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Com o advento do cristianismo, os autores tardo-antigos se dividem entre louvar a castidade de Lucrécia, como é o caso de São Jerônimo e Tertuliano123, e rejeitar a heroína como

exemplo de conduta, como é o caso de Santo Agostinho. Agostinho ataca veementemente a ideia que haja virtude no suicídio de Lucrécia. O bispo de Hipona o faz num contexto em que tinha que lidar com as consequências do saque de Roma em 410, que envolveu violência sexual contra inúmeras mulheres cristãs, e também em disputa com os donatistas de sua região, propagadores importantes de uma cultura disseminada de valorização do suicídio. Através de procedimentos retóricos, Agostinho leva o leitor à conclusão que, sendo Lucrécia virtuosa e casta, sua morte violenta foi um crime terrível contra o qual as próprias leis romanas certamente seriam rígidas se o assassino, ela mesma, não tivesse fugido da punição. Por outro lado, é central compreender que o autor se esforça por romper com a lógica de que o suicídio seria uma maneira de demonstrar a inocência da matrona. Em Lívio, Lucrécia afirma que a morte seria sua testemunha. A afirmação e os atos que se seguem na narrativa indicam que a palavra de Lucrécia não seria suficiente para que fosse considerada inocente de adultério na sociedade romana antiga. Assim, numa perspectiva Antiga, o suicídio teria função de comprovar sua inocência no ocorrido, sendo portanto também prova de sua integridade moral. Tal ideia é veementemente rejeitada por Agostinho, que defende de forma renhida que o pecado ocorre na vontade (a volontas). Ele afirma a necessidade de que seja firmemente estabelecido que

“(...) A virtude moral da consciência impera sobre os membros do corpo e que o corpo se torna santo pela atitude de uma vontade santa. Se a vontade permanece estavelmente inflexível, qualquer ação em que outro envolva o corpo ou faça no corpo, se não se pode evitar sem pecado, não é imputável a quem a sofre”124.

Assim, para o bispo de Hipona, se a vontade se manteve firmemente contrária ao ato criminoso, não existe pecado da vítima no ato.

Certamente a perspectiva da existência de um Deus onisciente (e que, portanto, conhece as intenções profundas de seus filhos) colabora para a ruptura com a ideia Antiga da necessidade de um ato extremo exterior para que se entenda as reais intenções de alguém numa situação considerada moralmente ambígua. Se o suicídio não comprova que Lucrécia era

123 FONTANAROSA, p.68

virtuosa e de fato não cedeu a Tarquinio, para Agostinho a motivação do suicídio poderia ser culpa e não pudor ou desejo de vingança. O autor afirma não haver alternativa: ou Lucrécia foi levada pela voluptas durante o ato de Tarquínio, e sua morte foi portanto causada pela culpa de ter sido adúltera, ou era inocente do adultério, o que a tornava uma terrível assassina, e culpada do pecado do orgulho.

Para Melanie Webb, o esforço central de Agostinho em relação a Lucrécia é de combater retoricamente a necessidade de suicídio da mulher para comprovar sua inocência num episódio de violência sexual125. Para fazê-lo, o autor coloca em dúvida a conduta de Lucrécia: será que

teria sido dominada pela voluptas durante o ataque de Tarquinio? A visão foi vastamente debatida no século XX. Por exemplo, para Margaret Miles126, Agostinho torna culpada a

mulher cristã vítima de estupro, fazendo parte de uma tradição de pensadores cristãos que responsabilizam as mulheres por produzir desejo nos homens ou de ter algum tipo de prazer quando atacadas sexualmente. Por sua vez, Jennifer Thompson investiga Agostinho como fonte para a visão norte-americana contemporânea a respeito do estupro. Para a autora, na visão de Agostinho sobre sexo “o corpo sempre quer, a vontade está sempre dividida e é frequentemente pecaminosa” [tradução minha]”.127

Estas e inúmeros outros autores entendem, de uma forma ou outra, que a leitura de Agostinho sedimenta a ideia de que o corpo sempre deseja o ato sexual, de maneira que sempre pode haver dúvida acerca do consentimento da mulher. Melanie Webb, por sua vez, polemiza com a bibliografia que alinha Agostinho à tradição misógina de levantar dúvidas sobre a responsabilidade da própria mulher no ato de violência sexual por ela sofrida. Webb destaca que Agostinho é o primeiro a escrever sobre o estupro encarando como uma situação digna de

consolatio, gênero até então usualmente dirigido a pessoas que estão exiladas ou enlutadas por

mortes dolorosas. A autora destaca que a posição de Agostinho sobre Lucrécia é sobretudo um veemente ataque do autor à ideia romana antiga de que a virtude da mulher que passou por uma situação de estupro só poderia ser comprovada pela sua morte, de maneira a defender que as mulheres cristãs violentadas durante o saque de Roma pudessem continuar vivendo sem ter sua conduta questionada. A passagem que é frequentemente mobilizada para atribuir a Agostinho uma culpabilização das mulheres vítimas de violência sexual é a em que ele afirma que só

125 WEBB,Melanie. “On Lucretia who slew herself”: Rape and Consolation in Augustine’s De ciuitate dei.

Princeton Theological SeminaryAugustinian Studies 44:1 (2013) 37–58 doi:10.5840/augstudies20134412

126 MILES, Margaret. Carnal Knowing: Female Nakedness and Religious Meaning in the Christian West (Boston,

MA: Beacon Press, 1989), 72.

127 THOMPSON, Jennifer Accept This Twofold Consolation, You Faint-hearted Creatures’: St. Augustine and

Contemporary Definitions of Rape,” Studies in Media and Information Literacy Education 4, no. 3 (2004): 3. Apud WEBB, op.cit., p.38

Lucrécia poderia saber se se matou por pudor ou por “secreta censura da consciência”, sendo possível que de alguma maneira ela tivesse sido levada ou traída pela voluptas, comumente traduzida como “prazer”. A tradução de voluptas determina a leitura. Webb propõe a sua explorando como os vocábulos volontas, voluptas e libido aparecem na obra de Agostinho. Em primeiro lugar, para Webb, Agostinho desconecta a volontas (vontade) da libido (luxúria). Segundo a autora, para ele é possível para uma mulher que queira fazer sexo movida pela

volontas mas sem libido, por exemplo, com o objetivo de ter filhos. Da mesma maneira, é

possível ao homem que haja descompasso entre ambas.128 Para Webb, em Agostinho o estupro

não pode ser enquadrado como algo de que a vítima deve se envergonhar, pois se trata da libido de alguém que se impõe contra a vontade de outra pessoa, e a vergonha é algo que ocorre somente quando nossa libido se impõe sobre nossa volontas, como nos casos acima mencionados. A autora defende que o fato de não usar a palavra libido quando aborda a reação das mulheres em situação de estupro indica que, para Agostinho, a luxúria não está em questão em caso de estupro. Ela usa o capítulo 16 da Cidade de Deus, em que ele fala explicitamente da violência sexual sofrida pelas cristãs na invasão de Roma, para sustentar a sua intepretação do significado de voluptas, central na discussão. Neste trecho, Agostinho diz que há ações que não podem ser evitadas sem pecar (por exemplo, que a mulher mate quem a ataca seria pecado), e que nesse caso o pecado decorrente das ações não pode ser imputado a quem as sofreu.. Na sequência, Agostinho defende que, no caso do estupro, não se deve pensar que, se o ocorrido envolveu em alguma medida a voluptas da carne, ele tenha necessariamente envolvido a

volontas da mente. Webb utiliza esta passagem para defender que a voluptas em Agostinho

seria uma reação meramente física, melhor traduzida como “arousal”, ou excitação sexual. A autora então defende uma diferenciação entre prazer físico e excitação, colocando que não aparecem diferenciados em latim, mas enquanto o prazer físico envolveria a volontas, ou seja, a vontade, é possível que a excitação seja uma reação meramente física, desconectada da vontade ativa do sujeito. Webb cita então um estudo contemporâneo de psicologia a respeito de reações de excitação sexual em situações de estupro, afirmando ser um assunto pouco discutido. Tanto o estudo quanto Webb entendem que tais reações de excitação não significam consentimento da vítima. Assim, na leitura de Webb, ao afirmar a possibilidade de Lucrécia ter se deixado levar pela voluptas, o bispo de Hipona não estaria afirmando uma intenção da heroína ou mesmo algum tipo de prazer que envolvesse vontade, mas uma mera reação física

128 É curiosa passagem da Cidade de Deus “Sometimes the urge arises unwanted; sometimes, on the other hand, it

dela, capaz no entanto de suscitar sua culpa. Apesar disso, de forma geral as leituras medievais e modernas da condenação de Lucrécia por Agostinho apontam para uma compreensão menos nuançada desta “culpa” da heroína, considerando-a uma espécie de dolo no caso do adultério.

De todo modo, embora seja discutível em que termos, é fato que, a partir de Agostinho, é possível ler o suicídio de Lucrécia não como comprovação de sua virtude, mas como evidência de culpa adúltera. Fundamental na crítica de Agostinho é que a decisão de Lucrécia de se matar vem de um desejo mundano de provar sua inocência para o mundo temporal, movida portanto pelo orgulho, ao contrário do que faria um cristão, que poderia confiar em sua consciência e no julgamento de Deus.

Ao longo da Idade Média, Lucrécia aparece em versões de Valério Máximo e de Ovídio, e continua a atrair a atenção dos escritores. Do ponto de vista da representação visual, são conhecidas algumas ilustrações para estes textos que mostram a heroína. Fontanarosa cita que Lucrécia aparece em Stories de Troja et de Roma, da metade do século XIII, uma versão vulgarizada de uma compilação latina de antes de 1150.129

Wolfgang Müller nos fornece um interessante panorama acerca da repercussão da história de Lucrécia em âmbito jurídico, cuja articulação aqui reproduzo. Os canonistas medievais se debruçaram amplamente sobre a história de Lucrécia, misturando “pensamento jurídico, concepções morais cristãs e fontes inusitadas”130. Apesar de autoridade de Agostinho,

também entre eles Lucrécia teria defensores e detratores. Para Müller, isso se dá em muito porque o texto de Agostinho não era conhecido de forma generalizada. O autor apresenta a discussão que se dá no período decretista (1140-1215) em três estágios principais . No primeiro, ressurge o texto de Agostinho sobre Lucrécia, copiado por Ivo de Chartres e por Graciano em seus respectivos Decretum, sendo esta a principal base textual para as especulações posteriores a respeito da heroína. Curiosamente, tanto Ivo como Graciano selecionaram apenas a parte inicial do texto de Agostinho, em que ele repete o elogio de Lucrécia feito pelas fontes antigas, o que fez com que os canonistas posteriores discutissem o assunto acreditando estar sob a autoridade de Agostinho, sem no entanto conhecer a retórica condenatória do bispo de Hipona.131 Num segundo momento, Huguccio de Pisa se dedica a Lucrécia em sua Summa

(c.1187-90), considerando que o exemplo de Lucrécia para vítimas inocentes de estupro precisava ser discutido. Embora não conhecesse a condenação agostiniana, ele se posiciona

129 FONTANAROSA, Salvatore. La fortuna di Lucrezia: ricezione e attualizzazione di un modello di virtù

muliebre tra Medioevo e Rinascimento. Aufidus 38 (1999), p.121

130 MÜLLER, Wolfgang P. Lucretia and the Medieval Canonists. Bulletin of Medieval Canon Law, n.19 (1989),

p.14

radicalmente contra o suicídio de Lucrécia. Além disso, se Agostinho critica Lucrécia por ter se abandonado a mercê de Tarquinio por orgulho, tal ato é condenado rigidamente por Huguccio. Para ele, no caso em questão a coerção não foi absoluta (coactio absoluta), mas condicional (condictionalis). Assim, houve conivência de Lucrécia com o adúltero Tarquínio, tendo portanto a matrona romana cometido adultério. Huguccio oferece uma narrativa bem mais detalhada sobre a heroína do que era de praxe entre os canonistas, e alguns elementos são adicionados em sua versão, como a carta que Lucrécia escreve para o pai e o marido após o estupro e a presença de um escravo mouro acompanhando Tarquínio. A posição de Huguccio foi amplamente debatida e combatida, e seus conceitos coactio absoluta e condictionalis substituídos pelos exatamente equivalentes voluntas directa e indirecta, de Bernardus Compostellanus. É com esta nomenclatura que entram para a Glossa Palatina, depois copiada integralmente na Glossa Ordinária de Johannes Teutonicus, que encerra este debate em 1215.

Dante Alighieri localiza a heroína no Limbo, no Canto IV de sua Comédia. O narrador elenca uma série de personagens que estão no castelo dos “spiriti magni”, única parte iluminada da região em questão. Dante elenca Lucrécia entre diversos personagens notáveis que não conheceram a Palavra: Electra, Heitor, Enéias, Cesar, Camilla, Pentesileia, o rei Latino, Lavinia, Bruto, Marcia, Julia, Cornélia, Saladino, Aristoteles, Socrates, Platão, Demócrito, Diógenes, Anaxagoras, Tales, Empedocles, Heraclito, Zenão, Dioscoro, Orfeu, Lino, Cicero, Seneca, Euclides, Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Galeno e Averrois.

Também a Gesta Romanorum, repertório de histórias em latim do início do século XIV, provavelmente elencadas para ser utilizadas por religiosos em seus sermões, conta com uma versão da história de Lucrécia. De acordo com Fontanarosa, apesar de reinvindicar a autoridade de Santo Agostinho, o relato da Gesta é mais próximo ao relato liviano132. Nela, a história de

Lucrécia é usada para produzir uma metáfora, em que Lucrécia é a alma cristã batizada e Tarquinio o diabo que quer violar a alma. A invasão de Tarquinio à casa de Lucrécia seria comparada ao “insinuar-se sorrateiro do pecado na alma, facilitado pela incapacidade do homem em escapar das tentações, e culminando na plena e consciente submissão do individuo ao mal”133 [tradução minha] e o ato de ferir-se com a espada corresponderia a extirpar o pecado.

Ainda para o autor, trata-se de uma leitura que prescinde do contexto de origem da história, e uma tentativa de incluir Lucrécia no sistema moral cristão do qual Agostinho tentou removê-la. Lucrécia também aparece citada em diversos pontos da obra de Petrarca, sendo que ele

132 FONTANAROSA, Salvatore. La fortuna di Lucrezia: ricezione e attualizzazione di un modello di virtù muliebre

tra Medioevo e Rinascimento. Aufidus 38 (1999), p. 118

desenvolve um pouco mais a seu respeito no capítulo dedicado a Bruto do De viribus illustribus, um conjunto de biografias de homens ilustres incompleto do autor, escrito entre 1337 e sua morte, em 1374. Neste sentido, é importante citar que datariam do período entre 1340 e 1370 os afrescos feitos para a Sala Virorum Illustrium, no palácio dos Carrara, em Padova. 134 Esta

decoração perdeu-se quase totalmente e a sala hoje é ligada à Universidade de Padova, sendo conhecida como Sala dos Gigantes. Encomendados por Francesco da Carrara, os afrescos originais foram concebidos a partir do De viris ilustribus, que Petrarca dedicaria a Francesco. É provável que tenham participado da decoração pintores como Altichiero da Zevio e Jacopo Avanzi. Um manuscrito ilustrado conservado em Darmstaad foi descoberto por Schlosser, em 1895, e algumas semelhanças entre este Codex e as poucas reminiscências do século XIV na decoração da Sala fazem com que boa parte da bibliografia acredite que as ilustrações do manuscrito derivariam dos afrescos135. Uma das cenas, que ilustra justamente a história de

Bruto, mostra a história de Lucrécia.

Lucrécia também aparece como modelo no Le Ménagier de Paris, um guia francês de 1393 dirigido à mulher casada que deve administrar o lar. Numa miscelânea fascinante, o livro contém receitas, conselhos sobre jardinagem, sexo e também considerações a respeito da conduta e do comportamento adequados para uma boa esposa. O narrador é um marido mais velho que se dirige à sua jovem esposa. A história de Lucrécia é contada para servir como exemplo numa seção dedicada a discutir a castidade matrimonial, ou seja, a fidelidade. A esse respeito, diz Lynn Shutters: “Uma preocupação que ocupa obstinadamente o narrador do Le

Ménagier é de que forma a afeição marital, e especificamente a afeição que a mulher deve a

ele, pode ser traduzida em ações e assim manifestada tanto para ele quanto para os outros. Aqui, lembro, reside a atração da lenda de Lucrécia, pois, do ponto de vista do narrador de Le

Ménagier, um ato tão extremo e irreversível como o suicídio estabelece incontestavelmente a

devoção marital interna de Lucrécia”[tradução minha]. A autora aponta também que é provável que a fonte do Le ménagier para a história de Lucrécia seja Le Jeu des Eschaz Moralisé, uma tradução para o francês realizada em meados do século XIV para a obra Solatium ludi

scacchorum, de Jacobus de Cessolis, escrita por volta de 1300, que ao se debruçar sobre o jogo

de xadrez para debater condutas morais também apresenta a dama romana como exemplo de castidade.136

134 MIZIOLEK, J. „Florentina libertas“. La storia di Lucrezia romana e la cacciata del tiranno’ sui cassoni del

primo Rinascimento, in: Prospettiva: Rivista di storia dell’arte antica e moderna 83-84 (1996), 156-176.

135MOMMSEN, Theodor E. Petrarch and the Decoration of the Sala Virorum Illustrium in Padua. The Art Bulletin, vol. 34, no. 2, 1952, pp. 95–116. JSTOR, www.jstor.org/stable/3047405.

Como afirma Miziolek, o processo de vulgarização de clássicos no século XIV incluiu Lívio, Valério Máximo e Ovídio. Boccaccio traduziu Lívio e difundiu muito os Fatos e ditos

memoráveis de Máximo137. Bambach afirma que em geral quando se analisa o tema de Lucrécia

no Renascimento se parte do princípio que os textos latinos seriam fonte iconográfica, mas “as questões que concernem a acessibilidade real a tais textos surgem como de particular relevância por conta da falta de conhecimento de latim e de grego da parte da maioria dos artistas italianos do Renascimento”.138

Certamente é em muito responsável pelo aumento do interesse pelo tema na península Itálica o De mulieribus Claris, do mesmo Boccaccio139, umas das mais conhecidas referências

a Lucrécia140. A obra, escrita pelo autor a partir de 1361, é composta de 106 biografias de

mulheres famosas, em ordem cronológica. Sua seleção das personagens biografadas não se baseia exatamente num conceito absoluto de virtus, mas numa ideia de claritas, ou fama, o que possibilita que as mulheres escolhidas advenham de diversos extratos sociais e possam ser exemplos do que fazer ou do que não fazer, tendo como critério terem realizado atos notáveis141.

O objetivo moralizante da obra de Boccaccio é explícito: o autor visa moldar o comportamento das mulheres, para quem se dirige de forma direta no Prefácio142”.

O breve relato da história de Lucrécia por Boccaccio diverge muito pouco das fontes antigas. Lucrécia é tratada como exemplo principal de modéstia romana. A narrativa de Boccaccio exalta as virtudes morais de Lucrécia, sendo enfatizadas sua “retidão de conduta”, a “beleza de seu pudor”. Por diversas vezes ele cita a “beleza” e a “virtude” da “casta Lucrécia”, ressalta que ela não teve medo de morrer quando forçada e ameaçada por Sesto, só se tornando trêmula perante a infâmia com a qual Sesto consegue rendê-la de fato. A Lucrécia de Boccaccio é emotiva, mas coerente, quando narra para os parentes o acontecido. É de uma “beleza desafortunada”, cuja pureza “não pode ser suficientemente louvada”. Centrada nos momentos que antecedem o estupro e nas reações de Lucrécia, Boccaccio dá pouca atenção aos acontecimentos grandiosos posteriores a seu suicídio. Seu foco está de fato nos aspectos morais

and Sexuality 45, no. 2 (2009), p. 77.

137 MIZIOLEK, J. Florentina libertas, p.160

138 BAMBACH, C. La Lucrezia cristiana di Raffaello e la “nobile morte". Apud Lucrezia romana : la virtù delle donne da Raffaello a Reni. Cinisello Balsamo : Silvana, 2016, p.66

139 BROWN, Ron. Op.cit., p. 81.

140 SCALINI, M. La Virtú Muliebre: L'esaltazione Della Libertà Individuale E La Cultura Simbolica Umanistica.

Apud Lucrezia romana : la virtù delle donne da Raffaello a Reni. Cinisello Balsamo : Silvana, 2016, p.24

141 ALMEIDA, Ana Carolina Lima. A exemplaridade nas representações do feminino no final da Idade Média - o exemplo do Decamerão e do De mulieribus claris de Boccaccio (Florença - século XIV). 2009. Dissertação (mestrado). Centro de Estudos Gerais da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2009, p. 102.

142 BOCCACCIO, Giovanni. Famous women. Cambridge; London: Harvard University Press, 2001 (The I tatti Renaissance library). Edited and translated by Virginia Brown., p. 2.

suscitados pelo tema. Fontanarosa ressalta a grande quantidade de referências à literatura antiga no relato de Boccaccio sobre Lucrécia, e também o fato de que a seleção de mulheres notáveis da qual ela faz parte não inclui as mulheres famosas da história sacra, privilegiando as do mundo