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Religiosidade e mística no movimento de mulheres agricultoras de Santo Cristo/RS: um processo de constituição de identidades por meio da educação popular

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (UNIJUÍ)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS – DOUTORADO

LIRIA ÂNGELA ANDRIOLI

RELIGIOSIDADE E MÍSTICA NO MOVIMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS DE SANTO CRISTO/RS: UM PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES

POR MEIO DA EDUCAÇÃO POPULAR

Ijuí 2016

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LIRIA ÂNGELA ANDRIOLI

RELIGIOSIDADE E MÍSTICA NO MOVIMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS DE SANTO CRISTO/RS: UM PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES

POR MEIO DA EDUCAÇÃO POPULAR

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências – Doutorado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Educação nas Ciências.

Orientador: Prof. Dr. Walter Frantz

Ijuí 2016

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A comissão abaixo assinada aprova a presente tese

RELIGIOSIDADE E MÍSTICA NO MOVIMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS DE SANTO CRISTO/RS: UM PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES

POR MEIO DA EDUCAÇÃO POPULAR elaborada pela doutoranda

LIRIA ÂNGELA ANDRIOLI

como requisito parcial para obtenção do grau de DOUTORA EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS.

COMISSÃO EXAMINADORA:

Prof. Dr. Walter Frantz (orientador – Unijuí)

Prof.ª D.ra Helena Copetti Callai (Unijuí)

Prof.ª D.ra Maristela Borin Busnello (Unijuí)

Prof.ª D.ra Claudete Beise Ulrich (Faculdade Unida,Vitória/ES)

Prof.ª D.ra Rosângela Angelin (URI, Santo Ângelo/RS)

Prof.ª D.ra Sandra Vidal Nogueira (UFFS, Cerro Largo/RS)

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Dedico esta tese a meu pai José Andrioli (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

À FAPERGS e à CAPES, pela concessão de bolsa de estudos, o que possibilitou a realização desta pesquisa.

À CAPES, pela concessão de bolsa de estudos do Programa Institucional Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), por meio do processo nº. 12862/12-6.

Ao Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) de Santo Cristo, pela acolhida e abertura para a realização da pesquisa.

Ao Movimento de Mulheres Agricultoras Católicas de Münster (Katholische Landfrauenbewegung – KLFB) da Alemanha, pelo aprendizado e convivência.

À Genoneva Haas, pelo carinho e atenção.

À Soeli Engel e Adelaine Seger, pelo empenho e dedicação. Ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santo Cristo.

Às mulheres agricultoras, que deram o seu testemunho por meio das entrevistas. À Maria Kleingräber, pela amizade, parceria e aprendizagens.

À D.ra Marie-Theres Wacker, pela orientação no estágio de doutorado sanduíche

realizado na Alemanha.

Ao professor orientador Dr. Walter Frantz, pela amizade, conselhos e aprendizados construídos, por meio de importantes diálogos e reflexões.

Às Prof.as D.ras Helena Copetti Callai, Maristela Borin Busnello, Rosângela Angelin,

Sandra Vidal Nogueira e Claudete Beise Ulrich, pelas valiosas contribuições e reflexões críticas possibilitadas à pesquisa.

Ao meu pai, José Andrioli (in memoriam), e à minha mãe, Irena Maria Weyh Andrioli, pelo incentivo e continuidade nos estudos.

Ao meu irmão, Antônio Inácio Andrioli, pela insistência e incentivo na construção de novas aprendizagens.

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Ao meu companheiro Ronaldo César Darós, pela paciência e apoio durante o processo da pesquisa.

À Assunta Manara Darós (in memoriam), pelo exemplo de vida.

À minha revisora predileta e irmã de coração, Liliane Darós, pela dedicação e apoio. Ao Santiago Pavani Dias, pelo apoio e debates em torno da tese.

À Alana Munhoz, pela amizade e convívio.

Aos meus queridos amigos Caroline Schreiner, Luís Carlos Rossato e a pequena Luísa, por vibrar e me acompanhar em cada passo da pesquisa.

Aos amigos Emerson Gottardo, Ana Paula Gottardo e João Pedro Gottardo, pelo companheirismo de sempre.

Ao Luciano Angelin, à Jaqueline de Conti, à Helena, à Carine Guth e ao Carlos Weiler, pela amizade.

Às amigas Terezinha Krolikowski, Ana Maria de Oliveira e Merici Gutjahr, pelo incentivo e luta pela causa das mulheres.

Às BELAS (Bianca, Elisa e Arlita), queridas colegas do doutorado, pela amizade e apoio.

Ao Grupo de Estudos em Educação Popular, Movimentos e Organizações Sociais (GEEP), pelas experiências compartilhadas.

Ao amigo professor Dr. Paulo Alfredo Schönardie, pelos diálogos.

Ao amigo e doutorando Celso Gabatz, por auxiliar na compreensão de conceitos teológicos.

Aos colegas orientandos e orientandas do professor Walter, pelo convívio e aprendizados.

Às queridas colegas Nádia Scariot e Cláudia Ilgenfritz, pela amizade.

Às secretárias do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, Lígia e Carmen, pela amizade e convívio.

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RESUMO

A presente tese tem o propósito de aprofundar a compreensão acerca dos efeitos da religiosidade e da mística na constituição das identidades femininas e as possibilidades de empoderamento a partir do Movimento de Mulheres Agricultoras, no caso específico, do município de Santo Cristo/RS. O foco é refletir sobre uma experiência de Educação Popular que apresenta em sua constituição identitária aspectos sociais e culturais que sofreram os impactos e os efeitos da religiosidade em seu modo de vida e no cotidiano de suas ações. O método utilizado foi a Educação Popular como caminho de constituição de sujeitos, de conhecimentos e de poder. Utilizando-se do processo de ação-reflexão-ação (práxis), os sujeitos da pesquisa também produzem conhecimento, ou seja, partem de sua realidade, de suas experiências de vida para produzir conhecimento. Refletir sobre a ação, em um movimento dialético entre teoria e prática, constitui-se como uma forma de aprendizagem, de realização de uma pesquisa. Na pesquisa de cunho qualitativo, foram realizadas entrevistas com algumas mulheres integrantes do movimento supracitado. Objetivando o entendimento da questão, a pesquisa buscou compreender como ocorre a constituição das identidades femininas a partir da religiosidade. Por isso, fundamentalmente entram em cena conceitos religiosos e também a relação histórica existente das mulheres com o meio ambiente natural. Na sequência, é evidenciada a dialética existente entre opressão e emancipação. Em seguida, a pesquisa ressalta os aspectos conceituais de opressão e a busca de autonomia a partir do enfoque dos movimentos sociais e da Educação Popular. Por fim, a análise centra-se na relação entre teoria e prática, enfatizando os efeitos da religiosidade na vida em comunidade e na constituição de uma identidade cultural e religiosa. Infere-se que há uma mística que transforma e empodera as mulheres em movimento e que o envolvimento eclesial com a base foi fundamental para a pastoral libertadora.

Palavras-chave: Mulheres Agricultoras. Identidade. Educação Popular. Religiosidade.

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ABSTRACT

This dissertation aims to deepen understanding about the effects of religiosity and mysticism on the constitution of female identities and empowerment opportunities through the Women Farmers Movement, in the specific case, of the municipality of Santo Cristo/RS. The focus is reflecting on a Popular Education experience, which presents in its identity constitution social and cultural aspects that have suffered the impacts and the effects of religiosity in their lifestyle and everyday actions. The method applied was the Popular Education as a way of constitution of individuals, knowledge and power. Using the action-reflection-action process (praxis), the individuals of the research also produce knowledge, that is, they use their reality, their life experiences to produce knowledge. Reflecting on the action, in a dialectical movement between theory and practice, is constituted as a form of learning, of conducting a research. In qualitative research, interviews were conducted with some female members of the above-mentioned movement. Aiming to understand the issue, the research sought to figure out how the constitution of female identities occurs through religiosity. Therefore, fundamentally, religious concepts and also the historical relationship of women with the natural environment are involved. Afterwards, the existing dialect between oppression and emancipation is evidenced. Then, the research highlights the conceptual aspects of oppression and the search for autonomy from the viewpoint of social movements and Popular Education. Finally, the analysis focuses on the relation between theory and practice emphasizing the effects of religiosity on life in community and the establishment of a cultural and religious identity. It is inferred that there is a mystic that transforms and empowers women on the move and that the ecclesial involvement with the base was fundamental for the liberating pastoral.

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LISTA DE SIGLAS

AREDE Associação Regional de Educação, Desenvolvimento e Pesquisa CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CPT Comissão Pastoral da Terra

COOPASC Cooperativa dos Pequenos Agricultores de Santo Cristo CUT Central Única dos Trabalhadores

DIM Dia Internacional da Mulher EST Escola Superior de Teologia FAG Frente Agrária Gaúcha

FAPERGS Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul FETAG/RS Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul GEA Grupo de Ação e Formação Sindical

GEEP Grupo de Estudos em Educação Popular, Movimentos e Organizações Sociais

KLFB Katholische Landfrauenbewegung MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra

MMTR Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra PDSE Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior PEB Programa de Bolsas de Estudo do Governo Federal

PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar RS Rio Grande do Sul

UFF Universidade Federal Fluminense

UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UNISINOS Universidade do Vale do Rio dos Sinos USP Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO_____________________________________________________12 CAPÍTULO 1 ______________________________________________________22 RELIGIOSIDADE E CONSTITUIÇÃO DAS IDENTIDADES DAS MULHERES ___22 1.1. Formação e constituição de identidades femininas _________________22 1.2. As mulheres e o ambiente natural _______________________________32 1.3. Os conceitos de religião e religiosidade __________________________41 1.4. A dicotomia da religião na vida das mulheres: da opressão à

emancipação ____________________________________________________49 1.4.1. A religião como espaço de controle e de opressão _________________49 1.4.2. A religião como espaço de libertação e emancipação das mulheres____59 CAPÍTULO 2 ______________________________________________________65 A AUTONOMIA DAS MULHERES A PARTIR DO ENFOQUE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E DA EDUCAÇÃO POPULAR_________________________________65

2.1. Da opressão ao empoderamento das mulheres: uma busca constante_65 2.1.1. Cativeiros e opressões em Marcela Lagarde______________________65 2.1.2. Ser humana, empoderamento, autonomia e autoestima em Marcela

Lagarde _______________________________________________________69 2.2.1. Opressão em Paulo Freire____________________________________74 2.2.2. Autonomia em Paulo Freire ___________________________________78 2.2. A contribuição dos movimentos sociais e feministas para a emancipação das mulheres____________________________________________________81 2.3. A Educação Popular como método de aprendizagem por meio dos

movimentos sociais ______________________________________________84 2.3.1. Conjuntura e trajetória da Educação Popular _____________________85 2.3.2. Educação Popular como um caminho de construção da autonomia ____89 CAPÍTULO 3 ______________________________________________________94

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EFEITOS DA RELIGIOSIDADE NA VIDA EM COMUNIDADE E NA

CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS____________94 3.1. Aspectos da vida comunitária no município de Santo Cristo e efeitos da religiosidade na organização de entidades coletivas ___________________94 3.2. Importância da religiosidade na organização sindical e cooperativista de Santo Cristo____________________________________________________104 3.3. História do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Santo

Cristo _________________________________________________________114 3.4 Efeitos da religiosidade na constituição das identidades das mulheres agricultoras ____________________________________________________123

3.4.1. Cotidiano de vida das mulheres agricultoras _____________________123 3.4.2. Religião, fé e Igreja na vida das mulheres agricultoras _____________132 3.4.3. A mística transformadora das mulheres em movimento ____________139 CONSIDERAÇÕES FINAIS__________________________________________145 REFERÊNCIAS ___________________________________________________150 ANEXOS ________________________________________________________161 ANEXO 1. PERGUNTAS ORIENTADORAS DAS ENTREVISTAS __________161

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INTRODUÇÃO

As relações de gênero,1 muitas vezes, ao longo da história, foram pautadas

por um discurso único, hegemônico, constituído pela sociedade com influência das instituições religiosas. Esse discurso apregoava prioritariamente dogmas religiosos com função modeladora de uma subjetividade feminina particular, principalmente no que diz respeito ao cuidado com o corpo e com a sexualidade das mulheres. No período da Idade Média, por exemplo, as mulheres eram consideradas frágeis, inferiores, tentadoras e pecadoras. Para as religiões patriarcais, de modo peculiar, o feminino estava atrelado a uma dependência do masculino, o que reforçava a inferioridade das mulheres. A justificativa central para essas características atribuídas às mulheres era fundamentada no papel assumido por Eva, que foi considerada a grande culpada pela queda do gênero humano. Além disso, ainda consta a figura de Maria Madalena, retratada como “a prostituta arrependida que escolhe um caminho de purificação e penitência.” (DALARUN, 1990, p. 49).

Nesse contexto, também entra em cena o conceito de família, que conforme Busin “é, para diversas tradições religiosas, um locus privilegiado de transmissão e/ou socialização de valores e princípios religiosos.” (2011, p. 115, grifos da autora). É com influência das Igrejas e da família que valores, regras, modos de ser e agir são estabelecidos e produzem, moldam e forjam, assim, identidades. Percebe-se que a submissão das mulheres está vinculada a formas de organização familiar, o que referenda o discurso de que é natural o sexo feminino agir dessa ou daquela forma. É visível a influência da sociedade, das religiões e dos costumes nos modos de vida das mulheres. Conforme Boff (2014, p. 135), no que se refere ao papel das mulheres dentro do contexto religioso:

1 A palavra gênero refere-se à construção social e cultural de ser homem e mulher. Ver mais em:

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História: São Paulo, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/his/v24n1/a04v24n1.pdf>. Vale salientar, entretanto, que a temática das relações de gênero também influenciou as discussões acerca da homossexualidade, das lésbicas, transsexuais, etc. Contudo, não é propósito dessa tese entrar nesse debate.

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A mulher foi considerada, por séculos, como não persona jurídica, e até hoje é excluída sistematicamente de todas as decisões do poder religioso. A mulher pode ser mãe de um sacerdote ou de um bispo, mas jamais poderá aceder a tais funções. O homem, na figura de Jesus de Nazaré, foi divinizado, enquanto a mulher é mantida como simples criatura, embora, na figura de Maria, seja considerada como Mãe de Deus.

Há, por parte das Igrejas, um controle, principalmente em torno dos corpos das mulheres. A vigia é constante e o corpo é um corpo para os outros, para o olhar e os julgamentos de diversos ângulos, que tentam sempre a inferiorização de modo que: "Nossos corpos não são nossos, são de Deus, de Jesus ou da nação, ou do Estado, ou do amante, ou do esposo, ou dos filhos, ou da moda, ou da medicina, ou da igreja." (GEBARA, 2008, p. 43).

Apesar de toda a negatividade expressa por parte das instituições religiosas em torno do sujeito mulher é perceptível, também, que, no decorrer da história, existiram mulheres engajadas politicamente e socialmente e que aparecem nos textos fundadores dos preceitos e dogmas religiosos. Desse modo, "Miriam, Ester, Judite, Débora; ou anti-heroínas, como Dalila e Jezabel, Ana, Sara e Rute serão sempre lembradas afetuosamente pelo povo." (BOFF, 2014, p. 136).

A retomada de uma visão mais positiva acerca das mulheres somente foi possível em função dos movimentos desencadeados pela Teologia Feminista2 e pela

Teologia da Libertação3 fortalecidos na América Latina e no Brasil, na década de

1970 e 1980, e que passam a refletir sobre a realidade opressora e dominante e, ao mesmo tempo, "propor uma alternativa mais originária e positiva na qual apareça uma relação nova com a vida, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade." (BOFF, 2014, p. 139). Passa-se, assim, a problematizar a realidade social para intervir e propor mudanças.

Nesse contexto, aos poucos, principalmente com a influência dos movimentos

2 A Teologia Feminista propõe-se a refletir acerca do simbolismo histórico e masculino da imagem de

Deus e a denunciar a opressão vivida pelas mulheres. Concomitantemente, faz uma reflexão sobre os valores humanos, partindo das experiências de vida humanas. A partir de uma perspectiva de suspeita, questiona e interfere na realidade social, de modo a modificá-la para abrir caminhos de justiça e de paz.

3 A Teologia da Libertação tem como propósito incluir na sociedade aqueles e aquelas que sempre

estiveram esquecidos/ausentes historicamente. Citamos como exemplo os(as) pobres, as mulheres, os/as oprimidos/as. Libertar significa contrapor-se às situações econômicas e sociais que marginalizam a vida. Para isso, é necessária uma transformação pessoal e coletiva baseada em uma nova sociedade, amparada em princípios mais humanos e igualitários.

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sociais, a constituição de identidades masculinas e femininas passa a ser ressignificada. No final do século 20, fortalece-se a luta pela modificação dos paradigmas culturais e sociais historicamente instituídos, na perspectiva de valorização do ser humano como um todo. Concomitantemente, na década de 1980, surgem, também, os movimentos de mulheres4 que passam a reivindicar

intencionalidades específicas que vão ao encontro da qualidade de vida e da reciprocidade nas relações humanas.

Constituem-se, dessa forma, movimentos de resistência e de luta que contribuíram para repensar as relações humanas, em uma perspectiva mais igualitária e democrática. Diante dessa realidade, este estudo pretende compreender os efeitos da religiosidade, a partir da Igreja Católica,5 na constituição das

identidades femininas e no Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR)6

do município de Santo Cristo/Rio Grande do Sul (RS), e suas consequências para o empoderamento7 feminino. Destacamos aqui a religiosidade, a partir da Igreja

Católica, e a entendemos como uma manifestação religiosa e cultural que vai, aos poucos, moldando o processo identitário das relações humanas.

É perceptível que, no MMTR8 aqui estudado, há a existência de uma dialética

entre opressão e emancipação, ou seja, ao mesmo tempo em que há pregação por parte da Igreja Católica para manter a submissão das mulheres, emergem organizações sociais que dão voz às mulheres e direcionam a busca por direitos. Esse fenômeno apresenta uma contradição, pois é gerador de ideias e atitudes progressistas e libertárias, mas busca a sustentação em uma instituição

4 É considerada uma organização de mulheres que se une, na maioria das vezes, por pautas

diferenciadas do movimento feminista. Envolve, prioritariamente, uma categoria de mulheres, geralmente distinta por etnias, pelo espaço urbano e rural (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Urbanas, Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, Movimento de Mulheres Camponesas) ou, então, por uma reivindicação específica. De modo peculiar, o Movimento de Mulheres Rurais e das Camponesas teve sua origem nas pastorais sociais vinculadas às instituições religiosas.

5 O foco é a Igreja Católica, já que a maioria das mulheres de Santo Cristo professa essa religião. Ao

nos referirmos à Igreja ou à religião, estamos nos referindo à Católica.

6 Elas ainda se denominam como MMTR pelo fato de estarem diretamente ligadas ao sindicatodessa

categoria e pelo fato de essa instituição estar filiada à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do RS (FETAG/RS). Elas não se denominam camponesas, mas, sim, agricultoras. Não estão vinculadas, por exemplo, à Via Campesina.

7 Ao nos referirmos a empoderamento, à autonomia e à emancipação, estamos dando o mesmo

sentido e significado.

8 Para designar o movimento de mulheres, utilizaremos movimento de mulheres trabalhadoras rurais

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eminentemente conservadora. Elaine Neuenfeldt (2008b) caracteriza essa dualidade e atenta que existem os "sujeitos subordinados" e os "sujeitos ativos". Nesse viés,

Fazer teologia a partir da experiência das mulheres significa ter que adotar posturas metodológicas que analisam as mulheres como sujeitos subordinados em estruturas sociais patriarcais e sexistas, por um lado; por outro, como sujeitos ativos que interagem com a realidade, que resistem e a transformam. (NEUENFELDT, 2008b, p. 122).

Assim, a investigação desta tese de doutorado nasce de uma inquietação pessoal em aprofundar os estudos acerca das mulheres na sociedade, ao mesmo tempo em que remete a uma realidade particular (no caso, o Movimento estudado) que teve o envolvimento pessoal desta pesquisadora, até então, como papel de assessora em encontros municipais9 do MMTR. Dessa forma, a participação nesses

encontros trouxe a percepção de que há um espaço significativo dedicado à espiritualidade. Percebe-se que há uma mística religiosa que envolve essas mulheres agricultoras e que é evidenciada sempre que se reúnem, que reforça suas crenças e valores culturais e religiosos. Por outro lado, essas mulheres passam a discutir temáticas que vão ao encontro da emancipação da mulher como sujeito, protagonista de sua história.10

É a partir dessa percepção que surge a pergunta geradora desta tese: quais são os aspectos da religião católica que contribuíram para proporcionar o empoderamento dessas mulheres?

Vale ressaltar que, no sistema de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), evidenciam-se poucas teses que tratam dessa dialética. Muitas refletem acerca da condição feminina estabelecida até então pela Igreja patriarcal e evidenciam a discussão de direitos para as mulheres.11 Há a

impressão de que uma das suposições para tal feito é que há preconceito em

9 Os encontros municipais são realizados anualmente. Geralmente são alusivos ao Dia Internacional

da Mulher (DIM). Reúnem em torno de 400 mulheres.

10 As mulheres do Movimento também se consideram feministas. Isso teve influência direta da

Teologia da Libertação e da Teologia Feminista.

11 Para fins de ilustração, citam-se as teses: ANJOS, Gabriele. "Mulheres Todas Santas": Participação

de Mulheres em Organizações Religiosas e Definições de Condição Feminina em Igrejas Cristãs no Rio Grande do Sul." UFRGS: 2005.; VIERO, Glória Josefina. A inculturação da fé no contexto do feminismo. PUC/RJ; GOMEZ, Maria Luisa Trovato. “A negação de culto a Maria e a produção dos discursos feministas religiosos: uma prospecção subjetiva do tema da submissão cultural da mulher”, USP, 2005; PINHEIRO, Anna Marina Madureira de Pinho Barbará. Igreja católica, medicina e imprensa feminina: representações sobre o corpo da mulher no Brasil Republicano. UFF.

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adentrar no tema religioso, pelo fato de que historicamente as religiões têm inferiorizado as mulheres e, com isso, acaba-se perdendo um elemento central de análise que é a força religiosa na constituição das identidades tanto negativamente, quanto positivamente. A pretensão deste estudo, portanto, é de lançar um olhar diferenciado e, ao mesmo tempo, considerar o olhar dialético que envolve o feminismo e a religião, tendo presente as contribuições da própria Igreja Católica nos movimentos de mulheres agricultoras e no processo de reformulação identitária das mulheres.12

Nossa abordagem nesta tese procura estudar uma experiência específica de Educação Popular para provocar uma reflexão acerca da influência da religiosidade na constituição de identidades femininas e as possibilidades de empoderamento das mulheres a partir da participação no Movimento de Mulheres Agricultoras.13

Compreende-se a Educação Popular como uma prática social e cultural que se opõe aos mecanismos de opressão da sociedade. Utilizamos, nesta tese, a Educação Popular como método, como um caminho de construção de autonomia.

A prática em estudo é a do MMTR do município de Santo Cristo. Essa organização surgiu na década de 1980, envolvida em um contexto sindical14 e com

influências das pastorais sociais ligadas à Igreja Católica, consolidada, principalmente, pelas lutas em prol do reconhecimento da profissão da mulher agricultora. A delimitação proposta, conforme mencionado anteriormente, é o município de Santo Cristo, situado na Região Fronteira Noroeste do RS, conforme podemos visualizar no mapa, a seguir:

12 É importante citar a tese de Marga Janete Ströher da Escola Superior de Teologia (EST)

(Caminhos de resistência nas fronteiras do poder normativo – Um estudo das Cartas Pastorais na perspectiva feminista); a tese de Gisela Anna Buettner Lermen, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (Mulheres e Igreja – memórias desafiadoras; contribuições ao resgate da história de mulheres imigrantes alemãs católicas, na região colonial alemã do Brasil meridional, durante a época da Restauração Católica); e a tese de Renate Gierus da EST ("Além das grandes águas": mulheres alemãs imigrantes que vêm ao sul do Brasil a partir de 1850. Uma proposta teórico-metodológica de historiografia feminista a partir de jornais e cartas) que contribuíram significativamente para esta tese.

13 Cabe salientar que o Movimento de Mulheres Agricultoras de Santo Cristo influenciou a formação

de demais organizações de mulheres no Estado do Rio Grande do Sul. Foi um marco histórico de luta na vida das mulheres.

14 Subentende-se “sindical”, principalmente pela vinculação existente do movimento com o Sindicato

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Fonte da imagem: http://maps.google.com e http://wikipedia.org.

A escolha do município de Santo Cristo se dá pelo fato de ele ser povoado principalmente pela imigração europeia, mais especificamente pela imigração alemã,15 cujas famílias, nesse contexto, sobrevivem predominantemente da

atividade agrícola (agricultura familiar), em que se evidencia uma cultura alicerçada nos princípios da Igreja Católica e da família patriarcal mononuclear. Vale ressaltar também, a influência da organização religiosa dos jesuítas em manter vivo o que Kreutz caracterizou como o Projeto de Restauração Católica. Concomitantemente, há a figura do professor paroquial, que “Era concebido como um agente de ligação e representação entre clero e as comunidades rurais.” (KREUTZ, 1991, p. 158, grifo do autor). Pode-se dizer, portanto, que essa cultura embasada em princípios religiosos e familiares se encontra amparada por valores que a educação formal e não formal reforça e é instituída como a “certa".

15 De acordo com Kreutz (1991, p. 58), “Na colonização alemã também houve uma íntima conexão

entre Igreja e escola. A vida comum destes núcleos populacionais, a partir de uma base comum de produção, girava fundamentalmente em torno da Igreja e da escola”.

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A tese dialoga centralmente com teólogas feministas que trazem para a discussão a dialética anteriormente elencada entre opressão e emancipação, concedendo ênfase à teóloga Ivone Gebara. Na perspectiva de empoderamento e de autonomia, entra em cena a antropóloga mexicana Marcela Lagarde e o educador Paulo Freire. Pelo viés da cultura, trazemos o conceito de habitus de Bourdieu como uma forma de compreender as naturalizações incorporadas por parte da sociedade e da própria intervenção religiosa. Trabalhamos, assim, com correntes teóricas que nos auxiliam na compreensão do objeto de estudo.

A discussão perpassa por questões teológicas. O foco, no entanto, é refletir sobre uma experiência de Educação Popular que apresenta em sua constituição identitária aspectos sociais e culturais que sofreram os impactos e efeitos da religiosidade em seus modos de vida e no cotidiano de suas ações. O cotidiano demonstra a experiência como grupo social e como construção social que exprime modos de ser e agir. Desse modo,

ao resvalar por experiências de vida, escapa ao normativo, ao institucional, ao dito, ao prescrito e aponta para o vir a ser, para papéis informais, para o provisório e o improvisado, em geral para o vivido, o concreto, o impoderável e o não dito, sobretudo quando confrontado com regras, valores herdados e papéis prescritos. (DIAS, 1994, p. 377).

Diante dessas teorias e do objeto de pesquisa proposto, busca-se refletir: como elaborar teoricamente os entrecruzamentos entre gênero, religião e Educação Popular em um diálogo que envolve movimento social e academia? Quais são os efeitos da religiosidade na constituição das identidades femininas e na constituição do MMTR de Santo Cristo? Qual é o papel que a religião católica tem exercido na organização das mulheres? Quais aspectos da religião católica contribuíram para o empoderamento das mulheres? De que forma? Até que ponto o habitus (Bourdieu) se (re)produz nos movimentos? Além das conquistas alcançadas, houve mudanças no habitus das mulheres? Como desnaturalizar as heranças culturais transformadas em habitus? As reivindicações específicas dos movimentos têm apresentado força suficiente para mediar mudanças significativas? De que modo e quais temas foram excluídos dos debates e das lutas das mulheres por se contrastarem ou por se oporem a princípios morais e religiosos adotados pela Igreja em relação às mulheres?

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A pesquisa é de natureza teórica e empírica, com tratamento qualitativo dos dados “onde a preocupação do pesquisador não é com a representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma trajetória, etc.” (GOLDENBERG, 2003, p. 14). Foi desenvolvida junto ao MMTR do município de Santo Cristo, mediante observações em encontros, entrevistas semiestruturadas e busca bibliográfica em acervos do sindicato local.

Para buscar os dados necessários às respostas anteriormente elencadas, foram realizadas oito entrevistas, organizadas em três aspectos centrais: a) vida na agricultura; b) MMTR de Santo Cristo; c) religião, fé e Igreja na vida das mulheres. O primeiro aspecto levou em consideração o cotidiano das mulheres no trabalho e na produção familiar. O segundo deteve-se em aspectos históricos do movimento e as temáticas discutidas nos encontros. Por fim, o terceiro aspecto teve como objetivo compreender as identidades das mulheres e a influência que a religiosidade tem e teve para dar sentido à vida e às suas ações privadas e públicas.

A hipótese é que o envolvimento eclesial com a base foi fundamental para a pastoral libertadora.16 Isso implica considerar que a religiosidade teve importantes

influências na constituição de identidades femininas e propiciou, a partir da participação no Movimento, a possibilidade do empoderamento das mulheres.

O objetivo da pesquisa consistiu em captar o movimento de vida das mulheres, o conhecimento produzido por elas a partir do seu engajamento social e pastoral, de modo a dar visibilidade à religiosidade construída em uma perspectiva mais ampla de sentido e que também se manifesta como uma manifestação cultural e contribui diretamente para uma visão emancipatória das relações humanas. É por esse movimento de vida e a análise de uma experiência que cunhamos juntamente com o método qualitativo um processo de metodologia hermenêutico, já que toda experiência sempre vem acompanhada de interpretações. Nesse viés, também é importante ter presente que, ao analisarmos pela via da experiência, empoderamos

16 É importante salientar que no contexto da região estudada (Fronteira Noroeste) a corrente da

Teologia da Libertação teve atuação fundamental na busca de transformação social e na igualdade de direitos.

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e damos voz às mulheres que, no decorrer da história, têm sido silenciadas e/ou invisibilizadas.

Por se tratar da análise de uma experiência de Educação Popular, trazemos para o estudo as aprendizagens e os conhecimentos desencadeados por essa prática social, levando em consideração as ações cotidianas desenvolvidas. E é por esse viés que também nos utilizamos da sistematização de experiências, que de acordo com Jara (2012, p. 75), "é um exercício intencionado que visa a penetrar na trama 'próxima complexa' da experiência e recriar seus saberes mediante um exercício interpretativo de teorização e de apropriação consciente do vivido". É a capacidade de reflexão acerca da experiência que nos leva a construir e a reconstruir os saberes. Os sujeitos, nesse caso específico, as mulheres, auxiliam a partir da sua prática social e cultural na desconstituição e na reconstituição de novas identidades femininas, em contraponto às relações de poder dominadoras historicamente constituídas. "A sistematização possibilita, a partir dos lugares que ocupamos e dos tempos em que vivemos, transformar nossas práticas sociais em objeto de reflexão, produção de conhecimentos e aprendizagens." (FALKEMBACH, 2007, p. 10-11).

Desse modo, a sistematização proporciona um espaço de diálogo e de reflexão acerca das condições de vida das mulheres agricultoras. Ela "permite produzir novos conhecimentos, que provêm diretamente de experiências vividas, as quais são sempre expressão concreta e delimitada de uma prática social e histórica mais ampla." (JARA, 2012, p. 103).

Nesse sentido, no primeiro capítulo, busca-se compreender como ocorre a constituição das identidades femininas a partir da religiosidade. Por isso, fundamentalmente entram em cena conceitos religiosos e também a relação histórica existente das mulheres com o ambiente natural. Na sequência, evidenciamos a dialética existente entre opressão e emancipação.

O segundo capítulo traz de forma mais aprofundada os conceitos de opressão/cativeiro e autonomia/empoderamento tendo como base a antropóloga mexicana Marcela Lagarde e o educador brasileiro Paulo Freire. Também, evidenciam-se as contribuições dos movimentos sociais e feministas na

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emancipação das mulheres. Ao findar do capítulo, anunciamos a Educação Popular como um método de aprendizagem dos movimentos sociais.

O terceiro capítulo evidencia aspectos de contextualização do local de pesquisa, enfoca na história da colonização alemã em Santo Cristo, sua relação com a religiosidade e com os movimentos ecumênicos que ali surgiram. Em um primeiro momento, esboçaremos de que forma a religiosidade teve influência na colonização alemã e de que forma esteve presente na organização e na constituição das identidades da comunidade. Após, elencaremos os laços de cooperação e organização comunitária estabelecidos por meio da ligação religiosa entre as pessoas. Em seguida, trataremos da importância da religiosidade e da Teologia da Libertação nas lutas e no sindicalismo local, contextualizando o Movimento de Mulheres Agricultoras e trazendo a pesquisa empírica, retratando os efeitos da religiosidade na constituição das identidades femininas e os aspectos que possibilitaram o empoderamento das mulheres a partir da religião.

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CAPÍTULO 1

RELIGIOSIDADE E CONSTITUIÇÃO DAS IDENTIDADES DAS

MULHERES

As identidades das mulheres vêm sendo desconstruídas, reconstruídas e modificadas de acordo com o contexto social e cultural em que elas vivem, e, um dos fatores que as influenciaram foi a religiosidade. Para travar este debate de busca de compreensão identitária das mulheres e seu lugar reservado na história se faz fundamental compreender historicamente e antropologicamente a relação das mulheres com a natureza, aqui entendida como meio ambiente natural. Neste contexto, elucidar o papel da religiosidade, o interesse das religiões na vida das mulheres e a dialética existente entre opressão e emancipação por parte delas, também é fundamental nessa busca por respostas ao que este capítulo se propõe: compreender a religiosidade na constituição das identidades das mulheres.

1.1. Formação e constituição de identidades femininas

Quando nos referimos à constituição de identidades, estamos nos referindo aos sujeitos que estão no mundo e às relações sociais ali estabelecidas. É a percepção das relações dos sujeitos consigo mesmos e com os outros que vai conferindo uma posição de pertencimento em um determinado grupo ou lugar. Desse modo se constroem as semelhanças e as diferenças nas formas de se relacionar na sociedade.

A constituição das identidades perpassa, portanto, pelas relações sociais e culturais. Isso implica afirmar que valores, cultura e meio social estão envolvidos intrinsecamente, o que reflete modos de ser e de agir, ou seja, é possível evidenciar uma dialética entre os modos de vida e as concepções de mundo. Os modos de vida representam o agir cotidiano e as concepções de mundo nos auxiliam na compreensão e no entendimento da realidade. Assim, também é fundamental compreender o território, ou seja, o lugar que permite a constituição de uma identidade cultural já que a vida cotidiana possui raízes culturais e sociais que interferem diretamente na vida das pessoas.

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De acordo com Abbagnano (2007, p. 261), a cultura parte basicamente de dois significados, que envolvem tanto o processo formativo do indivíduo quanto os modos de vida: o primeiro refere-se à formação do ser humano; o segundo significa os modos de vida cultivados, ou então a civilização. A cultura estabelece, assim, uma relação com o significado que damos às coisas que movem o nosso mundo, a nossa existência, e que nos tornam sujeitos de transformação social. De acordo com Freire (1987, p. 92), "Através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a história e se fazem seres histórico-sociais." Nessa mesma direção, Lagarde (2011, p. 57, tradução nossa) conceitua cultura como uma dimensão da vida e, por isso, envolve uma relação dialética entre os modos de vida e as visões de mundo. De acordo com a autora,

Por cultura entendo essa dimensão da vida, produto da relação dialética entre os modos de vida e as concepções do mundo, historicamente constituídos. A cultura é a distinção humana resultante das diversas formas de relação dialética entre as características biológicas e as características sociais dos seres humanos.17

Por ser uma dimensão da vida, a cultura é uma construção histórica e possui uma relação direta com o mundo e com a natureza: "A cultura é o resultado e a ação da relação dos seres humanos consigo mesmos, na sua ação com a natureza e com a sociedade." (LAGARDE, 2011, p. 57).18 É a expressão de formas de

comportamento, de valores e de crenças. No seguimento dessa lógica de raciocínio há que se destacar, porém, a impossibilidade de que tudo seja considerado cultura. Conforme preconiza Stuart Hall, "toda prática social depende e tem relação com o significado: conseqüentemente, que a cultura é uma das condições constitutivas de existência dessa prática, que toda prática tem uma dimensão social." (1997, p. 3). Não há como distanciar a cultura da sociedade. A cultura se constitui a partir da e na realidade social.

Nessa relação de significação de sujeitos é importante considerar as interfaces do ser humano consigo mesmo e com o coletivo como um processo da

17 "Por cultura entiendo esa dimensión de la vida, producto de la relación dialéctica entre los modos

de vida y las concepciones del mundo, historicamente constituidos. La cultura es la distinción humana resultante de las diversas formas de relación dialéctica entre las características biológicas y las características sociales de los seres humanos." (LAGARDE, 2011, p. 57).

18 "La cultura es el resultado y la acción de la relación de los seres humanos entre ellos mismos, en

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constituição das identidades. Isso pressupõe conhecer-se a si próprio e afirmar-se como indivíduo que produz conhecimento e expressa sentidos e percepções. Segundo os autores Franco & Gentil (2007, p. 5), identidades envolvem processos individuais e coletivos:

A identidade é entendida como um processo contínuo de construção individual e também coletivo, de caráter processual, auto-reflexivo e constituído a partir da definição de si mesmo e não como algo dado e estático. A identização supõe a capacidade de reflexão sobre si próprio, com significações e percepção de causalidade e pertencimento, capacidade de apropriação do que se produz no agir e no decidir o destino da ação, estabelecendo assim o reconhecimento da responsabilidade com o que se é.

Considerando que as identidades são um processo contínuo de formação e que são produzidas por meio da cultura é possível vislumbrar que elas não são imutáveis e podem, dessa forma, ser passíveis de modificação. Desse modo, as identidades são formadas historicamente, contrapondo o argumento de que são constituídas naturalmente. Muitas vezes, são constituídas de forma inconsciente. Pierre Bourdieu atenta para esses processos inconscientes e caracteriza-os como habitus, ou seja, seriam elementos da cultura humana que contribuem de forma inconsciente na formação de valores e normas em uma dada sociedade. De acordo com o autor, o habitus “[...] é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural.” (2002, p. 41). Há uma incorporação de uma cultura que a todo instante dita formas de agir e de se comportar na sociedade, moldando, assim, identidades.

A cultura faz parte e "condiciona" a nossa existência desde o momento do nosso nascimento ou até mesmo antes dele. Se analisarmos as relações de gênero na sociedade, por exemplo, percebemos que há um esforço em construir identidades a partir de relações sociais estabelecidas, historicamente, acentuando dualismos entre o sexo feminino e o sexo masculino. É o caso das cores escolhidas por ocasião dos enxovais dos que, de acordo com as normas estabelecidas, vão revelar se o ser humano será mais dócil ou, então, mais agressivo. A cor azul, por exemplo, representa o céu, a liberdade e o homem, enquanto o rosa expressa a

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sensibilidade, a delicadeza e a mulher.19 A cultura, desse modo, contribui

significativamente para modelar posicionamentos e comportamentos sociais. Conforme Sánches (2008, p. 112, tradução nossa):

Desde que o homem nasce pertence a uma cultura determinada, cujos valores, crenças, costumes e todo tipo de manifestação vão se introjetando, tornando-se inconscientes no processo de socialização. Os padrões de vida modelam o comportamento individual e coletivo das sociedades, tem caráter formativo e normativo, capacidade de controle e sanção social.20

Entretanto, essas identidades não necessariamente precisam ficar à mercê da construção histórica da sociedade. É a nossa inserção na sociedade como sujeitos que se relacionam com os outros que vai constituindo novas identidades. Louro (2008, p. 24) ressalta que "compreendemos os sujeitos como tendo identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias." Pode-se dizer que há diferentes identidades no indivíduo e que estas fazem parte de um processo de construção de significado, na qual a cultura é um elemento central para a constituição das identidades.

De acordo com Castells (1999), identidades pressupõem a construção de atributos culturais que se inter(relacionam). O autor traz para a discussão três formas e origens que podem constituir identidades: identidade legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto. A identidade legitimadora é aquela iniciada a partir das instituições dominantes e tem por objetivo expandir a dominação na sociedade. Já a identidade de resistência é a que resiste à lógica da dominação. A identidade de projeto propõe a construção de novas identidades. É a identidade de projeto, segundo Castells que se identifica com as lutas feministas, já que se opõe ao patriarcado e às estruturas de dominação. Essa forma de identidade também se aproxima da perspectiva de sujeito atuante.

19 "Se observarmos as reações diante de um recém-nascido, é comum, diante de bebês fêmeas,

escutarmos: como é meiga, tranqüila, que rostinho delicado e, diante dos bebês machos: como é forte, já se movimenta, é esperto." (FARIA, 1998, p. 25).

20 "Desde que el hombre nace pertenece a una cultura determinada, cuyos valores, creencias,

costumbres y todotipo de manifestación se van introyectando, haciéndose inconscientes en el proceso de socialización. Los patrones de vida modelan el comportamiento individual y coletivo de las sociedades, tienen carácter formativo y normativo, capacidad de control y sanción social." (SÁNCHES, 2008, p. 112)

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É essa relação estabelecida consigo mesmo e com os diferentes que nos identifica tal como nós somos em uma determinada sociedade. "A identidade não faz referência apenas ao mundo, porém à forma como vive o ser humano na sua maneira de idear e de manipular o seu mundo histórico e, também, o modo como ele constrói sua projeção introspectiva e estética do mundo." (SIDEKUM, 2003, p. 266). Assim sendo, Nadja Hermann (2014) fundamenta o conceito da alteridade por um viés ético, ou seja, busca-se o reconhecimento do outro. A autora ressalta que a ética, em seu modo tradicional, dificilmente reconhece o outro e a diferença acaba sendo ocultada ou negada. Por isso, a importância do diálogo, já que ele só é possível porque existe um outro, um diferente, um interlocutor. Nesse processo dialógico, nos transformamos enquanto sujeito. Nesse contexto, segundo Hermann (2014, p. 161), "o diálogo e a experiência estética podem promover a imaginação e a sensibilidade exigidas para o estabelecimento de uma reciprocidade possível entre o eu e o outro."

Nessa perspectiva, a constituição das identidades não acontece de modo isolado, mas sim na interação entre os indivíduos diferentes e entre diferentes grupos sociais de etnia, raça, gênero, classe social, entre outros. Um dos mecanismos utilizados nessa interação entre as pessoas é a linguagem que, em forma de uma relação dialógica, constrói identidades e significados. Assim, Taylor, referindo-se a Gutmann, destaca que “a identidade humana é criada dialogicamente, como reacção às nossas relações, incluindo os próprios diálogos com os outros. (TAYLOR, 1994, p. 25, grifos do autor)”. A relação dialógica permite enxergar o mundo com outros olhos e envolto por relações de reciprocidade nas relações humanas. Conforme Zitkoski (2008, p. 130, grifos do autor), "o diálogo é a força que impulsiona o pensar crítico-problematizador em relação à condição humana no mundo. Por meio do diálogo podemos dizer o mundo segundo nosso modo de ver." “Dizer o mundo” significa ter coragem e assumir-se como sujeito pensante, protagonista social e que estabelece relação com o diferente. O diálogo proporciona a interação entre os sujeitos por meio da linguagem. De acordo com Hermann (2014, p. 25): "O diálogo rompe com a lógica da apropriação, pois ele só se institui porque há um outro, o que supõe a disponibilidade em rever nossa base de valoração, questionada pela posição do outro."

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Essa relação com o outro diferente de mim, traduzida no conceito de alteridade,21 é um dos elementos fundamentais para a constituição das identidades e

que, de acordo com Grolli (2004, p. 22), "fornece a chave para compreender-se a realidade histórica e aponta a possibilidade de ruptura nas situações de dominação.” As identidades, portanto, são estabelecidas na relação entre os diferentes, na relação consigo mesmo e com os outros. De acordo com Cuche (1999, p. 183), existe uma dialeticidade entre a identidade e a alteridade de modo que "Não há identidade em si, nem unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra, ou seja, identidade e alteridade estão ligadas em uma relação dialética." Sidekum (2003, p. 158) também nos auxilia na reflexão acerca da importância da alteridade para as nossas ações cotidianas e práticas sociais.

Desde a alteridade é possível pensar nosso modo de ser e agir num horizonte de crescimento do outro e da vida, servindo como referência crítica contra os modelos desumanizadores e como horizonte para elaborar novos modos, simbólicos, de autocompreender-nos e produzirmos novas práticas humanizadoras.

Para construir novas práticas humanizadoras, entretanto, é importante ter presente que as relações humanas também são entrelaçadas por relações de poder, as quais foram constituídas histórica e culturalmente. Segundo Hall (1997, p. 33, grifos do autor):

há práticas políticas que se referem ao controle e ao exercício do poder, da mesma forma que existem práticas econômicas, que se referem à produção e distribuição dos bens e da riqueza. Cada uma está sujeita às condições que organizam e regem a vida política e econômica destas sociedades. [...] Contudo, seu verdadeiro funcionamento depende da forma como as pessoas definem politicamente as situações.

Essas práticas sociais e o exercício do poder são reflexo da mundialização das relações humanas de um contexto contemporâneo, já que os modos de vida dos indivíduos é afetado conflitando identidades antes ligadas a histórias e a tradições. É por essa ponte que entra o fenômeno da globalização, por meio do qual se impõem valores, visões de mundo, relações de poder. Hall (2006, p. 75, grifos do autor), aponta essa fragmentação e salienta que quanto mais se uniformizam os estilos,

21 Pressupõe constituir-se como outro. Isso significa, muitas vezes, colocar-se ao lado de, ou então

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lugares e imagens, "mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’.”

Hall (2006, p. 76) acrescenta ainda que se trata de uma "tensão entre o 'global' e o 'local.". Isso nos remete à reflexão em torno do conceito de pertencimento em relação à significação de origem. Percebe-se, com isso, que, aos poucos, emergem movimentos que impõem valores e normas na sociedade que, muitas vezes, condicionam as condutas e ações dos seres humanos.

Ao analisarmos a constituição das identidades femininas, por exemplo, percebemos que a sociedade patriarcal conferiu a elas uma identidade oprimida, submissa e inferiorizada em relação ao homem. Houve, historicamente, uma naturalização dos papéis atribuídos ao sexo feminino, o que orientou suas condutas e ações. Essa condição de inferioridade imposta às mulheres afetou, de acordo com Lagarde (2011), as relações de produção e reprodução já que teve reflexos diretos nas relações sociais. Interferiu, desse modo, na concepção de mundo e na vida das mulheres, pois sua subjetividade feminina serviu como alvo de preconceitos. Gebara (2010) ressalta que as nossas ações, modos de ser, agir e comportar são reflexos dos condicionamentos estabelecidos às mulheres em função da sua situação de gênero. Essa situação de gênero tem relação direta com a assimilação concebida, historicamente, das mulheres ao corpo e do homem à razão. Enquanto que somente os homens eram considerados seres pensantes, as mulheres eram identificadas pela sua beleza e sensibilidade. Instalou-se, assim, uma dicotomia entre corpo e alma que, no entanto, contribuiu significativamente para a condição de identidades inferiorizadas das mulheres. Houve, desse modo, no decorrer de parte da história da humanidade, uma legitimação da inferioridade, o que desencadeou uma visão de dominação. Lahire (2006) faz um alerta a respeito da legitimação das diferenças culturais ao ressaltar que muitas vezes permanecemos fixos às diferenças culturais, legitimando-as. Essa concepção nos faz crer que o mundo social é sinônimo de relações de dominação.

Nesse contexto, percebe-se que as identidades femininas foram construídas e reconhecidas a partir de uma inferiorização das mulheres. O que se busca, no entanto, "não é o reconhecimento de sua identidade, mas primeiramente, uma desconstrução dessa identidade e a construção e o reconhecimento respeitoso de

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uma nova identidade que não seja excludente e subjugada." (ANDRIOLI; ANGELIN, 2012, p. 1457). Taylor (1994), nessa lógica, destaca que as consequências causadas pela ausência de reconhecimento ou, então, por um reconhecimento equivocado por parte da sociedade se traduzem em formas de agressão que restringe as pessoas de maneira falsa.

Alex Honneth contribui nessa discussão de maneira semelhante, discorrendo que a "nossa integridade é dependente [...] da aprovação ou reconhecimento de outras pessoas. A negação do reconhecimento [...] é prejudicial porque impede [...] que as pessoas tenham uma visão positiva de si mesmas – uma visão que é adquirida intersubjetivamente." (HONNETH, 1992, p. 189).22 As definições de Taylor

(1994) e de Honneth (1992) em torno do reconhecimento envolve a discussão para uma questão de ética,23 já que o não reconhecimento poderia fragmentar a

subjetividade. Desse modo,

Sem a experiência de que o outro indivíduo seja um próximo/semelhante, nós não estaríamos em condições de dotá-lo com valores morais que controlam ou restringem o nosso agir; portanto, primeiramente precisa ser consumado esse reconhecimento elementar, precisamos tomar parte (Anteilnehmen) do outro existencialmente, antes de podermos aprender a orientar-nos por normas do reconhecimento que nos intimam a determinadas formas de consideração ou de benevolência. (HONNETH, 2008, p. 73).

Nancy Fraser também entra nesse debate em torno da temática do reconhecimento, no entanto, com uma visão diferenciada. De acordo com a autora, o reconhecimento deve ser tratado como status social, pois "o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na relação social." (FRASER, 2007, p. 107). Nesse modelo de status, a mesma autora concebe o reconhecimento como uma questão de justiça, com redistribuição econômica, empoderando as mulheres e modificando seu status social e as tornando integrantes ativas/participativas na sociedade. "O não reconhecimento, conseqüentemente, não significa depreciação e

22Traduzido por Fraser. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010264452007000100006&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 23 jul. 2014.

23 Por ética compreendemos a relação com a vida e também como um espaço de formação humana,

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deformação da identidade de grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como um igual na vida social." (FRASER, 2007, p. 107, grifos da autora). O falso reconhecimento ou, então, a subordinação de status, nesse contexto, conforme a autora,

não é apenas ser desmerecido ou desvalorizado nas atitudes conscientes ou crenças dos outros. Significa, ao contrário, ter negada a condição de parceiro integral na interação social e ser impedido de participar como um par na vida social, como conseqüência de padrões institucionalizados de valoração cultural que estabelecem alguém como desmerecedor de respeito e estima. (FRASER, 2007, p. 113).

A paridade participativa entra em foco e emerge, de acordo com Fraser, a necessidade de substituição de padrões estabelecidos. É por isso que o modelo de status tenta "tornar o sujeito subordinado um parceiro integral na vida social, capaz de interagir com os outros como um par." (FRASER, 2007, p. 109), na perspectiva de cidadão. Essa conceituação teórica de Fraser parece ser divergente ao modelo de identidades apontado, principalmente, por Honneth e Taylor, trazendo o conceito mais próximo da questão da moralidade24 em vez da ética. Isso se justifica, de

acordo com Fraser (2007, p. 109), na seguinte argumentação:

Em primeiro lugar, ao rejeitar a visão de reconhecimento como valorização da identidade de grupo, ele evita essencializar tais identidades. Em segundo lugar, ao focar nos efeitos das normas institucionalizadas sobre as capacidades para a interação, ele resiste à tentação de substituir a mudança social pela reengenharia da consciência. Em terceiro lugar, ao enfatizar a igualdade de status no sentido da paridade de participação, ele valoriza a interação entre os grupos, em oposição ao separatismo e ao enclausuramento. Em quarto lugar, o modelo de status evita reificar a cultura – sem negar a sua importância política.

A discussão em torno do reconhecimento e das identidades mostra como são complexas as relações sociais e faz emergir, assim, a necessidade de sempre contextualizá-las. Nesse debate é possível perceber que cada autor/autora à sua maneira contribui para uma teoria crítica da sociedade. As posições de Honneth e Fraser aparentam ser contraditórias, contudo, elas podem vir a ser complementares por serem elaborações teóricas e de luta política de diferentes períodos e por não apresentarem uma clareza suficiente em sua aplicabilidade. (PINTO, 2008).

24 O conceito de moral se aproxima de valores, costumes e condutas a seguir na sociedade.

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Diante dessa breve análise sobre a importância do reconhecimento das identidades das mulheres na sociedade, cabe um desafio: o de desconstruir identidades femininas previamente estabelecidas e caminhar na direção do reconhecimento das mulheres como sujeitos na sociedade, em uma relação mais harmoniosa e recíproca entre as diferenças. A construção de si como sujeito envolve a valorização do ser humano como um todo, respeitando-se as diferenças. Fica, assim, cada vez mais evidente a constituição das identidades das mulheres que não seja submetida a uma moral opressora, mas, sim, a uma visão emancipatória. Alain Touraine (2007, p. 74) nos auxilia na conceituação da "mulher-sujeito", que pensa e desconstrói a visão de menoridade na sociedade. De acordo com o autor,

não é mais por uma função social ou por modelos culturais que as mulheres se definem, mas por uma inversão de atitudes e de expectativas cuja exigência principal é a criação delas mesmas como mulheres-sujeitos, para além das diferenças da condição social e da aptidão em manejar a linguagem. E é justamente por se tratar da questão da compreensão das falas cotidianas que as mudanças evocadas ou desejadas assumem uma importância capital.

A perspectiva de mulher sujeito remete à possibilidade de reconstruir identidades e de gerar empoderamento, que, de acordo com Lagarde (2000), se desenvolve quando há o fortalecimento e a desenvoltura da capacidade política das mulheres, o que permitirá o enfrentamento de mecanismos de opressão e sujeição de dominação e a convivência em condições de igualdade. A mesma autora também faz referência às possibilidades coletivas de empoderamento de gênero, de modo que se possa confrontar com consciência coletiva a ordem social estabelecida e interferir diretamente na forma de reconhecimento das identidades femininas. Isso remete à discussão para os movimentos sociais, cujas organizações têm a tarefa de descentralizar o poder em uma perspectiva democrática. É fundamental, nesse contexto, viver a experiência do assumir-se como um ser atuante e sujeito da sociedade, ou seja, "Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar." (FREIRE, 1996, p. 41).

Vivenciar a perspectiva de mulher sujeito nos aproxima da citação de Gebara (2010, p. 18), quando traz a afirmação do gênero feminino: "Nosso gênero é nossa possibilidade social, é nossa história, nossa cultura e nossa esperança." A

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esperança se traduz também em uma utopia que nos conduz a uma possibilidade de enfrentamento às situações, historicamente submetidas pelo gênero feminino de modo a construir lugares de novas identidades sociais e culturais, o que tem nos sido roubado diante da afirmação da naturalização dos papéis femininos submissos e subalternos. Para desconstruir essas identidades naturalizadas, a próxima seção irá abordar elementos da história das relações humanas nos primórdios da civilização.

1.2. As mulheres e o ambiente natural

Quando nos referimos às relações entre as mulheres e o ambiente natural, percebe-se que há uma ligação da figura do feminino com a terra e a vida, bem como com fenômenos que acontecem na natureza e no corpo das mulheres. Vale salientar, entretanto, que a intenção com essa reflexão não é a de simplesmente assimilar a mulher à natureza e o homem à cultura, questões dicotômicas tão contestadas nas discussões e reflexões acerca das relações de gênero. A teorização que nos interessa é trazer elementos que nos auxiliem na compreensão de uma ligação estrita existente entre as mulheres e o ambiente natural que não necessariamente exija entrar no patamar de superioridade ou de inferioridade. Para tanto, nos utilizamos de teorias de Eisler (1996) e outros que trazem como recorte25

releituras arqueológicas e antropológicas direcionadas para um período histórico dos primórdios da civilização.

Ao analisarmos os primórdios da civilização, por exemplo, encontramos em Riane Eisler (1996), a sustentação de que, antes mesmo da existência de uma sociedade de dominação, prevalecia uma de parceria, trazida à tona principalmente por intermédio da arqueologia, em que, nas relações sociais, culturais e sexuais não predominava a dominação e a exploração e, concomitantemente, as relações entre homens e mulheres não necessariamente eram dicotômicas. Para fins de ilustração, citamos os significados atribuídos às relações de gênero no Tibete, em que “a famosa frase om mani padme hum (a jóia na flor de lótus) tem muitas camadas de significados místicos. Refere-se à unidade primordial em um todo maior do que hoje

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tendemos a considerar polaridades: claro e escuro, criação e destruição, fogo e água, e mulher e homem.” (EISLER, 1996, p. 40).

Na Cabala também foram encontradas imagens que exaltavam as mulheres e a sua sexualidade. “Por exemplo, as chamadas Vierges Ouvrantes que eram veneradas na Idade Média cristã, retratam o corpo grávido de Virgem Maria na mesma postura de algumas das chamadas estatuetas grávidas de Vênus, no período paleolítico.” (EISLER, 1996, p. 41). Simbologias que representavam a igualdade de gênero também entram em cena e reforçam a teoria da pré-existência de uma sociedade igualitária, como pode ser visto no sinal do infinito da iconografia indiana.

Originalmente, na iconografia indiana, o sinal de infinito (∞) significava, aparentemente, a união sexual: dois tornando-se um. Composto de dois círculos, próximos um do outro – um no sentido dos ponteiros do relógio e o outro no sentido inverso, sem um ficar sobre o outro –, simbolizava a igualdade de mulheres e homens, em relação à totalidade ou ao infinito. (EISLER, 1996, p. 42).

Eisler (2007, p. 30) reconhece, contudo, que durante milênios os homens proclamaram guerras, a sociedade atribuiu a eles a simbologia da Espada, entretanto "isso não significa que os homens sejam inevitavelmente guerreiros." Certamente, de acordo com a autora, mulheres e homens pertencentes às sociedades pré-históricas tinham o poder de nutrir, caracterizado pelo Cálice, que simboliza fonte de vida. Assim, percebe-se que a dominação é um problema social e cultural, ou seja, ela acontece quando "o poder da Espada é idealizado – em que tanto homens quanto mulheres aprendem a equiparar a verdadeira masculinidade com dominância, e a ver os homens que não estão em conformidade com esse ideal como 'fracos' ou 'afeminados’." (EISLER, 2007, p. 31).

Desse modo, ao analisarmos essa vinculação do sexo feminino com o meio em que vivemos, entramos em uma relação de discussão com a ética e com o cuidado com a vida. Percebe-se que há uma relação intrínseca das mulheres com a terra e, consequentemente, com a vida e o cuidado que devemos ter para preservá-la. A discussão em torno do cuidado, no entanto, tem historicamente se aproximado

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do sexo feminino somente pela via do privado,26 ou seja, as mulheres historicamente

cuidam das crianças, dos doentes e dos idosos. O cuidado com o mundo público27

representado pelo trabalho e pelos negócios está ligado ao mundo masculino. Uma dicotomia que gera discussões e confrontos ao adentrarmos na perspectiva da práxis ética do cuidado que "se apresenta através das atitudes, das palavras, na forma de assumir a vida." (ULRICH, 2004, p. 8). Assumir a vida significa relacionar-se com o outro e com a natureza em uma perspectiva de reciprocidade. De igual forma, reflete essa ligação da figura feminina com a terra e com a vida.

Essa vinculação das mulheres com a terra é ainda mais visível e exprime uma proximidade com as mulheres agricultoras que, historicamente, tem tido uma preocupação com a agroecologia, além de essas mulheres terem sido protagonistas na luta por soberania alimentar.28 Puleo (2013), ao citar em seus escritos François

Poulain de la Barre, já fazia menção à força das mulheres e sua ligação estrita com a terra ao reforçar a teoria de que as mulheres que se dedicam ao cultivo da terra possuem previsões meteorológicas mais acertadas do que a astrologia. Na mesma direção, a autora traz à tona a relação das mulheres com a medicina alternativa com base nos chás, tida muitas vezes como mais benéfica e eficaz do que a medicina tradicional: "A terra como fonte de alimento, de proteção, de poder, de resistência e de mistério aparece assim representada em forma feminina por causa de uma certa semelhança entre os ciclos da terra e sua fertilidade e os ciclos femininos." (GEBARA, 2010, p. 44).

Gebara destaca que, analisando pela via da arqueologia, é possível enxergar diferentes expressões da cultura humana. "Estatuetas de mulheres parindo uma criança, ou de mulheres grávidas representando a fertilidade da Terra [...] parecem ser as primeiras manifestações daquilo que se poderia chamar de espírito religioso humano." (2010, p. 44). A ligação do feminino com a fertilidade e os poderes da vida reflete também o mistério da fecundidade. Conforme Ruether (1993, p. 47), as imagens da Deusa encontradas pela arqueologia dão um destaque maior para os

26 Entendemos o privado como o espaço da casa.

27 O público é sinônimo de negócios, de trabalho fora de casa.

28 Vale salientar que, historicamente, na agricultura, houve uma certa prática na divisão de tarefas, ou

seja, a mulher era a responsável pela horta e o homem pela roça, embora ambos pudessem trabalhar tanto na roça quanto na horta.

Referências

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