• Nenhum resultado encontrado

V. Guido Reni e o tema de Lucrécia no Seiscentos

5.6 O lugar de Lucrécia nas coleções de arte do Seiscentos

O tema do suicídio de Lucrécia encontrava mercado e agradava ao gosto da época. Este mercado atingiria que tipos de pessoas?

484 HÉNIN, Emanuelle. Idem. 485 HÉNIN, Emanuelle. Idem.

O perfil do consumidor de arte na Bolonha do Seiscentos era bastante variado. Raffaella Morselli indica que, ao contrário do que ocorria em outras cidades italianas, em Bolonha uma ampla gama de profissões e classes sociais comprava obras de arte. Em repertório fundamental sobre as coleções privadas bolonhesas, a autora analisa quase mil inventários de coleções de diversos tamanhos (de no mínimo dez obras), que mostram que todas as classe sociais a partir da classe média baixa adquiriam obras no mercado de arte bolonhês – a autora cita coleções constituídas ao longo da vida por contadores, atores, músicos, notários, farmacêuticos, boticários, professores universitários, barbeiros, livreiros, ferreiros, açougueiros, donos de estalagens, alfaiates, entre muitas outras ocupações. Menciona também que por toda a cidade havia lojas de imagens devocionais, visando principalmente os estrangeiros, e nelas eram comercializadas muitas cópias de obras de Reni. 487

Sabemos, pela repetição do tema e pela grande quantidade de cópias conhecidas hoje, que as Lucrécias eram obras que vendiam bem, desfrutando portanto de popularidade perante compradores de arte. As colocações levantadas por Morselli são importantes no sentido de trazer complexidade ao que exatamente significa pensar o público a que apraziam as Lucrécias de Reni. Elas não são obras públicas, mas de fruição privada, e um quadro de Reni não era jamais de valor banal, ainda que fosse uma obra menor ou não terminada488. Ainda assim, a

popularidade do tema provavelmente fez com que suas versões fossem mais conhecidas do que se poderia presumir num primeiro momento (para quadros feitos para galerias particulares), graças a esse mercado bolonhês amplo em que suas composições para o suicídio de Lucrécia provavelmente se difundiram em cópias e versões de artistas menores, ou ainda em desenhos e gravuras.

Uma vez na galeria particular, que local ocupariam as Lucrécias?

Em 1614, Giulio Mancini escreveria seu Discorso di pittura, em que, entre outras coisas, aparece a intenção de instruir um “uomo di gusto” para que saiba escolher, comprar e expor obras de arte, seja para si, seja a serviço de um príncipe.489 Discutindo como devem ser

expostas as obras de arte, Mancini aponta diversas vezes, por exemplo, para necessidade de distinção entre alas da casa as quais hóspedes tem acesso e os apartamentos privados. Indica que as obras devem ser colocadas tendo em mente “costume et affetti che possono indurre

487 MORSELLI, R. Bologna. Apud SPEAR, R. e SOHM, P .Painting for profit : the economic lives of seventeenth-

century Italian painters. New Haven ; London: Yale University press, 2010, p.148.

488 Sobre os valores cobrados por Reni, ver MORSELLI, R. Bologna. Apud SPEAR, R. e SOHM, P .Painting for

profit : the economic lives of seventeenth-century Italian painters. New Haven ; London: Yale University press, 2010, p.

489 MANCINI, Giulio. Considerazioni sulla pittura (publicado por Adriana Marucchi com comentários de Luigi

nell’essere riguardate”490. Segundo Mazzaferro, pinturas lascivas, por exemplo, deviam ser

reservadas para locais em que o príncipe buscaria as atenções da esposa. No quarto de dormir deviam estar Cristo, a Virgem, Santos. Vasos antigos, ou fragmentos de afrescos, por sua vez, iriam bem em estúdios. Mazzaferro afirma que pinturas ‘d’attion civili, o di pace o di

guerra’491, ou seja, pinturas históricas, de tema profanos, retratos de Papas, príncipes da Igreja,

Reis eram aconselháveis em salas acessíveis aos hospedes, que podiam também comportar emblemas que demarcassem simbolicamente a importância da família. Nas galerias, que são num primeiro momento locais de passagem, paisagens e mapas são bem vindos. Mancini também afirma que havendo local pode-se fazer mais galerias, e sugere organizar as obras cronologicamente ou então por escola e gênero. Como notado por Mazzaferro, “ambas as soluções parecem pensar mais na fruição do publico visitante que na do proprietário”[tradução minha]492.

O texto de Mancini, que certamente tem em mente as enormes mansões romanas do período, nos permite acessar que tipo de preocupação podeira passar pela cabeça dos homens de posses do Seiscentos quando pensavam nas decorações de suas opulentas habitações. É significativo que apareça como diretriz que se leve em consideração os afetos gerados por cada obra, já que são eles que as tornam mais ou menos adequadas para cada parte do palazzo. O foco na recepção do público que observaria as obras (e também o conjunto formado por elas), embora certamente não fosse uma regra aplicada igualmente por todos os colecionadores, é um indício interessante da função que uma obra de arte de fruição privada poderia exercer no período. O investimento em vastas coleções de pinturas e esculturas, de maneira a ocupar todos os espaços possíveis na decoração, acaba por se constituir num padrão ao longo do século XVII, por vezes guiado pelo tão falado horror vacui. Se os afetos e apresença dos espectadores era tão essencial, pode-se pensar que, além de construir um conjunto simbólico correspondente ao poder e importância da família que ocupava a casa, as preocupações destas decorações passassem por, por exemplo, gerar temas de conversação entre os donos e os frequentadores dos palácios. Desta maneira, as obras escolhidas também teriam poderiam ser pensadas como parte de conjuntos literários, morais ou filosóficos que remetessem a tópicos de interesse do período.

Neste sentido, as pinturas sobre Lucrécia seriam bastante instigantes, uma vez que

490 MANCINI, Giulio. Op.cit., , p.147. 491 MANCINI, Giulio. Op.cit., p.

492 MAZZAFERRO, G. Giulio Mancini. In: Letteratura artística: Cross-cultural Studies in Art History Sources.

como vimos remeteriam a temas como fidelidade matrimonial, morte voluntária, sacríficio, tirania e também, como veremos, ao ambiente teatral da época, além de eventual apelo erótico. A partir do já citado trabalho de Raffaella Morselli493, reuni algumas informações sobre

pinturas acerca do Suicídio de Lucrécia em coleções particulares bolonhesas ao longo do período abordado pelo repertório, que compila inventários produzidos entre 1640 e 1707. As informações estão detalhadas na tabela I. Uma breve análise revela vinte pinturas sobre o tema. Além dessas, há uma entrada confusa, citada no inventário de Corrado Ariosti, que menciona uma Lucrécia em figura inteira “giacente in letto col serpe all petto”494 [ jazendo na cama com

a serpente no peito], o que indica que devia provavelmente tratar-se de uma Cleópatra. A confusão do inventariante é um excelente exemplo de como ambos os temas estavam imbricados na pintura do e possivelmente no imaginário do período. Os proprietários são donos de coleções de tamanhos variados, indo de pequenas coleções de dezessete pinturas a prolíficos conjuntos de quatrocentas obras. Em termos do que se ocupam, os proprietários das pinturas sobre Lucrécia são mercadores (4), banqueiros (3), tem cargos públicos na cidade ou no papado (2), havendo quatro cuja ocupação principal é seu título de nobreza e também um fabricante de vidros, um nobre marchand, um doutor em leis e um dentista-barbeiro. A riqueza da documentação repertoriada é tanta que nos permite saber em algumas casos em que parte da casa estava a pintura por ocasião do inventário, e que outras pinturas a acompanhavam. De forma geral, a leitura dos registros mostra que os quadros sobre Lucrécia foram registrados em salas, junto com diversas outras obras. Em apenas um dos registros uma Lucrécia ocupava um espaço na sala principal do palazzo. Nos demais, ela parece compor a decoração de salas contíguas a salas maiores. Há também registros em que pinturas com o tema de Lucrécia decoram paredes de uma sala designada como “galeria”, de um estúdio e também de uma espécie de antessala (ver na tabela respectivamente Sedazzi, Davia e Marchesini). A respeito das funções da salas, apenas algumas casas são descritas de maneira que possamos elocubrar a respeito. No caso dos Brusia , sabemos que a sala onde havia uma Lucrécia estava na parte superior da casa, que era reservada para uso recreativo dos proprietários. A título de hipótese, poderíamos pensar as partes da casa reservadas para uso recreativo provavelmente eram frequentadas por convidados da família, o que converge com a ideia apresentada acima de uma decoração voltada para apreciação deste público. Morselli observa que na sala em questão

493 MORSELLI, Raffaella. Collezioni e quadrerie nella Bologna del Seicento: inventari 1640-1707. Coautoria

de Anna Cera Sones. Los Angeles, CA: J. Paul Getty Information Institute, 1998. xi, 681 p., ill., 25 cm. (Documents for the history of collecting, 3). Italian inventories)..

havia em uma parede pinturas cujas temas eram o Beato Felice, S. Francisco e a Pietà, e na parede oposta, em frente, uma Circe, uma pastora, uma Lucrécia e um triunfo de Baco, ao que considera que seria "como se os dois gêneros, sacro e profano, se confrontassem, um de frente para o outro"495. Por sua vez, na coleção dos Davia, registra-se uma Lucrécia decorando o sexto

e ultimo cômodo contiguo à primeira saleta do apartamento de baixo. Na enorme casa, se acessava tal aposento depois de se passar por essa saleta onde se faziam refeições, por uma sala onde a dona da casa trabalhava com outras mulheres, por três quartos pequenos e por fim por um grande quarto de dormir usado pela dona da casa496.No caso da Lucrécia em posse dos

Davia, teria o cômodo uma característica mais privada, por ser contíguo a um quarto de dormir? Se sim, estaria Lucrécia na decoração sob a égide de modelo de virtude matrimonial?

De todo modo, parece possível a partir da leitura do repertório afirmar não ser usual no colecionismo bolonhês destinar pinturas sobre Lucrécia a ambientes como quartos de dormir, alcovas ou estúdios particulares.

Sobre os conjuntos decorativos de cada aposento, acredito ser uma análise que exigiria um estudo de maior fôlego. De todo modo, Morselli sugere haver um programa iconográfico preciso na decoração da sala da coleção Cucchi, em que a Lucrécia inventariada era acompanhada de outras quatro telas, cujos temas eram Aracne, uma alegoria da Astrologia, uma mulher que se penteia e um Hércules com leão.

Ainda sobre possíveis leituras do tema nas coleções do Seiscentos, há indícios de que com uma certa frequência obras sobre Lucrécia fossem exibidas em pendant com outras mulheres famosas, como Judite ou Cleópatra. Cito alguns casos, a título ilustrativo. Há registros de que o Cardeal Bernardino Spada teria encomendado uma cópia desta obra em conjunto com uma cópia da Judite com a cabeça de Holofernes, hoje em Genebra na coleção Sedlmajer.497

Também na coleção de Angiolilla Girolimetto, hoje no museu de Cesena, registra-se uma

Lucrécia em pendant com uma Judite498. Corrado Ricci afirma que o número de arranjos

conjuntos entre obras sobre Lucrécia e sobre Cleopatra é notável no Quinhentos, e cresce exponencialmente no Seiscentos. A aproximação formal e mesmo de dimensões entre a

495 MORSELLI, Raffaella. Collezioni e quadrerie nella Bologna del Seicento: inventari 1640-1707. Coautoria

de Anna Cera Sones. Los Angeles, CA: J. Paul Getty Information Institute, 1998. xi, 681 p., ill., 25 cm. (Documents for the history of collecting, 3). Italian inventories), p.121.

496 Idem, p. 202-207

497 EBERT-SCHIFFERER, S. Il suicídio di Lucrezia (A15). In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e

SCHLEIER, E. (org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988, p.160.

498 SACCOMANI, Elisabetta.In MUSEO CIVICO DI PADOVA. Da Padovanino a Tiepolo: dipinti dei Musei

civici di Padova del Seicento e Settecento. Coautoria de D. (Davide) Banzato, Adriano Mariuz, Giuseppe Pavanello. Milano: F. Motta, 1997, p.444-445.

Cleópatra Pitti de Reni e sua Lucrécia hoje na coleção Silvano Lodi é indicativa também deste

pareamento na decoração. Ainda, Lucrécia aparece fazendo par com uma Cleópatra na coleção de Giovanni Francesco Davia (ref. Tabela I) e com uma guerreira que corta os próprios cabelos, na coleção Andrea Cattalani. Quais sentidos esses pareamentos podem revelar?

Para Ricci, os pendants de Lucrécia e Cleópatra exploravam o “contraste dramático e sentimental entre duas belas e florescentes mulheres que se matavam”499 . Elocubrando a

respeito, faria sentido pensar que num par Lucrécia – Judite, Lucrécia remeteria à beleza física que traz a ruina, à castidade que não é capaz de levar a salvação pois ela se torna homicida de si e é pagã. Judite, por sua vez, se caracteriza pela beleza física usada para sedução e homicidio, ambos perdoáveis por que realizados por vontade de Deus e através da fé. Embutidas em ambas narrativas, questões relacionadas à tirania e à libertação de seus povos. No caso da dupla Cleopatra- Lucrécia, teríamos duas figuras da história romana famosas por seus suicídios, porém uma famosa por sua castidade, a outra por sua luxúria. Tal pareamento contemplaria um contraste entre opostos muito adequaada ao gosto do período. É preciosa a esse respeito a ideia exposta por Rossoni afirma que afirma que se pode observar uma espécie de “progressão na dimensão da ‘culpa’ da mulher sedutora” nas representações feitos por Reni de Judite, Lucrécia e Cleópatra. Assim, Judite seria representada inteiramente vestida, em pose frontal, decidida, alinhada e heroica. Lucrécia seria representada semi-descomposta, num equilíbrio instável próximo à cama e Cleopatra seria representada totalmente apoiada no leito e quase completamente nua 500.

499RICCI, Corrado. Il Cagnacci e Lucrezia Romana. Roma : Tipografia Editrice Romana, 1915, p. 21.

500 ROSSONI, Elena. Le interpretazioni di una tragica scelta: Lucrezia Romana da Parmigianino a Guido Reni. In Lucrezia romana : la virtù delle donne da Raffaello a Reni. Catálogo da Mostra em Parma, Galleria Nazionale - Palazzo della Pilotta, 26 settembre 2016 - 8 gennaio 2017. Cinisello Balsamo : Silvana, 2016, P.108