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2 OS ESTADOS UNIDOS E OS INIMIGOS (DE GUERRA)

2.1 Tolerância Zero: a prisão como substituto do gueto

Para sufocar os tumultos populares provocados pela Guerra do Vietnã e pela mobilização dos negros em favor da igualdade civil, políticos conservadores de vertente republicana e democrata fazem da ―luta contra o crime‖ seu principal contra-ataque à expansão do Estado Social, a começar por Nixon na campanha presidencial de 1968, com o discurso de law and order3 — demonstração clara de descaso em relação às reivindicações negras.

De acordo com Loïc Wacquant (2001, p. 24), o governo republicano de Ronald Reagan, nos anos 1980, nos EUA, iniciou verdadeira política de desengajamento social, com cortes de programas assistenciais anteriormente voltados para a população carente. Atribuiu- se aos socialmente vulneráveis a responsabilização por aceitarem passivamente sua condição econômica, chegando-se a mencionar que a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos

mais pobres seria responsável pela escalada da pobreza nos Estados Unidos, pois recompensaria a inatividade e induziria à degeneração moral das classes populares — ―dependência patológica dos pobres‖.

Há, então, a passagem do Estado Caritativo para o Estado Penal, processo que atinge, precipuamente, os afrodescendentes norte-americanos, com tratamento da delinquência de rua e com a pobreza configurando-se como inimigo que deve ser neutralizado. Isso, porque, além de diminuir drasticamente o auxílio à população vulnerável, o governo republicano ainda entendeu que era necessário um tratamento repressivo maior para acabar de vez com a criminalidade que tinha se instaurado nas principais metrópoles do país. Ademais, os serviços sociais remanescentes tornaram-se instrumentos de vigilância e controle destas classes tidas como perigosas (WACQUANT, 2003).

Para tanto, o aparelho estatal contou com o auxílio da mídia, fazendo a população crer que a situação estava calamitosa:

O resultado desse conluio político-midiático penal é a multiplicação das leis repressivas – a Califórnia votou mais de mil em quinze anos – que estendem o recurso ao aprisionamento, alongam a duração das penas de detenção (sob a aparência de restabelecer a ―verdade das penas‖), estipulam penas mínimas incomprimíveis para um largo leque de infrações e chegam mesmo a impor a prisão perpétua no terceiro crime ou delito grave (disposição vendida ao eleitorado graças à expressão do beisebol, ―Three Strikes and You're Out‖). (WACQUANT, 1999, p. 39-48)

Wacquant (2001) aponta Manhattan como forja da nova razão penal — encabeçada pelo Manhattan Institute — encontrando sua origem no complexo formado pelos órgãos do Estado americano oficialmente encarregados de promover o rigor penal desde as últimas décadas do século passado, citando, como parte deste sistema:

(...) o Ministério da Justiça federal (que promove periodicamente verdadeiras campanhas de desinformação sobre a criminalidade e o sistema carcerário) e o Departamento de Estado (encarregado das relações exteriores que, por intermédio de suas embaixadas, milita ativamente, em cada país anfitrião, em prol de políticas penais ultra-repressivas, particularmente em matéria de drogas), os organismos para- públicos e profissionais ligados à administração policial e penitenciária (Fraternal

Order of Police, American Correctional Association, American Jail Association,

sindicatos de agentes penitenciários etc.), assim como as associações de defesa das vítimas do crime, as mídias e as empresas privadas participantes do grande boom da economia do sistema carcerário (firmas de carceragem, de saúde penitenciária, de construção, de tecnologias de identificação e de vigilância, escritórios de arquitetura, de seguros e de corretagem etc.). (WACQUANT, 2001, p. 20-21, grifo nosso)

Certo é que, de acordo com os meios de comunicação, Nova Iorque experimentava, à época, um surto de crimes, notadamente patrimoniais e de tráfico de entorpecentes. A violência nas ruas era tida como tendo atingido níveis alarmantes nas metrópoles estadunidenses, chegando a se falar em uma ―epidemia de crimes‖. A essa altura, o presidente Reagan já tinha declarado sua ―guerra às drogas‖, combatendo até mesmo a posse de quantidades insignificantes como crime gravíssimo. E não apenas republicanos (Nixon, Reagan, George H. W. Bush), mas também democratas como Bill Clinton logo aderiram ao discurso da segurança pública, sabedores de que este era o único meio de vencer eleições.

Nesse cenário, surge o movimento denominado ―Tolerância Zero‖, criado no começo da década de 1990 com o objetivo de pôr fim ao problema da criminalidade na Big Apple. Rudolph Giuliani assumiu o cargo de chefe do Poder Executivo Municipal, dando início ao plano político assim intitulado em conjunto com o Chefe de Polícia Willian Bratton. Posteriormente, a prática se disseminou para outros grandes centros como Chicago e Houston.

Em suporte ao movimento, surgem teorias para explicar o problema da criminalidade e também para legitimar as políticas públicas repressivas adotadas, a fim de que tivessem um fundo teórico-acadêmico. Dentre elas, desponta, no ano de 1982, a ―Teoria das Janelas Quebradas‖ (no inglês, Broken Windows Theory), desenvolvida por James Q. Wilson e George L. Kelling e publicada pela primeira vez na revista Atlantic Monthly. De vertente conservadora, deu origem ao modelo de segurança institucionalizado pela polícia nova- iorquina, sobre o que discorre Loïc Wacquant:

Essa teoria, jamais comprovada empiricamente, serve de álibi criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William Bratton, responsável pela segurança do metrô de Nova York, promovido a chefe de polícia municipal. O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.). Usam para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e ‗outros comportamentos anti-sociais associados aos sem-teto‘, segundo a terminologia de Kelling.‖ (WACQUANT, 2001, p. 26)

De acordo com a Teoria das Janelas Quebradas, sinais visíveis de crime, comportamento antissocial e desordem civil criam um ambiente urbano que encoraja mais crimes e desordem, e que eventualmente desembocará em crimes mais graves. Em vista disso, os métodos de policiamento contra crimes menores ajudam a criar uma atmosfera de ordem e legalidade, pois com a repressão severa dos delitos mais leves estar-se-ia evitando os delitos graves. Quando da publicação oficial, Wilson e Kelling exemplificaram sua teoria da seguinte maneira:

Consider a building with a few broken windows. If the windows are not repaired, the tendency is for vandals to break a few more windows. Eventually, they may even break into the building, and if it's unoccupied, perhaps become squatters or light fires inside. (...) Or consider a pavement. Some litter accumulates. Soon, more litter accumulates. Eventually, people even start leaving bags of refuse from take-out restaurants there or even break into cars.4 (KELLING; COLES, 1982, p. 29-38)

Visava-se, com esta teoria, argumentar que a criminalidade pode se infiltrar paulatinamente numa comunidade, provocando sua decadência e destruição. Necessário seria passar a ideia de que existe uma autoridade para manter a ordem – representada pelas próprias forças de ordem (Polícia, governantes, etc.) – ao mesmo tempo em que se fomentava a sensação de que se estava dando uma resposta imediata para o problema da criminalidade, característica típica do direito penal de emergência.

Para Wacquant (2001, p. 25), explicando em termos gerais, a Teoria das Janelas Quebradas representa a ―adaptação do ditado popular ‗quem rouba um ovo, rouba um boi‘‖, e sustenta que é lutando passo a passo contra os pequenos distúrbios cotidianos que se faz recuar as grandes patologias criminais.

De posse desse discurso, Bratton e Giuliani expandiram de maneira extraordinária os recursos que Nova Iorque destinava à manutenção da ordem, investindo pesadamente em segurança pública. Verifica-se, claramente, que a prioridade do governo tornou-se o combate à criminalidade de rua, cometida pelas populações mais vulneráveis, configurando-se em instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da ―pobreza que incomoda‖:

4

Em tradução livre: ―Considere um prédio com algumas janelas quebradas. Se as janelas não forem reparadas, a tendência é que vândalos quebrem mais algumas janelas. Eventualmente, eles podem até invadir o prédio, e se ele estiver desocupado, talvez se apossem ou coloquem fogo em seu interior. Ou considere uma rua. Algum lixo se acumula. Logo, mais lixo se acumula. Eventualmente, as pessoas até começam a deixar sacos de lixo de restaurantes por lá ou até mesmo a invadir os carros.‖

(...) em cinco anos a cidade aumentou seu orçamento para a polícia em 40% para atingir 2,6 bilhões de dólares (ou seja, quatro vezes mais do que as verbas dos hospitais públicos, por exemplo), ostentando um verdadeiro exército de 12.000 policiais para um efetivo total de mais de 46.000 empregados em 1999, dos quais 38.600 agentes uniformizados. Comparativamente, nesse período, os serviços sociais da cidade vêem suas verbas cortadas em um terço, perdendo 8.000 postos de trabalho para acabar com apenas 13.400 funcionários. (WACQUANT, 2001, p. 28- 30)

Deviam ser combatidos, de acordo com a política de Tolerância Zero, grupos causadores de incidentes e desordens no espaço público, e que proporcionavam a difusa sensação de insegurança ou incômodo tenaz e de inconveniência. Naturalmente, a teoria de Giuliani espalhou-se pelo globo rapidamente e com ela ―a retórica militar da ‗guerra‘ ao crime e da ‗reconquista‘ do espaço público‖ (WACQUANT, 2001, p. 30), que equipara os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros, sendo o próprio estrangeiro visto, desde longa data, pelos americanos, como inimigo.

Nessa mesma época, com a intensificação dos mecanismos de repressão, vemos o surgimento de métodos como o stop-question-and-frisk program5 na cidade de Nova Iorque, consistente na adoção de práticas temporárias de detenção e interrogatório nas ruas — desde que presentes ―suspeitas razoáveis‖ para tanto — buscando por civis que estivessem portando armas ou contrabandeando outros itens, voltados também para a contenção da população marginalizada. O ―stop-and-frisk‖ foi autorizado pela própria Suprema Corte no caso Terry v.

Ohio em 1968. Desde então, a Polícia passou a ter carta branca para parar e revistar a

população negra e hispânica nos bairros pobres, principal alvo de mecanismos dessa natureza.

O resultado de tropas de choque agindo de maneira discricionária não poderia ser pior, do prisma das populações atacadas, especialmente afro-americanos, com denúncias de diversos casos de abuso policial. Depois dos episódios envolvendo os casos Amadou Oiallo e Abner Loiuma — vítimas fatais, afro-americanas, da repressão policial — e as manifestações em frente ao escritório da direção da polícia municipal de Nova Iorque,

[...] as práticas agressivas dessa tropa de choque de 380 homens (quase todos brancos), que constitui a ponta de lança da política de ―tolerância zero‖, são objeto de diversos inquéritos administrativos e dois processos por parte dos procuradores federais sob suspeita de proceder a prisões ―pelo aspecto‖ (racial profiling) e de zombar sistematicamente dos direitos constitucionais de seus alvos. Segundo a

National Urban League, em dois anos essa brigada, que roda em carros comuns e

opera à paisana, deteve e revistou na rua 45.000 pessoas sob mera suspeita baseada no vestuário, aparência, comportamento e acima de qualquer outro indício - a cor da pele. Mais de 37.000 dessas detenções se revelaram gratuitas e as acusações sobre metade das 8.000 restantes foram consideradas nulas e inválidas pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas 4.000 detenções justificadas: uma em onze. Uma investigação levada a cabo pelo jornal New York Daily News sugere que perto de 80% dos jovens homens negros e latinos da cidade foram detidos e revistados pelo menos uma vez pelas forças da ordem. (WACQUANT, 2001, p. 35, grifo nosso)

Mesmo o setor policial deixou de mostrar o mesmo entusiasmo com a política de Tolerância Zero, uma vez que a doutrina traz, como uma das suas mais importantes consequências, a instauração da desconfiança entre a comunidade afro-americana e as forças de ordem, remetendo às relações que mantinham na era segregacionista da Lei Jim Crow. O pesquisador francês detalha bem a situação:

Uma pesquisa recente revela que a esmagadora maioria dos negros da cidade de Nova York considera a polícia uma força hostil e violenta que representa para eles um perigo: 72% julgam que os policiais fazem um uso abusivo da força e 66% que suas brutalidades para com pessoas de cor são comuns e habituais (contra apenas 33% e 24% dos brancos). Dois terços pensam que a política de Giuliani agravou essas brutalidades policiais e apenas um terço diz ter a sensação de se sentir mais seguro atualmente na cidade, mesmo morando nos bairros onde a queda da violência criminal é estatisticamente mais nítida. Já os nova-iorquinos brancos são respectivamente 50% e 87% a declarar o contrário: elogiam a prefeitura por sua intolerância com respeito ao crime e sentem-se unanimemente menos ameaçados em sua cidade. A ―tolerância zero‖ apresenta portanto duas fisionomias diametralmente opostas, segundo se é o alvo (negro) ou o beneficiário (branco), isto é, de acordo com o lado onde se encontra essa barreira de casta que a ascensão do Estado penal americano tem como efeito - ou função restabelecer e radicalizar. (WACQUANT, 2001, p. 37)

Ainda em conformidade com Wacquant (2001), a política estudada acabou por influenciar nos números do sistema jurídico penal, sendo que, a título de exemplo, somente no ano de 1998, a Corte Criminal de Nova Iorque examinou 275.379 casos de pequenos delitos, com prazo médio de espera, para aqueles que desejavam seguir com o processo, de 284 dias — sem mencionar as desistências, optando pela aplicação imediata de pena menor através do

bargaining. O autor ainda traz outros aspectos que denotam que o sistema não é capaz de

atender à demanda de forma satisfatória:

É comum que, por ocasião de uma audiência, um juiz aprecie até mil casos na jornada sem que nenhum seja solucionado: ou sua apreciação é adiada por nenhum juiz se encontrar disponível para fixar a data do processo, ou o advogado de plantão não conseguir chegar a tempo (cada public defender cuida em média de mais de 100 casos ao mesmo tempo), ou enfim os acusados, cansados de brigar, se resignarem a se reconhecer culpados e a pedir uma dispensa do processo em troca de uma ‗redução‘ de pena. Alguns acusados, ao contrário, jogam com prazos e adiamentos repetidamente a fim de obter a eventual anulação das acusações que pesam contra eles. Foi assim que o número de processos perante o tribunal criminal de Nova York caiu de 967 em 1993 para 758 em 1998 (ou seja, um processo para cada 364 casos) e

que o volume dos casos concluídos por anulação em razão de prazos excessivos com respeito à lei dobrou, passando de 6.700 em 1993 para 12.000 em 1998. Até o porta- voz de Rudolph Giuliani para a política penal reconhece que milhares de delinqüentes escapam a cada ano de qualquer punição em razão da escassez de juízes e que, por conseguinte, o ―impacto do trabalho da polícia visando diminuir o crime é virtualmente perdido‖ (WACQUANT, 2001, p. 39)

Porém, é o problema das detenções e do encarceramento em massa que salta aos olhos, chegando-se ao disparate de, em 1998, o número de prisões registradas pelas autoridades naquele ano ser superior ao número total de crimes e delitos registrados – ou seja, prisões desmotivadas, havendo milhares anuladas ou declaradas sem razão pela Corte. Wacquant (2001) chega a falar em ―recusa de justiça organizada‖, em vista do desequilíbrio grosseiro entre o ativismo policial, por um lado, e a sobrecarga dos tribunais, com progressiva escassez de recursos, por outro.

Na análise do pesquisador francês (1999), a delinquência e criminalidade nos Estados Unidos não aumentaram, mas estagnaram – senão recuaram – durante as décadas de 1980 e 1990, de modo que o crescimento frenético da população carcerária não guarda relação com o número de crimes, mas com as políticas adotadas. Em razão delas, o número de detentos americanos quadruplicou após meados dos anos 1970, e a maior parte dos criminosos atrás das grades não eram perigosos inveterados, mas pequenos delinquentes não violentos.

Em consonância com os dados trazidos por Fabelo e Donziger (apud WACQUANT, 1999), de 100 pessoas condenadas à prisão no Texas no começo da presente década, 77 o foram por somente quatro categorias de crimes e delitos relativamente menores: posse e transporte de drogas (22% e 15%, respectivamente), e roubo e furto (20% cada um). Por outro lado, mais da metade dos condenados de acordo com a legislação sobre entorpecentes o foram por posse de menos de um grama de droga. Ainda de acordo com os autores, a Califórnia multiplicou sua população carcerária por quatro entre 1980 e 1993; 76% desse crescimento se deu pela reclusão de criminosos não violentos. Essa desproporção é ainda mais marcada nas penitenciárias federais, uma vez que 94% dos quarenta mil novos detentos que são admitidos ali no curso de um ano o são por crimes não violentos.

E se o número de detentos em geral quadruplicou no período, o de presos afro- americanos multiplicou-se por cinco desde 1970 em decorrência da repressão inflexível aos crimes de menor ofensividade, para fins de diminuir a delinquência de rua – apenas esta, uma

vez que delitos de outra ordem não sofreram maiores afetações (WACQUANT, 2003). É por isso que o autor faz menção a um processo de transferência dos guetos para as prisões, que culminou na atual população carcerária do país:

Duas tendências importantes chamam a atenção de todos os observadores da cena penal americana contemporânea. De um lado, a porcentagem dos detentos encarcerados por infração à legislação sobre entorpecentes elevou-se de 5% em 1960 a 9% em 1980, para alcançar o terço em 1995. Ao mesmo tempo, a parte dos afro- americanos entre os novos admitidos nas prisões federais e estaduais quase dobrou, de maneira que, pela primeira vez no século, os prisioneiros de cor ali são majoritários (55%), enquanto os homens negros somam apenas 7% na população do país. O cruzamento dessas tendências aponta para a terceira causa da quadruplicação em vinte anos dos efetivos aprisionados nos Estados Unidos: o

sistema penal em parte substituiu e em parte juntou-se ao gueto como mecanismo de controle racial, depois que este último revelou-se inapto para conter o proletariado

negro urbano no lugar que lhe cabe no novo espaço social norte-americano (WACQUANT, 1999, p. 39-48, grifo nosso)

Citando Tonry, Mincy e Chambliss, o autor traz mais dados acerca das taxas de encarceramento, referindo que nos anos 1990 houve aprisionamento de negros em quantidade dez vezes superior ao de brancos – equivalente a 1,947 a cada cem mil, enquanto que a de caucasianos alcança meros 306 a cada cem mil.

[...] o ―escurecimento‖ sofrido pela população carcerária explica-se quase que inteiramente pela política de ―guerra às drogas‖ lançada com estardalhaço por Ronald Reagan e ampliada depois por seus sucessores (TONRY, 1995). Essa política serviu de cobertura a uma verdadeira guerrilha policial e judiciária contra os traficantes de rua e, por extensão, contra os habitantes dos bairros negros deserdados. Esses últimos são, de fato, suspeitos de desviarem-se das normas culturais nacionais e de adotarem ―comportamentos anti-sociais‖, que o discurso pseudocientífico sobre a underclass sustenta ser a causa das desagregações sociais na metrópole (cf., por exemplo, MINCY, 1994). Sua submissão à tutela punitiva do aparelho carcerário estende e intensifica simultameamente a tutela paternalista que os serviços sociais já fazem pesar sobre eles. De outro lado, ela permite explorar – e nutrir – a hostilidade racial latente do eleitorado e seu desprezo pelos pobres, com um rendimento midiático e político máximo. (WACQUANT, 1999, p. 39-48, grifo nosso)

Evidente, assim, que a chamada ―guerra às drogas‖ constituiu-se como meio de penalizar a pobreza e conter o avanço da criminalidade, mormente no seio do gueto, mas também quando ultrapassado seu perímetro. Wacquant (1999) conclui dizendo que o aparelho penal e o gueto negro estão inseridos dentro de uma ―nova penalogia‖, em que o objetivo não é mais a prevenção do crime ou a reinserção dos delinquentes na sociedade, mas o isolamento de grupos tidos como perigosos, neutralizando seus membros mais rebeldes por uma ―gestão aleatória de riscos‖. Com base nas informações, o professor arremata dizendo que essa foi uma das experiências históricas mais imprevistas e cruéis da era democrática.

De se considerar que atualmente o país tem a maior população carcerária do mundo, com um total de 2,3 milhões de pessoas presas, segundo os números do Departamento de