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O CARÁTER PROVISÓRIO DE SER E TEMPO
Wagner Félix
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O propósito deste trabalho é esclarecer o caráter provisório do projeto de Ser e Tempo, em que Heidegger concebe a analítica existencial do ser-aí como o caminho necessário para a colocação da pergunta pelo sentido do ser em geral. Em um primeiro momento, nos concentramos em mostrar como a estrutura da questão do ser reflete o modo de ser do ente mesmo que pergunta, o ser-aí, justificando a investigação desse ente a fim de assegurar o acesso ao ser ele mesmo. Essa investigação, porém, não chegou a ser desenvolvida por Heidegger, e Ser e Tempo permanece uma obra inacabada. A provisoriedade da analítica existencial acaba por se mostrar não apenas um recurso propedêutico, mas, em virtude de suas consequências, conduz ao limite teórico da tarefa. O esclarecimento do ser do ente que é ele mesmo “compreensão de ser” leva à pergunta, na segunda seção de Ser e Tempo, sobre a possibilidade de se apreender uma experiência originária da existência, ou seja, o “acontecimento” da compreensão, o que permanece inacessível à investigação. A preparação para a colocação da pergunta pelo sentido do ser em geral, diante do limite alcançado em Ser e Tempo, passa da analítica existencial do ser-aí para a investigação da história do ser na obra posterior de Heidegger.
PALAVRAS-CHAVE: Ser e Tempo; analítica existencial; Heidegger
ABSTRACT
The objective of the present paper is to clarify the provisory character of the task of Being and Time, in which Heidegger conceives the existential analytics of being as a necessary path towards posing the question of the meaning of Being itself. At first, we intend to expose how the structure of the question of Being reflects the manner of being of the entity that itself poses the question, justifying the investigation of this entity as the way to assure access to Being itself.
Such inquiry, however, was ultimately not elaborated by Heidegger, and Being and Time remains an unfinished work. Nevertheless, the provisional existential analytics end up by revealing not only an introductory feature, but, by virtue of consequence, leads us to the theoretical limits of the task. The clarification of being of the entity that is itself
“comprehension of being” takes us to the question, on the second section of Being and Time, about the possibility of an original experience of existence, i.e., the “event” of comprehension, which remains inaccessible to the investigation. The preparation to pose the question on the meaning of Being itself, in light of the limitations reached in Being and Time, shifts away from the existential analytics to the inquiry on the history of Being itself in Heidegger‟s later works.
KEYWORDS: Being and Time; existential analytics; Heidegger
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Professor Doutor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail:
wdcfelix@gmail.com
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Quando tomamos a obra de Heidegger em conjunto a fim de determinar a unidade do desenvolvimento de seu questionamento, logo percebemos que se torna um problema incontornável compreender a mudança da abordagem sistemática e explicitamente fenomenológica da analítica existencial do ser-aí
2para suas obras posteriores. Nestas encontramos encaminhamentos diversos entre si: a interpretação de obras clássicas da História da Filosofia
3; a interpretação da obra de poetas como Hölderlin e Trakl
4; e a discussão dos pressupostos enraizados na tradição metafísica ainda presentes em nossa compreensão atual das questões centrais da filosofia.
5Podemos perceber ainda alguns poucos diálogos nos quais possíveis desdobramentos de seu pensamento são indicados da maneira talvez mais incisiva, e, no entanto, inegavelmente obscura.
6A discussão sobre a aparente ruptura no pensamento de Heidegger ocupa um lugar de destaque nas interpretações de sua obra, mesmo porque ela se tornou uma questão para o próprio pensador, compreendida como a virada de “Ser e Tempo” para
“Tempo e Ser” – uma virada já antecipada no projeto de sua obra principal, e que, no entanto, não poderia ter sido levada a cabo “porque o pensar fracassou no dizer suficiente desta virada e, assim, não foi adiante com a linguagem da metafísica.”
(HEIDEGGER, 2004, p. 318).
7Com essa ruptura, no entanto, o projeto de Ser e Tempo não é abandonado, mas sim, segundo o ensaio O Fim da filosofia e a tarefa do
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Cf., por exemplo, Ontologie. Hermeneutik der Faktizität (Semestre de Verão 1923); Logik: Die Frage nach der Wahrheit (Semestre de Inverno 1925/26); Grundprobleme der Phänomenologie (Semestre de Verão 1927); e evidentemente Sein und Zeit (1927).
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Cf., por exemplo: Der Deutsche Idealismus (Fichte, Schelling, Hegel) und die philosophische Problemlage der Gegenwart (Semestre de Verão 1929); Hegels Phänomenologie des Geistes (Semestre de Inverno 1930/31); e Die Frage nach dem Ding. Zu Kants Lehre von den transzendentalen Grundsätzen (Semestre de Inverno 1935/36).
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Cf., por exemplo: Hölderlins Hymnen »Germanien« und »Der Rhein« (Semestre de Inverno 1933/34);
Hölderlins Hymne »Der Ister« (Semestre de Verão 1942); e Die Sprache (1950). In: Unterwegs zur Sprache (1950-1959).
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Cf., por exemplo: Was ist Metaphysik? (1929/43/49); Vom Wesen der Wahrheit (1930) e Was heisst Denken? (1952).
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Cf. especialmente Feldweg-Gespräche (1944/45).
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Essa afirmação de Heidegger na Carta sobre o “Humanismo” é uma das muitas instâncias em sua obra
em que a relação entre Ser e Tempo e sua obra posterior é pensada não em termos de diferentes momentos
de sua trajetória como autor, mas sim enquanto o testemunho da mudança de uma época do pensamento
ele mesmo. Esse tema foi debatido por Richardson (1974), que levantou a hipótese de que a ruptura no
pensamento de Heidegger seria de tal modo radical que seria permitido falar de um “Heidegger I” e de
um “Heidegger II”, hipótese colocada em questão pelo próprio Heidegger na carta a Richardson, que a
publicou como prefácio a seu livro. Figal (2005) discute mais detidamente as diversas hipóteses sobre a
unidade do pensamento de Heidegger e sua influência nas interpretações de determinadas passagens do
pensamento do autor.
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pensamento, publicado em 1966, os escritos posteriores se ocupam da “[...] tentativa, sempre novamente empreendida desde 1930, de dar uma forma mais radical ao questionamento de Ser e Tempo. Isto significa: submeter o ponto de partida da questão em Ser e Tempo a uma crítica imanente.” (HEIDEGGER, 2007, p. 61) De fato, o pensamento de Heidegger assume, de tal maneira, uma posição crítica em relação a si mesmo que, tal como Heidegger reconhece, não pode se comparar com a posição dos pensadores precedentes:
Pois qualquer tentativa de ganhar um acesso à presumível tarefa do pensamento vê-se remetida à retrospecção da História da Filosofia em seu todo; e não apenas isto, mas ela é até mesmo constrangida a primeiro pensar sobre a historicidade daquilo que garante à Filosofia uma possível história. Já por isso o pensamento presumido fica aquém da grandeza dos filósofos. Ele é menor que a Filosofia. Menor também porque deve ser recusada a esse pensamento, mais decisivamente do que já à Filosofia, a atuação tanto imediata quando mediata sobre o mundo público da era industrial, marcado pela técnica e ciência. Menor, porém, permanece o pensamento presumido, sobretudo pelo fato de sua tarefa ter caráter apenas preparatório, e de maneira alguma fundador. Ela se satisfaz com o despertar de uma prontidão do homem para uma possibilidade cujo esboço permanece obscuro, e cuja vinda incerta (HEIDEGGER, 2007, p. 66).
A partir dessa admirável apreensão da tarefa de seu pensamento e do seu lugar na história da Filosofia, nós nos propomos perguntar justamente o que vem a constituir
“historicidade”. Não nos perguntamos, porém, diretamente sobre a historicidade da História da Filosofia, mas sim sobre como se apresenta a consideração da historicidade no pensamento de Heidegger, ali onde isso é explicitamente discutido: em Ser e Tempo e nos textos dessa época, dos anos 20 até o começo dos anos 30. Essa delimitação não se faz por ordem primariamente cronológica, mas porque é nesse período do pensamento de Heidegger que a história emerge da questão da existencialidade do ser-aí para se tornar, em seus escritos posteriores, o lugar do pensamento mesmo, e desse pensamento que procura pensar a história do Ser ele mesmo que acontece enquanto Metafísica.
A emergência da história como questão de destaque na obra de Heidegger,
após Ser e Tempo, justifica-se, por um lado, porque a questão da historicidade está,
desde o começo, essencialmente vinculada à pergunta pela essência da verdade. De
outro lado, apenas com a transformação do projeto heideggeriano, que passa da questão
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da verdade do ente para a questão da verdade do Ser, que a história se torna nela mesma digna de questão. Sem mais estar subordinada à análise do modo de ser de um ente privilegiado, o ser-aí, a investigação da história da Metafísica, para Heidegger, revelar- se-ia como o modo adequado da colocação da pergunta pelo ser em geral.
Procuramos introduzir nossa questão partindo da dificuldade de conquistar uma apreensão geral do pensamento de Heidegger, em vista da multiplicidade temática de seus escritos, por um lado, e, por outro, do reconhecimento de que essa multiplicidade é uma característica incontornável de seu pensamento. A distinção entre um “primeiro” e um “segundo” Heidegger daria mesmo ensejo a se pensar em um “terceiro” ou “quarto”
passos de seu percurso, caso o critério dessa distinção for estritamente temático, ou a negar todas essas distinções em vista da unidade de uma obra por seu caráter de ser, afinal, obra, ou mesmo porque seria possível demonstrar, pelos escritos mesmos, não apenas uma consistência temática, mas uma concordância interna de seu pensamento.
8Essa presumida concordância pode tomar diferentes formas, uma vez levada a cabo a tarefa de apresentar uma determinada concepção de seu pensamento em poucas palavras
9; é possível, também, deixar a obra se pronunciar por si mesma, à maneira de
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A distinção sistemática dos supostos períodos da obra de Heidegger é uma prática corrente entre os comentadores, e foi discutida a fundo por Alexandre Gomes Pereira, no artigo “Heidegger e a Decisão do Fracasso de Ser e Tempo”: “Numa leitura apressada, automática, o abandono do projeto de Ser e Tempo equivaleria assim a uma mudança de forma e conteúdo verificável na produção de Heidegger posterior a Ser e Tempo. A sistemática rigorosa e a formulação tratadística teriam sido substituídas por um formato ensaístico e por um estilo mais livre, mais “poético” e mesmo mais obscuro; a perspectiva analítico- existencial, por sua vez, teria dado lugar à tentativa de contemplar e dizer o ser desde ele mesmo sem mediações, ou seja, não mais passando pelos entes e em particular pelo ente homem ou “ser-aí”. Para muitos, isso representa até uma involução: o abandono de uma fenomenologia precisa do concreto em favor de uma metafísica nebulosa e desvairada. De qualquer modo, porém, que se entenda essa transformação, o consenso é que se pode e se deve falar de um primeiro e de um segundo Heidegger.
Estabelecida e devidamente interpretada essa distinção, a pergunta que fica sempre de fora, porém, é a seguinte: o que ganhamos com isso? Ou: o que fazemos agora com isso? Se o único interesse é a classificação e a catalogação historiográfica, podemos passar então para um novo autor, ou, se formos muito minuciosos, podemos ainda descobrir um terceiro e um quarto Heidegger, quem sabe até mais... E no fim de tudo, esgotado o assunto, o tédio por tanto tempo reprimido envolverá todo esse trabalho na mesma indiferença de uma só falta de sentido - e isto na melhor das hipóteses, porque o tédio, pelo menos, está livre para ser o começo de algo” (PEREIRA, 2000, p. 66).
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Essa caracterização do pensamento de Heidegger é empreendida por Karl Löwith, entre outros, cuja posição é muito bem resumida por John Caputo: “Depois de examinar a reinterpretação radical que Heidegger realizou na Carta sobre o Humanismo de conceitos tão básicos de Ser e Tempo como ser jogado, resolução, verdade e o termo “Da-sein” ele mesmo, Löwith conclui que Heidegger subscreveu a não apenas um, mas dois fundamentos no curso de sua obra. O primeiro é Dasein, sobre a base do qual
“há” (es gibt) Ser. O segundo é o Ser ele mesmo, sobre a base do qual há (es gibt) Dasein (os escritos
tardios). Löwith objeta que Heidegger tentou ocultar essa reversão radical em seu pensamento e dar a
impressão que a interpretação que ele expôs mais tarde sobre Ser e Tempo era o que ele, de fato, havia
pretendido dizer em 1927. Löwith não sustenta que Heidegger teria “falsificado” Ser e Tempo, mas sim
que ele o revisou radicalmente sem ter reconhecido o fato” (CAPUTO, 1986, p. 36).
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Heidegger, quando ele enlaça o destino do pensamento de um filósofo a uma palavra fundamental, mas não como um exercício de síntese. A palavra, nesse caso, indica, para além de seu significado mais corriqueiro e da tradição de seu uso especulativo, a orientação fundamental de um questionamento, e somente dentro e em função desse questionamento ela pode se remeter a uma obra no sentido em que nós a temos disponível aqui, neste momento: enquanto um legado, uma herança, que, vindo de um outro, delimita as possibilidades de nosso questionamento. Quando Heidegger se vale do significado grego de aletheia para introduzir a questão da verdade no §44 de Ser e Tempo, em contraposição à definição tradicional do conceito de verdade, ele observa:
A adução de tais testemunhos deve preservar-se diante de uma mística desenfreada das palavras; entretanto, o ofício da filosofia é, no fim, resguardar a força das palavras mais elementares, nas quais o ser-aí se pronuncia, de se nivelarem à incompreensibilidade através do entendimento comum, que por sua vez serve de fonte para pseudo- problemas (HEIDEGGER, 1993, p. 220).
O recurso à língua grega em Ser e Tempo é um exemplo de que a relação entre pensamento e linguagem não se torna relevante somente com o “segundo Heidegger”.
Mesmo que seja possível afirmar que, em Ser e Tempo e nos textos da mesma época, a existência enquanto ser do ser-aí e não a linguagem é o fenômeno a ser investigado – se a questão da existencialidade da existência tem precedência sobre a recordação da
“força das palavras mais elementares” –, não é difícil também afirmar que essa investigação tem em vista e se orienta segundo essa relação com a linguagem que não é ainda explicitamente pronunciada em Ser e Tempo. Não é essa breve passagem sobre a concepção grega de verdade que nos permite propor essa leitura, embora possamos acrescentar a este outros exemplos, tais como o recenseamento da questão do “ser” no
§1 de Ser e Tempo
10e a interpretação etimológica do “ser-em” enquanto tal no §12.
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Cf. por exemplo: “O apelo à auto-evidência no âmbito dos conceitos fundamentais da filosofia e até com respeito ao conceito “Ser” é um procedimento duvidoso, uma vez que o “auto-evidente” e apenas ele, »os juízos secretos da razão comum« (Kant) deve ser e permanecer o tema explícito da analítica (»o ofício da filosofia«).” (HEIDEGGER, 1993, p. 4)
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Ao mesmo tempo em que o ser-em corresponde formalmente à ideia de existência, ele é interpretado
através do testemunho existenciário da linguagem. (HEIDEGGER, 1993, p. 54) Desse modo, pode-se
mostrar que o “em” possui o significado primordial, expresso na antiga palavra “innan”, de habitar,
morar, demorar-se junto ao mundo, às coisas do mundo. Com esse sentido, “ser em” se diz simplesmente
também “eu sou”, “eu sou junto a”, isto é, detenho-me nas proximidades do que me é familiar. Enquanto
palavra guia e explícita orientação, o habitar mesmo é antes uma ideia que um conceito, em cujo
testemunho Heidegger procura a compreensão pré-ontológica na qual se resguarda o reconhecimento do
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A afirmação de Heidegger sobre o ofício da filosofia não é o bastante para assegurar que a linguagem, o discurso, seja essencial ao projeto da colocação da pergunta pelo sentido do ser em geral, se a relação com a linguagem, tal como apresentada na passagem acima citada, não se fizer presente na estrutura mesma desse projeto. A introdução dessa dúvida, porém, talvez não se justifique imediatamente a não ser como a ocasião para apresentarmos nossa hipótese, os pressupostos, por assim dizer, que constituem nossa posição inicial, o ponto de partida de nossa questão sobre a consideração da historicidade no pensamento de Heidegger.
Esse ponto de partida foi definido na introdução como a conexão entre a pergunta pela essência da verdade e a questão da história. Essa conexão, porém, é enunciada por Heidegger exemplarmente no posfácio à conferência Que é Metafísica?:
Todo comportamento para com o ente testemunha assim um saber do ser, mas igualmente a incapacidade de, por si mesmo, permanecer no estatuto [Gesetz] da verdade desse saber. Esta verdade é a verdade sobre o ente. A Metafísica é a história dessa verdade (HEIDEGGER, 2004, p. 304).
Embora seja nossa tarefa demonstrar e interpretar essa conexão dentro de nossas limitações, o seu mero reconhecimento não constitui a suposição sobre a qual a interpretação aqui ensaiada dá seus passos. Compreendemos que a obra de Heidegger é marcada, do seu início a seu fim, pelo caráter provisório de seu questionamento.
Explicitamente, Ser e Tempo é uma obra anunciada como uma preparação para a colocação da pergunta pelo sentido do ser em geral, cuja tarefa mais imediata, segundo o que se diz na epígrafe, é “a interpretação do tempo como horizonte possível de cada compreensão de ser em geral”; essa tarefa, porém, é ela mesma ainda
“vorläufige” – isto é, provisória, e como tal, ela se coloca dentro de um âmbito mais
ser-aí de seu próprio ser-no-mundo. Habitar indica, pois, o sentido da “presença” do ser-aí junto às coisas do mundo, do uso e do manuseio, ou seja, do que ontologicamente já nos apareceu como o cuidado (Besorgen), que se funda ele mesmo na Cura (Sorge). A orientação que concede a interpretação do ser-em como habitar não é de modo algum apenas um exemplo ou analogia; o habitar, a meditação sobre a morada, torna-se, no pensamento de Heidegger posterior a Ser e Tempo, e em especial na Carta sobre o Humanismo e nos textos reunidos em Ensaios e Conferências, o âmbito privilegiado de recolhimento do pensar em vista da questão da técnica ou da maquinação como a mais extrema realização do niilismo: “A indicação ali [em Ser e Tempo] sobre o “ser-em” enquanto “habitar” não é nenhum jogo etimológico. A indicação na conferência de 1936 sobre a palavra de Hölderlin “Cheio de méritos, mas poeticamente habita / o homem sobre esta terra” não é nenhum embelezamento de um pensar que se salva da ciência na poesia. O discurso da casa do ser não é nenhuma tradução da imagem de „casa‟ para o ser, mas, da essência do ser, pensada segunda ela mesma, nos tornaremos um dia capazes de pensar o que significa
„casa‟ e “habitar‟” (HEIDEGGER, 2004, p. 358).
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amplo, e, contudo, enigmático: é preciso, antes de tudo, “despertar uma compreensão para o sentido dessa questão.”
O que significa esse despertar? Ele certamente indica que não estamos de posse do sentido da questão, mas com isso também não se pressupõe que nos encontramos diante da possibilidade de “possuir” esse sentido, quer dizer, de explicitá-lo, enunciá-lo e comunicá-lo como tal. Nem sequer sabemos se o “despertar” implica, de algum modo, na explicitação da compreensão do sentido da questão, tal como se espera de uma obra da filosofia: que ela torne “evidente” aquilo que é seu tema. Podemos apenas supor que a preparação pretendida nos despertaria para a compreensão do sentido.
Ao lado de Ser e Tempo, a obra de Heidegger se mantém nessa tarefa, segundo a compreendemos, e o despertar ali primeiro proposto se torna ainda mais incisivo através da formulação da questão de seu pensamento como a compreensão da História da Metafísica enquanto história do esquecimento ou abandono do Ser. Muito mais decisiva se torna essa questão, porém, porque o despertar não significaria vencer o esquecimento, mas antes, despertar para o esquecimento, o que é aludido de forma particularmente grave em uma passagem de A Superação da Metafísica, texto escrito no final dos anos 30 e publicado em 1953:
A dor, que precisa ser antes experimentada e suportada, é a visão e o saber de que a falta de indigência é a mais elevada e oculta indigência, que da distância mais distante primeiro constrange. A falta de indigência consiste em propor que se tenha posse e do real e da realidade, e que se saberia o que é o verdadeiro, sem que o homem precisasse saber em que vige a verdade (HEIDEGGER, 2000, p. 86).
Ser e Tempo tem como tarefa colocar a pergunta pelo sentido do ser em geral.
A colocação dessa pergunta exige uma preparação que se desdobra em uma dupla tarefa. Primeiro, trata-se de empreender a analítica existencial do ente em questão na pergunta pelo ser, o ente que questiona, o ente que nós mesmos somos, apreendido terminologicamente como ser-aí. Segundo: trata-se de conduzir a tarefa de uma destruição da história da ontologia, na qual a ontologia tradicional pode tornar-se transparente em si mesma e em seus limites, uma vez tendo-se assumido a necessidade da repetição da pergunta pelo ser.
Em sentido formal, a colocação da pergunta pelo sentido do ser descreve a
estrutura de todo questionamento e as condições pelas quais o questionamento concreto
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pode corresponder à sua estrutura. A estrutura da questão, desde a qual podem ser distinguidos seus momentos constitutivos, é reduzida à sua formulação mais elementar, a fim de acentuar que aquilo pelo que ela pergunta já é tudo pelo que ela pode perguntar, desde o começo: “Perguntar é a procura que reconhece o ente no fato de seu ser (Daß-sein) e assim como ele é (So-sein)” (HEIDEGGER, 1993, p. 5). O questionamento é uma investigação concreta enquanto ele mesmo é a determinação liberadora daquilo pelo que pergunta; daquilo que, no perguntar, é reconhecido como o procurado. De fato, todo questionamento é uma procura que reconhece que aquilo que é, sendo previamente disponível a uma procura, é tal como é. O comportamento para com o perguntado já toma o procurado, o “objeto da questão”, como aquilo que necessariamente se mostra desde si mesmo, e, contudo, é apenas essa relação que nos assegura, a princípio, que algo se mostra.
O que há, pois, de ser reconhecido no questionamento é o ser do ente interpelado, junto ao qual se pergunta, isto é, o interrogado no questionamento. Porque em todo perguntar se dá o reconhecimento do ser do ente interpelado; em todo questionamento, já se encontra presente uma compreensão do ser, não como um conceito de ser explicitamente elaborado, mas primeiro como uma visualização prévia do que é questionado, o ser, de tal modo que essa visualização prévia é o que articula o ente em seu ser.
Enquanto possibilidade de ser do ente que questiona, o questionamento mesmo tem o modo de ser desse ente; elaborado como um questionamento concreto, a investigação já se encontra naquilo que Heidegger nomeia uma vez a situação hermenêutica.
12O desdobramento formal dos momentos constitutivos da questão é somente o projeto e o esboço daquilo que pertence ao perguntar, enquanto um modo de ser do ente que nós mesmos somos. A exposição apreende e elabora o que se abre na visualização prévia – a situação mesma – em uma visão própria, a transparência ou perspicuidade (Durchsichtigkeit), que atravessa todos os momentos constitutivos do questionamento e propriamente o coloca em sua situação, ou seja, na prévia compreensão do ser.
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