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"Spesso l'orror va col diletto": um estudo de iconografia a partir do Suicídio de Lucrécia, de Guido Reni, do Museu de Arte de São Paulo (MASP)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JULIANA FERRARI GUIDE

“SPESSO L’ORROR VA COL DILETTO”: UM ESTUDO DE ICONOGRAFIA A PARTIR DO SUICÍDIO DE LUCRÉCIA, DE GUIDO RENI, DO MUSEU DE ARTE DE SÃO

PAULO (MASP)

CAMPINAS 2017

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JULIANA FERRARI GUIDE

“SPESSO L’ORROR VA COL DILETTO”: UM ESTUDO DE ICONOGRAFIA A PARTIR DO SUICÍDIO DE LUCRÉCIA, DE GUIDO RENI, DO MUSEU DE ARTE DE SÃO

PAULO (MASP)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em História, na Área de História da Arte.

Orientador: Luiz César Marques Filho

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO

ALUNO JULIANA FERRARI GUIDE E

ORIENTADA PELO PROF. DR. LUIZ CÉSAR MARQUES FILHO

__________________________________________

CAMPINAS 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 25/09/2017,

considerou a candidata Juliana Ferrari Guide aprovada.

Prof. Dr. Luiz César Marques Filho Profa. Dra. Patrícia Dalcanale Meneses Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Aos meu pais, Helena e Mário, e ao meu irmão, Bruno, confiando na enorme curiosidade que partilham, e de que tanto gosto.

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AGRADECIMENTOS

Começo esses agradecimentos constatando: quando se está imerso no processo de realizar, é muito fácil perder a perspectiva de que qualquer mínima realização humana tem um quê de coletivo. O nascimento deste texto precisou do trabalho, do apoio e do afeto de muitos. Agradeço imensamente ao Prof. Dr. Luiz Marques, meu orientador. Nada do que aprendi ou realizei nesses anos seria possível sem sua enorme generosidade, e levarei sempre comigo o privilégio da interlocução com alguém que é um modelo de vida intelectual (no sentido mais amplo do termo) para tantos de nós. Suas recentes preocupações asseguraram também algumas noites de sono a menos, e um tanto de consciência a mais sobre nossos estranhos tempos, algo de um valor que não sou capaz de quantificar. Agradeço também a Prof. Dra. Claudia Valladão de Mattos Avolese, que me acolheu inicialmente no programa e a quem devo inúmeros apontamentos e o indispensável conselho de não deixar de lado a curiosidade em nome de um olhar especializado demais. Agradeço também ao Prof. Dr. Luciano Migliaccio e à Profa. Dra. Leila Maria Aguiar por compartilharem sua erudição através de valiosas indicações. À Prof. Dra. Rafaella Morselli, agradeço a oportunidade de pesquisa em Bologna e as balizas da minha inexperiente incursão nas caudalosas bibliotecas italianas, além de seu importantíssimo trabalho, essencial na minha percepção do Seiscentos. Ainda, meus sinceros agradecimentos à Prof. Dra. Patricia Dalcanale Meneses e ao Prof. Dr. Paulo Kuhl pela preciosa interlocução no exame de qualificação.

Agradeço a CNPq, pela bolsa que possibilitou autonomia na pesquisa, e ao programa de Mobilidade Internacional do Santander Universidades, por viabilizar o estágio e a pesquisa na Itália. Não poderiam ficar de fora Vanessa, Daniel, Felipe, Simone e Eliel, responsáveis pelo meu trabalho de professora. Devo muito a vocês pelo incentivo, flexibilidade e compreensão sempre presente em relação aos meus interesses e preocupações acadêmicas, algo muito difícil de encontrar.

Infinitos “muito obrigada” devem ser ditos à Paula Vermeersch, pelo acolhimento desde as minhas mais tenras intenções acadêmicas, à Isabel Hargrave, pelo incentivo quando ainda tateava a disciplina, e à Gabriela de Toledo, pela amizade e por toda inestimável ajuda com bibliografia fora do país inúmeras vezes. A Renato Menezes devo agradecimentos pelo privilégio do convívio e da interlocução, além da caça implacável a teses nas bibliotecas de Paris. A Ana Paula Cardozo, amiga tão cara, agradeço o apoio e também as muitas demandas por livros no exterior, além de ser muito grata por não me deixar esquecer que a pesquisa precisa nos trazer prazer. É certo que tudo teria sido bem menos divertido sem a inteligência, o humor e o convívio de André Barros e Clarissa Campomizzi, que admiro e que ficaram para a vida extra-academia. Também aos companheiros de travessia na História da Arte devo muito. À Priscila Sacchetin, Felipe Martinez , Francisco Dias, Larissa Carvalho, Leticia Badan, Martinho Jr., os agradecimentos são variados e profundos, mas passam por terem me inspirado tanto na seriedade da sua dedicação quanto no gosto genuíno que demonstram pelas obras de arte e suas intrincadas camadas de fruição. A Ianick Takaes, toda amizade e admiração, que certamente permanecerá, permaneçam ou não as aventuras pelas sendas às vezes sombrias da Tradição Clássica.

Aos meus pais, Mário e Helena, toda gratidão sempre insuficiente, pelo apoio, cuidado e carinho, e também por terem transmitido para mim seu amor sincero pelos livros, pelo conhecimento e pela humanidade, sem os quais esse trabalho nem teria razão de ser. Agradeço também ao meu irmão, Bruno, pela companhia na nau famíliar, na trajetória e na curiosidade. E também, é claro, por todas as revisões de traduções.

À Neusa Steiner e ao vínculo que formamos devo muito de quem sou. Também a ela devo boa parte da minha saúde, e da busca por enxergar cor, possibilidades e crescimento nos ganhos, percalços e desafios trazidos pela vida.

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Os amigos do IFCH estão sempre comigo, e neste caso foram interlocutores imaginários em diversos momentos: obrigada pela companhia Jude, Fer, Gabi, Dri, Andrei. Obrigada pela amizade e pelo apoio ao longo da trajetória também Bob, Jana e Roberta, que o mundo do trabalho me legou. Marcos, Anita, Thamires e Camila: vocês são parte de qualquer coisa que eu faça. Obrigada por acreditarem em mim: vocês são o meu lugar preferido no mundo, não importa onde eu esteja.

As palavras fogem na hora de agradecer ao Allan, meu amor e parceiro no mar de possibilidades da vida. Muito obrigada pela interlocução, pelo incentivo, pela leitura escrupulosa, pelas ideias, pelo apoio cotidiano, por sempre saber uma boa palavra quando eu precisava de um sinônimo. Muito obrigada também pela ajuda incalculável nos arquivos e bibliotecas de Bologna, que nos permitiu sorver a beleza espantosa da velha Italia. Ainda, muito obrigada pelos ensinamentos dos seus olhos precisos, de quem desde criança desenha o mundo - tantas vezes precisei deles ao longo deste trabalho sobre pintura! É uma honra e uma tremenda sorte que os traçados de nossos desejos coincidam, e nos façam co-autores da história um do outro.

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“Che fai Guido? Che fai, La man, che forme angeliche dipinge,

Tratta hor’opre sanguigne? (...) O ne la crudeltate anco pietoso Fabro gentil, bem sai, Ch’ancor Tragico caso è caro oggetto,

E che spesso l’horror và col diletto.”

(Giovan Battista Marino, em sua Galeria, 1620)

“Que fazes, Guido, que fazes? A mesma mão que pinta formas angélicas, também retrata acontecimentos sanguinários? (...) Gentil artesão, bem sabes, Que numa piedosa crueldade, Ou num acontecimento trágico,

Há algo de precioso, E que frequentemente horror anda junto do deleite.”

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RESUMO

Partindo de uma obra presente no acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), O

suicídio de Lucrécia, de Guido Reni, a presente dissertação persegue os possíveis sentidos

assumidos ao longo do tempo pela protagonista do evento histórico que nomeia a obra, na intenção de iluminar as opções realizadas pelo pintor bolonhês ao produzi-la, entre 1625 e 1642. Famosa dama romana, Lucrécia teria se suicidado em 509 a .C, num episódio atribulado que demarca o início da República romana. De imensa repercussão posterior, a narrativa da desventura de Lucrécia aparece em um sem número de textos e imagens da Antiguidade até o século XVII. Do ponto de vista da pintura e da literatura italiana em âmbito renascentista, grandes nomes se dedicaram a explorar o tema, e Guido Reni o fez repetidas vezes, criando com isso um modelo de representação da heroína, que teve ampla repercussão posterior, particularmente entre os demais artistas emilianos do Seiscentos. A investigação se desenvolveu tendo como norte inquietações suscitadas pela popularidade do tema no Seiscentos, por sua extensa repetição na obra de Reni, e também pela as escolhas do pintor ao representar Lucrécia em profundo sofrimento, sozinha e seminua. Para tentar dar conta destas questões, foram mobilizadas fontes antigas, textos literários, dramatúrgicos, filosóficos, diversas obras de pintura e fundamental bibliografia secundária. O resultado desta revisão é o percurso iconográfico aqui proposto, que destaca o intervalo entre os séculos XIV e XVII, esforçando-se por explorar a intrincada rede de significados mobilizada pela personagem, e as leituras políticas, morais e eróticas que são feitas de sua história.

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ABSTRACT

Taking as a starting point the Suicide of Lucretia by Guido Reni of the Museu de Arte de São Paulo (MASP), the present work aims to pursue the possible meanings that the historical event portraited has assumed through time. This will be done by seeking to enlight the choices made by the painter when producing the MASP painting, between 1625 and 1642. Lucretia was a famous Roman lady that committed suicide in 509 b.C, in a turbulent episode that marks the beginning of Ancient Roman Republic. The narrative of the misfortunes of Lucretia had tremendous resonance, and she features a significant amount of texts and images from Ancient times to the XVII century. Great names of literature and painting of the Italian Renaissance context have engaged in exploring the theme, and Guido Reni worked on it repeatedly, creating a model of representation of Lucretia that had extensive impact, especially in the Emilian seicentesque painting. This inquiry was triggered by contemporary uneasiness about the popularity of the theme in XVII century, its repetition in the works of Reni, its and the painter’s options when chooses to represent Lucretia in deep sorrow, alone, and almost naked. Ancient texts, literature, theater, philosophy, paintings and fundamental specialized bibliography were consulted in order to cope with the complexity of the theme. The outcome of this review is the iconographic path here purposed, that goes mainly from the XIV century to the XVII century in an effort to explain the intricate network of meanings elicited by the character and the political, moral and erotic readings of her story.

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Sumário

I. Apresentação ... 12

II. Sobre o quadro do MASP ... 16

2.1 Descrição ... 16

2.2 Proveniência ... 17

2.3 Histórico de atribuição... 21

2.4. A Lucrécia do MASP na obra de Reni ... 22

III. Lucrécia e as fontes antigas ... 23

3.1. Enredo e historiografia ... 23

3.2 Tito Lívio ... 29

3.3. Ovídio ... 38

IV. Antecedentes literários e iconográficos: do período Tardo Antigo ao final do século XVI ... 43

V. Guido Reni e o tema de Lucrécia no Seiscentos ... 74

5.1. Guido Reni ... 74

5.2 Sobre as Lucrécias de Reni ... 88

5.4. Lucrécias de Reni: características e leituras possíveis ... 90

5.3. Lucrécia teatral ... 91

5.4. Lucrécia bela, pálida e nua, no quarto ... 99

5.5. Lucrécia solitária, olhos marejados para cima... 107

5.6 O lugar de Lucrécia nas coleções de arte do Seiscentos... 131

VI. À guisa de conclusão ... 137

TABELA 1 – Obras sobre o tema de Lucrécia elencadas no repertório Collezioni e quadrerie nella Bologna del Seicento: Inventari 1640-1707, organizado por Raffaella Morselli ... 140

Referências Bibliográficas ... 146

APÊNDICE I – O SUICÍDIO DE LUCRÉCIA DO MASP: RELAÇÕES ... 157

APÊNDICE II – LUCRÉCIAS DE GUIDO RENI ... 171

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I. Apresentação

Ao longo deste texto, pretendo delinear uma trajetória histórica das representações do tema do suicídio de Lucrécia, tendo como ponto de chegada o Seiscentos. A dissertação se inicia com a obra que primeiro mobilizou a minha curiosidade a respeito, a tela do MASP atribuída a Guido Reni e seu ateliê (Imagem A). Nesta parte, faço um breve apanhado das informações que consegui reunir a respeito deste objeto e do contexto de sua doação. O título do trabalho faz referência a um madrigal de Giovan Battista Marino, que também serve de epígrafe . O poema homenageia a pintura Massacre dos Inocentes, realizada entre 1610 e 1612 (Imagem R) por Guido Reni, e fornece uma chave de leitura interessante a respeito da relação do período com a temática trágica em geral, como espero explicitar no capítulo final.

Como se trata de um tema histórico, ligado à explicação de uma transição de fases políticas na Roma Antiga, inicio a segunda parte realizando uma revisão panorâmica da historiografia de Antiguidade Clássica a respeito da história de Lucrécia. Para além da hipótese de Jocelyn Penn Small1 acerca de urnas etruscas (Imagens I e II), não se conhecem

representações antigas de Lucrécia. Nas fontes textuais, no entanto, a dama romana é amplamente citada e seu infortúnio é contado por diversos autores antigos. Assim, adentro o terreno da representação a partir da síntese da narrativa nas principais fontes antigas textuais que a registraram, para na sequência realizar uma breve exposição sobre os autores mais importantes e suas versões da história, Tito Lívio e Ovídio.

No terceiro bloco, dedico-me a acompanhar o tema ao longo do tempo, a partir da Antiguidade tardia até o final do século XVI. A Antiguidade tardia traria a Lucrécia sua mais famosa condenação, feita por Agostinho de Hipona. A leitura feita por ele é um divisor de águas na maneira de encarar a atitude extrema de Lucrécia, motivo pelo qual apresento-a brevemente, elencando também algumas leituras de matizes diferentes acerca de seu posicionamento. No período que se segue, a história de Lucrécia seria preservada em textos como a Gesta

Romanorum, o Ovidio moralizado e versões do texto de Valério Maximo, entre outros. Em

ambiente italiano, a personagem seria citada na Comédia2 de Dante (1265-1321) e em Petrarca

(1304-1374). Sua história faria grande sucesso como modelo de virtude matrimonial feminina, caminho potencializado pela publicação de De mulieribus claris, de Boccaccio (1313-1375),

1 SMALL, Jocelyn Penny. The Death of Lucretia. American Journal of Archaeology, Vol. 80, No. 4 (Autumn, 1976), pp. 349-360.

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em que ela foi escolhida pelo autor como um dos exemplos de conduta feminina a ser seguido, numa obra de grande difusão entre as mulheres de alto extrato social das cidades italianas. Destaca-se também a Declamatio Lucretiae, trabalho de juventude de Colluccio Salutati (1331-1406), em que Lucrécia é caracterizada como símbolo da virtude arruinada pela tirania, num momento em que Florença está ameaçada pela hegemonia dos Visconti de Milão. São conhecidos muitos cassoni florentinos do final do século XIV que portam a história de Lucrécia, aqui citados a partir da compilação feita por Miziolek3 (Imagem III), e parte significativa da

bibliografia a respeito relaciona esses cassoni à citada Declamatio Lucretiae. No fim do século XV, haveria uma retomada de interesse pelo tema em Florença, possivelmente relacionada a uma reação à hegemonia dos Medici. São desta época duas famosas pinturas sobre a história de Lucrécia, as de Filippino Lippi e Sandro Botticelli (Imagens IV e V). O final do século XV e início do século XVI traria algumas modificações na maneira de representar visualmente a personagem. Seu suicídio deixava de ser tratado como um evento público, e as representações passam a privilegiar a personagem isolada, monumental e inserida numa paisagem. Stechow, em artigo seminal sobre o tema, propõe a relação entre um poema do papa Leão X, Lucretia

statua, sobre um busto de Lucrécia que teria sido desenterrado em Roma por volta de 1500, e

as obras sobre o tema, do mesmo período, que parecem de fato ter grande referência na escultura antiga4. São exemplos de tais modificações a Lucrécia de Marcantônio Raimondi (Imagem

VII), a partir do desenho de Rafael (1483-1520) (Imagem VI), a Lucrécia de Giovanni Bazzi, dito Il Sodoma (1477-1549) (Imagem VIII), e ainda duas das versões muito semelhantes de Francesco Francia (Imagem IX). Na pintura, as obras enfocariam cada vez mais a personagem em detrimento de outros elementos, havendo uma profusão de representações de Lucrécia em meia figura, sozinha, inserida num plano de fundo de interior genérico ou mesmo quase abstrato. São exemplos destas as Lucrécias venezianas, de Palma Il Vecchio e Tiziano (Imagens X e XI), ambas de intensa carnalidade, ainda que vestidas. Uma versão posterior de Sodoma (Imagem XII) apresenta a personagem quase completamente nua, algo inédito até este período. Na literatura, ao longo do século XVI a personagem seria protagonista de uma das novelle de Bandello, da primeira tragédia francesa a respeito (Lucrèce, de Nicolas Filleuil, de 1566), e de um poema de Shakespeare, The rape of Lucretia (1594). Parmigianino tem duas invenções para o tema, uma conhecida através de uma gravura de Enea Vico (Imagem XIII) e a mais conhecida, hoje em Nápoles (Imagem XIV). Ambas intensificam o erotismo na apresentação

3 MIZIOLEK, J. Florentina libertas:. La storia di Lucrezia romana e la cacciata del tiranno’ sui cassoni del primo

Rinascimento. In: Prospettiva: Rivista di storia dell’arte antica e moderna 83-84 (1996), 156-176.

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da matrona romana. Do mesmo período, a Lucrécia da Pinacoteca Nazionale de Bologna, hoje atribuída a Pellegrino Tibaldi, também mostra a heroína nua, porém de corpo inteiro (Imagem XV). Finalizo os antecedentes iconográficos do Seiscentos com a magnífica versão de Paolo Veronese (Imagem XVI), que se afasta das representações nuas e parece retomar Lucrécia como modelo de virtude para mulheres de alta classe social.

O Seiscentos assistiria a uma grande popularização do tema. A título de parâmetro, no repertório de Andor Pigler5 constam cerca de oitenta versões seiscentistas do tema em pintura,

contra aproximadamente cinquenta de todo o período anterior. Dentre estas, são prolíficas as de âmbito emiliano, das quais fazem parte as muitas versões de Guido Reni para o tema. Via de regra, entre estas predominam as opções iconográficas que podemos observar na Lucrécia do MASP e na maioria das versões de Reni para o tema (ver Apêndice I): a matrona aparece em meia figura, seminua, com plano de fundo sintético, sugestão de ambiente interior íntimo, o olhar que se volta para o alto, o rosto em expressão de pathos. A exceção seria a Lucrécia de Reni hoje em Potsdam, representada de corpo inteiro, em vestes luxuosas (Imagem 3). Coincidência ou não, o olhar que se volta para o alto aparece anteriormente apenas nas versões de Francia, de Parmigianino e de Tibaldi, todos artistas emilianos. As referências prováveis de Reni para suas Lucrécias, indicadas nas fontes da época e também pelos especialistas do século XX, seriam a Niobe antiga (Imagem B) então na Vila Medici, em Roma (hoje na Galleria Uffizi), e a Santa Cecilia de Rafael, de 1516-17 (Imagem C), hoje na Pinacoteca Nazionale de Bologna. O olhar e a iluminação que vem do alto aproximam a personagem romana antiga das figuras de mártires realizadas pelo pintor. Reni é por certo o pintor do Seiscentos que mais se dedicou a repetir o tema, havendo no entanto outras versões em sua região. Há pelo menos três Lucrécias hoje atribuídas a Guercino em coleções privadas (Imagem XVIII, XIX e XX), quatro versões de Guido Cagnacci (Imagens XXI, XXII, XXIII e XIV), uma pintura de Cristoforo Serra sobre o tema, ligeiramente diferente na ambientação e nos trajes (Imagem XVII), além da versão de Luca da Reggio (Imagem XXV). Dedico-me a discutir possíveis elementos explicativos para a popularidade do tema e sua relação com a produção de Reni na quinta e última parte do trabalho. Na literatura seiscentesca, o tema aparece com alguma expressividade em âmbito teatral: Lucrécia protagoniza duas tragédias francesas, de Du Ryer e Chevreau, ambas de 1637, e quatro peças italianas, respectivamente de Mamiano, Paolo Regio, Giovanni Delfino e Giovanni Bonicelli (ativo na segunda metade do século XVII). Há também textos importantes de Francesco Pona, Giambattista Marino e Loredano. Não menos importante é o

5 PIGLER, Andor. Barockthemen: Eine Auswahl von Verzeichnissen zur Ikonographie des 17. und 18.

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texto político Tarquínio, de Virgílio Malvezzi (1595-1654), historiador, moralista e político de Bologna, além de admirador e amigo de Reni.

A seleção de imagens e de textos aqui realizada é em si uma proposição de percurso iconográfico que possa iluminar a interpretação de Reni sobre o tema. Nesse sentido, foram deixadas de fora as inúmeras repercussões do tema de Lucrécia em ambiente nórdico e variados textos morais, dramatúrgicos e poéticos a seu respeito foram quando muito citados.

Compõem o repertório imagético do trabalho três apêndices. No Apêndice I, constam as imagens variadas citadas no correr do texto para tecer relações. O Apêndice II é dedicado exclusivamente às Lucrécias de Guido Reni em suas muitas versões. Por último, o objetivo do Apêndice III é funcionar como uma espécie de catálogo dos antecedentes iconográficos selecionados para o tema.

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II. Sobre o quadro do MASP

2.1 Descrição

O objeto que despertou o interesse pelo tema e deu origem à pesquisa é um óleo sobre tela retangular, de 113 cm por 90 cm, cuja superfície é ocupada em sua maior parte pelo corpo da protagonista, Lucrécia (Imagem A). No plano de fundo há poucos elementos: uma ponta de uma espécie de almofada ou colchão com um pendão aparece no canto inferior esquerdo. Subindo o olhar, também à esquerda, uma cortina pende. Ambos elementos, pintados em tonalidades marrons e escurecidas, de aspecto não finalizado, permitem localizar a personagem em ambiente privado, provavelmente num quarto de dormir. Em espelhamento com a cortina, um tecido branco recobre o tronco de Lucrécia, e poderia ser um vestido de gola larga, cuja manga esquerda foi removida de maneira a expor o peito para o ato fatal (o mesmo se dá em outras Lucrécias de Guido Reni, como vê-se nas imagens do apêndice I). Lucrécia está sentada, sua perna esquerda marca o panejamento azul que cobre seu colo e ocupa a parte inferior da tela. Sua cabeça e o torso se inclinam para a esquerda, olhando para o alto, de onde vem também a iluminação da cena. A figura de Lucrécia é robusta, ombros largos, seios pequeninos, braços roliços, pescoço volumoso. Neste sentido, está em perfeita confluência com as demais composições de Reni sobre o tema. A cabeça é de grande beleza. Seu aspecto genérico a afasta do retrato, havendo no entanto claras relações com outras figuras femininas produzidas por Reni e seu ateliê e muito apreciadas no seu tempo. Cito como exemplo, para além das demais Lucrécias, a Santa Apollonia que integrou a Richard Feigen Collection até 2008 (Imagem E), a Madalena Penitente da Walters Art Gallery (Imagem D), a mulher com um flor do Museu do Prado (Imagem F), a mulher de Potifar atualmente no J. Paul Getty Museum (G), e as Cleopatras da coleção de sir Denis Mahon (Imagem H) e da Galleria Capitolina (Imagem J). Lucrécia tem os cabelos alourados parcialmente presos e adornados por uma espécie de fita verde, que se encontra bem obscurecida. Os cachos caem delicadamente sobre seu pescoço até a altura de sua clavícula, transformando-se em mechas onduladas conforme se afastam do corpo, como se a cena estivesse animada por uma leve brisa. Pequenas jóias brancas em forma de gota pendem de suas orelhas na mesma direção da cabeça. O discreto rubor que cobre seu nariz e as maçãs do seu rosto se compõe de tons róseos delicados, que também aparecem em sua pequena boca entreaberta e no lóbulo visível de sua orelha, conferindo ao rosto uma carnalidade que contrasta com a cor marmórea do torso, só quebrada pelo marrom rosado dos pequenos mamilos e pelo vermelho rubro usado na discreta incisão feita pela adaga e nas pequenas marcas de sangue que provém dela. São cinco marcas, de formatos irregulares, o que

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leva a considerar a possibilidade de se tratarem de impressões dos dedos da heroína sobre o sangue e não gotas. As mãos grandes, os ombros e as laterais dos braços de Lucrécia também se apresentam em tons ligeiramente mais quentes que o restante do tronco, realmente pétreo. Sua mão esquerda segura as dobras de tecido branco, desnudando o peito. A mão direita, que segura a adaga, tem iluminação privilegiada. A adaga aponta para o fundo da tela, e em vista frontal observamos as falanges da mão de Lucrécia que a segura com firmeza. A tensão muscular do braço direito parece oriunda da força necessária para puxar o punhal que a feriu. As sobrancelhas pequenas e desenhadas se levantam e acompanham os olhos. O olhar não é plácido, como o da Santa Cecilia de Rafael, modelo fundamental para os mártires produzidos pela pintura emiliana. A forma dos olhos tremula: as pálpebras de Lucrécia ondulam com as lágrimas que se acumulam, mas ainda não caem. Na iminência do choro, com o corpo ainda tensionado pelo esforço, Lucrécia acaba de retirar a adaga do peito.

2.2 Proveniência

A Lucrécia do MASP foi doada ao museu em 1958, pelo príncipe George Lubomirski e sua esposa, a baronesa Schummer-Rheinfelden. George Lubomirski, nome pelo qual era conhecido no Brasil, nasceu Jerzy Rafal Alfred Lubomirski, em Przeworsk, no dia 17 de agosto de 1888, e morreu em Menton, Alpes Maritimes, França, no dia 19 de dezembro de 1978, aos 90 anos.6

A partir da década de 30 do século XX, o Brasil foi o destino de alguns membros da aristocracia polonesa, em diáspora por conta da ocupação da Polônia na Segunda Guerra Mundial e do posterior advento do regime comunista. Pouco se produziu sobre tal fluxo migratório, mas de qualquer forma a leitura de material produzido pela comunidade polonesa no Brasil indica se tratar de número não pouco expressivo e presente em diversos estados do país7. Segundo registro anônimo e manuscrito no arquivo do museu, o príncipe George

Lubomirski, doador da obra do MASP, possuía “fazendas no Paraná”8. Tal informação é

confirmada numa compilação de depoimentos históricos publicados pela empresa Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, responsável pelo loteamento e ocupação desta região principalmente entre 1924 e 1942. 9

6 OBITUÁRIO. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 de dezembro de 1978, p. 36.

7 POLONICUS: Revista de reflexão Brasil-Polônia. Retirado de: http://www.polonicus.com.br/site/. Acesso em 10/11/2015.

8 Manuscrito conservado na pasta relativa ao Suicídio de Lucŕecia, de Guido Reni, no arquivo do Museu de Arte de São Paulo.

9 No relato do engenheiro topógrafo Wladimir Babkov, os príncípes são citados num rol de nobres europeus que se fixaram nos loteamentos da empresa no norte do Paraná.Companhia Melhoramentos Norte do Paraná -

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Segundo declarações dadas pelo príncipe George ao Diário de São Paulo, a Lucrécia do MASP seria proveniente da coleção da família que se encontrava originalmente no palácio de Molkerbastei, em Viena, e teria feito parte da coleção que adornava o hotel particulier do Cardeal Mazzarino. Os registros e a dispersão das coleções do Cardeal são objeto de intensa discussão. Registra-se uma Lucrécia de Reni com esta proveniência num leilão realizado em Londres entre 26 e 28 de fevereiro de 1765, referenciada no Catalogue of the noble collection

of pictures from the Grand Cabinets of Cardinøle Mazarine and Pnnce Carignan Duke D' Valentinois10. Patrick Michel, em importante obra sobre as coleções de Mazzarino, enfatiza a importância de se ter cuidado ao considerar fidedignas as informações provenientes deste tipo de documentação, já que não seria absurdo pensar na atribuição de obras à coleção dispersa do Cardeal como um artifício usado para dar prestígio à venda em questão.11

A coleção Lubomirski foi constituída pelo principe Henryk Ludwik (1777-1850), bisavô de George, através de aquisições na França e em Viena, e foi migrada para a Polônia após a propriedade do palácio da Molkerbastei passar para sua filha Jadwiga, quando se casou com o príncipe de Ligne, em 183612. Ainda de acordo com o princípe George na mesma reportagem,

a coleção se constituía de 60 telas e cerca de 300 desenhos13. Na Polônia, o príncipe Henryk

fundou o Museu Lubomirski, cujo acervo se constituía desta coleção em conjunto com a biblioteca e o arquivo da família. O museu em questão, por iniciativa de Henryk, tornou-se parte do Ossolinski National Institut, importante acervo e centro de documentação e pesquisa polonês em Lvov.

O arquivo do MASP guarda poucas informações sobre os doadores. Ambos faleceram há mais de 30 anos e não tiveram filhos. Sua única filha adotiva, a condessa Anne Thérese Lubowiecka, faleceu em 200414, deixando descendentes que a presente pesquisa não conseguiu

acessar. As informações a respeito da baronesa e do príncipe George Lubomirski seriam de todo rarefeitas não fosse o envolvimento do príncipe George num dos mais curiosos casos de restituição de obras de arte do século XX. Durante a Segunda Guerra Mundial, 23 desenhos de Dürer de sua família, conservados no já citado instituto Ossolinski, foram levados da Polônia

Colonização e desenvolvimento do Norte do Paraná: Depoimentos sobre a maior obra no gênero realizada por uma empresa privada. 24 de setembro de 1975. 3 edição - 2013, p.113.

10MICHEL, Patrick. Mazarin, prince des collectionneurs: les collections et l'ameublement du cardinal Mazarin

(1602-1661) : histoire et analyse. Paris: Réunion del Musées nationaux, 1999, p.338.

11MICHEL, Patrick. Idem, p.337-339.

12 ALMANACH DE SAXE GOTHA .In: http://www.almanachdegotha.org/

13 DE UMA FAMOSA coleção europeia para o Museu de Arte de São Paulo. Diário de S. Paulo, São Paulo, 5 agosto de 1962. Acessado na pasta referente ao histórico da obra no acervo do Museu de arte de São Paulo. 14 OBITUÁRIO. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 de dezembro de 1978, p. 36.

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pelos invasores nazistas. Após o fim do conflito, o príncipe reivindicou a posse dos desenhos, e sua família iniciou uma disputa judicial questionando seu direito a eles. Numa decisão jurídica ímpar, o governo norte-americano, que salvaguardava as obras recolhidas dos depósitos nazistas na Guerra, optou por devolver as obras ao príncipe George, que imediatamente as vendeu e viveu dos dividendos gerados por essa transação até o fim da vida.15 Das narrativas relacionadas

a este episódio16, emerge uma imagem um tanto curiosa da figura do príncipe, que aparece como

um herdeiro excêntrico, talentoso e egoísta, de personalidade magnética e baixo rigor moral. Segundo Dobbs, que entrevistou Anthony Potulicki, seu sobrinho, o príncipe George raramente pagava suas dívidas, com frequência contrariava a família e costumava dizer que “os gritos das pessoas para quem devo dinheiro são como música para meus ouvidos”. Sobre Anna Wilanowska, a baronesa Schummer-Rheinfelden ou Princesa Anna Lubomirska, restaram poucas informações. Os vestígios encontrados sobre ela ganham um aroma folhetinesco na reportagem de Dobbs, única fonte encontrada a seu respeito: a mulher de George Lubomirski teria sido dançarina de cabaré no passado anterior ao casamento e as irmãs do príncipe a teriam acusado de participar ativamente das tentativas de recuperação dos desenhos de Dürer (sem compartilhar os dividendos com os demais familiares) por vingança contra as humilhações que foram infringidas a ela pela família no início da união com o príncipe..17

Não foi possível aferir exatamente como a guerra afetou a coleção Lubomirski como um todo ou que obras chegaram ao Brasil e quando. O príncípe George afirmou ao Diário de S.Paulo que parte da coleção foi dispersada com a guerra. Segundo Lynn Nicholas, as primeiras providências governamentais da Polônia a respeito da guerra começaram apenas no verão de 1939, alguns meses antes da invasão, com ordens para estocagem de grãos e migração de rebanhos das províncias ocidentais para o interior, para onde também se aconselhava a remoção de bens preciosos transportáveis das famílias aristocráticas. O próprio Museu Lubomirski recebeu nesse período coleções de outras famílias nobres que queriam sua salvaguarda. Ainda de acordo com Nicholas, esta mobilidade de coleções não era nova: já há dois séculos o constante assédio da Áustria, da Prússia e da Rússia ocasionava “o constante fluxo das coleções

15 Tal decisão fugia da norma, que era devolver as obras aos países de origem das coleções. Como consequência, hoje os governos da Polônia e da Ucrânia reivindicam os desenhos em questão, alegando que a restituição foi equivocada.

16 DOBBS, Michael. Stolen Beauty. The Washington Post Magazine, Washington, 21 de março de 1999. Retirado de https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/magazine/1999/03/21/stolen-beauty/18c26bba-3a66-44a8-bb7d-74fa5c57b993/?utm_term=.c4e26666fcd1. Acessado em 02/03/2015. NICHOLAS, Lynn H. The Rape of Europa: the Fate of Europe's Treasures in the Third Reich and the Second World War. New York: Knopf, 1994, capítulo III, p. 6. VAUSER, Brand. Disputed Dürers: The Lubomirski drawings and the complexities of restitution. Brandy Vause, 2002. Acesso online em 5/03/2015.

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de arte polonesas” para Alemanha, França, Suíça. Neste momento específico, parte das coleções foram enviadas para outros países, onde se julgava estarem mais seguras.18 Nesse contexto, é

possível que algumas obras da coleção Lubomirski já estivessem fora da Polônia na ocasião da invasão. Há registros de um leilão de obras de arte de uma “princesa Lubomirski” realizado em 1947 no Rio de Janeiro. As obras seriam provenientes do “palácio de Melkerlastei”, tudo indicando que esse nome tenha sido incorretamente grafado e a coleção fosse a proveniente do palácio da Molkerbastei, em Viena19

Embora seja difícil precisar quando e como a Lucrécia do MASP chega ao Brasil, é possível depreender como a doação foi articulada. Durante as décadas de 50 e 60, os Lubomirski passaram a fazer aparições esporádicas em colunas sociais de jornais de São Paulo, em geral vinculados a eventos de nomes importantes do jet set paulistano.20 Espaços dos quais Bardi e

Chateaubriand eram habitués foram também frequentados pelos Lubomirski, a exemplo das recepções oferecidas por Yan de Almeida de Prado, que recebia seletos grupos de convidados religiosamente para os almoços de sábado, e cujos registros mencionam o casal Lubomirski21.

Uma carta de Bardi comunica a Chateaubriand a doação da Lucrécia, o que pode indicar que tenha sido Bardi a articulá-la diretamente.22 Por fim, uma carta sem data da baronesa Anna à

direção do Museu enuncia que houve um acordo entre os príncipes e Assis Chateaubriand, e que as condições combinadas não estavam sendo cumpridas, pelo que ela solicitava a restituição

18 NICHOLAS, Lynn H. The Rape of Europa: the Fate of Europe's Treasures in the Third Reich and the Second World War. New York: Knopf, 1994, capítulo III, p. 6

19 Um anúncio n'O estado de São Paulo de 10 de dezembro de 1947 divulga um leilão de obras de arte e mobiliário proveniente da coleção Princesa Lubomirski no Rio de Janeiro, realizado por Affonso Nunes. O anúncio cita a presença de obras de “Pantoja de La Cruz, Tintoretto, Guercino, Franz Post, C. Carlo, G. Rivel, Barbudo, Villegas, Veronese e muitas outras adquiridas em Versalhes depois da Revolução Francesa", e afirma que as obras seriam provenientes do “palácio de Melkerlastei”

20 A coluna social da Folha da Manhã menciona: a presença do Princípe George Lubomirski a uma noite de teatro em Ibiratiba, oferecida por Sr. e Sra. Artur Sievers (30/11/1957); jantares oferecidos em honra dos principes Sebastian e Andrea Lubomirski, quando estes visitavam a irmã, princesa Cecília de Bourbon (em 30/12/1958 e em 18/03/1959) ; a presença do casal George e Anna Lubomirski no casamento de Niusia Szereszcwska e Felix Plotrowski ( 25/05/1958); A coluna de Tavares de Miranda na Folha de S. Paulo informa que foi sentida a ausência do princípe Sebastian Lubomirski nas bodas de rubi do Conde e da Condessa Francisco Matarazzo (2/03/1964) 21 João de Scantimburgo, diretor dos Diários Associados, do Correio Paulistano e depois do Diário do Comércio até sua morte, em 2013, era casado com Anna Theresa, filha adotiva do casal Lubomirski. Numa obra de memórias escrita em homenagem à Yan de Almeida Prado menciona que diversas vezes encontrou e acompanhou seus sogros à pensão Humaitá, como era conhecida a casa de Yan, da qual também era habitué Assis Chateaubriand e pela qual Bardi passava com alguma frequência. Ver SCANTIMBURGO, João de. Memórias da Pensão Humaitá. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1992, p. 74 e 75. Ainda, o jornalista Tavares de Miranda menciona o interesse de Bardi pelos príncipes Lubomirski, “doadores da Lucrécia de Reni para o Museu(...)” em coluna social dedicada aos acontecimentos de um dos almoços oferecidos por Yan. Bardi teria perguntado sobre os príncipes Anna e George Lubomirski a João de Scantimburgo, tendo recebido como resposta que o princípe, que residia então na França com seus 90 anos, parecia “um varão das idades heróicas, rijo e bem disposto”. Ver FOLHA DE S.PAULO, 23/04/1978, Coluna Social.

22 Carta de Bardi a Chateaubriand, sem data. Acessada na pasta referente ao histórico da obra no acervo do Museu de arte de São Paulo.

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do quadro. Não se conseguiu mais informações a respeito deste episódio.

De todo modo, o Suicídio de Lucrécia entrou oficialmente no acervo do MASP em 6 de agosto de 1958. Foi submetido a uma limpeza pelo restaurador Gori em 1959, e uma observação na ficha técnica do museu diz que estava salpicado de vernizes queimadas em gotas, e seu estado de conservação seria regular. De acordo com um relato do príncipe ao Diário de S. Paulo,23 ocorreu um incêndio enquanto a pintura se encontrava no hotel particulier do Cardeal

Mazzarino, em 1660, o que teria deixado algumas partes “escurecidas pela fumaça”, conferido ao verniz uma cor de “açúcar queimado” e criado algumas bolhas no fundo, cujas tintas tinham como base o betume. O texto do jornal (de 1962) ressalta que a primeira limpeza já havia mudado esta situação. De fato, embora o estado de conservação não seja bom, os traços de uma participação num incêndio não são visíveis. Numa carta de 1977, Bardi afirma que a Lucrécia teria passado por um restauro em 197024, mas não há nenhum outro registro a esse respeito

arquivado no MASP. O próprio texto do catálogo do MASP chama atenção para o estado de conservação do quadro, que dificultaria uma avaliação precisa de sua autoria.25

2.3 Histórico de atribuição

A Lucrécia foi doada ao MASP como sendo de Guido Reni. Sua atribuição, no entanto, não é consenso entre os autores de catálogos do pintor.

Edi Baccheschi coloca a obra do MASP dentre as obras atribuídas a Reni26. Stephen

Pepper, em seu catálogo de 1984, coloca-a dentre as atribuições que rejeita, afirmando não haver qualquer relação conhecida entre a obra do MASP e Reni.27

.

Embora Reni tenha se debruçado muitas vezes sobre o tema (ver apêndice II), e muitas de suas outras pinturas a respeito de Lucrécia tenham relação iconográfica e estilística com a do MASP, não se conhece nenhuma que de fato apresente evidências suficientes para comprovar a autoria de Reni. A ausência de desenhos preparatórios identificados também dificulta a afirmação de uma ligação certa entre a tela do MASP e a mão do autor. Em cartas trocadas com o então curador chefe do MASP, Prof. Dr. Luiz Marques, o Prof. Dr. Richard Spear, grande

23 DE UMA FAMOSA coleção europeia para o Museu de Arte de São Paulo. Diário de S. Paulo, São Paulo, 5 agosto de 1962. Acessado na pasta referente ao histórico da obra no acervo do Museu de arte de São Paulo. 24 Carta de Pietro Maria Bardi a Alexandr Vosátka, então diretor da Karlova Galerie, Praga, 9 de novembro de 1977

25 MARQUES, Luiz [coord] et al. Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. São Paulo: MASP, 1998, v.1, p. 117.

26 BACHESCHI, Edi (a cura di). L'opera completa di Guido Reni. Milano: Rizzoli, 1971.

27 PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York University press, 1984.

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especialista na obra de Guido Reni, afirma concordar com a hipótese de que a obra seria ao menos parcialmente autógrafa, particularmente por conta da cabeça e das mãos. O procedimento de realizar apenas partes das pinturas, deixando o restante para o ateliê era algo de fato comum na produção de Reni, principalmente em sua fase final28. A meu ver, a grande

qualidade da cabeça de Lucrécia reforça esta hipótese. 2.4. A Lucrécia do MASP na obra de Reni

Todas as Lucrécias produzidas por Reni são datadas da fase de sua pintura conhecida como tarda maniera, ou ultima maniera, ou ainda seconda maniera.

A qualidade irregular da figura feminina no Suicídio de Lucrécia do MASP indica muito provavelmente um trabalho conjunto de Reni e seu ateliê. A cabeça e as mãos de acabamento refinado apontam sua fatura pelo mestre, enquanto que o restante parece de fato resultado do trabalho de mãos menos experientes. Soma-se a isso o fundo esquemático, que parece não acabado e contribui para o posicionamento do quadro nesta fase final da obra de Reni .

28 SPEAR, Richard.The "Divine" Guido: religion, sex, money, and art in the world of Guido Reni. New Haven: Yale University, 2007.

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III. Lucrécia e as fontes antigas

3.1. Enredo e historiografia

O suicídio de Lucrécia é parte da narrativa da transição da monarquia para a República Romana. Essa transição ocorreu muito provavelmente no final do século VI a.C, e a tradição assinala o ano de 509 a.C como o ano inicial da República Romana. As polêmicas historiográficas envolvendo este processo são muitas: vão da própria datação à confiabilidade das fontes tradicionalmente acessadas para este período, passando, é claro, pelas causas principais da mudança de regime e pela extensão da mudança nos primeiros 50 anos29. De

relativamente consensual a respeito desta transição, tem-se que o último rei de Roma foi Tarquínio, o Soberbo, de origem etrusca, que sua queda se deu através de algum tipo de convulsão social violenta e que Roma ficou um período sobre o controle de Porsenna, rei de Clusium, imediatamente após a fuga de Tarquínio Soberbo.

Oito autores antigos debruçam-se sobre a história de Lucrécia com a preocupação específica de narrá-la. A versão mais difundida é, sem dúvida, a de Tito Lívio30, em sua História de Roma. É provável que esta versão tenha sido precedida pela de Diodoro Sículo, em Biblioteca Historica31 , embora a datação não seja precisa. De peŕiodo próximo, há a narrativa de Dionísio de Halicarnasso,32 em Antiguidades Romanas, à qual se segue a de Ovídio, em seus Fasti33. Posteriormente, há a versão que aparece em De mulierum Virtutibus da Moralia de Plutarco34; a de Valério Maximo, em seu Facta e Dicta memorabilia35; a de Floro36, na Epitome da História de Roma e, por fim, a da História de Roma de Díon Cassio37.

Como núcleo comum a todas estas fontes, temos a narrativa que segue.

Era reinado de Tarquinio Soberbo, de origem etrusca. Sisto Tarquínio, filho do rei, violenta Lucŕecia, matrona romana famosa pela virtude, casada com Colatino. No dia

29 Naturalmente, o debate é muito extenso. Para dar conta de suas linhas mestras, consultar PAIS, E. (1906);

SMITH, J. (1928); ÄLFOLDI, A. (1971); HEURGON, J. (1973); MOMIGLIANO, A. (1975); OGILVIE, R. M. (1976); DRUMMOND, A. (1989); MOMIGLIANO, A. (1989); MELLOR, R. (1999); FORSYHTE, G. (2005).

30 TITO LÍVIO. História De Roma. Livro I, 56-59. 31 DIODORO SÍCULO. Biblioteca Histórica, III, 50.

32 DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Antiguidades Romanas, Livro IV, 64-84 33 OVÍDIO. Fastos, 681-854.

34 PLUTARCO, Moralia, III, De mulieribus virtutibus, XIV. 35 VALÉRIO MAXIMO. Facta e Dicta memorabilia, Livro VI, 1.1. 36 FLORO. Epítome da História de Roma, Livro I, III.

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seguinte, Lucŕecia comunica a violação e se apunhala com uma adaga escondida em suas vestes.

Exceto por Plutarco e Valério Máximo, nas demais versões a indignação por sua morte é canalizada pela figura de Lucio Junio Bruto, que inicia a revolta que toma conta da população. As versões são unânimes em associar a revolta causada pela morte de Lucrécia à expulsão dos Tarquínios da cidade e à queda da monarquia, iniciando a República romana.

O debate historiográfico quanto à veracidade dos acontecimentos citados tende a considerá-los lendários. Ettore Pais propôs em 1906 a tese de que as lendas de Lucrécia e de Virgínia seriam infiltrações da história dos Prisci Latini na história romana, seguindo a trilha que havia iniciado em seu Storia di Roma, de 1898, em que afirmava a inexistência dos reis de Roma, para ele todos deuses de cultos antigos incorporados à história romana38. Originalmente

as narrativas protagonizadas por ambas as personagens seriam histórias de deusas, que tornaram-se mulheres mortais na história romana 39. A violação de Lucrécia seria para o autor

uma elaboração tardia de um culto de Ardea, transplantado para Roma na segunda metade do século IV a.C40. Na obra em questão, o autor considera improvável que tipos delicados e

virtuosos como Lucrécia e Virginia tivessem força em um povo totalmente corrupto. Por isso, chega à curiosa afirmação de que o fato destas lendas terem se tornado altamente populares e adentrado a história romana indicaria uma espécie de pureza do povo romano, no sentido de que estas histórias, que tem como centro a virtude, seriam sinal de uma valorização do patriotismo, da castidade, da família e do amor. Para alguns autores, a narrativa é certamente ficcional. Smith, em texto de 1928, afirma que o enredo envolvendo Tarquínio e Lucrécia é um detalhe que visa ornamentar a transição da monarquia para a República, assim como outras passagens da mesma narrativa, devendo ser desconsiderado.41 Em sua obra de

1965, Älfoldi realizou uma revisão muito debatida da história dos anos iniciais de Roma. Uma de suas contribuições centrais foi a desconfiança em relação a qualquer informação proveniente da produção de Fabius Pictor – um dos primeiros historiadores romanos, cuja obra hoje é considerada perdida e que teria servido como base para os relatos históricos que chegaram até nós, produzidos do fim da República em diante. Älfoldi aponta que a produção de Pictor teria

38 PAIS, Ettore. Ancient legends of roman history. London: Swan and Sonnenschein &co, 1906, p. 195. 39 PAIS, Ettore. Idem, p. 201.

40 PAIS, Ettore. Idem, p. 197.

41 SMITH, J. In Bury, J.B., Cook, S.A., Adcock, F.E. [ed]. The Cambridge Ancient History. Cambridge: The

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característica fortemente anti-etrusca, e por isso sua narrativa e suas explicações teriam este viés 42. Em relação ao evento que persigo neste trabalho, o autor é contundente ao afirmar que

“tentar salvar Lucrécia para a História seria fracasso a priori”, uma vez que o próprio contexto em que ela se insere (o cerco a Ardea) seria falso, bem como a explicação de que causas internas teriam levado à queda da monarquia. Seu argumento se encerra afirmando que a narrativa poderia ser reflexo de uma certa propensão ao drama típico da historiografia grega desde o círculo de Isócrates.43 Para Heurgon (1973), a história de Lucrécia é definitivamente mito. Em

sua discussão a respeito da data fixada para início da república, ele inclusive considera falsa a primeira collegia de cônsules dos fastii, composta por Bruto, Colatino, Espúrio Lucrécio e Valério Publícola, afirmando que teria sido acrescentada posteriormente com base na lenda de Lucrécia44. Do ponto de vista de R. M. Ogilvie (1976), a violação de Lucrécia seria “puro

melodrama”.45 Ogilvie enfatiza também que muitos episódios da história romana são

inventados ou modificados de maneira a obter equivalentes romanos de fatos importantes da história grega. Numa linha semelhante, Drummond (1989), explora a relação entre a narrativa da transição para a República romana e a historiografia grega, dizendo que a tradição romana constrói essa transição a partir da figura de um Tarquínio que se aproxima muito dos tiranos gregos, cujas histórias também contém episódios de violência sexual. Para ele, explicar a transição de regime a partir de uma história individual é uma tendência aristocrática, como o são as narrativas acerca dos tiranos gregos, não havendo no entanto nenhum paralelo exato grego para a história de Lucrécia, Bruto e Tarquinio Soberbo. O autor sustenta que, ainda que fosse verdadeira a história de Lucrécia, ela não serviria para explicar as origens da República, fornecendo apenas razões de ordem pessoal (honra, vingança) para a expulsão de Tarquinio Soberbo. 46 Para Forsyhte (2005), a comparação com outras fontes literárias antigas mostra que

Tarquínio Soberbo foi retratado para corresponder a um estereótipo de tirano. Além disso, para ele a história parece se adequar demais às antigas teorias políticas a respeito da evolução do

42Outra tese importante elaborada inicialmente por Älfoldi foi a de que a monarquia romana não teria caído por

causa internas, como uma revolta aristocrática contra o rei, mas por conta de uma invasão externa. Para ele, Tarquínio teria fugido após ser expulso por Porsena, rei etrusco de Clusium, que teria de fato ocupado Roma militarmente. Na visão de Älfoldi, o próprio cerco à cidade de Ardea por Tarquinio Soberbo, momento em que Sisto Tarquinio aproveita para visitar furtivamente a casa de Lucrécia na maior parte das versões, seria proveniente dos anais de Fabius Pictor, e, por isso, de forma alguma confiável. In MUSTI, Domenico. Tendenze Nella Storiografia Romana E Greca Su Roma Arcaica: Studî Su Lívio E Dionigi D'alicarnasso. Quaderni Urbinati di Cultura Classica 10 (1970): 3–159, p.

43 ÄLFOLDI, Andreas. Early Rome and the Latins. University of Michigan Press, 1971, p. 153. 44 HEURGON, Jacques. The rise of Rome. University of California Press, 1973, p.160.

45 OGILVIE, R. M. (1976). Early Rome and the etruscans. Trad. para espanhol de Ana Goldar. Madrid: Taurus,

1982, p. 78.

46 DRUMMOND, A. Rome in the Fifth Century II. In: The Cambridge Ancient History: VII, Part II: The rise of

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Estado da monarquia para a tirania e depois para a aristocracia. Para ele, a história de Lucrécia é “pouco mais que uma adaptação romana da queda da tirania psistrátida em Atenas (514-510 a.C)”47, que se inicia por conta do assassinato de Hiparco, um dos herdeiros de Psístrato, que

desejava Harmódio, jovem amante belo de Aristogeiton. Segundo Tucídides, Harmódio recusa Hiparco por duas vezes, e diante da insistência ele e Aristogeiton tramam e executam a morte do tirano, que é substituído por Hipias, seu irmão48. Segundo Forsythe, trata-se de prática

comum entre os escritores antigos usar este tipo de narrativa para explicar as transições políticas maiores. É importante lembrar que é uma característica do trabalho de Forsythe a ideia de que muitos eventos da tradição romana sejam desconsiderados ou no mínimo postos a prova como situações provavelmente derivadas dos modelos literários gregos e portanto sem precisão histórica.

Por outro lado, Friedrick Muenzer (1868-1942) é lembrado por Andreas Älfoldi como um grande conhecedor das fontes que sustentava que a história de Lucrécia teria um núcleo de verdade.49 Em seu quinto contributto, Momigliano (1975) afirma que tanto em Roma quanto

em Atenas seria possível que uma ofensa pessoal ou uma história de amor contribuíssem para o fim de um regime tirânico, não havendo nenhum motivo para duvidar da verdade substancial da história de Lucrécia. O autor, no entanto, relativiza a importância do acontecimento no desenrolar da transição política em questão, afirmando que a assim chamada “libertação de Roma” só ocorreu por derrota militar infligida por um terceiro poder.50

Seguindo esta linha intermediária, em sua obra lapidar sobre o tema, de 1982, Ian Donaldson afirma que a história de Lucrécia provavelmente congrega aspectos históricos e ficcionais, e acabou por se tornar “um mito etiológico” poderoso, que expõe e explica as origens de alguns ideais romanos51. O autor aponta também a ideia de haver uma possível fonte teatral

para Lucrécia de Lívio, afirmando que a curva dramática dessa narrativa justificaria esta especulação. Também T. P. Wiseman especula a respeito da possibilidade da influência sobre Lívio de uma peça acerca do fim da monarquia (provavelmente associando Lucio Bruto a Marco Bruto), supostamente disponível em Roma quando o autor tinha por volta de vinte anos.52 A

47 FORSYHTE, Gary. A critical history of Early Rome. Berkeley: University of California Press, 2005

48 TUCÍDIDES. The History of the Peloponnesian War . Livro VI, Capítulo XIX. Traduzido por Richard

Crowley. Disponível online em http://classics.mit.edu//Thucydides/pelopwar.html.

49 ÄLFOLDI, Andreas. Early Rome and the Latins. University of Michigan Press, 1971, p. 153.

50 MOMIGLIANO, ARNALDO. QUINTO CONTRIBUTTO alla storia degli studi classici e del mondo antico.

Roma, edizioni di storia e letteratura, 1975, p.299.

51 DONALDSON, Ian. The rapes of Lucretia. Oxford: Clarendon Press, 1982, p.8.

52 WISEMAN, T.P. A Puzzle in Livy. Greece and Rome 56.2: 203-210. Apud WATERS, Alison Ferguson . The

Ideal of Lucretia In Augustan Latin Poetry. Tese de Doutorado, Department Of Greek And Roman Studies, University Of Calgary , Alberta , 2013, p.16.

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possibilidade de que a violação de Lucrécia seja proveniente de fonte poética é aventada por Momigliano em texto posterior (1989), no qual afirma que a narrativa poderia estar nas

carmina, tal como outros episódios da monarquia como a luta entre Horácios e Curiácios ou as

histórias de Rômulo. Como contraponto à própria hipótese, o autor pontua que há em Tito Lívio incertezas que uma fonte poética não permitiria (por exemplo, sobre quem representaria os romanos na luta entre horácios e curiácios).53 Na mesma linha, R. Mellor (1999) afirma que a

ideia de que a história de Lucrécia, a de Rômulo e a dos Horácios fossem poemas cantados em banquetes aparece na obra de escritores antigos (como Catão) e seria corroborada por uma série de acadêmicos do século XIX54. A obra de Mellor, que trata dos historiadores romanos, ressalta

que há na escrita romana da História uma aspecto criativo, e por isso as narrativas sobrevivem não somente como recriações do passado, mas tem força expressiva própria. Cita como exemplo disto a história de Lucrécia contada por Tito Lívio.55

Um artigo de 1972 de Jocelyn Penny Small sugere a existência de uma versão etrusca da trama que envolve Lucrécia, Tarquínio e Colatino. Small parte de três urnas etruscas do período helenístico e propõe uma reinterpretação das cenas nelas representadas, sugerindo que as cenas em questão remetam ao suicídio de Lucrécia. Num primeiro momento, a ideia de que etruscos tenham escolhido este tema para urnas funerárias causa estranheza, já que os Tarquinios eram etruscos e a narrativa trata justamente de sua expulsão e do momento em que perdem o trono de Roma. A autora afirma que certamente o tema escolhido não é muito popular, já que foram encontradas apenas três representações dele. No entanto, ressalta que no período de produção das urnas as relações entre as cidades etruscas e Roma eram cada vez mais próximas, e também que muitas cidades etruscas eram fortemente romanizadas, tornando a escolha de um tema romano para uma urna possível neste contexto. Além disso, afirma que havia muitas rivalidades entre as cidades etruscas, portanto o tema poderia perfeitamente ser lido como uma manifestação anti-Tarquinia, e não anti-etrusca. Small também chama atenção para o fato de que os únicos personagens da narrativa que não tem origem etrusca são Lucrécia e seu pai, sendo possível que os etruscos tivessem uma versão própria da trama. Para a autora, na visão etrusca Lucrécia não seria um modelo de virtude, mas uma adúltera que se suicida quando percebe que será rejeitada ou abandonada pelo amante. As imagens nas urnas representariam a fuga de Sisto Tarquinio, possibilitada pela Vênus, que se interpõe entre ele e

53 MOMIGLIANO, A.The origins of Rome. In: The Cambridge Ancient History: VII, Part II: The rise of Rome to

220 BC. Cambridge University Press, 1989, p. 52-112.

54 MELLOR, R. The Roman Historians. London and New York: Routledge, 1999, p 201. 55 Idem, p. 200.

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os outros homens (Imagens I e II). Lucrécia seria a personagem morta no outro extremo e seu pai a figura masculina central que desembainha a espada para vingá-la, sendo impedido por Brutus e Colatino.56

Há também uma vertente interpretativa do nosso tempo que entende Lucrécia como adúltera. Ela é citada por Tizana Chiusi (2010), que aborda a história de Lucrécia em comparação com a de Afrania, num texto que tem como foco as relações dos dois casos com o Direito Romano. Seu texto nos informa da existência de alguns autores que acreditam ser a morte de Lucrécia resultado da atuação de um tribunal familiar, composto por seu pai e seu marido. Para estes autores, a morte de Lucrécia não seria um ato voluntário, mas uma punição resultante de sua condenação por adultério57. De todo modo, para Chiusi, apesar da existência

de processos familiares no Direito Romano para casos de adultério, a narrativa de Lívio não fornece indícios suficientes para que se afirme essa reinterpretação.58

O alcance da narrativa da desventura de Lucrécia no universo letrado romano foi bastante vasto. Rebecca Langlands (2006) apresenta um panorama geral deste alcance. A autora afirma que a história, amplamente citada, era usada como exempla nos treinos de retórica, sendo um dos raros exemplos históricos usados nos exercícios de declamação59. Lucrécia

aparece na obra de Cícero (106-43 a.C) em diversos contextos diferentes, sempre como modelo virtuoso.60 Sêneca a cita na Consolação à Marcia (c.40 d.C) para lembrar sua interlocutora o

quão virtuosas podem ser as mulheres, afirmando que Roma deve a liberdade a Bruto, e deve Bruto a Lucrécia61. Na Punica de Sílio Itálico (25-100 d.C), Lucrécia representa a gloria da

56 SMALL, Jocelyn Penny. The Death of Lucretia. American Journal of Archaeology, Vol. 80, No. 4 (Autumn,

1976), pp. 349-360

57 A autora cita como referências para esta interpretação Harald Geldner, em Lucretia und Verginia. Studien zur

Virtus der Frau in der römischen und griechischen Literatur, Diss. Mainz, 1977, p. 183 ss.; Clemens August C. Klenze, Die Cognaten und Affinen nach Römischem Recht in Vergleichung mit anderen verwandten Rechten, in «Zeitschrift für geschichtliche Rechstwissenschaft», 6, 1828, p. 26 ss.; Charles Appleton, Trois épisodes de l’histoire anciennes de Rome. Les Sabines, Lucrece, Virginie, in«Revue Historique de Droit Français et Étranger», 3, 1924, n. 4, p. 262 ss. e Antonio Guarino, “Il dossier” di Lucrezia, in Id., Le origini quiritarie. Raccolta di scritti romanistici, Napoli, Jovene, 1973, p. 121. Apud CHIUSI, Tiziana J. La fama nell’ordinamento romano. I casi di Afrania e di Lucrezia. Storia delle donne, 6/7(2010/11), pp. 89-105 .Firenze: University Press, 2011, p. 103.

58 CHIUSI, Tiziana J. La fama nell’ordinamento romano. I casi di Afrania e di Lucrezia. Storia delle donne,

6/7(2010/11), pp. 89-105 .Firenze: University Press, 2011, p. 103.

59 Langlands cita referências a Lucŕecia em Calpernicus Flaccus e Pseudo Quintiliano. In LANGLANDS, Rebecca.

Sexual morality in Ancient Rome. Cambridge : Cambridge University Press, 2006, p. 82.

60 Langlands cita as seguintes rewferências: uma passagem da República (Livro 2, 46-7), em que a história de

Lucŕecia é mobilizada para demonstrar que um homem sozinho é capaz de destruir o Estado; uma passagem de Sobre as Leis (Livro 2, 9), em que ela é usada para defender que existam leis morais eternas que ensinam aos seres humanos o que é certo ou errado; e por fim uma passagem de De finibus (Livro 2, 20), em que é citada como examplo para atacar o epicurismo. In LANGLANDS, Rebecca. Sexual morality in Ancient

Rome. Cambridge : Cambridge University Press, 2006, p. 81. 61 Sêneca. Consolação a Marcia, 16-2

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pudicitia62 do Lácio63. A tradição satírica também usa Lucrécia como referência. Marcial (c.38

– c.102 d.C) a mobiliza como modelo de castidade num de seus poemas obscenos sobre uma mulher lésbica (“Pensei que fosses o que parecia: uma casta Lucrécia”)64. Na Sátira X de

Juvenal, de fins do século I e início do século II d.C, o eu lírico afirma que, se fosse uma mãe, o destino de Lucrécia o inibiria de pedir aos céus que as filhas nascessem belas, acrescentando na sequência que beleza raramente coincide com pudicitia, e que os filhos muito belos dão muito trabalho aos pais.65

Langlands aponta ainda para indícios de que a narrativa tivesse também difusão nas classes iletradas66. A autora utiliza uma citação de Varrão, em De lingua latina (47-45 a.C) para

indicar a possibilidade de uma adaptação da história para teatro, e afirma ainda que é provável que a figura de Lucrécia fosse recuperada com frequência em cerimônias fúnebres de famílias aristocráticas que reivindicavam ser descendentes de Bruto, cerimônias estas que contavam com um público relativamente amplo67.

Para tratar da difusão do tema em ambiente italiano no período moderno, sem dúvida a versão antiga mais importante é a de Tito Lívio, na qual me deterei com um pouco mais de calma.

3.2 Tito Lívio

A narrativa sobre Lucrécia que se encontra na História de Roma parece ser fonte para boa parte das outras versões da história, e sem dúvida está entre as mais lidas e replicadas. A versão de Tito Lívio repercute muito mais na literatura posterior que as versões de Diodoro, praticamente desconhecida, e de Dionísio, sua contemporânea.

Tito Lívio nasceu entre 64 e 59 a.C, em Patavium (Pádua). Ao final da era republicana, Pádua havia se tornado um centro comercial importante e uma das cidades mais ricas da Itália (a única além de Roma com mais de 500 cidadãos com fortunas suficientes para se inscrever na

62 Para uma definição de pudicitia, ver página 27. 63 SÍLIO ITÁLICO. Punica. Livro XIII, 821-22. 64 MARCIAL. Epigrama I.90.

65 JUVENAL. Satira X, 289-298.

66 LANGLANDS, Rebecca. Sexual morality in Ancient Rome. Cambridge : Cambridge University Press, 2006, p.

80.

67 Langlands cita o seguinte trecho do De lingua Latina, de Varrão:“The time between dusk and dawn is called

the nox intempesta, as when in Cassius' Brutus Lucretia says: “he came to our home in the dead of night”. (Varrão, De lingua Latina, Livro VI, II). Acessável em http://www.thelatinlibrary.com/varro.ll6.html. A respeito dos funerais, a autora referencia Harriet Flower, em FLOWER, H.I. Ancestor masks and aristocratic power in Roman Culture. Oxford University Press, 2000, p.128-150.

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ordem equestre de Augusto). Três elementos de sua biografia perpassam a maior parte das análises a respeito de sua História de Roma Ab urbe condita (Desde as origens da cidade): suas raízes fora da capital, suas origens não aristocráticas e o fato de não ter nenhum tido nenhum tipo de experiência político-militar, ao contrário dos historiadores que o precediam na tradição romana. Sierra atribui seu pequeno envolvimento com a política romana à sua origem provinciana, afirmando que

“é lógico pensar que o ambiente da sua pátria natal influenciou a atitude de Lívio frente à política e em sua severidade moral. Lívio mostra pela ação política, como prática pessoal e como objeto de análise histórica, a insensibilidade da burguesia provinciana, à qual interessam sobretudo a paz e a estabilidade da ordem social, quer dizer, os efeitos da política, mais que seu exercício.”68

Os primeiros livros da História de Roma de Tito Lívio foram produzidos num momento de restauração da paz interna após a guerra civil. O primeiro livro, que contém a história de Roma de sua fundação até o fim da monarquia, é tradicionalmente datado como escrito entre 27 e 25 a.C.69 Com a ascensão de Otaviano, que se tornaria na sequência Augusto, Roma viveu

um período de reformas e de grande produção das artes e da erudição como um todo. De maneira geral, a produção literária do contexto da História de Roma de Tito Lívio se caracteriza por um aroma otimista. Também a escrita da História é bastante praticada, tendo havido florescimento da historiografia no final do século I a.C. 70A obra de Lívio no total consistia em

142 livros, que abarcavam inclusive a história contemporânea ao autor, do qual restaram apenas 35 livros e alguns fragmentos. .

A história de Lucrécia e seu desenrolar são os últimos eventos do primeiro livro da História de Roma, que se encerra com a queda da monarquia. Além do núcleo central já descrito, a narrativa de Lívio conta com alguns elementos que a particularizam. Ele inicia o relato narrando o cerco militar de Roma a Ardea, cidade dos rútulos. À noite, no acampamento, Colatino, Sisto Tarquinio e seus irmãos ceiam e se perguntam o que estariam fazendo suas esposas. A indagação leva a uma disputa verbal sobre quem teria a melhor esposa. Colatino propõe que eles as visitem naquele momento para resolver a contenda. A visita noturna inesperada destes homens encontraria as princesas de Roma festejando num banquete, e Lucrécia fiando castamente com suas escravas. Segundo Lívio, foi nesse momento que o

68 SIERRA, Angel. Introdución general. In: Historia de Roma desde su fundación. Libros I-III. Madri : Editorial

Gredos, 1997, 1ª reimpressão. 1ª Edição 1990. Citado por MITRAUD, Carlos Augusto. História e Tradição no Livro I de Tito Lívio. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, p.32

69 WALSH, P.G. Livy’s Historical Aims and Methods. Cambridge: Cambridge University Press, 1961, p.8. 70 MITRAUD, p.35

Referências

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