenção da criminalidade devem ser rejeitadas, na medida em que se tratam de limpeza policial das ruas e de aprisionamento maciço dos pobres, dos desocupados e dos insubmissos à ditadura do mercado desregulamentado:

A continuidade destas práticas só irá agravar os males de que já sofre a sociedade brasileira em seu difícil caminho rumo ao estabelecimento de uma democracia que não seja de fachada, haja vista que ainda encontra problemas na legitimação das instituições legais e judiciária, na escalada da criminalidade violenta e nos abusos policiais, na criminalização dos pobres, no crescimento significativo da defesa das práticas de repressão, na obstrução generalizada ao princípio da legalidade e na distribuição desigual dos direitos do cidadão (WACQUANT, 2001, p. 12-13).

Com razão critica Wacquant (2001) tal incorporação, referindo que recorrer às técnicas e políticas punitivas de segurança made in USA é essencialmente antitético ao estabelecimento de uma sociedade pacificada e democrática, cuja base deve ser a igualdade de todos diante da lei e de seus representantes. Enveredar pelo mesmo caminho, persistindo nesta visão, apenas fará com que muito em breve o Brasil alcance índices alarmantes de aprisionamento e institucionalize a luta de classes, com encarceramento acentuado da pobreza.

CONCLUSÃO

O Direito Penal do Inimigo vem sendo aplicado dissimuladamente no âmbito dos Estados Democráticos de Direito, incorporado paulatinamente sem que os executores da Lei percebam a gravidade da sua incorporação, em nome da segurança e do combate à criminalidade a qualquer custo. Nesse processo, são as populações mais vulneráveis as principais vitimadas, o que fica evidente pelos números do sistema prisional. São estas, aliás, as efetivamente encarceradas, e que jamais escapam do rigor penal.

Dos estudos realizados, se extrai um perfil bem claro do indivíduo que está sendo encarcerado no Brasil, ou melhor, que foi adotado como inimigo pelo Estado, digno da medida de segurança: negro, jovem, voltado para a prática de delitos patrimoniais ou crime de tráfico de entorpecentes; e do sexo masculino, embora a população carcerária feminina tenha crescido 146% no período analisado.

Para o sistema, mostra-se mais relevante a punição do grupo praticante de delitos econômicos do que de outras criminalidades. Tal cenário representa um processo de encarceramento em massa da população negra e marginalizada, com os dados majoritariamente conduzindo à conclusão de que estamos diante de um sistema penal racista e elitista, configurando-se as prisões como verdadeiras senzalas modernas.

Frisa-se que a medida de segurança, no entender de Jakobs, é justamente a pena sem limites bem definidos, sem possibilidade de progressão, sem garantia de individualização. E se observarmos, hodiernamente, no sistema prisional, a forma como vem sendo aplicada a pena, perceberemos que o indivíduo preso uma vez tende a ser repetidamente reincorporado à prisão, sem encontrar no mundo externo e mesma possibilidade de incorporação. Assim, o

cárcere se presta como meio não só de contenção das camadas populares, mas também como instrumento para a exclusão social.

Por meio do Direito Penal do Inimigo – que, nas palavras de Cancio Meliá (2015), nem direito é – abre-se a possibilidade de combate somente da criminalidade que incomoda os detentores do poder – a perseguição aos indesejados, que não necessariamente são, ao mesmo tempo, os ―perigosos‖ —, sendo que o direito penal passaria a servir à ideologia dominante do capital. Ademais, trata-se de um modelo que não observa o princípio da fragmentariedade, tutelando bens jurídicos, por vezes, insignificantes, mas que servem para dar uma pronta resposta à sociedade, afinal, este é, também, um direito penal simbólico.

Certo é que toda essa sistemática de captação de crimes de apenas uma ordem, praticados por um grupo específico, leva a um processo de estigmatização sem fim — não suficiente todo o histórico de discriminação deste país. Não é preciso que nos apropriemos de teses autoritárias, muito menos que as coloquemos em prática sem nomeá-las. É um perigo que não podemos correr, pois, uma vez que aceito o direito penal do inimigo, haverá um marco inicial, mas nunca saberemos a que ponto poderá chegar.

Conclui-se, portanto, que o Direito Penal do Inimigo é uma doutrina racista, preconceituosa e nazista pelas diferenciações que impõe, sendo inteiramente incompatível com os princípios básicos do Estado Democrático de Direito, adotado pela Constituição Federal de 1988. A única resposta possível para a prática de um crime, como assevera Ferrajoli (2007), é a resposta institucional.

De igual forma, deixar-se contaminar por propagandas estadunidenses, recheadas de soluções emergenciais e discriminatórias para o problema da criminalidade, não pode ser admitido no âmbito de um Estado que prega o respeito às garantias fundamentais, até porque nada de bom pode advir daqueles que seguem à risca a máxima ―nenhuma humanidade para os inimigos da humanidade, aqui entendida como a civilização ocidental.‖ (COGO, 2018).

O Direito Penal do Inimigo está longe de se mostrar como a solução para o problema do crime. Pode até ser capaz de mascarar o problema, dando soluções imediatistas que não terão efeitos a longo prazo, e aplacar os ânimos da população amedrontada, porém, a ideia de eliminação de sujeitos tidos como indesejáveis não é tão inovadora quanto considera Jakobs.

Hitler já aplicava tais métodos, e a Humanidade bem sabe das consequências. Como já dito por Muñoz Conde (apud PAZ-MAHECHA, 2010), o Direito Penal do Inimigo é uma realidade cada vez mais preocupante, que ameaça se estender como um furacão, favorecido pelo vento do medo e da insegurança.