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V. Guido Reni e o tema de Lucrécia no Seiscentos

5.5. Lucrécia solitária, olhos marejados para cima

Passo, agora, a algumas considerações a respeito do olhar que se volta para o alto nas Lucrécias de Reni.Vastamente explorado na obra do artista, tem duas referências principais apontadas na bibliografia, a Niobe antiga (Imagem A) e O êxtase de Santa Cecilia, de Rafael (Imagem B).

O conjunto escultórico da Niobe e seus filhos, hoje na Galleria degli Uffizi, chegou ao museu em 1781. As esculturas anteriormente faziam parte da coleção da Villa Medici em Roma. São provavelmente cópias romanas de originais helenísticos, desenterrados em 1583. Em geral, os biógrafos de Reni são contundentes em citar a importância do estudo do Antigo para ele. Malvasia relata que Reni teria ficado indignado com o fato de atribuírem a excelência de sua arte a um “dom celeste”, e que teria perguntado: “essas perfeitas ideias, que querem que me sejam revelada por uma sonhada visão beatífica, não são reveladas a quem quer que seja e não as descobrem qualquer um que estudar as belas cabeças das estátuas antigas, como eu fiz por oito anos contínuos (...)?”385. Scanelli afirma mesmo que Guido "dissegnò replicatamente il tutto dell'Antichità”. Em relação especificamente aos modelos antigos que se relacionam a suas

figuras que olham para o alto, há algumas passagens de interesse. Bellori menciona que no período que esteve em Roma, Reni teria copiado diversas vezes o grupo estatuário de Niobe e

seus filhos, cuja referência teria aproveitado em suas Madalenas, Lucrécias e Madonas que olham para o alto 386. Passeri afirma que Reni possuia moldes em gesso da Niobe e da Vênus

Medici387. Lanzi reitera que a Niobe e a Vênus Medici estão entre exemplares mais caros a Guido, de maneira que seria comum encontrar alguma Niobe em suas obras, que ele no entanto sabia “variar com habilidade”. 388 Para Ebert-Schifferer, é possível que Reni já conhecesse o

grupo de Niobe mesmo antes de sua primeira estadia em Roma, uma vez que após a descoberta do grupo escultórico, em 1583, foram difundidas gravuras feitas a partir dele desde 1594, e elas circularam por boa parte da península389.

É relevante ressaltar que o “antigo” que compõe o repertório figurativo de Reni vem de diversas referências , não só de seu estudo da escultura Antiga no período romano. Emiliani cita como o clássico chega ao pintor através das gravuras, citando como exemplos as de Raimondi e Francia. 390 Os dois pintores realizaram obras com o tema do suicídio de Lucrécia, sendo a de Raimondi (Imagem VII) certamente conhecida por Reni. Para Ebert-Schifferer, a figura da Niobe seria uma espécie de “elemento catalisador” no processo de recriação do modelo do olhar que se volta pro alto de Reni, uma vez que “o terreno já estava pronto para a transposição em âmbito cristão de tal motivo”. Ele aparece em Francia e mesmo em Perugino391,

para além da já citada Santa Cecilia de Rafael.

Por sua vez, a importância do Êxtase de Santa Cecília de Rafael para os pintores bolonheses como um todo foi enorme. Desde sua chegada na cidade, c.1518, foi considerada um marco de modernidade, tendo sido estudada minuciosamente por Reni, segundo Bellori desde seu período no ateliê de Calvaert. Foi uma cópia dela que Reni levou como apresentação em sua primeira incursão romana, para se inserir nos círculos ligados ao Cardeal Baronio, que se esforçavam por retomar a força e o modelo estético do primeiros anos do cristianismo. Trata- se, portanto, de uma peça central na constituição da obra de Reni. A postura inclinada de sua cabeça, com os olhos voltados para o céu, gerou enorme fortuna posterior.

386 BELLORI, G.P. Op.cit., p.529.

387 PASSERI

388 Ciatdo por MAZZA, A. GUIDO RENI: 1575-1642. Catalogo da exposição. Bologna: Nuova Alfa Editoriale,

1988, p. 124

389 EBERT-SCHIFFERER, S. Maddalena (A4). In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e SCHLEIER, E.

(org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988, p.122

390EMILIANI, a. Guido Reni: dall'armonia metafisica alla disillusione empirica. In: EBERT-SCHIFFERER, S.;

EMILIANI, A. e SCHLEIER, E. (org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988. Il Guercino. Catalogo critico dei disegni, Catalogo della mostra di D. Mahon, Palazzo de Bologna 1968, p.54.

Segundo Ebert-Schifferer, o Êxtase de Santa Cecilia foi encomendado a Rafael pela beata Elena Dugliogli e pelo cardeal Lorenzo Pucci, ambos bolonheses. Elena publicou suas confissões e o culto a ela tornou-se popular em Bologna logo que morreu, em 1520 (sendo beatificada somente no século XIX). Há apontamentos que indicam participação tanto de Dugliogli quanto de Pucci na escolha do tema da obra de Rafael. Por isso, haveria opções imbricadas na fatura da Santa Cecilia de Rafael diretamente relacionadas a uma religiosidade específica de Bologna no inicio do século XVI. Tal religiosidade, por sua vez, seria parte de um panorama mais amplo das primeiras tentativas de reforma da Igreja, com Leão X, que Röttgen chama de “pre-contrareformista”. Reni estaria portanto se dirigindo também a esta tradição católica bolonhesa “pré-contrareformista” quando produz o modelo da figura solitária que olha para o alto, tão importante para a pintura posterior. 392

Varignana elenca algumas referências que destacam a importância dos olhos nas expressões e que circulavam na época. Ela cita Pseudo-Longino e a percepção que é através dos olhos que se revela melhor a impudenza, e o acadêmico Giovanni Capponi, que escreve uma dissertação a respeito dos olhos e sua função, destacando a sua nobreza já “que deles vem, e por eles entra o Amor, e só com eles se goza a verdadeira felicidade do amor”, embasada na ideia mais geral que "nada está no intelecto que antes não estava nos sentidos" 393. Pensando

especificamente num discurso passível de estar disponível para Rafael ao fazer sua Santa Cecília, destaca a sugestão de Quintiliano de que os olhos tem efeito máximo na expressão pois “deixam transparecer o estado de ânimo "sem a necessidade de movimentos" [tradução minha]394.

Francesca Valli, em análise sobre as santas mártires de Reni395, aqui exemplificadas pela

Santa Cecilia (Imagem M ), traz referências importantes para a reflexão acerca do olhar que se volta para o alto. A autora afirma que este olhar aparece como referência para uma postura fortemente devocional em Lomazzo, que afirma estar “nell’ azar gli occhi al cielo.... la Contemplazione”396, e também na iconologia de Cesare Ripa, em dois verbetes diferentes. Em Desiderio verso Iddio (Imagem P), o olhar para o alto integra uma postura que em conjunto

392 EBERT-SCHIFFERER, S. Maddalena (A4). In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e SCHLEIER, E.

(org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988, p.124.

393 VARIGNANA, F. La Scena Di Guido Reni . In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e SCHLEIER, E.

(org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988. Il Guercino, p.104

394 VARIGNANA, F. La Scena Di Guido Reni . In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e SCHLEIER, E.

(org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988. Il Guercino, p.104

395 VALLI, F. Santa Catarina. In GUIDO RENI: 1575-1642. Catalogo da exposição. Bologna: Nuova Alfa

Editoriale, 1988, p. CXX.

com a mão esquerda ao peito e o braço direito estendido demonstraria que “devem as obras, os olhos, o coração e todas as coisas em nós se voltar para Deus” por conta “de nosso dívida, que é infinita segundo o mérito da sua bondade.”[tradução minha]397 Em Dispreggio del mondo

(Imagem Q), o olhar se volta para o céu porque desprezar as coisas do mundo (como as riquezas e as honras) seria reflexo "de pensamentos e estímulos santos, endereçados a Deus somente" [tradução minha].

Ainda que a referência à Santa Cecilia de Rafael seja incontornável, segundo Valli a própria liturgia pós-tridentina já havia utilizado diversas das pinturas de Rafael como repertório para seu material devocional, estando as formas criadas pelo pintor bastante difundidas. Além disso, à referência à Rafel não explica a apresentação solitária, em meia- figura, cercada por um fundo escuro e com referência sintética aos seus atributos. Tal apresentação é compartilhada pela Santa Catarina do Museu do Prado, pela Santa Cecília do Norton Simon Museum (Imagem M) e pela Santa Margherita de Münster. Valli ressalta a importância da relação com as gravuras bastante difundidas de mártires, como as de Agostino Carracci (Imagem L) para compreender esse tipo de meia figura solitária, despojada de outros elementos e de forte ênfase retórica no gesto, sendo também visível a relação com a gravura de Dürer e a importância do desenho nos próprios panejamentos das santas citadas.

Assim, as prováveis referências visuais principais de Reni para o olhar de Lucrécia nos apresentam dois modelos implícitos: o de Niobe, rainha antiga que se desespera pela morte dos filhos como punição severa dos deuses por sua hubris, e o da santa mártir dos primeiros anos do cristianismo. A aproximação entre Lucrécia e figuras de mártires é de particular interesse, uma vez que se revela também no teatro do período, se desenrolando em relações inusitadas para um leitor do século XXI.

A respeito da representação do suicídio de Lucrécia a partir da figura feminina solitária, Cristina Casali Pedrielli fala em “interpretação essencial do episódio” e cita Schlegel, para quem nas obras Reni "as figuras eram somente as que ele considerasse oportuno aproximar do espectador, enquanto evitava qualquer estrutura cênica"398. Röttgen afirma que se pode

encontrar na pintura Romana imediatamente anterior a 1600, ou seja, a pintura que antecedia a chegada de Reni à cidade, monumentais figuras isoladas como as que caracterizariam a obra do pintor399, citando como exemplo o transepto de San Giovanni in Laterano. O modelo de

397RIPA, Cesare. Della Novissima Iconologia. Padova: Pietro Paolo Tozzi, 1625, p. 163-164.

398SCHLEGEL, U. Bernini und Guido Reni, Jahrbuch der Berliner Museen, n 27 (1985), pp 101-145. Apud

PEDRIELLI, C. A. GUIDO RENI: 1575-1642. Catalogo da exposição. Bologna: Nuova Alfa Editoriale, 1988, p. 186.

composição em que a figura solitária está em pé, em frente a um fundo despojado, quase sintético, seria denominado por Hibbard de amor vacui e, segundo Rötgen, é uma invenção duradoura de Reni. Ele aponta como referências para tal modelo a Santa Margherita de Rafael, hoje no Louvre, e de Tiziano a Lucrécia da Hampton Court e o São João Batista da Accademia, em Veneza400. Röttgen afirma que a partir dos quadros profanos de Reni feitos para galerias,

como é o caso das suas Lucrécias, surge um modelo que abre “novas perspectivas para o repertório figurativo” da pintura, se espalhando primeiro por Bolonha e mais tardiamente, no Setecentos, em Roma. Cita como características a “redução do espaço de ação, os movimentos lassos dos corpos, como impulsionados por uma força centrífuga, e o elemento expressivo patético da pose alcançado em uma figura isolada” [tradução minha] e afirma que tal sucesso se dá graças à insistências nos temas que permitem ousadia formal do pintor.401 Ainda pensando

na apresentação sintética do ponto de vista narrativo da maior parte das Lucrécias, também verificada na Lucrécia do MASP, pode ser útil levar em consideração a reflexão de Ebert- Schifferer, para quem esta apresentação e o fato de ser dada pouca atenção à fatura dos atributos que permitem identificar as heroínas (a cobra no caso de Cleópatra, a adaga no caso de Lucrécia) demonstra que Reni se preocupava pouco com a história e muito com o que ela vai chamar de

“contenuto di stato d'animo” das obras – que no caso das heroínas ela descreve como um

“sentimento elegíaco de dissolver-se e transcorrer, do olhar, da vida, da forma que se esvai na transparência (...) e do colorido frio que vai se tornando pálido” [tradução minha] . 402

Se a observação destes elementos separadamente ilumina a questão, pensar o impacto gerado pelo conjunto da figura isolada que olha para o alto pode também nos propriciar importantes relações. Tal conjunto é por vezes descrito como sacrificial, e em outras como meditativo, ambas nuances que podem ser exploradas em relação com a literatura.

5.5.2. Lucrécia e o sacrifício: santas mártires, teatro e pensamento neoestóico

A ligação com a representação visual das santas mártires, perceptível nas Santas citadas de Reni e pela relação com a Santa Cecília de Rafael, nos leva a algumas indagações

EMILIANI, A. e SCHLEIER, E. (org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988, p.549.

400 In: ROTTGEN, S.Guido Reni e la pittura romana nel Seicento e nel Settecento. In: EBERT-SCHIFFERER, S.;

EMILIANI, A. e SCHLEIER, E. (org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988, p.558.

401 Idem, p.559.

402 EBERT-SCHIFFERER, S. Cleopatra (A36). In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e SCHLEIER, E.

importantes. É patente na maior parte das narrativas que a temática do sacrifício é usualmente levantada quando se pensa na história de Lucrécia. Seu ato extremo é entendido como sacrifício em nome da pudicitia ou da liberdade de Roma na quase totalidade dos textos abordados até agora. Em todos os textos, Lucrécia afirma preocupação com a possibilidade de que justifiquem o adultério com base em seu exemplo. Em Salutati e Bandello, defende a necessidade de morrer para evitar que a luxúria se espalhe por Roma a partir do ocorrido com ela. Lucrécia é um heroína antiga que se sacrifica. Seu sacrifício é amplamente aceito pelos antigos, sendo o tipo de situação em que, de um ponto de vista estoico, o suicídio é inclusive recomendável. Seria possível um herói antigo ser considerado mártir?

Philippe Bousquet traz algumas considerações, em importante estudo sobre a representação de Lucrécia no teatro francês do século XVII. O autor enuncia alguns apontamentos sobre o que definiria um mártir cristão [a tradução é minha]. Doando sua vida, o mártir é aquele que mostra que “despreza absolutamente todos os bens da terra” e ama “os bens invisíveis do porvir”. Ele “se apega de uma maneira inabalável ao Bem porque o perigo iminente da morte não pode lhe fazer abandonar a verdade e a justiça”403 e deve “até o fim,

provar paciência e firmeza” perante quem o persegue. Tais virtudes, por outro lado, só tem importância se sua motivação for correta. A motivação é que diferencia o martir cristão de um herói outro. Para Tomás de Aquino, o mártir cristão “manifesta muito mais a caridade que a força” pois o perseguidor do mártir necessariamente é alguém que ataca a fé cristã. Para Bousquet, há aproximação entre as virtudes demonstradas por Lucrécia e as virtudes comuns aos mártires. O autor enumera que“ela resiste ao crime por causa de sua virtude”, “se desapega dos bens do mundo e da facilidade”, “sofre (...) até a morte as consequências do ato de Sexto, seu perseguidor, que atenta contra sua virtude primeira, a castidade”. Bousquet destaca que ao atacar a esposa exemplar, Sexto “ataca a castidade, o caráter sagrado do casamento e de forma mais geral a sociedade”. Se o mártir cristão morre por caridade, ou seja, morre em defesa da cristandade pois em defesa da fé, Lucrécia morre em defesa de Roma. Uma espécie de parentesco com os mártires cristãos é levantado desde os primeiros pais de Igreja que falam sobre a heroína, e vai se acentuar no processo iniciado ao longo do Renascimento

A aproximação entre o herói antigo e o mártir cristão pode ser vista de forma mais nítida por uma particularidade do fim do século XVI. O termo constantia indica uma virtude romana antiga que poderíamos traduzir como firmeza de caráter, firmeza aos principios, fortemente

403 BOUSQUET, Philippe. Les Lucrèce classiques : suicide et héroïsme féminins au Grand Siècle. Tese de doutorado em Littérature française. Université Paris-Sorbonne 4. Paris, 2004. Microficha., P.245-6

valorizada pelo pensamento estóico. O termo seria usado até 1650, especialmente pelos pensadores neoestoicos como Lipsio e Du Vair, para designar ao mesmo tempo a atitude dos heróis pagãos e dos mártires cristãos, embora originalmente o pensamento cristão não use extensamente esta palavra, preferindo fortitude e patientia.404 Bousquet e Tarrête sustentam que

o uso comum da constantia seja uma espécie de ligação lexical entre cristãos e estoicos, já que o vocábulo vem de fato do estoicismo antigo405. Num movimento característico, os neoestoicos

empreenderiam grande esforço para inocular virtudes cristãs na história pagã. No caso do tema dos heróis antigos, via de regra a abordagem parte da ideia de que o heroísmo pagão prefigura o cristão, e assim Lucrécia também seria uma espécie de mártir de um mundo anterior à revelação. O trabalho de Roger Zuber destaca a importâncida dos jesuitas neste processo406, já

que “eles apresentam a seus contemporaneos os antigos não como “pagãos negadores” mas como os “artifices do solo sobre o qual prosperará a Igreja””407.Assim, é claro, devem ser

ressaltadas as grandes diferenças entre o herói estoico antigo e o mártir. Sobretudo, o mártir nunca escolhe o momento em que vai morrer: não lhe cabe essa decisão, apenas enfrentar os suplícios e a morte em nome de sua causa. O importante aqui é destacar que por conta disso a questão do suicídio se coloca, então, ao mesmo tempo, como um entrave à cristianização da figura de Lucrécia, e um recurso usado para defender a superioridade do heroísmo cristão perante o antigo. Faz-se necessário, portanto, entender quais eram as mediações morais e filosóficas do período em relação ao suicídio, para que se consiga compreender essa aproximação de um figura como Lucrécia dos cristãos mártires.

O panorama moral e filosófico acerca do suicídio nos séculos XVI e XVII é extremamente complexo. A condenação religiosa é explicita como nos deixa ver o catecismo do Concilio de Trento (1544-1563), na sessão em que se dedica a discutir o quinto mandamento. Admitem-se exceções em que o homicídio é permitido408, mas a morte de si é injustificável :

Quanto à vitima de um homicídio, este preceito abrange todos os homens. Não há pessoa, por mais humilde e desprezível, que não seja protegida pela força deste Preceito. A ninguém, tampouco, é permitido suicidar-se, porque ninguém dispõe assim de sua vida, que possa a seu talante procurar a morte de própria mão. Por isso, o preceito não tem por teor as palavras: “Não mates a outrem", mas diz simplesmente: "Não mates.409

404 405 BOUSQUET 406 BOUSQUET, P. 239 407 BOUSQUET P. 239 408 BOUSQUET, p.170;

409 Parte III, Capitulo VI, parágrafo 10. A versão aqui citada é a edição brasileira de 1951 do Catecismo Tridentino.

Para chegar na posição dos neoestoicos, aqui citados, relaciono brevemente um número limitado de autores, mobilizados principalmente no trabalho de Bousquet, que se dedicaram a discutir especificamente os suicidas famosos antigos.

No que tange a eles, chama atenção a variedade de posições. Existem, é claro, os posicionamentos de condenação total da escolha feitas por estas personagens históricas, em consonância com o posicionamento geral cristão de Agostinho de Hipona. É o caso de São Francisco de Sales, para quem Catão e Lucrécia não mereceriam nossa admiração, pois pecaram por excesso de vaidade, devendo ser o modelo, por outro lado, os mártires cristãos.410

Também Luis López, teólogo espanhol (1520-1596), afirma que suicídio é atitude de ingratidão com Deus, não havendo justificativa plausível para os suicídios antigos411. Père Richeome

(1544-1625), teólogo jesuíta, ao falar sobre Catão, afirma que ele se matou extenuado pelo vício do orgulho, não havendo nele nada a ser admirado412, no que concorda La Motte-Messemé

(1549-1597?), poeta, para quem Catão é um “pusilânime”413. A condenação aos suicidas

clássicos também ocorre fora dos domínios da teologia. Petrarca414, em seu De remediis utriusque fortunae, posiciona-se contra o suicídio sem usar as escrituras ou os pais da Igreja,

mas através argumentos da cultura clássica greco-latina. O autor cria um diálogo entre Dolor e Ratio em que retoma que se matar é contra a natureza humana e que um homem digno tudo deve suportar. Compara Catão a Brutus, dizendo que Catão não teve coragem de encarar o tirano, enquanto Brutus ao menos o apunhalou. Henri Estienne415(1528-1598), humanista

francês, em sua sátira da sociedade do século XVI, associa a morte de si ao diabo, coloca os suicidas entre os homicidas, e afirma a superioridade da cristandade em relação aos antigos, por sempre ter condenado o suicídio. Jean Baptiste Chassignet416 (1571-1635), humanista e poeta

próximo das correntes estóicas cristãs, condena sem exceções o ato do suicídio em seus sonetos. Há também os posicionamentos que condenam o suicídio dos antigos, mas diminuem