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V. Guido Reni e o tema de Lucrécia no Seiscentos

5.1. Guido Reni

Guido Reni foi um dos maiores pintores do século XVII, e provavelmente um dos mais reconhecidos em vida. Foi celebrado por poetas224, biografado por contemporâneos de

relevo225 , sendo destaque em obras como a Felsina Pittrice, de Malvasia226, e a Vite dei pittori, scultori ed architetti moderni, de Bellori227. Reni tornou-se conhecido no mundo italiano do

século XVII como o “divino” Guido. A comparação frequente com Apeles, o grande pintor grego da Antiguidade, indica a magnitude de Reni em seu próprio tempo228.

Malvasia pinta um retrato fascinante de Reni. Desde seu nascimento, o biográfo relata que sua beleza física já indicava que seria destinado à grazia. As palavras de Malvasia constroem a imagem de um homem extremamente católico e orgulhoso, totalmente dedicado à sua obra e devotado à sua mãe, casto, modesto, cortês e virgem. Evitava eventos sociais e detestava homenagens229. As anedotas contadas pelo biógrafo conferem a este Guido beato

algumas nuances curiosas: Reni era viciado em jogos de azar, preocupava-se com frequência em ser alvo de feitiços, conspirações, bruxarias e envenenamento230, não ficava a vontade na

presença de mulheres de qualquer tipo231, além de relatar experiências místicas desde a

infância232. Em mais de um momento, Malvasia ressalta que Reni não tinha interesse algum

pelas letras233, escrevia e lia mal. A imagem de um pintor pouco intelectualizado, bastante

consolidada na historiografia, sofreu algum abalo em 1994, quando Colomer apresentou a descoberta de uma obra de astronomia dedicada a Guido Reni. De acordo com Colomer, em 1632, Giovanni Antonio Vignati publicou com o editor Ferroni as Attinenze Astronomiche

224 Temos como exemplo a compilação Lodi al Signor Guido Reni raccolte dall'Imperfetto Accadem. Conf.,

Bologna, Nicolò Tebaldini, 1632, que conta com pelo menos 20 autores diferentes. Além disso, Malvasia cita como autores de poesias, textos ou menções em homenagem a Reni ou à sua obra Barbazzi, Marino, Preti, Possenti , Sgualdi, Dempster, Paoli, Bracciotini, Zoppio, Carmenio, Onofrio, Pancaldi, Vintimiglia e Gessi, entre outros.

225 Há textos ou menções a Reni de Agucchi, Mancini, Malvezzi, Ottonelli, Scanelli e Sandrart, além dos citados

Bellori e Malvasia. Malvezzi tem poucos apontamentos sobre Reni, mas estes são significativos.

226 MALVASIA, Cesare. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Vida de Guido Reni: uma tradução comentada da Vita

di Guido Reni de Carlo Cesare Malvasia. 2002. 196f. Dissertação (Mestrado em História da Arte) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002.

227 BELLORI, G.P. [a cura de Evelina Borea], Vite dei pittori, scultori ed architetti moderni. Torino: Giulio

Enaudi, 1976.

228 Malvasia in MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit, p. 158. BELLORI, G.P. [a cura de Evelina Borea], Vite dei

pittori, scultori ed architetti moderni .Torino: Giulio Enaudi, 1976, p. 487.

229 MALVASIA,C. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit., pp. 127-130 230 MALVASIA,C. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit., pp. 136-138. 231 MALVASIA,C. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit., pp. 136, 137, 143

232 MORSELLI, R. Bologna. Apud SPEAR, R. e SOHM, P .Painting for profit : the economic lives of seventeenth-

century Italian painters. New Haven ; London: Yale University press, 2010, p.151-152

all'anno 1631, que dedica "al molto illustre Sig. Guido Reni". Trata-se de uma obra de vinte

páginas em que descreve um eclipse. A descoberta, segundo Colomer, "traz à luz um Guido Reni inédito, interessado ele mesmo pela óptica e observação dos fenômenos do céu”234

[tradução minha]. Colomer sugere que tal evidência pode sugerir "relações mais estreitas do que as relatadas por Malvasia entre a comunidade dos eruditos e o pintor que ela cobre de elogios"235 [tradução minha].

Malvasia mostra ao longo de todo o texto um Reni de grande preocupação com a valorização do seu trabalho e de sua posição. Apesar de o processo que firmaria o estabelecimento do preço da obra com base na reputação do artista ser nítido já no modelo estabelecido pelos Carracci, Guido modificou as regras do mercado ao decidir os preços tendo como base a qualidade do conjunto, e não a quantidade de figuras realizadas. Essa atitude, somada a sua importância mercadológica de nível europeu, estabeleceu novos padrões de pagamentos para os artistas, processo que acabou por afetar toda a Itália236. O artista era

imensamente bem pago e apraz a Malvasia ressaltar a generosidade de Guido237, bem como

afirmar sua frugalidade em relação à aquisição de bens, mobiliário e alimentos, abrindo exceção no entanto no que tange ao grande gasto que o pintor tinha com roupas e tecidos para si e também para sua mãe.238Ainda que seja caracterizado como uma figura gentil, ao longo do

relato de Malvasia se entrevê também uma personalidade bastante defensiva em relação a seu próprio valor, e bastante drástico e intransigente ao sentí-lo atacado.

Para dar conta de apresentar a vida de Reni e seu desenvolvimento artístico, tomo como linha mestra uma breve seleção de eventos de autoria de Stephen Pepper, nos principais catálogos de referência sobre o pintor. Serão citadas algumas obras, porém não tenho de forma alguma a intenção de repertoriar toda a extensa produção do artista bolonhês.

5.1.1.Reni, seu tempo e sua trajetória

Quando nasceu, em 1575, Guido Reni encontrou uma cristandade oficialmente dividida. Para Pepper, os eventos relacionados à Reforma significaram uma ruptura enorme para o que

234 COLOMER, J. L. Peinture, histoire antique et scienza nuova entre Rome et Bologne: Virgilio Malvezzi et Guido

Reni", in: Poussin et Rome. Actes du colloque à l'Académie de France à Rome et à la Bibliotheca Hertziana, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1994, pp. 210.

235 COLOMER, J. L. Peinture, histoire antique et scienza nuova entre Rome et Bologne: Virgilio Malvezzi et Guido

Reni", in: Poussin et Rome. Actes du colloque à l'Académie de France à Rome et à la Bibliotheca Hertziana, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1994, pp. 211.

236 MALVASIA,C. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit., p. 144. 237 MALVASIA,C. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit., pp. 139-143 238 MALVASIA,C. Apud MICHELOTTI, Alexandra. Op. Cit., p. 26.

ele chama de “concepção neoplatônica de uma ordem universal”, a que se seguiram diversas reações. O autor opõe dois conjuntos de reações: de um lado, a preocupação com a austeridade espiritual e a negação dos sentidos por parte de São Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus (1540) e, de outro, a importância de formatar as artes para garantir clareza, decoro e aderência ao texto bíblico, postura levada a diante por São Carlos Borromeo no Concílio de Trento. Os seguidores de Carlos Borromeo, como o bolonhês Gabriele Paleotti defenderiam a importância das artes para o bem-estar espiritual e para a instrução dos fieis. Em 1565, São Filipe Neri criou a ordem dos Oratorianos, que congregaria sacerdotes seculares vivendo sob obediência, mas sem compromisso com outros votos. Sua ênfase na importância das missas, das procissões e da música faz com que Pepper o considere mais próximo da perspectiva de São Carlos Borromeo, uma vez que acreditaria em “abrir o devoto para a riqueza do universo” [tradução minha]239. No período que antecedeu o nascimento de Guido Reni havia, ainda, um

cabo-de-guerra político entre jesuítas e dominicanos, também visível em querelas teológicas acerca da salvação; a grosso modo, para os jesuítas a salvação poderia sofrer influências das ações do cristão em vida, e para os dominicanos isto caberia a Deus somente.

Segundo Pepper, a importância da clareza didática com os fieis defendida pelo Concílio faz parte de um movimento mais geral, próprio do período, que se esforça por explicar universais. Seriam exemplos deste movimento a produção do cardeal Baronio, de Galileu e também de Agucchi. O Cardeal Cesare Baronio, historiador, foi responsável por grandes esforços para substituir os modelos pagãos antigos pelos modelos do cristianismo primitivo em Roma: interferiu de forma extensa nas decorações das igrejas romanas e ligou-se intimamente ao trabalho arqueológico de Antonio Bosio nas catacumbas romanas. Numa perspectiva mais próxima de Borromeo e Neri, para Baronio as obras de arte das Igrejas não serviam a um propósito cosmético, mas faziam parte mesmo da função da igreja, de atrair a comunidade para um maior engajamento na reafirmação do catolicismo.

Além da cisão da cristandade, a península Itálica em que Reni veio ao mundo havia passado por um processo significativo de êxodo rural, com o consequente inchaço de cidades como Roma e Napóles 240. Ao longo de sua vida Reni assistiria a uma grave crise especulativa

da economia europeia, combinada a uma série de falências importantes, à transformação de propriedades rurais em empresas, grandes deslocamentos populacionais e maior vulnerabilidade da população a grandes fomes.

239 PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York

University press, 1984, p.13.

A Bolonha que recebeu o bebê de Ginevra Pozzi e Daniele Reni, renomado músico, vivenciava o processo de expansão dos Estados Pontificiais, das quais era parte desde 1512. Ainda durante a infância de Reni, a incorporação de Ferrara, em 1589, tornaria a região da

Pianura Padana mais segura para Bologna, além de ampliar sua importância nos Estados

Papais. A seda e o cânhamo eram as principais fontes de riqueza da cidade, sendo a economia felsínea bastante voltada para a indústria: no fim do século XVI, dos cerca de sessenta mil habitantes da cidade, por volta de vinte e cinco mil eram ligados à produção de seda. A cidade se dedicava a tal produção desde o século XIV, devendo sua eficiência a uma complexa organização da produção e também a um sofisticado sistema hidráulico que utilizava canais artificiais e os moinhos “alla bolognese”241. Os produtores que controlavam esse mercado se

organizavam na Arte della Seta, guilda que contava com cerca de 50 ou 60 mercadores.242

Entre 1590 e 1591, todo o Norte da península sofreria com o início de um período de instabilidade climática e queda de temperatura média na Europa em geral. As chuvas intensas e enchentes acabariam por favorecer pragas nas plantações de grãos, e inúmeras questões de organização social somadas à população ampliada nos anos anteriores243 fariam o jovem Reni

testemunhar uma primeira grande fome, que duraria sete anos e reduziria significativamente a população de Bolonha. Reni ainda veria, ao longo de sua vida, outros dois momentos de severa baixa populacional em Bolonha: a grave crise econômica entre 1619 e 1624 e a terrível praga de 1630, que reduziu a população da cidade de sessenta e dois mil habitantes para quarenta e seis mil, e matou dezoito mil pessoas no campo244. Sempre referência por conta da universidade,

Pepper afirma que na segunda metade do século XVI Bolonha ocupava posição central nas discussões intelectuais derivadas da Reforma e suas consequências, sendo que esse movimento se expressava mais amplamente nas artes visuais.245

Do ponto de vista da pintura, os pintores maneiristas nunca chegaram a fazer um grande sucesso em Bolonha, embora Vasari lá tenha trabalhado. As referências, além da grande pintura de Rafael e sua geração, eram os grandes mestres venezianos, somados a Correggio,

241 ZANGHERI, R.; RIDOLFI,M. MONTANARI,M. Storia dell'Emilia Romagna: Dalle origini al Seicento. Bari:

Laterza, 2014.

242 MORSELLI, R. Bologna. Apud SPEAR, R. e SOHM, P .Painting for profit : the economic lives of seventeenth-

century Italian painters. New Haven ; London: Yale University press, 2010, p.145.

243 ALFANI, G. The Famine of the 1590s in Northern Italy. An Analysis of the Greatest “System Shock” of

Sixteenth Century, Histoire & mesure [Online], XXVI-1 | 2011, Online since 27 September 2012, connection on 03 June 2017. URL : http://histoiremesure.revues.org/4119

244 MORSELLI, R. Bologna. Apud SPEAR, R. e SOHM, P .Painting for profit : the economic lives of seventeenth-

century Italian painters. New Haven ; London: Yale University press, 2010, p.145.

245PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York

Parmigianino e Barocci246. Em 1582, Ludovico, Agostino e Annibale Carracci fundariam a Accademia dei Desiderosi (que se tornou depois degli Incamminati), se tornando ao longo da

infância de Reni os principais artistas da cidade, posto que perderiam para seu aluno mais célebre.

Segundo Malvasia, aos nove anos, após insistir em aprender a pintar ao invés de aprender o ofício do pai, Daniele Reni, Guido foi levado para estudar com o pintor flamengo Calvaert. Calvaert era um pintor de bastante sucesso em Bolonha, e partilhava com o pai de Reni o patronato da família Bolognini247. Malvasia relata que o acordo entre Guido e o pai era

que ele permaneceria no estúdio de Calvaert por dez anos, e caso desistisse teria que se dedicar à música248. Reni integrou o estudio de Calvaert como aprendiz até por volta de seus vinte anos,

e, entre 1594 e 1595, após a morte de seu pai, deixou o estúdio do antigo mestre e passou a integrar a Accademia degli Incamminati dos Carracci. Segundo Malvasia, Reni o faz movido por estar insatisfeito com Calvaert, que não repassava o pagamento correto das encomendas das quais Reni participava e tinha também um gênio intempestivo, tratando o aluno com descortesia. 249

As divergências entre Calvaert e os Carracci eram enormes. O maneirismo do pintor flamengo valorizava a pintura de acabamento refinado e polido, enquanto os irmãos Carracci entram para a história da arte com uma proposta de pintura reformada, em que a procura pela harmonia que marcava historicamente o gosto bolonhês “efetivamente convive com um naturalismo expressivo prevalente” 250. Assim, a pintura dos Carracci floresce valorizando o

desenho de observação, a solidez corporal da grande pintura florentina renascentista e o colorido veneziano . Em sua proposição de um retorno aos fundamentos clássicos da pintura, inclui-se na mesma medida o estudo da natureza e da pintura dos grandes mestres renascentistas. Do ponto de vista formal, como sintetiza Pepper, o trabalho de Calvaert valoriza a “pulizia” e a “finitezza”, e o dos Carracci a “pastosità” e a “morbidezza”.251

O primeiro trabalho público de Reni é a Coroação da Virgem (1595), hoje na Pinacoteca

246 PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York

University press, 1984, p.16-17.

247 PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York

University press, 1984, p.19

248 MALVASIA apud MICHELOTTI, Alexandra Vida de Guido Reni: uma tradução comentada da Vita di Guido

Reni de Carlo Cesare Malvasia. 2002. 196f. Dissertação (Mestrado em História da Arte) - Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002, p. 55.

249MALVASIA apud MICHELOTTI, Idem p. 56

250 EMILIANI, A. Guido Reni. Art e dossier, n. 27 (set 1988). Firenze : Giunti, 1988, p.24. 251 PEPPER, S. Op. Cit., p.19

Nazionale de Bologna. O próprio Malvasia destaca como ambas as tendências principais da formação de Reni estão presentes na obra em questão: a parte superior se liga ao maneirismo de Calvaert e a inferior mostra a “maneira mais grandiosa e empastada” dos Carracci.252

Do seu período na academia dos Carracci, destacam-se a Queda de Faetonte (1596- 1598), no Palazzo Zani, em Bologna, e uma série de afrescos decorativos em igrejas dominicanas, como São Domingos com a Virgem do Rosário para o Santuario della Madonna di San Lucca. O momento de maior destaque de Reni em sua juventude é, no entanto, ser escolhido para realizar do grande mural decorativo no Palazzo Pubblico de Bolonha, feito em comemoração à visita do papa Clemente VIII, em 1598. O afresco se perdeu, sendo conhecido apenas por desenhos, mas garantiu ao pintor o reconhecimento de parte poderosa do entorno do papa, a exemplo dos cardeais Faccheneti, sobrinho de Inocêncio IX, e Sfondrato, sobrinho de Gregório XIV, além de Cavalier D’Arpino, pintor favorito dos Aldobrandini, de grande influência no circuito romano da época.

Reni e Roma

O artista permaneceu em Roma provavelmente de 1600 a 1612, retornando brevemente em 1614. Entre 1600 e 1601, Reni realizou uma cópia do Êxtase de Santa Cecília de Rafael para o Cardeal Sfondrato, hoje na Igreja de San Luigi dei Francesi, em Roma. Sfondrato era ligado ao círculo do Cardeal Baronio. Com a descoberta do corpo de Santa Cecilia em 1599, tem início uma fase de diversas obras a repeito da santa, da qual faz parte o projeto decorativo da Basilica de Santa Cecilia em Trastevere, que contou com a participação de Reni através de seus Martírio de Santa Cecília e Coroação de Santa Cecília e Valeriano. Pepper afirma que o cardeal Sfrondato também encomendou a Reni a Santa Cecilia hoje no Norton Simon Museum, feita por volta de 1606 (Imagem M).

Durante este primeiro momento da estadia em Roma, Pepper cita pelo menos cinco visitas de Reni a Bolonha entre 1601 e 1606, sendo uma delas notória, para o funeral de Agostino Carracci. Nessas visitas, recebe encomendas e executa algumas, como um mural em San Michele in Bosco, e o São Pedro e São Paulo da Pinacoteca de Brera. Pepper indica que a iluminação nesta obra aponta para a relação de Reni com Michalnagelo da Merisi, conhecido como Caravaggio. Malvasia narra diversas anedotas acerca de Reni e Caravaggio, deixando entrever uma relação pessoal conturbada, causada, como seria de se esperar da perspectiva de Malvasia, pelo desequilíbrio e gênio irascível de Merisi253. Ainda Pepper afirma que a

252 MICHELOTTI, Alexandra Op.cit., , p. 27.

referência central a Caravaggio se faz notar também no Cristo na Coluna (1604) hoje em Frankfurt, no David do Museu do Louvre, na famosa Crucificação de Pedro (c.1604-1605) da Pinacoteca Vaticana e por fim no Martírio de Santa Catarina (1606) de Conscente, depois do qual, para ele, Caravaggio deixa ter importância na obra de Reni. Para o autor americano, seriam características desta fase “a atenção ao detalhe empírico, o uso da luz que tende a isolar objetos individuais e a introdução de tipos caravaggescos como o jovem emplumado que aparece na Crucificação de Pedro” [tradução minha], mas uma incursão mais definitiva de Reni ao

caravaggismo seria impedida pelo seu próprio “senso de decoro”.254

Com a morte de Clemente VIII em 1605, e as consequentes trocas na corte papal, Reni e os outros artistas provavelmente perderam seus patrocinadores, e ele retornou a Bolonha. É certo que o pintor se fixou em Roma novamente em 1607, a serviço do Cardeal Scipione Borghese, sobrinho do novo papa, Paulo V, e grande colecionador, por provável influência de Cavalier D’Arpino. A historiadora Alexandra Michelotti aponta como o pontificado de Paulo V marcou um período de distensão em relação aos princípios artísticos do Concílio de Trento, seguidos de maneira mais rígida por Clemente VIII255. A fase Borghese da pintura de Reni se

iniciou em 1607 e foi até 1612. De 1607 em diante, sua produção foi intensa. Para o Cardeal Scipione Borghese, pintou o Martirio de Santo André (1608), em San Gregorio al Celio. Na sequência, grandes obras de decoração para o papado, com os afrescos das Sale delle Dame e

delle Nozze Aldobrandini do Vaticano (1608), e a decoração da Capella dell’Annunciata, no

Palazzo del Quirinale (1609-1611) para Paulo V. Na Capella dell’Anunciata, Reni busca e consegue conferir coerência ao todo, algo difícil de ser conseguido em seu trabalho seguinte, na Capela Paulina de Santa Maria Maggiore (1611-1612), uma vez que ele fazia parte de uma grande equipe de artistas trabalhando ao mesmo tempo em diferentes partes do ambiente. Segundo Pepper, sua preocupação com a coesão da decoração estabelece o que se tornaria um princípio geral nos grandes projetos ornamentais da Roma do Seiscentos256. A

monumentalidade das figuras na Capela Paulina seria aclamada, bem como a habilidade do artista em resolver a composição num local particularmente difícil de afrescar.257

Em 1612, de acordo com o relato de Malvasia, uma indisposição entre o tesoureiro dos

254 PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York

University press, 1984, p.23

255MALVASIA apud MICHELOTTI, Alexandra Vida de Guido Reni: uma tradução comentada da Vita di Guido

Reni de Carlo Cesare Malvasia. 2002. 196f. Dissertação (Mestrado em História da Arte) - Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002, p. 67-69., p.31.

256 PEPPER, S. Guido Reni: a complete catalogue of his wotks with an introductory text. New York: new York

University press, 1984, p.26

Borghese e um Reni já insatisfeito fez com que o pintor bolonhês abandonasse Roma abruptamente258. A insatisfação de Guido se devia principalmente à pressão dos prazos impostos

a seu trabalho e à demora nos pagamentos. Depois deste episódio, Reni inicia algumas obras em Bolonha, entre elas a Glória de São Domingos (1613-15), na Capela da Arca da Igreja de São Domingos. Tais obras seriam interrompidas pois Reni retornaria a Roma, forçado, entre 1613 e 1614, provavelmente para executar o Carro de Apolo com as Horas e Aurora, hoje no Palazzo Rospigliosi - Palavicini, considerada uma de suas obras primas.259 Para Pepper, é

possível enxergar na trajetória de Guido um esforço de manter o vínculo com sua cidade natal, já que continuava aceitando encomendas de patronos bolonheses importantes mesmo durante o