O TERMO EVANGELHO, EM MARCOS - Estudo de Mc 1,1 –
Frei Bruno Glaab
Que visão de SH podemos colher ao ler a primeira frase do Evangelho de Marcos? Ou ainda, o que entendemos pelo termo evangelho, em Marcos? Para aprofundar esta compreensão, valemo-nos de um estudo feito por nós e publicado nos Cadernos da Estef há alguns anos.
O evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito nos moldes atuais, inicia com a sugestiva frase . (princípio do evangelho de Jesus Cristo). Antes de Marcos, Paulo já usara o termo evangelho, mas não o fizera para designar um livro escrito como o fez Marcos. Convém, então, buscar a compreensão do termo evangelho em Marcos.
1 – Elementos exegéticos
Marcos usa um termo, muito empregado por Paulo, e talvez pelo próprio Jesus. Este mesmo termo encontra vestígios tanto no mundo grego quanto no Antigo Testamen-to. Na boca dos apóstolos este termo recebe novo sentido em relação ao uso profanos e mesmo veterotestamentário.
a) Evangelho no Antigo Testamento
No Antigo Testamento o termo (b.sorâ), que se tarduz por Boa Notícia, ou Notícia Alegre1. Em certas ocasiões se refere ao salário dado ao portador de boas notícias, bem como ao seu conteúdo2. Ainda se verifica o termo como o alegre anúncio da vitória
de guerra.
“O mensageiro se lança para frente, levanta o braço direito em sinal de saudaçào e exclama em voz alta: „Salve! Vencemos‟ ()! Sua mesma atitude deixa entrever que se trata de uma notícia alegre” 3.
Neste contexto, significa salvação de Sião, conforto aos aflitos da guerra e liberta-ção dos cativos (Is 61,1-3), quando enfim, se anunciava que a trágica situaliberta-ção de opres-são terminara4. Aqui já tem o sentido de proclamação do Reino de Javé e dos tempos de
salvação (Sl 40,10; 96,2; Is 40,9; 41,27; 52,7; 61,1)5.
1
BAUER, W. . In: Wörterbuch zum Neuen Testament.
2
LA CALLE, F. A teologia de Marcos. p. 39.
3
RUIZ, J.M.G. Evangelio según Marcos. p.66.
4
MCKENZIE, J. Evangelho. In: Dicionário Bíblico.
5
No sentido teológico, (b.sorâ) se situa no contexto de Is 40-66 e ali expressa o fim do exílio, consolação, perdão e a volta do carinho de Deus sobre Sião (Is 41,1-2.9), a instauração do reino de Deus (Is 52,7), quando Deus exercerá sua força divina (Is 52,1s) e a vitória e o reinado de Deus se tornam definitivos6.
b) Evangelho no Novo Testamento
Nos tempos do Novo Testamento, conhece-se o termo que está no contexto do culto ao imperador, principalmente por ocasião do nascimento do herdeiro do trono, ou quando se quer honrar o deus-César7. Todos se reúnem perto dele e o contem-plam como ser divino. Dele recebem milagres, curas. Ele é o salvador do mundo. Quem deseja fortuna, se aproxima dele, pois ele está na terra como deus. Estar sob seu poder é sinal de graça. Sendo ele mais que um simples mortal, suas disposições são vistas como alegria, seus decretos são sagrados e trazem salvação8. Também se envia os emissários
pelo império a anunciar a ascensão do imperador aos céus, como uma Boa Notícia9. Em suma, se refere aos principais fatos da vida do imperador, que é considerado divino10.
Os apóstolos usam o termo com novo sentido. Para eles, a Boa Notícia do culto imperial, é susbtituída com a única Boa Notícia, que comporta a mensagem dos arautos de Jesus, ou seja, o início do Reino de Deus (Mt 4,17.23; 9,35; 24,13). Trata-se da alegre notícia da salvação contida no anúncio da vida, morte e ressurreição de Jesus (1Cor 15,1-5; 2Cor 2,12)11. É sinônimo de e O termo aqui se relaciona
com Deus, com o Reino e com Jesus. O autor e o objeto do evangelho é Jesus, o messias, o Filho de Deus13. Supostamente este termo entrou nos evangelhos sinóticos, pelas mãos
de Marcos14, ao menos enquanto título e gênero literário.
c) Em Marcos
O termo grego encontrado no primeiro versículo de Marcos, pode ser entendido como o título da obra, pois era comum que os escritores da época colocassem uma frase curta, como o anúncio do que seria tratado15. Daí se poder supor que, para
Mar-cos, a frase: “princípio do evangelho de Jesus Cristo”, era como que o título daquilo que seria tratado no livro a ser escrito.
6
DUFOUR, X.L. Evangelho. In: Vocabulário de Teologia Bíblica.
7
FASCHER, E. Evangelium. In: Biblisch-historisches Handwörterbuch. Vol. I.
8
RUIZ, J.M.G. Evangelio según Marcos. p.66
99
MCKENZIE, J. Evangelho. In: Dicionário Bíblico.
10
DUFOUR, X.L. Evangelho. In: Vocabulário de Teologia Bíblica.
11
FASCHER, E. Evangelium. In: Biblisch-historisches Handwörterbuch. Vol. I.
12
BONARD, P. Evangelien. In: Biblisch-historisches Handwörterbuch. Vol. I.
13
BATTAGIA, O. et al. Comentário ao evangelho de São Marcos. p.21.
14
LA CALLE, F. A teologia de Marcos. p. 39.
15
Marcos, ao escrever um livro, designado por evangelho, está criando um novo gê-nero literário, até então desconhecido. Evangelho não é mera história, como hoje se en-tende este conceito. Antes, é uma boa notícia.
“Em Marcos, não vamos encontrar uma história de Jesus, no sentido técnico da palavra, mas sim um „evangelho‟, isto é, uma „boa notícia‟. Trata-se de um gênero literário criado por Marcos para dar testemunho e interpretar autenticamente a figura de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, mestre único (cf. 1,22.27) e definitivo da comunidade à qual o autor dedica a sua obra”16.
Em Marcos o termo significa a vinda de Jesus, bem como o relato de sua vida, morte e ressurreição17. Descreve a atividade de Jesus com o termo
(euangeli-on) que corresponde ao hebraico (b.sorâ19). Trata-se de raiz hebraica usada, princi-palmente pelo segundo Isaías20, com o sentido de proclamação da salvação de Javé21.
Nes-te sentido, o evangelho é diaconia, pois é boa notícia aos pobres e deserdados. Marcos inicia com João Batista aplicando o termo de Isaías a Jesus. Ele aponta para a missão de Jesus como uma diaconia que traz a redenção de Javé. Assim, o ministério de Jesus é a realização da esperança messiânica do dêutero-Isaías: curas de Jesus se inspiram em Is 42,7; as expulsões de demônios, em Is 49,24-25; o batismo de Jesus, em (Is 42,1), etc. Tudo isto são frutos da diaconia de Jesus, conforme previstos em Isaías. Jesus, pelo e-vangelho (diaconia) inaugura os tempos messiânicos, que agora são apresentados como o início do Reino de Deus. Falando da ação de Jesus, o texto de Marcos, muitas vezes, se refere aos cânticos do Servo de Javé do Segundo Isaías (Is 42,1-9; 49,1-7; 50,4-11; 52,13-53,12). Ou seja, Jesus, como outrora o Servo de Javé, realiza a Boa Nova, ou a A-legre Notícia para os pobres e excluídos de toda sorte. Como o Servo de Javé, desfigura-do, representava esperança para o povo deportadesfigura-do, agora Jesus representava esperança para os pobres e toda sorte de oprimidos.
De acordo com o sentido extraído de Isaías e mesmo do mundo grego, pode-se ver em Marcos um conteúdo político-religioso. A Boa Notícia não quer ser apenas de cunho espiritual, mas compreende a realização dos tempos messiânicos anunciados pelo profeta, quando se fala da fartura, da abundância e principalmente da paz reinante entre os povos. Tanto naquilo que Isaías projetava como naquilo que os gregos e romanos anunciavam, se percebe a alegria e o alívio para o povo.
2 - Evangelho hoje
A ação de Jesus não é apenas Boa Notícia espiritual. Sua prática, desde o início, beneficia os doentes, deficientes, pecadores, estrangeiros e todos os que sofriam as mais
16
ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. p.4.
1717
MCKENZIE, J. Evangelho. In: Dicionário Bíblico.
18
SCHMOLLER, A. . In: Handkonkordanz zum Griechischen Neuen Testament.
19
FASCHER, E. Botschaft. In: Biblisch-Historisches Habdwörterbuch.
20
“Este conceito de mensageiro recém-chegado do campo de batalha encontra-se no âmago dos usos mais teologi-camente fecundos em Isaías e em Salmos. Aqui é o Senhor que é vitorioso sobre os seus inimigos. Por causa de sua vitória, ele vem agora libertar os cativos (Sl 68,11[12]; Is 61,1)” (Oswald, J. N. . In: Dicionário Internacional
de teologia do Antigo Testamento. 21
diversas exclusões. Diante desta práxis, Boa Nova é mais do que anunciar uma mensa-gem de salvação escatológica, é antes, anunciar uma mensamensa-gem de libertação aos homens e mulheres que hoje vivem à margem dos direitos humanos. Anunciar o evangelho, a boa notícia, significa acima de tudo, um compromisso com os pobres. Os tempos messiânicos do Segundo Isaías se realizaram em Jesus Cristo, mas cumpre aos discípulos de hoje a-tualizar esta esperança, anunciando uma Boa Nova a todos aqueles que carecem dos di-reitos mais elementares. Ou seja, a evangelização compreende uma ação verdadeiramente libertadora.
Nesta perspectiva, a Igreja só evangeliza no verdadeiro sentido da palavra, se torna portadora de uma Boa Notícia aos homens e mulheres de hoje que se vêem envoltos em um processo de exclusão de toda ordem. Anunciar o evangelho é mais do que falar em salvação eterna, é antes, envolver-se com aqueles que têm fome e toda espécie de carên-cias e com eles transformar esta realidade pecaminosa que tanto fere a dignidade humana. Evangelizar é anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo que se comprometeu com os fracos de seu tempo e que leva a igreja a fazer o mesmo hoje. Logo, em Mc entende-se uma visão de SH integral. Não se separa corpo e alma, nem tampouco se deixa a preocupação so-mente para a alma, mas a preocupação é total. Quer se salvar o SH na sua totalidade. É o SH inteiro que interessa à prática de Jesus.
Conclusão
Ao usarmos o termo evangelho, muitas vezes nos esquecemos do conteúdo real que ele contém. Facilmente se cai no sentido apenas espiritual. Evangelho é muito mais do que isto. Para entendê-lo, é preciso olhar para o sonho do Segundo Isaías e para toda a práxis de Jesus, sua vida de diaconia em favor dos pecadores, deficientes, pobres, etc. Só quando a nossa práxis for semelhante à de Jesus, poderemos realmente falar em Boa No-va ou Boa Noticia para o ser humano de hoje.
BIBLIOGRAFIA
ALEGRE, Xavier. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista – Chave de leitu- Ra de um evangelho beligerante. Belo Horizonte: Cebi, 1988, n.8
BATTAGLIA, Oscar et. al. Comentário ao evangelho de São Marcos. Petrópolis: Vo- zes, 1978
BAUER, Walter, Wörterbuch zum Neuen Testament. Berlin: Walter de Gruyter, 1988 DUFOUR, Xavier León. Vocabulário de Teologia Bíblica. Barcelona: Editorial Herder, 1966
HARRIS, R. Laird et. al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1998
HOOKER, Morna. Jesus and the Servant. London: S.P.C.K. 1959
LA CALLE, Francisco. A Teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1984 MCKENZIE, John. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983
Lica Esperança, 1993
REICKE, Bo e ROST, Leonhard. Biblisch-Historisches Handwörterbuch. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, Vol. I
RUIZ, José Maria Gonzáles. Evangelio según Marcos. Estella (Navarra): Editorial Verbo Divino, 1988
SCHMOLLER, Alfred. Handkonkordanz zum Griechischen Neuen Testament. Stuttgart: Deutsche Bibelgeselschaft, 1982