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V. Guido Reni e o tema de Lucrécia no Seiscentos

5.3. Lucrécia teatral

A análise das Lucrécias de Guido Reni traz o teatro como elemento incontornável, que aparece de forma variada na historiografia especializada a seu respeito. Como elementos formais que fornecem algum lastro da relação das Lucrécias de Reni com o teatro de sua época podemos citar as posturas marcadamente dramáticas, as vestes cênicas (em especial na Lucrécia de Potsdam), o gesto exagerado e a iluminação que são comum a todas elas.

Varignana afirma que a presença de personagens como Lucrécia e Cleópatra isoladas

311SPEAR, Richard.The "Divine" Guido: religion, sex, money, and art in the world of Guido Reni. New Haven:

se relaciona ao teatro da época, que comportava com frequência solos recitativos de protagonistas femininas.312 Para ela, frequentemente Reni escolhe representar em suas obras o

momento que precede o clímax da tragédia, que ao mesmo tempo permita que se entreveja as ações anteriores que a levaram até ali e a “catarse final, suscitando pietà e horror de dentro da ação, por lei de verossimilhança”313. Para Bacheschi, os suicídios de Lucrécia, bem como os

suicídios de Cleópatra, são representações melodramáticas superficiais de “verdadeiros personagens recitantes, num tipo de ficção cênica de resto cara ao gosto do tempo”314. Ebert-

Schifferer, por sua vez, ao analisar a Lucrécia de Potsdam (Imagem 2) afirma que a artificialidade que aparece nela e em outras pinturas do período de 1625 e 1626 foi por muito considerada pela crítica de Reni uma espécie de “adaptar-se desagradável ao gosto melodramático de seu tempo”315, sendo de todo modo de um forte indício das relações de Reni

com o universo teatral de seu período.

A historiografia a respeito de Reni, portanto, detecta referência ao teatro em diversos pontos de sua obra . No caso de suas Lucrécias, é comum que a bibliografia afirme que as representações por vezes se aproximam de atrizes em solos comuns na época, citando para justificar tal associação a postura, os gestos, as roupas e a iluminação dramática. Do ponto de vista da vida e da experiência do pintor, há indícios de que Reni não seria avesso ao espetáculo. O relato de Malvasia permite entrever que Reni frequentava o teatro. Caracterizando o pintor como alguém de “inclinação ressentida”, o biógrafo narra um episódio em que o pintor se indispõe com um cavalheiro que sentava ao seu lado enquanto assiste à peça.316 Colocam-se

então as seguintes questões: em primeiro lugar, a história de Lucrécia integrou o universo dramatúrgico do período? Na sequência, seria possível que Reni tivesse entrado contato de alguma forma com a heroína neste âmbito? Haveria elementos em comum na caracterização das Lucrécias dramatúrgicas e das retratadas na pintura de Reni? Tentarei explorar estas questões no tópico que se segue.

312 VARIGNANA, F. La Scena Di Guido Reni . In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e SCHLEIER, E.

(org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988. Il Guercino. Catalogo critico dei disegni, Catalogo della mostra di D. Mahon, Palazzo de Bologna 1968, p.103

313 VARIGNANA, F. Idem, p. 91 314 Idem, p. 85.

315 EBERT-SCHIFFERER, S. Il suicídio di Lucrezia (A15). In: EBERT-SCHIFFERER, S.; EMILIANI, A. e

SCHLEIER, E. (org). Guido Reni e l'Europa: fama e fortuna. Frankfurt: Schirn Kunsthalle ; Bologna: Nuova Alfa, 1988, p.162.

5.3.1. Lucrécia e o teatro no Seiscentos

Abordando o primeiro dos questionamentos acima, é importante colocar que Lucrécia não apenas compôs o universo dramatúrgico – mais que isso, a personagem protagonizou uma certa variedade de peças durante o período do Seiscentos, em sua grande maioria tragédias. Mais a frente, abordarei seis textos teatrais deste período: duas tragédias francesas e outras quatro produzidas em âmbito italiano. Alguns elementos destas peças serão retomados ao longo do capítulo, para além deste subtópico, a fim de integrar a análise de outras opções iconográficas de Reni. Este número de peças permite apontar para o estabelecimento de Lucrécia num papel menos comum anteriormente, o de protagonista de textos teatrais trágicos, como citado acima. Inicio este subtópico expondo brevemente uma trajetória da tragédia no período, de maneira a explorar possíveis elementos explicativos que surjam de uma percepção de Lucrécia como heroína trágica. Na sequência, direciono a exposição para um panorama da produção e circulação do teatro em âmbito italiano no século XVII, de maneira a especular sobre possível contato direto de Reni com esta forma particular de interpretação da dama romana.

O teatro tem um aporte muito amplo na cultura e mesmo na constituição das mentalidades seiscentistas. Não é possível falar do período sem passar pelo tema, seja pela importância do espétáculo e do texto teatral em si, seja pela sua função estruturante do próprio pensamento da época. A ideia do teatro como metáfora para o próprio mundo aparece extensamente nas artes como um todo, e de forma insistente na literatura. Nas palavras de Ezio Raimondi “a imagem do teatro constitui na cultura do Seiscentos um paradigma, um arquétipo, uma metáfora absoluta do universo, na qual, como demonstrou Weisinger, se pode reconhecer três subtipos segundo os quais o theatrum mundi equivale ou a um espetáculo a ser contemplado, ou se torna um drama que envolve também o espectador, ou faz da vida mesma um jogo cênico, uma mera ilusão, um agregado efêmero de aparência ambígua”317 [tradução

minha]. Tal condição é resultado de um processo histórico intimamente ligado à importância do teatro que se constrói nos séculos anteriores.

Observamos que a história de Lucrécia aparece principalmente em tragédias. Ao longo do século XVI (principalmente de sua segunda metade), tem início a formação e estabelecimento de um novo teatro trágico europeu, em que a Itália exerce função capital318.

Intensos debates em torno da Poética de Aristóteles, principalmente no que diz respeito à sua

317 RAIMONDI, E. Letteratura Barocca: Studi sul Seicento italiano. Firenze: Olschki, 1990, p.X.

teoria da tragédia, marcam a produção teórica e teatral deste momento, e prosseguirão pelo Seiscentos. Para Attolini, tal “revolução” no espaço teatral acompanha um contexto de novas teorias e práticas espaciais como um todo, nascidas a partir da retomada da obra de Vitrúvio.319

Segundo Ariani, a crítica laica e burguesa à sociedade pertencia ao domínio da comédia,320

enquanto a tragédia seria retomada como forma de defesa dos valores hegemônicos atacados. A tragédia humanista teria surgido alinhada à Corte, resultando também da convergência das expectativas políticas da nobreza com as dos ideólogos do classicismo321. Entre seus

argumentos em favor desta ideia, o autor cita algumas evidências, que enumero: em geral os protagonistas das tragédias eram personagens de origem nobre; grande parte dos dramaturgos responsáveis por peças trágicas do século XVI pertencia à aristocracia ou a uma alta burguesia ligada a burocracia e à Corte; por fim, as peças trágicas eram assistidas inicialmente por um público seleto e, quando este público se ampliava - segundo o autor - o evento usualmente consistia numa celebração do poder estabelecido322. Nesse sentido , Attolini destaca a

importância do teatro para que o poder senhorial fosse mostrado e confirmado, e sua relevância na tentativa deste poder de manter um “equilíbrio entre as classes que começam a delinear-se mais claramente”323. Este autor enfatiza o alto investimento feito pelas cidades italianas no

teatro por questões de ordem política324, além de seu uso pela Igreja (principalmente a da Contra

Reforma) como meio eficaz de propaganda política e religiosa325.

Um marco fundador deste teatro trágico seria a peça Orbecche (1541), de Giraldi Cinzio. Para Giraldi, a tragédia e a comédia nascem ambas da imitação da ação humana, divergindo em alguns aspectos. A tragédia seria caracterizada pela necessidade de provocar (ou conter) terror e compaixão, sendo capaz de mover os afetti do espectador326. A comédia comportaria ações

cotidianas, enquanto para a tragédia só seriam apropriadas as ilustres e reais, perpetradas por reis e grandes personagens.327 A comédia seria capaz de utilizar todos os tipos sociais, mesmo

os de condição desonesta, "ogni sorte di gente popolaresca", porque prescindiria de personagens capazes de terror e compaixão, ao contrário da tragédia, que por conta desta necessidade exigiria ser protagonizada por "persone d'alto grado", nas quais este tipo de sentimento nasceria

319 ATTOLINI, Giovanni., p. 5.

320 ARIANI, Marco (ed.). Il teatro italiano. Volume II: La tragedia del Cinquecento. Turim: Einaudi, 1977, p. X.

321 ARIANI, Marco (ed.), p. XVIII. 322 Idem, p.XI.

323ATTOLINI, Giovanni. Op. Cit., p. 6. 324 ATTOLINI, Giovanni. Op. Cit., p. 325ATTOLINI, Giovanni. Op. Cit., p. 9 326GIRALDI CINZIO, p.12.

habitualmente328. A bem dizer, há um complexo trânsito de Giraldi entre esta noção de tragédia,

mais próxima da Poética aristotélica e de Sêneca, e a influência vernacular, de autores como Boccaccio, bastante visível, por exemplo, em suas tragédias de lieto fine (final feliz). Apesar disto, é nítida para Giraldi a importância da tragédia para incutir no público bons costumes329,

de maneira a propiciar que a atenção do espectador fuja do vício e siga a virtude. A ideia de que a tragédia deve suscitar “compaixão e terror” para “purificar o público destas paixões” seria central no teatro seiscentista, trazendo para primeiro plano o efeito que o espetáculo tem no público330. No caso da França, considera-se marco inicial do ressurgimento da tragédia a Cleopátre captive, de Jodelle, de 1553331. De caráter fortemente moralizante e elegíaco, a

tragédia francesa renascentista ou humanista utilizava-se amplamente de figuras de retórica e com frequência centrava sua narrativa num grande infortúnio, precedido e seguido de lamentações. No decorrer das décadas de 1560 e 1570, observa-se um aumento progressivo do número de tragédias produzidas e encenadas em âmbito francês. O público espectador de tragédias também se ampliou, passando a contar com habitantes das cidades em geral. Essa expansão ocorreu em consonância com uma progressiva modificação no caráter e no estilo das peças, que passaram a valorizar narrativas mais movimentadas, com peripécias, paixões desenfreadas e vontades exacerbadas, sendo encenadas por trupes teatrais. Nesse contexto que é produzida a primeira Lucrécia, de Nicolas Filleul, em 1566.

O fim do século XVI viria acompanhado de uma crise dos gêneros teatrais estabelecidos ao longo de seu desenrolar332. Para Ariani, a burguesia perde o interesse no caráter crítico da

comédia com a guinada reacionária do fim do século, que combina a Contra-Reforma, dominação monárquica espanhola e uma pronunciada refeudalização do campo.333 Para ele,

com isso a cidade perdeu importância e perdeu vigor o gênero que dela dependia, a comédia. A tragédia também perderia força com o enfraquecimento da comédia. Attolini destaca o “papel subalterno do intelectual tragediógrafo” a partir do fato que estes se convertem facilmente em escritores de pastorais, peças de temática agradável, que partem de uma visão idealizada do

328GIRALDI CINZIO,Idem, p.24. 329 GIRALDI CINZIO, p.12.

330 ANGELINI, Franca. Il teatro barocco. Roma ; Bari : Laterza, stampa, 1978, p. 228.

331 DELMAS, Christian. La tragédie de l'age classique (1553-1770). Paris: Seuil, 1994, p.8 332 ANGELINI, Franca. Il teatro barocco. Roma ; Bari : Laterza, stampa, 1978, p. 228.

333 Quanto ao processo de refeudalização, durante os século XV e XVI ocorrem na península grandes mudanças

econômicas e o fortalecimento da burguesia, que não é, segundo Attolini, “plenamente consciente do próprio papel e da própria função”333. Para se impor, esta burguesia disputaria com a nobreza os privilégios de

aristocracia. As terras e privilégios dos velhos senhores feudais passaram então progressivamente às mãos do burgueses, o que se deu massivamente nas regiões de Florença e Veneza, e com algumas diferenças no litoral toscano, e em Ferrara, Mantova e Bolonha. Os descendentes desses burgueses tornados feudatários reforçariam a importância da hierarquia e dos velhos privilégios nobiliárquicos .

campo e do mundo pastoril. A cidade oferecia “perigos e crise econômica”334 a essa sociedade

que na “refeudalização dos capitais encontra uma nova segurança”335. Angelo Ingegneri afirma

que se não fossem as pastorais o palco não teria mais uso, nem os poetas cênicos.

De todo modo, permaneceria a importância da Poética aristotélica, que seria capaz de impor a partir da sua retomada no Quinhentos os temas fundamentais da tragédia barroca: “as paixões, o conflito entre homem, sociedade e poder, entre homem e destino, entre homem e providência, entre homem e Deus” ou ainda, nas palavras de Angelini , o

contraste entre livre arbítrio e necessidade,(...) o grande tema do sacrifício e do bode expiatório, necessário para reestabelecer a ordem, para purgar a cidade, para reagrupar os membros da sociedade dividida e corrompida. [tradução minha] 336

A tragédia barroca seria marcada por estes conflitos e ao mesmo tempo pela existência das Cortes,

que pedem visões trágicas, mas que convençam da necessidade dos comportamentos políticos e da necessidade do sacrifício: nesta encruzilhada, teatro laico e teatro religioso se encontram na exaltação da vítima, e também na momentânea vantagem do carrasco. [tradução minha] 337

O tema de Lucrécia, portanto, seria muito adequado a uma série de demandas da tragédia do Seiscentos, pois permitiria abordar o tema do sacrifício, tanto do ponto de vista político quanto do moral. A escolha de um episódio histórico também é muito importante na interpretação que os autores do período faziam da Poética aristotélica, pois o fato de tratar-se de episódio já conhecido auxiliaria na mobilização dos afetos338. Lucrécia se encaixaria, ainda,

na importante temática do conflito entre o indivíduo e seu destino, modificada pela abordagem da época. Como afirma Szondi, “a tragicidade do destino, peculiar da Antiguidade” se transformaria em âmbito cristão na “tragicidade da individualidade e da consciência”339. No

caso do teatro trágico da França, importantíssimo centro produtor e irradior de teatro ao longo do século XVII, parece haver um interesse específico pela figura da mulher heróica. A quantidade significativa de heroínas como protagonistas na obra de Corneille e Racine340, por

334 p. LXXIX

335 ATTOLINI, Giovanni, p. 10

336 ANGELINI, Franca. Il teatro barocco. Roma ; Bari : Laterza, stampa, 1978, p. 228. 337 Idem.

338 GIAMPETRINI, Federica. Introduzione. In: DELFINO, Giovanni. Lucrezia. Roma: Vecchiarelli Editore, p.9. 339 SZONDI, P. Saggio sul tragico. Torino, Einaudi, 1996, p.89-92. Apud ANGELINI, Franca. Il teatro barocco. Roma ; Bari : Laterza,1978, p.230.

340 Em Corneille, podemos visualizar essa significância se observarmos uma breve lista de suas peças em que

há heroínas de importância: Medéia (1635), Le Cid (1636), Rodogune (1644), Théodore (1645), Pertharite (1652), Sophonisbe (1662), Tite et Berenice (1670), Pulchérie (1672), Surèna (1674). AYER, Charles Carlton. The tragic heroines of Pierre Corneille. Strassburg: Heitz e Mundel, 1898. No caso de Cinzio, pode-se dizer o mesmo das seguintes peças: Orbecche (1541), Didone (1541), Cleopatra (1543), Altile (1543), Antivalomeni (1548), Selene (1551), Euphimia (1551), Arrenopia (1551), Epitia. In COSENTINO, Paola. Cercando

exemplo, também delineia um panorama bastante favorável à popularidade de um tema como o do suicídio de Lucrécia. Em ambiente francês, temos sobre a heroína romana La Lucrèsse

Romaine, de Urbain Chevreau e Lucrèsse, de Pierre Du Ryer. Ambas datam de 1636-37.

Aponta-se que muito provavelmente foram encenadas na mesma temporada, pelas trupes rivais do Hôtel Bourgogne e do Marais.341 Há também um manuscrito anônimo do mesmo período,

chamado Tragédie sur la mort de Lucrèsse .

Já em ambiente italiano, registram-se quatro tragédias a respeito de Lucrécia escritas ao final do século XVI e ao longo do século XVII: Paolo Regio, bispo de Vico Equense, escreveu uma tragédia intitulada Lucrezia em 1572; Giovan Battista Mamiano, nascido em Pesaro no século XVII, foi abade de Castel Durante, e deixou as Rime (1620) e uma única tragédia, Lucrezia (1625), dedicada ao Cardeal Barberini; Giovanni Bonnicelli, provavel pseudônimo de Bonvicino Gioanelli, nasceu e viveu na segunda metade do século XVII e nos legou Lucrezia Romana violata da Sesto tarquinio con la saggia pazzia di Bruto Liberator

della patria de Bonnicelli342; por último , cito a tragédia Lucrezia, do Cardeal Giovanni

Delfino, datada de 1661.

5.3.1.1. Circulação e espaços do teatro Seiscentista italiano.

A respeito da produção teatral propriamente dita na península italiana, os principais centros comitentes do teatro no Seiscentos eram as Cortes e os palazzi de duques, grão-duques, príncipes da Igreja. Estes locais eram sempre as primeiras referências na ocorrência de festas e representações em geral, graças à “importância da Corte como centro de agregação da esfera política e cultural de uma localidade”343. Da mesma forma, no período “Cortes italianas como

os Medici, D’este, Gonzaga, Farnese, Savoia, graças a uma hábil politica matrimonial, integram

Melpomene: esperimenti tragici nella Firenze del primo Cinquecento. Manziana: Vecchiarelli, 2003. 341 CHEVREAU, Urbain. Idem, p. 15.

342Sabe-se muito pouco sobre Bonicelli. Sua obra via de regra se caracteriza pela mistura de repertórios, técnicas e tradições. Tive acesso à uma edição da Lucrezia Romana violata da Sesto tarquinio con la saggia pazzia di

Bruto Liberator della patria de Bonnicelli, que vem nomeada como “opera trágica” no próprio subtítulo. No

entanto, há elementos que aproximam a peça da comédia, como um Pantalone como conselheiro de Sesto, e Finnochio e Arlichino como servos, respectivamente, dos Tarquinio e de Lucrécia e Colatino. A obra é de difícil leitura pois não existem edições posteriores, e as falas das personagens que não são nobres é registrada em dialeto. Pantalone fala em vêneto, e Finnochio e Arlichino possivelmente outro dialeto ou uma variação. Em suas memórias publicados no século XVIII, o grande dramaturgo Carlo Goldoni refere-se a uma tradição já antiga, da qual possui registros em manuscritos do século XVI, na qual Arlichino e Finnochio são bergamascos. A Lucrécia de Bonnicelli demora para aparecer na peça que leva seu nome. Sua primeira cena é a cena dezoito, e antes disso a ação se desenrola entre Bruto, os Tarquínios e os múltiplos personagens cômicos.

uma densíssima rede de parentelas e trocas culturais com as maiores cortes estrangeiras, dando continuidade à irradiação e difusão de modelos de arte e de vida”344[tradução minha].

“Torneios, justas, cavalarias, opere-torneo” se desenvolvem também no período em todas as principais cortes italianas. Eram “particularmente grandiosas e teatrais em Firenze, Modena e Parma, mas também em Bolonha e Ferrrara, administradas por legados papais.”345 [tradução

minha]. A invenção de um local estável destinado a apresentações teatrais data do século XVI. A esse respeito, cito Carandini, que afirma tratar-se de

invenção deveras extraordinária, fruto singular dos estudos urbanísticos especializados e pesquisas eruditas, excepcionalmente conduzidas como reconstituição culta do antigo teatro vitruiviano, como resultado de uma politica especial de representação da parte de príncipes.

A mesma autora afirma que, no fim do século, tais príncipes reconheciam “no instrumento desenvolvido pelos intelectuais e artistas [o teatro] um produto cultural de grande prestigio e eficácia, um monumento duradouro associado a magnificência da corte, um dispositivo ótimo para oficializar uma politica absoluta”346. Ao longo do Seiscentos, praças e

igrejas passariam a ser usados para apresentações musicais. Em Veneza se tornariam, para além disso, palco de encenações. As cidades emilianas que mantinham viva a tradição dos torneios cavalheirescos desenvolveram “novas tipologias de teatros de praça, grandiosas construções efêmeras, verdadeiros e próprios edifícios, decorados e racionais salões a céu aberto com fileiras sobrepostas de niveis a formar um recinto altíssimo, um tipo de coliseu invertido”347[tradução minha] Trata-se de um exemplo bem documentado o teatro efêmero

alocado na Piazza delle Scuole de Bologna em 1628, para o torneio do acadêmicos Torbidi. Na sala do Palazzo del Podestà em que se reunia o senado bolonhês, uma série de opere-torneo foram realizadas entre 1615-1639. Desde o fim do século XVI a sala era usada para espetáculos, jogos de bola, apresentações de cômicos, demonstrações de acrobatas. Em 1610, foi utilizada para uma tragédia, de Ridolfo Campeggi. É provável que a estrutura fosse montada e desmontada, já que “os espetáculos eram variados e a sala tinha uso cotidiano para o Senado”.348 Bolonha teria seu local publico e estabelecido somente para teatro em 1641, o teatro

Formagliari349

É também conhecido o papel de Bolonha como uma cidade intensamente frequentada e um ponto de cruzamento na circulação de artistas e intelectuais. A partir do final do século XVI 344CARANDINI, Silvia.Op.cit., p. 35 345Idem, p.43 346Idem, p.194 347Idem, p.177 348Idem, p.191 349Idem, p.194

e ao longo do XVII, artistas bolonheses estiveram presentes em boa parte das cortes importantes