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O perfil do inimigo do Direito Penal no Brasil: novos rótulos para antigos estereótipos?

3 DITADURA SOBRE OS POBRES: O DIREITO PENAL DO INIMIGO NO BRASIL

3.1 O perfil do inimigo do Direito Penal no Brasil: novos rótulos para antigos estereótipos?

A tradição tupiniquim revela uma codificação penal repressiva desde as Ordenações Manuelinas e Filipinas, a qual se agravou com a abolição da escravatura, tendo em vista o surgimento da necessidade de contenção da horda de ex-escravos que passaram a compor as ruas dos grandes centros. A adoção de um inimigo, ou ideal de criminoso, encontrou, em princípio, amparo em teses científicas de origem europeia, para fins de justificar a imposição do controle sobre essas populações. Acerca do panorama pós-abolição da escravatura e da apropriação do determinismo lombrosiano, discorre Maiquel Wermuth (2011):

(...) todo o discurso jurídico brasileiro da época buscava legitimidade no pensamento europeu, onde a Criminologia emergia enquanto ciência, com o escopo de, por meio de um discurso dotado de cientificidade – ao lado da Sociologia e da Psicologia –, garantia a hegemonia burguesa em face do movimento operário europeu. Em terrae

brasilis, as teses então propaladas pela Criminologia europeia, em especial aquelas

que sofriam influência do racismo-biologista de corte epistemológico lombrosiano, foram assimiladas e reelaboradas, fazendo surgir o ―criminoso brasileiro‖, o qual ―ganhou novos adereços, relacionados às teses da miscigenação racial e às elucubrações sobre a presença de ex-escravos de origem africana nas cidades brasileiras (WERMUTH, 2011, p. 106)

Paulatinamente, constrói-se o sentimento político de exclusão e indiferença em relação aos direitos desta população, que resulta num processo de desumanização que irá legitimar a truculência policial. É o ―malandro‖ ou o ―vadio‖ a primeira figura perseguida majoritariamente pelo sistema punitivo brasileiro, despontando o trabalho – na linha do

workfare americano do final do séc. XX – como elemento determinante para a definição do

criminoso, inclusive com a tipificação de condutas como a ―vadiagem‖ e a greve (NEDER apud WERMUTH, 2011). Tem-se, então, a imposição da ordem social das classes dominantes por intermédio da legislação penal, voltadas precipuamente à população de ex-escravos e pobres livres, visando o estabelecimento de uma economia de mercado.

De acordo com Chaloub (apud WERMUTH, 2011), a ociosidade associada à pobreza era digna de repressão, por conduzir diretamente à criminalidade — diferentemente da ociosidade das classes abastadas — o que revela a tendência de estigma apenas de um grupo de indivíduos, preconceito que perdura até a época atual e se converte em números no sistema carcerário. É esse aspecto, aliás, que permite falar que o Direito Penal do Inimigo foi

satisfatoriamente incorporado no sistema penal pátrio, ―à brasileira‖. Isso, porque, ainda que não se possa falar num direito penal do inimigo puro, ao menos traços dele são vistos em nossa legislação penal e processual penal.

Loïc Wacquant (2001) também refere que no Brasil a tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, se viu fortalecida por duas décadas de Ditadura Militar – que continua a pesar sobre o funcionamento do Estado e sobre as mentalidades coletivas –, quando a luta contra a ―subversão interna‖ se disfarçou em repressão aos delinquentes, num cenário em que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundiam.

Certo é que o sistema social escalonado presente no país tende a identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à ―bandidagem‖. Desta forma, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada pelo selo do autoritarismo (WACQUANT, 2001).

A questão criminal sempre foi vista do prisma classista, com a pobreza sendo encarada como o inimigo a ser combatido. O penalista argentino Eugênio Zaffaroni (2006) alertou acerca da gravidade de incorporação da tese de Jakobs, aplicada pelos Estados Unidos (―autoritarismo cool‖), em países ditos de Terceiro Mundo como o Brasil, em que os abusos são mais prementes. Destacou, ainda, que o poder punitivo na América Latina se exerce com altíssima seletividade e discriminação desde a segunda metade do séc. XIX:

Como la comunicación masiva es lo que mayor grado de globalización ha alcanzado, el discurso del actual autoritarismo norteamericano es el más difundido del mundo. Su simplismo populachero (völkisch) se imita en todo el planeta por comunicadores ávidos de rating, aunque en América Latina tiene mayor éxito, dada su precariedad institucional. Favorecen su difusión mundial la brevedad y el impacto emocional del discurso vindicativo, que resultan a la medida de la televisión, dado su alto costo y la escasa disposición a todo esfuerzo pensante por parte de los usuarios. En las sociedades más desfavorecidas por la globalización, como las latinoamericanas, el principal problema lo constituye la exclusión social, que no suele ser controlada por represión directa, sino que se la neutraliza profundizando las contradicciones internas. El mensaje vindicativo es funcional para reproducir conflictos entre excluidos, pues los criminalizados, los victimizados y los policizados se reclutan de ese segmento, habiendo una relación inversa entre la violencia de los conflictos entre ellos y su capacidad de coalición y protagonismo. (ZAFFARONI, 2006, p. 25, grifo nosso)

Para além, Zaffaroni (2006) faz severas críticas ao poder punitivo na América Latina, referindo que é exercido mediante a aplicação de medidas de contenção (no sistema penal pátrio, representado pelas medidas cautelares como as prisões provisórias) para os suspeitos considerados perigosos, tratando-se, assim, de um direito penal de periculosidade presumida, que acaba por impor penas sem sentença condenatória formal à maior parte da população aprisionada:

Dicho en términos más claros: aproximadamente tres cuartas partes de los presos latinoamericanos están sometidos a medidas de contención por sospechosos (prisión o detención preventiva). De ellos casi un tercio serán absueltos. Esto significa que en una cuarta parte de los casos, los infractores son condenados formalmente y se les hace cumplir sólo un resto de pena; en la mitad del total de casos, se verifica que el sujeto es infractor pero se considera que tiene cumplida la pena que se ha ejecutado con el tiempo de la prisión preventiva o medida de mera contención; en la cuarta parte restante de casos, no se puede verificar la infracción y, por ende, al sujeto se le libera sin imponerle ninguna pena formal. Cabe precisar que existe una notoria resistencia de los tribunales a absolver a personas que han permanecido en prisión preventiva, de modo que en la cuarta parte de los casos en que esto sucede, es palmaria e incontrastable la arbitrariedad, pues se decide la absolución apenas cuando no existió para el tribunal posibilidad alguna de condena. (ZAFFARONI, 2006, p. 24)

No tocante à existência da doutrina do Direito Penal do Inimigo no Brasil, entende-se que, em que pese não haver no país a supressão total das garantias constitucionais dos indivíduos que poderiam ser vistos como ―inimigos‖, há uma flexibilização destas, desde a fase do inquérito policial, de modo que se pode falar em um ―início‖ de Direito Penal do Inimigo, que só não tem um espaço maior no ordenamento jurídico-penal brasileiro em razão dos limites estabelecidos pelo modelo de Estado constitucionalmente delineado: o Estado Democrático de Direito (GOMES, 2018).

A seletividade do sistema conduz à prisão do sujeito pelo que ele é ou representa (Direito Penal do Autor), e não pela ofensa ao bem jurídico tutelado (Direito Penal do Fato); ainda que o ordenamento autorize a prisão preventiva somente após a constatação de indícios suficientes de materialidade e autoria – que podem ser elementos irrisórios arrecadados pelo Ministério Público. Certo é que, nesse modelo, tem-se que já no processo de instrução o indivíduo portador de determinadas características é considerado inimigo do sistema e do próprio julgador.

Sendo atualmente a terceira população carcerária global e a primeira da América Latina, com mais de 700 mil pessoas encarceradas, de acordo com o INFOPEN (2017), o

Brasil enfrenta a crise da superlotação nos presídios, sendo esta causadora não apenas de problemas estruturais, mas também de rebeliões e massacres de reclusos – como as ocorridas no ano de 2017 nas regiões Norte e Nordeste do país. Seus números, por outro lado, evidenciam que a violência contra a juventude negra e de classe baixa é uma realidade dentro do estado brasileiro, servindo a prisão como instrumento de contenção dos excluídos por opção política.

O jurista brasileiro Augusto Thompson (1983) falava em cifra negra do sistema penal – computados nestes os crimes não relatados à Polícia; os crimes relatados, mas não registrados; os crimes registrados, mas não investigados; os crimes investigados, mas não indiciados; os crimes com inquéritos policiais arquivados pelo Ministério Público; os crimes em que há absolvição; e os crimes em que há condenação com expedição de alvará de soltura não cumprido – sustentando que ela demonstra que, ao reverso do que o bom senso toma como verdadeiro axioma, apenas a minoria dos indivíduos que infringiu a lei penal são reconhecidos como criminosos pela ordem formal, sendo que a parcela que se encontra recolhida nas penitenciárias é ainda menor:

[…] se, no máximo, apenas um terço das infrações chega à ciência da polícia; e se essa parcela minoritária vai sofrendo pesadas baixas no trajeto para o claro da ordem formal, sendo que só no último passo do caminho – o condenado que efetivamente chega ao cárcere – essa perda se dá, novamente, em mais de dois terços (no Rio de Janeiro, 12 mil presos para 45 mil mandados de prisão não-cumpridos), fica claro que a população carcerária representa parcela irrelevante quanto ao universo dos criminosos (THOMPSON, 1983, p. 46-47)

Prossegue o autor em análise, discorrendo que noventa e cinco por cento dos presos pertence à classe social mais vulnerável, com a pobreza se apresentando como um traço típico da criminalidade. A grande questão é que quando se fala em criminalidade, é o oposto que se pinta, com a criminalidade sendo apresentada como traço atribuído à pobreza:

Essa inferência ―científica‖, recebe-a com entusiasmo a burguesia, uma vez que se casa à perfeição com a ideologia por ela esposada, a qual se estrutura basilarmente na teoria do contrato social: todas as pessoas são iguais perante a lei; por consequência, a todas são propiciadas oportunidades idênticas na vida; vencem (na visão capitalista, vencer é sinônimo de enriquecer) as dotadas de melhores qualidades (princípio da meritocracia); logo, as melhores estão nas classes altas, as piores nas classes inferiores; o crime é algo mau em si, resultado, pois, da ação de pessoas más; daí nada mais lógico do que concluir que o crime é uma manifestação típica das classes baixas (THOMPSON, 1983, p. 47)

Thompson (1983, p. 47, grifo nosso) ainda menciona que tal afirmação torna-se uma falácia quando se leva em consideração que os que efetivamente vão presos representam um percentual ínfimo em relação ao total de criminosos, pois, se a maioria dos presos está representada por gente miserável ―a única conclusão a ser tirada, validamente, será: a pobreza é um traço característico do encarceramento‖.

Para além da renda, no entanto, outras características comuns são observadas na população encarcerada. A publicação Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil (BRASIL, 2015), elaborado pelo Plano Juventude Viva, reúne estudo elaborado por Jacqueline Sinhoretto em parceira com a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil. Revela o relatório que o perfil da população que está nas prisões do país é constituída por homens, jovens (abaixo de 29 anos, mormente na faixa dos 18 aos 24 anos), negros, de baixa escolaridade (ensino fundamental incompleto) e acusados por delitos patrimoniais. O regime de cumprimento da maior parte é o fechado, com penas que variam de quatro a oito anos.

A questão racial salta aos olhos quando observamos os números do sistema prisional. De acordo com o relatório (BRASIL, 2015), no ano de 2005, 58,4% da população carcerária era negra e, em 2012, o índice subiu para 60,8%. Percebe-se, assim, que quanto maior o crescimento da população de presos no país, maior é o número de negros encarcerados. Dentre os estados brasileiros que apresentaram as maiores taxas de encarceramento de pretos no ano de 2012 temos: São Paulo, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo e Acre.

Outro dado trazido pelo estudo é o de que os negros foram presos 1,5 vezes a mais do que os brancos, tendo a proporção aumentado no período analisado. Ademais, em 2012, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos havia 191 brancos encarcerados, enquanto que para cada grupo de 100 mil habitantes negros havia 292 negros encarcerados. Por outro lado, a variação da taxa de aprisionamento de negros no país foi de 32% entre 2007 e 2012. Já a variação do encarceramento de brancos foi de 26% no mesmo período.

Trazendo para números absolutos, verificamos que no ano de 2005 tínhamos 92.052 negros presos e 62.569 brancos, o que corresponde a um percentual de 58,4% da população carcerária. Já em 2012 o número de negros presos subiu para 292.242 e o de brancos para 175.536, passando os pretos a representarem um total de 60,8% da população prisional. Em 2016 esse percentual atinge 64%, de acordo com o INFOPEN (2017).

No que concerne à idade, os presos no Brasil são predominantemente jovens, possuindo, em média, idade limite de 29 anos, embora a porcentagem de não jovens encarcerados (maiores de 30 anos) tenha crescido nos últimos anos. Expresso em números, em 2012 foi apurado que 266.356 presos tinham até 29 anos, representando 54,8% da população carcerária, enquanto 214.037 tinham mais de 30 anos.

O estudo também expõe que o crescimento do encarceramento ocorreu com maior velocidade nos estados do Nordeste do país, mas foi a região Sudeste que apresentou as maiores taxas de encarceramento, mormente por conta da influência do estado de São Paulo, que abriga a maior população carcerária do Brasil. De modo geral, a população prisional do Brasil teve um aumento de 74% entre os anos de 2005 e 2012.

Dentre os crimes que levam ao cárcere, despontam os delitos patrimoniais e os de drogas, representando estes 70% das causas das prisões, com penas que, em sua maioria, são inferiores a oito anos. Somente 12% das prisões se dão em razão da prática de crimes contra a vida, o que indica que o policiamento e a justiça criminal não têm foco nos crimes mais graves, mas atuam principalmente nos crimes contra o patrimônio e nos delitos envolvendo entorpecentes – majoritariamente cometidos por um estrato específico da população brasileira, uma vez que ambos têm como característica a busca de lucro fácil.

Acerca da situação no país, Wacquant (2001) discorre que, por um conjunto de razões ligadas a sua história e posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de ―globalização‖), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela

pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades.

O autor também refere que a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças de ordem. O uso rotineiro de violência letal pela Polícia Militar e o recurso habitual à tortura por parte da Polícia Civil (através do uso da ―pimentinha‖ ou do ―pau-de-arara‖ para fazer os suspeitos ―confessarem‖), as execuções sumárias e os ―desaparecimentos‖ inexplicados geram um clima de terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado.

O problema reside em desenvolver o estado penal para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres (WACQUANT, 2001).

3.2 Traços do Direito Penal do Inimigo no tratamento dispensado aos criminalizados no