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III. Lucrécia e as fontes antigas

3.3. Ovídio

O poeta nasceu em Sulmona, na região de Abruzzi em 43 a.C. Sua carreira até onde se sabe se deu principalmente no início do Principado, e há quem defenda que este período de relativa tranquilidade teria permitido que a produção de Ovídio se centrasse em temas afetivos ou acerca do caráter humano, e não tanto de questões de Estado108. De qualquer maneira,

durante as primeiras décadas de carreira (circa 20 a.C a 2 D.C) dedicou-se aos poemas elegíacos. A obra que interessa a este trabalho, Fastos, estava sendo escrita pelo poeta quando ele foi banido por Augusto e condenado ao exílio em Tomi, na costa do Mar Negro, onde viveria e produziria até a morte, em 17 d.C.

Os Fastos consistem no total em seis livros, cada um tendo como tema um dos seis primeiros meses dos ano. Não se sabe se Ovídio escreveu poemas para os outros seis meses, e os conhecidos são provavelmente datados entre 2 d.C e 8 d.C, pertencendo portanto “à fase madura da produção ovidiana”109. Inicialmente dedicado a Augusto, depois de banido Ovídio

teria revisado e dedicado o poema a Germânico, sobrinho de Augusto, talvez na esperança de

105 Idem.

106 MARQUES, Juliana. Op.cit. p.110.

107 CULHAM, Phillip. Women in the Roman Republic. The Cambridge Companion to the Roman Republic, edited

by H.I. Flower,139-159. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.139.

108 KNOX, Peter. Op.cit., p. 5.

109 SOARES, Maria L.L. Ovídio e o poema calendário: Os fastos, Livro II, o mês das expiações. 2007, 85p.

Dissertação (mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 7

que a condenação fosse anulada110. Nele, Ovídio “canta todo o tempo cíclico anual”111.

A história da Lucrécia se encontra no Livro II dos Fastos. O título, Fasti, é também o nome dado a calendários cívicos colocados em locais públicos na Roma antiga, de maneira que fosse possível saber quais as atividades permitidas ou proibidas para cada dia, o que se comemorava, etc. A história de Lucrécia é relatada sob o título de Regifúgio, dia nefasto. Segundo Maria Lia Soares, a categoria “nefasto” indicava dias em que não podiam ser decididos assuntos legais nem haver reuniões da Comitia.

Não seria absurdo esperar, dada a grandiosidade do tema, que os Fastos fossem obra épica. No entanto, o autor utiliza o dístico elegíaco. Para Maria Lia Soares, a obra aproxima-se principalmente da elegia etiológica. Herbert Brown afirma que este gênero estaria a “meio caminho entre os extremos opostos da elegia amorosa frívola e da sublime grandeza da épica”112.

A narrativa de Ovídio segue de perto a de Lívio, com algumas diferenças, como seria de esperar graças à diferença de gênero literário . O poeta anuncia que contará a fuga do rei. A narrativa começa com um dos filhos do rei que, infiltrado entre os inimigos, engana-os dizendo ter sido banido por seu pai. Esse filho é Sisto, que manda um mensangeiro ao pai perguntando como aniquilar os inimigos. O pai corta pontas de lírios com uma vara, e o filho, recebendo a mensagem, mata os cabeças da cidade de Gabii, vencendo a guerra. Sisto Tarquínio é portanto desde o início caracterizado como impetuoso e traiçoeiro. Hedjuk aponta para o fato de que em sua aparição, Tarquínio Soberbo está em um locus amoenus, como os locais que são habitualmente cenário de estupro nos textos mitológicos e também em Ovídio, e a imagem possibilita um paralelo entre os lírios que são destruídos pelo tirano, os soldados assassinados por Sisto e a pureza da personagem principal, que teria o mesmo destino.113 Na sequência, Ovídio narra a anedota de Bruto e os irmãos Tarquínios, que são informados por um oráculo que aquele que primeiro beijar sua mãe será vitorioso na disputa pela sucessão de Tarquínio Soberbo. Bruto, que “era sábio, fingindo-se estulto”, finge tropeçar e beija a “mãe terra’”, o que prenuncia a queda da dinastia dos Tarquínios, e a ascensão de Bruto ao poder. A anedota parece também em Lívio, mas num capítulo que antecede a história de Lucrécia, não estando

110 SOARES, Maria L.L. Idem. 111 SOARES, Maria L.L.Idem, p. 9

112 HERBERT- BROWN. Ovid and the Fasti: a historical study. Oxford: Clarendon press, 1994, p.7. Apud

SOARES, Maria L.L. Ovídio e o poema calendário: Os fastos, Livro II, o mês das expiações. 2007, 85p. Dissertação (mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 22

diretamente associada a ela.

Os principais pontos da narrativa se mantém em relação à versão de Livio, como o

certamen mulieribus. Movidos pela disputa sobre quem teria esposa mais casta, Colatino e os

Tarquinios vão a suas casas na calada da noite. Mais prolífica em imagens, a narrativa ovidiana destaca que as princesas de Roma estavam de tal modo embriagadas que pegavam no sono com as coroas a cair em seus pescoços. A maior fala da Lucrécia de Ovídio se dá neste início, não no discurso final, como na narrativa de Lívio. Lucrécia está em ambiente doméstico, com luz baixa, e é caracterizada inicialmente como uma voz entre a das servas. Ela enuncia estar muito angustiada com a ausência do marido e sua participação na guerra, e apressa as escravas que fiam para que consigam mandar logo a túnica para Colatino no campo de batalha. Ela chora e Ovídio ressalta seu recato, mesmo quando comovida. As tintas sentimentais da cena se acentuam com a chegada inesperada de Colatino, que afirma que ela nada mais tem a temer, ao que ela então “pende o doce peso” no pescoço do marido. Com a chegada de Colatino chega também Sisto Tarquínio, e seu olhar modifica a descrição de Ovídio. A onisciência psicológica do poeta114 nos dá acesso ao interior de Sisto antes da violação. Ao ver Lucrécia, o príncipe é imediatamente é arrebatado por um “amor cego” e a partir daí a descrição da dama romana mobiliza elementos associados à sua atratividade física : a voz delicada, a beleza, a “nívea cor”, os“louros cabelos”, além de novamente seu decoro. Ao caracterizar os pensamentos de Sisto perturbado pela lembrança de Lucrécia, a descrição torna-se sensual: “sentou-se, assim esteve ornada, assim fiou na roca, assim os cabelos soltos cairam-lhe sobre o pescoço; esse foi seu rosto, essas foram suas palavras, essa cor, esse semblante, essa era a beleza de sua boca”. Newlands115 e Hejduk116 chamam atenção para a caracterização híbrida da Lucrécia de Ovídio.

Ao mesmo tempo em que o autor ressalta sua castidade e sua parcimônia, que serão tingidas em cores trágicas e por vezes épicas, a heroína é também descrita a partir de um vocabulário totalmente elegíaco. Suas características enquanto fia, sua beleza que não necessita de artes e toda a lembrança erótica de Sisto seriam típicas do discurso relativo à puella elegíaca, não sendo esperadas na composição de uma matrona. O próprio Ovídio se refere a ela como puella, ainda que seja uma mulher casada117. Em geral, as análises do texto ovidiano enfatizam a erotização

de Lucrécia, que seria uma espécie de contaminação dos interesses elegíacos do autor no seu

114 HERBERT-BROWN, Geraldine [ed]. Ovid's Fasti: Historical Readings at Its Bimillennium. New York, Oxford

University Press, 2002, p.155

115 NEWLANDS, Carole. Playing with time: Ovid and the Fasti. Cornell Studies in Classical Philology LV. Ithaca:

Cornell university press, 1995.

116 HEJDUK, JULIA. Epic Rapes in the Fasti. In: Classical Philology, Vol. 106, No. 1 (January 2011), pp. 20-31. 117 Fastos, Livro II. v.810.

tratamento de um texto histórico e político. Os textos ovidianos, com destaque para as Metamorfoses e os Fastos, apresentam muitas narrativas de violação ou tentativa de violação destas mulheres, em geral de cunho mitológico118. O estupro de Lucrécia é, no entanto, tratado

por Ovídio com uma gravidade que a diferencia, além do que Lucrécia tem um espaço de fala muito maior que qualquer outra mulher violentada dos Fastos. A partir da despertar do desejo de Sexto, a narrativa ressalta a castidade e fragilidade de Lucrécia. Ela é a “recatada esposa”, uma “pequena cordeira, surpreendida quando afastada de seus estábulos, estando a mercê do cruel lobo”. Tal expressão, segundo Hejduk, seria uma das ressonâncias épicas na Lucrécia de Ovídio, por ser um “simile frequently applied to epic warriors”119. A caracterização continua

com Lucrécia sendo a mulher que “será vencida, se lutar”, com seu peito que na luta que antecede a violação é “pela primeira vez tocado por mão estranha”. Quando Sisto a ataca e ordena que ela fale, ela não é capaz. Segundo Newlands, todas as qualidades que ela perde nesta hora são associadas ao poder masculino ( vocem, vires). Após o ato violento, Lucrécia se apresenta enlutada e totalmente tolhida da capacidade de fala. Tenta mais de uma vez contar o ocorrido ao pai e ao marido, e apresenta grande dificuldade: “ ‘Também isso deverei a Tarquínio? Falarei', diz 'desgraçada eu própria relatarei minha desonra?’ e o que pode, narra; restava o fim: chorou e suas faces de matrona enrubesceram”. Os homens falam, e tentam convencê-la de que não tem culpa. Com a famosa frase “o perdão que vós concedeis, eu proṕria nego”, a personagem se mata, em meio a uma grande profusão de sangue, mais uma marca imagética que não aparece na narrativa liviana. Com o suicídio, Ovídio passa desta caracterização que ressalta a fragilidade para o epíteto que tanto marcou a personagem: ao final da narrativa, Lucrécia é a “matrona de ânimo viril”, decorosa até na maneira de tombar após se apunhalar, o que seria uma marca de heroína trágica, segundo Hedjuk120. Para Newlands, o silêncio de Lucrécia em Ovídio contrasta com sua eloquência em Lívio, e seria um sinal involuntário de sua impotência feminina. Newlands acredita que o foco que Ovídio dá pra o feminino permite ao autor questionar a versão de Lívio121. Para Heinze e outros autores, tal

enfoque seria apenas típico da elegia. Em estudo amplamente debatido, a autora defende haver uma postura subversiva de Ovídio nos Fastos, que traria uma nova perspectiva sobre história

118 HEJDUK, JULIA. Epic Rapes in the Fasti. In: Classical Philology, Vol. 106, No. 1 (January 2011), pp. 20. 118 Fastos, Livro II. v.810.

119 Segundo Hedkjuk, seriam ainda evidências da linguagem épica a comparação das emoções de Sisto ao mar

tempestuoso, a sentença em que Lucrécia sem saber promove a própria destruição quando recebe Sisto em sua casa, e o que a autora chama de fórmula homérica quando Lucrécia tenta falar ao pai e ao marido “por três vezes tentou ... e na quarta...”) . HEJDUK, JULIA. Op cit., p. 28-29.

120 HEDJUK, Op.cit, p.29.

121 NEWLANDS, Carole. Playing with time: Ovid and the Fasti. Cornell Studies in Classical Philology LV. Ithaca:

de Lucrécia, enfatizando a violência sexual e a tragédia pessoal da heroína, em detrimento dos desenrolares políticos da questão. Newlands propõe de fato que no texto Ovídio estivesse abordando a questão de como o sofrimento individual e o discurso individual são absorvidos e alterados na construção de uma visão exemplar do passado. Suas explicações tem sido amplamente debatidos, com destaque pelos estudos que encaram os Fastos principalmente como documento histórico122. De qualquer maneira, é fato que a versão Ovidiana não enfatiza

aos acontecimentos após o suicídio: Ao final, Bruto “incita os quirites’ contra os Tarquínios, que fogem da cidade. Uma outra abordagem , que também vê subversão no texto ovidiano, enxerga ironia na maneira como ele caracteriza Lucrécia. Baseando-se na comparação com outros textos poéticos, Allison Waters afirma, por exemplo, que um traço do tratamento humorístico da história de Lucrécia por Ovídio seria a cena inicial, em torno do lanifício, em que ela estaria levando excessivamente a sério sua tarefa. De todo modo, é seguro dizer que em comparação com Lívio, Ovídio nos legou um Lucrécia mais calada e sentimental, caracterizada de forma ambígua com nuances de heroína trágica e puella elegíaca.

122 HERBERT BROWN, Geraldine. Review of Playing with time: Ovid and the fasti.. Bryn Mawr Classical Review

IV. Antecedentes literários e iconográficos: do período