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O Aprendizado das vizinhanças: globalização, micropolítica e filosofia da diferença

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WILSON ALVES SENNE

O Aprendizado das Vizinhanças

Globalização, micropolítica e filosofia da diferença

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor.

Orientador: Luiz Felippe Perret Serpa

SALVADOR 2002

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Faculdade de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Wilson Alves Senne

O Aprendizado das Vizinhanças

Globalização, micropolítica e filosofia da diferença

Dissertação para obtenção do grau de Doutor em Educação

Salvador, 07 de Fevereiro de 2003

Banca Examinadora:

Carlos Geraldo Espinheira José Crisóstomo de Souza Dante Augusto Galeffi Roberto Sidnei Macedo

Mary de Andrade Arapiraca (suplente)

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RESUMO

Esta tese buscou quatro objetivos. Em primeiro lugar, apresentar um esboço do que tem sido chamado de globalização, figurando, através de excertos textuais, um breve cenário da contemporaneidade histórica como aparece socialmente tensionada entre os progressos da racionalidade instrumental (monoteísmo técnico-econômico) e a pesquisa de outras formas de racionalidade, ditas culturais, que se quer contar entre as práticas transformadoras da modernidade. Em seguida, tematizou-se a emergência da sociedade de risco, como autoconfrontação globalitária exigente de uma mobilização política em escala mundial, no momento em que as formas tradicionais de participação política (parlamentares, partidárias, sindicais) são despotenciadas, circunstância que enseja novas formas de ativismo subpolíticas e micropolíticas. Na terceira parte, abordou-se a filosofia que estaria fornecendo conceitos e inspiração ao chamado ativismo micropolítico, indicando-se algumas noções com que se poderia talvez, dizer desse tipo de envolvimento ao mesmo tempo que envolvendo-se com ele. Na última parte, em consideração ao desafio que a emergência dos problemas complexos (sociais, ambientais) colocam à escola – problemas para o futuro, cujos termos estão ainda por ser inventados – procurou-se sugerir elementos para um aprendizado que transpassaria a escola e seus formatos, que faria dela um centro de variações, realçando-se aspectos marginais envolvidos no aprendizado tradicional, e que poderia fazer jus ao título de aprendizado das

vizinhanças.

Palavras-chave: Globalização; Sociedade se risco; Micropolítica; Filosofia da diferença; 3

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Escreverei aqui meus pensamentos sem ordem, mas não talvez numa confusão sem propósito: é a verdadeira ordem, e a qual marcará sempre meu objeto pela própria desordem. Eu renderia demasiada honra ao meu tema se o tratasse com ordem, já que quero mostrar que é incapaz dela.

– Pascal, Pensées 4

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ABSTRACT

This thesis was intended to achieve four goals. The first goal was to present a sketch of what had been called globalization, figuring, throught pieces of texts, a short scenery of the historical contemporary, as it appears socially tensioned among the progress of the intrumental racionality (technical-economic monoteism) and the research of others forms of racionality, called culturals, as one wish to count within the tranformating pratices os modernity. As the second goal, the emergency of the risk society was thematized, as globalitary autoconfrontation that seek a political mobilization in whole world, in the moment the tradicionals forms of political participation (parliamentaries, partisans) are weakened, occasion that inspirate new forms of subpolitcal and micropolitcal ativism. As the third part, the philosophy that is given concepts to the called micropolitical ativism was thematized, indicating some notions with what ones should tell, perhaps, about that kind of participation at the same time participating in that ativism. At last, in consideration of the challenge that the emergence of the complexes troubles (socials and environmentals) presented to school – troubles for the future, wich terms were to be invented - intending suggest elements to a learning that cross the school and their forms, and may be transformate it in a centre of variatons, detachment secondaries aspects countained in the tradicional forms of learning, and that should called as the neighbourhood leraning.

Keywords: Globalizaton; Risk society; Micropolitics; Philosophy of difference

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SUMÁRIO

Introdução - 7

I Parte: O pano de fundo

1. Modernidade e Globalização - 16 2. A desconexão econômica - 29

3. Desaparição do Sujeito e reaparição do sujeito - 45 4. O retorno à cultura - 59

5. O sistema (econômico) mundial versus a diferença cultural - 69 II Parte: O crivo institucional

6. A noção do mundo em perigo - 77

7. Sociedade de risco e ativismo subpolítico - 87 8. Phoné e logos - 95

9. Polivalência afetiva e representação séria - 106 10. Limites da representação - 116

III Parte: Diferença e univocidade

11. A pesquisa etnológica e o perspectivismo - 132 12. A Diferença - 146

13. Subir retirando a escada - 155 14. Toda determinação é negação - 164 15. Univocidade=Multiplicidade - 173 IV Parte: Propedêutica Nietzschiana

16. Representação como vontade de potência - 185 17. Interpretação é força - 193

18. A fabricação da loucura - 203 19. A reversão do platonismo - 213 20. Virtual e atual - 226

V Parte: O aprendizado das vizinhanças 21. A memória involuntária - 239

22. O acaso dos encontros - 251

23. Os microlaboratórios logológicos - 261 24. Pegar as coisas “pelo meio” - 269 25. Para terminar - 279

Anexos - 288

Referências Bibliográficas - 304

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Introdução

A questão de hoje é a seguinte: há outra coisa além de nossas “democracias”? – A Badiou, Pequeno manual de inestética

Como anunciado, o tema de hoje é “o aprendizado das vizinhanças”, e para começar por aí mesmo, convém dizer que “aprendizado” está sendo aqui dito à maneira mais simples, como “mudança de comportamento”, p. ex., mas “vizinhanças”, diferentemente, tem um sentido cuja exposição é o objetivo da presente pesquisa.

Esse “das vizinhanças” é indicativo, sem dúvida, de um lugar, “vizinhanças da escola”, na certa, mas não seria fixo – seriam lugares – que supõem espaços ocupados por alguma coisa, mas o quê?

Uma primeira alusão com algo parecido com o nosso campo de pesquisa pareceu-nos ressoar de um ensaio do sociólogo novaiorquino Marshall Berman, publicado em julho de 2000, em que perguntava-se “onde foi parar a cultura crítica dos anos 60?”, intitulando “vizinhanças experimentais” aquilo que poderia ser sua herança, ou vestígio, e que descreveu como

os atuais lugares onde as pessoas e idéias possam topar umas com as outras e onde jovens com pouca experiência e energia infinda, em parceria com gente de meia-idade (ex: os ‘radicais diplomados’) usam para se encontrar ou imaginar novos modos (internet, semanários alternativos, rádios piratas...) de unir idéias e pôr em prática suas novas sínteses.1

Outra alusão ao que foi nosso campo de pesquisa seria aquilo de Yves Winkin, comunicólogo belga, chamou de “colégio invisível”, para referir-se a professores e pesquisadores que trabalham em separado, que nunca se reúnem, “a não ser de maneira acidental, num ou noutro colóquio”, embora cada um saiba o que outro está fazendo pois se comunicam em rede, seja através de e-mails, telefonemas, seja pelas visitas diretas e indiretas de estudantes que circulam as informações.2

1

cf. M. Berman. A nostalgia dos anos 60. in FSP, Mais! 02.07.2000

2 Cf. Y. Winkin, A nova comunicação, S.P.: Papirus, 1998

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Vê-se que já estamos falando de “realidades intermediárias”, de entre-lugares, de pontos-sujeitos plurilocalizados que se ligam em rede, ou seja, do modo próprio de um aprendizado que passa pela escola, circula por ela, mas não é “escolar”, estrictu sensu, acontece também, principalmente, no entorno da escola, nos arrebaldes, “por aí”.

A escola, no caso, foi o curso de Psicologia da UFBA (e nele, a disciplina de Psicologia Comunitária, sob encargo deste narrador), e as vizinhanças, seriam os arredores da escola, a casa deste ou daquele como locais de encontros presenciais, mas destacando, com vistas aos desenvolvimentos em forma de escritura, o sentido de “vizinhanças” enquanto uma porção de pequenos laboratórios espalhados pela cidade, pequenos gabinetes de estudo ligados em rede –

os microlaboratórios logológicos -, onde poderiam ter sido encontradas pessoas lendo e

escrevendo, trocando e-mails, pensando coisas juntas, avizinhando-se através de certos assuntos, fabricando sentido.

Se é verdade que não há ambiente “neutro”, isolado da espécie, mas só ambiente que faz

corpo com a espécie (que faz corpo com ele), o ambiente como “campo empírico” para a prática de conhecimento corrente de que resultou o presente texto só poderia ser, de certo

modo, um ambiente co-constituído, um entre-lugares que o narrador envolvido ao mesmo tempo habitou, construiu junto e arrastou consigo. Havia o professor, os alunos (e os ex-alunos), alguns colegas, a disciplina de “Comunitária”, haviam textos...mas não era, definitivamente, a escola; houveram viagens, encontros em mesas de bar, em play-grounds de edifícios, mas não era só divertimento. Nesse entre-lugares, teriam se misturado em doses iguais o compromisso e a diversão, a amizade e os estudos, em suma, um campo de observação participante de que o próprio texto presente resultou como pesquisa e também, de algum modo e em parte, ajudou a tornar possível.

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Em meio à diversidade volúvel de escritos como se pode receber e enviar de qualquer desses microlaboratórios, atentamos para uma raciocinação recorrente acerca de alguns temas contemporâneos, algumas preocupações (ou afetações) em comum, repetidos apesar das variações, reverberados nesses e-mails, e que, por sua importância ou pregnância imaginário-coletiva, e também para fins escolares, sugeriram algum trabalho de sobre-leitura, de um modo que, em parte procurando responder a eles, em parte tentando formular melhor as questões suscitadas, iniciamos o presente escrito como um jogo de “relacionar fragmentos”, ligando o mais próximo ao mais distante, a opinião compartilhada com o amigo e o que diziam os jornais e livros sobre assunto acercado (ou avizinhado).

Assim, aos poucos, desde uma superfície de inscrição (ou um plano de acresção) como memória de fragmentos (enviados, baixados pela Net, copiados de livros e de jornais...) assumimos um compromisso com a escrita, começando por querer responder a alguma coisa que estaria “no ar”, no sprit du temps, no opinionário geral do senso-comum - como bem poderia ter sido àquela nota, por exemplo, de uma estudante de 18 anos, enviada por e-mail à seção de cartas do Folhateen em que manifestava sua afinidade com o ponto de vista indicado também por e-mail por uma outra leitora e publicado na edição anterior do mesmo jornal, para dizer:

“Fiquei feliz de saber que não sou uma ET. Assim como L. S. (ed. de 4/6), faço supletivo. Os colégios estão defasados, não ensinam nada que nos ajude a tomar consciência do momento terrível por que passa o planeta. Gente, vai acabar a água, e tudo continua igual nos colégios e nas entidades estudantis (manipuladas por uma politicagem estreita e reacionária). Consciências são despertadas por todo o mundo, e isso me traz de volta a esperança. Vivam os movimentos antiglobalização!” Julia L., 18 - via e-mail3

Por confusa que seja, adivinha-se em uma mensagem assim aquilo que R. Robertson chamou de globalidade enquanto “consciência do mundo como lugar ímpar”,4 que desperta em toda

parte açodada pelo sentimento de uma urgência tanto mais que as instituições do Estado fraquejam e os modos de representação tradicionais parecem alheios, e que rejubila quando em rede encontra aliados na expressão, somando o sentimento de uma re-existência esperançosa identificada sob um plano virtual e uma bandeira em comum (“Ufa, não sou uma ET!”).

3

F.S.P., Folhateen, Cartas, 11.06.2001, p.2

4 Cf. U. Beck. O que é a globalização. S. P: Paz e Terra, 1999

(10)

Aí também poderíamos ter encontrado o “mote” com que animar o presente escrito, desde o mais geral e o mais concreto, o Grund áspero que friccionar para poder prosseguir, escolhendo o tema da globalização, palavra já meio gasta, é verdade, e meio escorregadia, mas que poderia quiçá servir para um cone em que reunir um conjunto de inquietações pouco claras mas insistentes, tal como pareceram despontar, desde aquelas produções anódinas e circulantes, como “questões de fundo”.

Indicar o conteúdo dessas inquietações transitantes (capazes de nos tirar o sono) é abrir o baú das infelicidades do mundo, que todos conhecem e estão cansados de saber; apontam para o unilateralismo e imperialismo dos EUA, a impotência ou omissão dos governos em fazer pelo povo, a escalada da violência, da injustiça social, da destruição ecológica, as ameaças aos direitos humanos, o solapamento das culturas locais e nativas pelos conglomerados da cultura comercial, em suma, um murmúrio de questões mundiais repontadas (e pouco aprofundadas) que poderiam, mesmo sem muito rigor, ser elencadas sob o tema da globalização.

Na breve figuração que apresentamos a respeito, dissemos da tendência ao autonomismo do subsistema econômico-financeiro global diante do Estado e da sociedade civil, uma separação entre o poder (que se transnacionaliza) e a política (que permanece nacional) como fenômeno de epocalidade pressentido e descrito nos termos da imposição de um sentido único para o pensamento, como diz o jornalismo, o “pensamento único”. Avaliamos o afastamento entre o governo e a sociedade do ponto de vista em que a ficção fundamental do Estado moderno como comum-pertencer a uma totalidade positiva vai perdendo seu poder de coesão, a “cidadania” abstrata passando a ser contestada, as ofertas de legitimação do sistema sendo recusadas, emergindo, amiúde, formas pré-Estatais de associação e identificação,

fundamentalismos de todo tipo - étnicos, territoriais e religiosos, etc...

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Despojadas do poder de agirem sobre si mesmas pelas vias institucionais tradicionais, as pessoas têm exibido formas notáveis de resistividade física, cívica ou política; elas inventam maneiras de perseverar na existência (ou re-existir), de conquistar o presente, de construir confiança coletiva. Aos que se põem a necessidade de uma ampla ação organizada e coerente com que alavancar a situação global presente (no dizer alarmado dos ativistas ambientais, “somos a primeira geração a ser autoconfrontada com os problemas da sociedade de riscos e a última que pode fazer algo de decisivo no sentido de reduzi-los”), o debate democrático e a disputa pelo espaço político da palavra tornam-se condições incontornáveis, com os cidadãos tendendo a retomar e reinvestir as instituições da sociedade política, mas percebendo a insuficiência delas, e, em decorrência, junto ou em paralelo com elas, criando formas de “ativismo sub-político” (Beck), inventando engajamentos “múltiplos contraditórios” – ONGs, comitês, fóruns, agrupamentos religiosos de socorro mútuo, etc...

Em comum com as formas tradicionais da democracia pluralista, consideramos o fato de que, em busca de empoderamento, muitas organizações e agências do “terceiro setor” preservam o princípio da participação representativa (o logos compartilhado, a razão comunicativa) procurando fazer a síntese das necessidades coletivas para aceder, com argumentos e pautas ensaiadas, às mesas de negociação e aos parlatórios das decisões mais importantes. Do rumor das ruas aos círculos gnósticos da discussão parlamentar, a ascensão impõe, inapelavelmente, que os atores pretendentes, porta-vozes minoritários, adotem procedimentos que reduzem os efeitos à ordem das razões, deixando de “falar por falar” (conforme a experiência da vida como um todo) para empregar argumentos baseados em um regime de verdade, assumindo regras que sirvam para dominar os acontecimentos aleatórios, esquivar a dissipação, em suma, deportar a materialidade discursiva das formas expressivas minoritárias que os haviam motivado, como que passando para o outro lado ou dando-lhes as costas.

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Mas será que todo envolvimento político, para ser conseqüente, teria que assumir a via institucional formal e a cultura dos experts da palavra à força de deportar a diferença sem conceito, as “pequenas vozes”, os discursos sem modelo da cultura ordinária? De parte (ou em torno, ou entre partes) os espaços dos discursos encráticos (ou discursos de poder legítimo), não haveriam outros espaços que anunciam modos de envolvimento (sub ou micro-institucionais, meio gazeteiros e tenteantes, “divertidos e importantes”...) que nos advertiriam também, de algum modo, como práticas transformadoras da modernidade? Como pensar na cultura da vida cotidiana enquanto geradora de formas de ação ou de “resistividade” política? Com a presente pesquisa nos ocupamos menos com percorrer as respostas que as ciências humanas têm sugerido para tais questões do que atentando para uma certa maneira (prático-poemática) como estão sendo buscadas (amiúde, por pessoas de diferentes formações não apenas acadêmica) inspiração heurística e recursos conceituais nos escritos de alguns nomes da filosofia que reencontram, hoje, largo prestígio entre o público ilustrado (em especial, Espinosa, Nietzsche, Bergson, Heidegger e Deleuze). Qual é a materialidade da realidade histórica subjacente à voga da “filosofia da diferença”? O que haveria de fascinante nesse círculo (que tem atraído e inspirado uma profusão de pequenos círculos) reluzindo no sombrio da ameaçadora “macroestrutura”?

Penetrando esse circuito de fascinação, deixando-nos conduzir por ele, exploramos um dos aspectos da última modernidade que poderiam estar motivando essa afinidade: o sistema de representação política em cheque, a disjunção crescente entre o logos do representante e a

phoné dos representados, a distopia aumentada entre igualdade e diferença que, como advertia

Aristóteles, “é coisa que leva à aporia e à filosofia política”.5

Tais autores aparentemente têm ajudado a polemizar com a democracia como mecanismo de produção de ordem político-institucional, retornando sobre a operação através da qual é realizada a seleção e o controle dos discursos pretendentes, questionando na sua raiz, os meios e métodos de conferência de legitimidade à palavra vigente no espaço político em que “os argumentos são avaliados segundo seus méritos e não segundo a identidade dos argumentadores” (Habermas).

5 Aristóteles, Política, IV, 1282 b 21

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Uma genealogia põe em questão o valor da verdade, dramatizando “o que em nós quer encontrar a verdade”, o que em nós nos leva a opor ao mundo (da vida, que engana) um outro mundo (o mundo verídico), para revelar suas razões morais, a vontade de domínio. A “invenção” da verdade seria um erro constitutivo, inevitável para a própria espécie, recurso do inseguro humano que, forçado a viver em coletividade, disfarça e ao mesmo tempo aperfeiçoa seu disfarce, “estabelecendo o que, em seu grupo, se haverá de ter como o sentido certo das palavras” (L.C. Lima). Reconduzindo a pesquisa filosófica ao in-fundado de todo fundamento, apontando para as “abstrações” que nos fazem esquecer que as leis da verdade se fundam nas leis da linguagem, esse percurso filosófico tem sido chamado de “reversão do platonismo”, ou ainda, “via dessubstancialista”, e foi um pouco desse percurso, servindo-nos dele como “caixa de ferramentas conceituais”, que se decalcou aqui entrando a segunda parte da presente pesquisa.

De maneira meio diletante, ou amadorística (já que o narrador não se identifica através de qualquer das especializações necessárias para a tarefa), ensaiou primeiro um aporte de cunho sociológico (através de Weber/Habermas/Beck); a seguir, enveredou por uma especulação filosófica (a “via desubstancialista” de Nietzsche-Deleuze); e por fim, procurou encontrar com as sugerências da literatura (Proust, Beckett, Borges...), o que talvez esteja acima de suas possibilidades - em todo caso, experimentou aqui um estilo não muito original de fazer-texto, nem muito ousado: é uma forma de intertextualidade que animou o experimento.

O trecho filosófico da aventura consistiu em recolher, em Bergson, em Nietzsche, através de Deleuze, os elementos de uma mistura dissolvente, filtrando componentes “para uma desconstrução”, perfazendo uma via filosófica já conhecida, mas com o propósito de não limitarmo-nos ao seu momento negativo, como mais tem seduzido o público (“o antiplatonismo é o lugar comum de nossa época”, diz Badiou),6 e sim para tentar indicar com

eles, através deles, o que poderia ser um aprendizado encontrado com os limites do intolerável, ou seja, um aprendizado das vizinhanças.

6 A. Badiou, Pequeno manual de inestética, S.P.: Estação Liberdade, p. 54

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Se hoje a queixa e a suspeita mais comum lançadas à escola figuram-na como máquina “arcaica” e “pesada” que reproduz exclusão social, como dispositivo capitalístico que impõe unilateralmente a incorporação da linguagem padrão e o saber oficiais contra as formas minoritárias do vulgo, de que modo uma filosofia que promete “pulverizar o mundo para reencantar a poeira” (Leibniz-Deleuze), servir como “máquina de guerra” contra as “duas vias” da “filosofia da representação”, afirmar o “autômato purificado” e a “anarquia coroada” poderia sugerir uma outra escola, outras práticas pedagógicas, outro tipo de aprendizado? Não procuramos investigar a procedência de um tal queixume, a experiência cotidiana com educadores basta para que se veja o quão é recorrente a predicação da escola (a escolarização, currículuns e formatos) como “enrijecidos”, “ultrapassados”, “ossificados”... Talvez essa imagem da escola já tenha sido reificada, talvez tenha se “naturalizado”. Não entramos aqui nessa discussão, resolvemos simplesmente assumir a aposta, e prosseguir com a linha.

Sendo os termos em que são colocados os mecanismos de exclusão da escola os mesmos em que são colocados os mecanismos de exclusão política, e tendo os filósofos consultados se prestado não só para questioná-los, mas servido como círculo heurístico de idéias para a invenção de novos modos de ideação e de vida - “uma linha de fuga, não um ataque; uma saída, não a liberdade”, diz G. Deleuze – de que modo, estendendo (ou esticando) a linha da

diferença, poder-se-ia indicar elementos de um devir-escolar minoritário?

Em consideração ao aprendizado que víamos acontecendo nos arredores da escola, tratamos de apropriar algumas noções sugestivas para a descrição (que poderia ser também uma proposição) de um aprendizado meio nomádico e acontecido meio “ao acaso dos encontros”, que fazia dos formatos e conteúdos escolares centros de variações expressivos, que prezava e desenvolvia uma sintaxe poemática procurando assegurar ao mesmo tempo a consistência e a elevação, expressando alguma coisa e valorizando a expressão, que entretecia um lugar “compondo versos para obedecer ao sonho” (Sócrates), ou ainda, para dizer com Arriguci, “procurava dar forma às coisas desencontradas que pululavam no mundo e pulsava junto batendo em descompasso”, buscando uma afinação.

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Procuramos indicar alguns aspectos envolvidos num tal aprendizado, realçados por contraste com a maneira escolar como seriam usualmente escritos e lidos os textos, o modo como a memória seria mais comumente solicitada e os cursos conduzidos, para sinalizar, em cada caso, com as possibilidades de um outro uso dos textos, da memória, do corpo, dos cursos, dos recursos da escola.

Realçamos, do percurso filosófico precedente, a concepção de univocidade (formulada por Deleuze) como proposição de uma co-incidência imediata dos contrários (Univocidade=Multiplicidade - concepção que reúne, numa anfibolia filosófica, a “luz sem cor da substância única espinoseana” com as “inquietas e policrômicas mônadas reflexivas” de Leibniz), procurando explorar os potenciais deste enclave que se quer colocado além do dualismo determinação-indeterminação, para afirmar a diferença enquanto movimento de uma virtualidade que se efetua a si mesma, que escapa à ordem das razões (ao mesmo tempo que a torna possível). Como seria um aprendizado indicado através desses termos com os quais as vizinhanças (como as que freqüentamos) se identificavam?

Ao encontro desta pergunta, na última parte do presente texto exploramos as possibilidades que se oferecem a um aprendizado minoritário no que pudesse compatibilizar com a indicação de uma espécie de duplo movimento do pensamento, da superfície ao fundo e voltando, da substancialidade do mundo à reflexividade envolvida, como dois momentos de um lance de dados. Encontramo-nos com a sugestão de uma “despersonalização” como parte do aprendizado (como de há muito sugerido, aliás, por Rousseau, e encampado pela etnologia – “para descobrir as propriedades, é preciso primeiro observar as diferenças”), uma difração do sensível para um perspectivismo, um “desfolhamento” do mundo único que assim se abre (espera-se) como palco para “muitos mundos em um”.

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Ao final, ofereceu-se um pequeno mostruário de fragmentos de parte das correspondências que foram sendo trocadas em paralelo com a construção do presente texto, como um registro da experiência da palavra compartilhada que teria ajudado, como suscitação ou motivo, em sua composição. Como duas séries diferentes que avançaram juntas – uma, o presente esforço teorizante e reflexivo, empreendido segundo um objetivo e um compromisso (de tese), em que se concebeu as modificações como sendo parte de um todo; a outra, uma escrevinhação anódina, livre e não direcionada, em que se apreendeu as modificações tomando parte no todo -, a relação entre ambas talvez não seja explícita, ou tenham prosseguido mais vezes disritmadamente uma e outra.

Em todo caso, uma e outra se encontram de algum modo na forma - uma espécie de

bricolagem, um compósito de fragmentos lítero-filosóficos, de maneira que, nem seria preciso

dizer, não se teve assim a pretensão de apresentar uma obra científica, tampouco artística, uma vez que, por princípio, trabalhou-se no reverso da necessidade de uma obra, visando-se valorizar tanto mais a referência, a citação, o comentário, cabendo-se indicá-lo, então, como um longo ensaio, como definido por Adorno:

Começa por aquilo de que quer falar; diz o que lhe ocorre a seu propósito, termina quando sente ter chegado ao final e não aonde já não há mais resto algum: situa-se assim entre as diversões, reflete ainda o ócio infantil.7

7 T. W. Adorno, El ensayo como forma, In: Notas de Literatura. Barcelona, Ariel, 1962.

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I Parte: O Pano de Fundo

1. Modernidade e Globalização

De qualquer modo, o todo fará uma desarrumação - John Cage

Globalização é um termo que, de tão empregado, provoca reações negativas. Como observou

um comentarista, “só para termos como auto-ajuda, informática e sexo é que a ‘globalização’ perde em termos de popularidade editorial”.8 Surgida de lugar nenhum para estar em toda

parte, a palavra globalização parece ter se disseminado, no começo dos anos 80, atrelada a um certo ufanismo, a idéia de “mundo integrado” (como antecipado na concepção de “aldeia global” de McLuhan, p.ex.), ou de uma “via única” de integração sistêmica (o “mercado global” dos economistas), mas rapidamente ganhou conotações negativas, virando uma espécie de “raiz de todos os males sociais”. Não será “isso” mais um artifício verbal (ou ideológico) que explica tudo sem poder ser ele mesmo explicado?

A primeira disposição diante desta palavra pode ser de reserva, ressoando como equivalente a outras que já ocuparam função semelhante, de figurar como uma totalidade abstrata, subtraída de todo entendimento, usada para justificar o injustificável – o econômico engolindo o político, o global determinando o nacional, os valores de mercado sobrepondo-se aos valores essenciais, em suma, a constrição da liberdade, “a indução e/ou constrangimento no processo de tomada de decisões”.9 Contra esta predisposição alarmada, bastante compreensível,

encontramos no entanto quem afiance o valor da palavra globalização, embora reconhecendo sua multidimensionalidade, ou seja, a falta de um consenso ou um valor semântico estável para ela:

8

Paulo N. Battista Jr, in Um mito contemporâneo entre aspas, in Mais! FSP, 03.03.2002

9 Cf. M. Galvão, Globalização: arautos, céticos e críticos, Rev. Política Externa, vol. 6, no. 4 e vol. 7, no. 1

(18)

A globalização, diz M. Castells, é um processo objetivo, não uma ideologia, embora tenha sido utilizado pela ideologia neoliberal como argumento para arvorar-se como a única racionalidade possível. É um processo multidimensional, não apenas econômico. Sua expressão mais determinante é a interdependência dos mercados financeiros, propiciada pelas novas tecnologias de informação e comunicação e favorecida pela desregulação e liberalização desses mercados.10

Embora a conotação sistêmico-econômica seja mais forte (a globalização como mercantilização total das relações humanas), há quem aporte o tema pela dimensão cultural, a exemplo de R. Robertson, que toma centralmente em consideração a circunstância contemporânea mediante a qual “as sociedades nacionalmente constituídas e o sistema interestados estão cada vez mais sujeitos a pressões internas e externas de multiculturalidade e polietnicidade”. Neste sentido específico, diz o autor, “globalização refere-se ao encontro, geralmente problemático, de diferentes formas de vida”.11

Assim como R. Robertson, U. Beck também compreendeu a globalização sem reduzi-la ao âmbito econômico, e de igual modo, entendeu-a como “compressão do mundo” (um grande

clash of localities), pondo em vistas os fenômenos de encontro, crise e reafirmações

identitárias que uma tal “compressão” implica; mas vai além, enfatizando um movimento de dissolução, ou desmantelamento da “ortodoxia nacional-estatal” (embora como dissolução criativa, abertura, possibilidade de invenção de “novas alternativas”). Diz:

Com a globalização econômica, política, ecológica, cultural, biográfica...a arquitetura do pensamento, da ação e das identidades na sociedade nacional-estatal se desmantela. [...] A globalização significa: surgem alternativas de poder, de ação e de percepção da vida social que desmontam e confundem a ortodoxia da política e da sociedade nacional-estatal.12

10 M. Castells, A necessidade de representação, Mais! FSP, 17.01.2002, p. 12 11

R. Robertson, Globalização: teoria social e cultura global, p. 48

12 U. Beck, O que é globalização? , p. 122

(19)

Beck interessa-se pela globalização no ponto em que os Estados nacionais (a soberania, identidade, as redes de comunicação, as chances de poder e orientações estatais) passam a sofrer a interferência cruzada de atores transnacionais, perdendo poder de decisão e de controle de seus territórios e economias, num contexto em que multiplicam-se os problemas da chamada “sociedade de risco”. Conflitos étnico-religiosos, terrorismo ou degradação ambiental, disseminação de pragas e de doenças contagiosas, entre muitos outros, como problemas que não têm fronteiras, que atingem indistintamente a “todos”, estariam exigindo um enfrentamento de “todos”, sem que possamos contar com a formação de um poder hegemônico, um novo Super-Estado ou Federação Mundial que possa controlá-los. O desafio colocado, segundo Beck, seria o da criação de uma “sociedade mundial” como um “horizonte que se caracteriza pela multiplicidade e pela não-integração, e cujo caminho terá sido aberto quando ele for protegido e produzido pela comunicação e pela atividade”. Como teórico da reestruturação, o autor chama atenção para os grandes “problemas para o futuro” imediato e diz querer combater “a paralisia política” atual procurando mostrar “como as exigências políticas podem ser compreendidas e respondidas”, acenando (ou ameaçando), enfim, com “o que irá acontecer caso nada venha acontecer: a brasilianização da Europa”.13

Se com essa expressão Beck quis aludir a uma condição de dependência, um “ser levado” pelas injunções externas, com perda de controle econômico, político e social, há quem não veja isso como um risco, apenas, mas como a característica definidora da globalização, uma condição presente (para brasileiros ou europeus indiferentemente). É deste ponto de vista que Zygmund Bauman procurou situar a globalização, contrastando-a com uma noção historicamente anterior, a noção de universalização, no dizer do autor, uma característica principal do discurso moderno, palavra que transmitia a esperança, intenção ou determinação de se produzir ordem - uma ordem universal - verdadeiramente global. Se a palavra

universalização anunciava a vontade de tornar o mundo diferente e melhor, mais igualitário,

em escala planetária, com a substituição pela palavra globalização teria restado muito pouco destes significados, pois...

13 . Beck, O que é globalização? , p. 32-34

(20)

[...] o novo termo refere-se primordialmente aos efeitos globais, notoriamente não pretendidos e imprevistos, e não às iniciativas e empreendimentos globais. [...] A globalização não diz respeito ao que todos nós, ou pelo menos os mais talentosos e empreendedores, desejamos ou esperamos fazer. Diz respeito ao que está acontecendo a todos nós.14

Bauman concebeu a globalização como uma “perda do controle” sobre a ordem global das coisas, quando já não se visualizaria, com a poeira levantada pela “queda do muro”, o mundo como uma totalidade ordenada ou passível de ordenação (que se disputava, até recentemente, em torno de um Grande Cisma - capitalismo x comunismo), mas sim como “um campo de forças dispersas e díspares, que se reúnem em pontos difíceis de prever e ganham impulso sem que ninguém saiba realmente como pará-las” -, de um modo que “ninguém parece estar no controle agora”.15

O significado mais profundo transmitido pela idéia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” com outro nome.16

É como se a consciência do caráter indeterminado e indisciplinado das coisas - e a consciência de nossa humana fragilidade –, como nos versos célebres de Donne-Yeats (“Tudo está em pedaços, toda coerência morreu...as coisas desintegram-se, o centro não pode agüentar”) voltasse a ser lembrada depois de ter sido adiada, historicamente, pelo espetáculo da fabricação compulsiva - a conquista da matéria, a multiplicação dos poderes humanos sobre a coisa – característicos das sociedades industriais. O progresso do conhecimento parecia estar diretamente relacionado com o crescimento econômico e a conquista do bem-estar social, a razão se confirmava servindo à “felicidade da maioria”, uma concepção dominante outrora já colocada em questão por Marx, que voltou a ser lembrado, em especial, no ponto d’Capital em que observou que a abertura das economias não era uma opção ou alternativa racionalizada, mas uma condição de existência do próprio capital, com a produção capitalista se desenvolvendo “em virtude das necessidades que lhe são inerentes, em particular uma necessidade de um mercado cada vez mais extenso”.17

14 Z. Bauman, Globalização - as consequências humanas, pp. 67-68 (grifos do autor) 15 Z. Bauman, Globalização - as consequências humanas, p. 66

16 Z. Bauman, Globalização - as consequências humanas, p. 67

17 Cem anos depois, no entre-guerras, Trotski observou que essa necessidade irresistível de expansão capitalista levava já a

uma condição em que... “...as forças produtivas superaram, há tempos, os limites do estado nacional, transformando, em conseqüência, o que era antes um fator histórico progressivo em uma restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais do que explosões das forças produtivas contra os limites estatais, que se tornaram demasiado estreitos para eles”. (in O

marxismo de nosso tempo, p. 46)

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A compreensão de que as forças produtivas se autonomizam, como uma espécie de criatura tendente a escapar ao controle do criador, e provocar muita desordem, até onde sabemos, não é recente. Tributa-se a Hegel, antes mesmo que a Marx, uma concepção de história que a via como um processo sem sujeito, uma história movimentada por suas próprias contradições internas.18 Mas a percepção segundo a qual os agentes de produção não seriam mais do que

ocupantes dos lugares e das funções determinadas pela estrutura das relações de produção (como desenvolvida, a partir de Marx, entre outros, por Althusser), tendeu a relevar os interesses sócio-econômico (ou “de classe”) deixando de considerar o fato de que das criaturas estruturais ou institucionais que nos governam somos nós os criadores, que também nos transformamos, culturalmente.

A determinação sócio-econômica como “motor da história” enfatizada pelo marxismo, ajudou a fazer vigir, em consonância com a expansão da sociedade industrial, a imagem da produtividade, do homo faber como “ser genérico”, e um credo científico em primeira instância: “forças produtivas - relações sociais (de produção)”. Ao materialismo do entendimento marxista, em que se destacavam a evolução dos instrumentos e do trabalho social, Weber no entanto já ensinava a polarizar, postulando a esfera do trabalho (se o entendermos como “ação racional orientada por motivos”) tomada em paralelo com a esfera da interação, como dimensão dos valores compartidos, das relações humanas horizontais. A autonomização das forças produtivas, como aspecto principal da globalização, parece defensável, mas não a generalização deste automatismo para todas as esferas da vida social, e sim delimitando-a enquanto dinamismo do subsistema econômico-administrativo (a jaula de

ferro burocrática, para Weber), de um modo que a “nova desordem global” (de que nos fala

Bauman) poderia ser descrita como efeito colateral ou contrafuncional do próprio movimento de integração racionalizada da modernidade. Por outro lado, ao ter elevado a interação de par com a produção (ou trabalho), a leitura weberiana introduz vantajosamente a dimensão

cultural (a intersubjetividade, a relação moral, a criação de regras comunicativas, aspectos

pouco valorizados pelo marxismo ortodoxo), e a perspectiva correlata (e alvissareira), que assim se abre, para além de Weber, de uma resistência cultural diante do predomínio das regras técnicas (econômico-administrativas).

(22)

Weber tem sido uma lembrança constante (ainda mais porque atualizado vigorosamente por Habermas), especialmente através de sua concepção de racionalização, com que sinalizou a expansão do controle instrumental sobre a natureza ou sobre as forças produtivas. Com todos os problemas sociais tendendo a serem encarados e tratados como problemas técnicos, para Weber, a racionalização seria a incorporação da “racionalidade orientada por motivos” na

sociedade (economia capitalista, Estado moderno), na cultura (ciência, moral, arte, etc), e no

sistema de personalidade (conduta metódica da vida), ou seja, nos principais aspectos que designariam a “sociedade moderna”. Com Weber, é hoje fácil concordar que o progresso técnico-cientifico, como razão instrumental (“vitória não da ciência, mas do método sobre a ciência”, como observou Nietzsche), não configurou um domínio isolado, restrito à administração das coisas ou à transformação da natureza, mas veio nos últimos dois ou três séculos repercutindo cada vez mais sobre o enquadramento institucional das sociedades, alargando-se enquanto subsistemas de ação racional teleológica.

Com Weber vislumbramos as “estruturas do mundo vivido”, a partir do Ocidente, sendo penetradas pela racionalidade, desde a economia capitalista, cujo núcleo organizador seria a empresa, e desde a constituição do Estado moderno, do poder político organizado enquanto aparelho de Estado. Empresarialmente foram desenvolvidos os usos calculados da técnica e do saber científico, da força de trabalho, dos investimentos, contabilidade, gestão; de seu lado, o aparelho de Estado racionalizou a organização burocrática da administração, o poder judiciário, a força militar, o sistema fiscal. A esfera cultural, por sua vez, envolvendo ciência, moral e arte (de acordo com a nomenclatura kantiana), entrando o contexto moderno se distinguiu em esferas autônomas, formando domínios próprios de saber guiados por princípios auto-referenciais. Este desmembramento da cultura moderna seria o resultado de uma emancipação das imposições outrora integradas nas visões tradicionais (místicas, religiosas) de mundo. 19

19

Na leitura weberiana sobre as origens da modernidade, as religiões universais do Ocidente, com destaque para o cristianismo, teriam preparado as condições para a autonomização da razão – p.ex., através da idéia de “verdade universal” que iria confundir-se com a “verdade científica”, ou de uma teodicéia com que se procurou racionalizar, na figura do Estado, a desigualdade entre senhores e servos, ou ainda, de uma racionalização do “mal” como “o falso” nos processos veritativos da ciência. Mas na modernidade estes dois modos de conhecimento teriam se hostilizado, com a própria razão se tornando “monoteísta”, virando uma espécie de fé no método tendente a excluir os modos de conhecimento que dele se desviassem ou não pudessem por ele ser atingidos, a começar pela revelação religiosa. Ao tempo em que a ciência, como saber positivo de “busca da verdade”, foi se tornando um enorme poder a serviço do desenvolvimento das forças produtivas, a religião, como

Weltanschauung que sempre forneceu “sentido” à vida, foi sendo deslocada do domínio do racional ao irracional, ou seja, é

como se a legitimação da dominação, outrora ancorada em “imagens de mundo”, houvesse sido secularizada, deixando de “descer” do “céu” da tradição cultural ou deixando de emergir da natureza misteriosa para emergir da própria técnica e ciência a serviço do funcionamento de um sistema global regulado, ou da própria natureza despersonalizada, devassada pela observação objetivante e pelas explicações causais. Diante disso, Weber já observava uma perda de sentido no contexto de

(23)

O destino de nossa época, caracterizada pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo, conduziu os homens a banir os valores supremos mais sublimes da vida pública.20

Habermas retomou a leitura comparativa (entre a sociedade tradicional e a moderna) começada por Weber, e observou que a negociação simbólica e a coordenação das ações sociais, que encontrava seus “fundamentos” ou legitimação em finalismos transcendentes, divinos ou comunitários, e que obedeciam à lógica dos contextos de interação com seus temas arcaicos de justiça, liberdade, solidariedade (o “amor ao próximo”, a caritas, etc), estariam sendo confrontadas sempre mais com a racionalidade das relações fim/meio, orientada pelo que é “economicamente importante”. Mas ressaltou que a racionalidade “com respeito a fins” não seria a única a caracterizar o processo de modernização da vida, incluindo também “um relacionamento reflexivo com tradições que perderam sua espontaneidade natural; pela universalização de normas de ação e uma generalização dos valores que liberam a ação comunicativa de contextos estritamente delimitados, abrindo-lhe um leque de opções mais amplos”.21

Habermas não deixou de insistir em “aberturas” dialógicas no advento vultuoso da racionalidade técnica, mas depreendendo basicamente uma visão da modernidade como um processo de intelectualização que se eleva a um grau máximo, pondo em execução uma infinidade de tentativas não só de tornar as coisas úteis e rentáveis, criando necessidades, como também de tornar os espaços e os processos funcionais, lógicos ou legíveis, assegurando, por assim dizer, através de uma “burocratização”, o funcionamento de uma “sociedade de controle”.

O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de recurso; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal; à secularização de valores e normas etc.22

um mundo desencantado, uma perda de liberdade diante de uma sociedade burocratizada, transformada numa “jaula de ferro”.

20 M. Weber, Le savant et le politique, Paris, Plon, 1959, p. 96 21

J. Habermas, Discurso filosófico da modernidade, p. 5

(24)

Como um “conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo”, a modernização, com Habermas, poderia ser concebida como algo “que se move por si própria e se automatiza em sua evolução”, como “ininterrupta modernização social auto-suficiente [que se] destaca dos impulsos de uma modernidade cultural que se tornou aparentemente obsoleta”23, mas a

imagem da modernização como Frankeinstein fora de controle não se completa desde que a

participação comunicativa permaneça assegurada, ou seja, a liberdade de expressão política,

de formação de novas identidades, etc, possam se encontrar, por toda parte, em vias de consenso.

Para pensar as determinações históricas que nos pesam, modernamente, Habermas tomou em Hegel as noções de trabalho (ou “agir racional relativo a fins”) e interação (ou “agir comunicativo”) como processos baseados na reciprocidade (ou como formas dialéticas de auto-realização, meios de existência e modos de comportamento) que seriam irredutíveis um ao outro, para colocá-los em relação. Ambas as esferas fabricam regras, constituem racionalidades, mas enquanto as regras de interação seriam comunicativas, orientadas para a busca de reconhecimento recíproco, as regras técnicas seriam elaboradas no marco do agir instrumental, cujos imperativos condicionados e condicionantes da ação obedeceriam à causalidade na natureza.24

Buscada como solução para tudo, a razão técnica aparece como um problema conforme a vemos se estendendo para outras esferas de decisão racional, reduzindo a praxis à techné, a dimensão interativa enquanto intercompreensão à dimensão do trabalho enquanto instrumentalidade. Habermas deu a ver que lá onde a coordenação das ações se baseava nos hábitos e costumes, em negociações de significados coletivos, passaram a predominar as

situações de interesse que assumem a forma de ações estratégicas concorrentes. Ou seja, as

pessoas de carne e osso vão sendo despojadas da oportunidade de construir significados compartilhados e constituir know-how necessário para se chegar a acordos frente a problemas práticos cotidianos conforme prosperam as ofertas de alternativas técnicas (que se tornam necessidades).25

23 J. Habermas, Discurso filosófico da modernidade, p. 6 24 L. B. L. Araújo, Religião e modernidade em Habermas, p. 31 25

Julián Marías ofereceu uma frase lapidar com que ilustrar essa passagem quando exclamou: “Durante séculos, o ferido solicitava com urgência confissão; agora, é provável que clame: uma ambulância!” - in A perspectiva cristã, p. 57

(25)

Com Habermas, vemos que os problemas práticos de todos os dias, que exigem o diálogo, a compreensão ou a discussão democrática acerca dos critérios de legitimidade que sustentem as decisões, tendem a ser transformados em problemas técnicos, que não são referidos à discussão pública, não passam mais pelo common sense, mas diretamente às competências de especialistas que se encarregam de pensar e de decidir por nós. É inegável que a significação religiosa que certas práticas possuíam há poucas décadas mudou muito. Considere-se, p.ex., a maneira como era socialmente ritualizada a passagem do moribundo (da casa aberta à visitação ao cemitério), a tal ponto recuou para longe da vida diária, virou assunto de profissionais, de um modo que mal se vê hoje em dia o agonizante (fechado em UTIs) e tampouco o corpo (que só aparece já embalado e preparado em caixões fechados). A cerimônia pública elaborada e espetacular dos funerais foi em muitos casos substituída “pelo breve e, em geral, privado sepultamento ou pela cremação do corpo, sob a eficiente supervisão de especialistas”.26 Na ritualização pública da morte, normas morais ou religiosas eram

compartilhados praticamente (a efemeridade da vida terrena, bem como as honras, riquezas, beleza, etc, a concepção de “vida para a morte”), valores estes que exerciam uma função de domínio das massas, mas como em todos os outros âmbitos da vida, este domínio passou também a ser exercido diretamente através do controle do comportamento, elidindo a participação comunicativa das pessoas através do uso, em larga escala, de estímulos externos.27

26 Cf. Z. Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, p. 217

27 Como observou Z. Bauman, ao mesmo tempo em que “a morte próxima de casa é dissimulada” - os funerais foram

afastados de locais públicos, as demonstrações públicas de luto foram moderadas, etc.-, de outro lado, a “morte dos anônimos” passou a ser exibida espalhafatosamente, “convertido em espetáculo de rua nunca findo”, “um acessório da vida diária”, “demasiado habitual para ser notada e excessivamente habitual para despertar emoções intensas”. In O mal-estar da

(26)

De acordo com certas leituras, podemos ver o comportamento humano sendo cada vez mais dissociado de um sistema de normas ligadas à gramática dos jogos lingüísticos (o mundo da vida) para ser integrado a pulso por meio de influenciações físicas ou psicológicas maquinais características do bio-poder (o mundo do sistema). Impotência sexual? Anoxeria? Estresse? Ansiedade social? - para tudo isso existem várias pílulas, técnicas, especialistas... Briga de condomínio? Dificuldades escolares? Ameaça de ter a casa ou o automóvel roubado? Problemas conjugais? Quer encontrar um(a) parceiro(a)? Por toda parte, ali onde as situações até há pouco requeriam que significados fossem compartilhados, vislumbra-se um mundo sendo tomado por elementos formais, por procedismos técnicos, ou seja, por “racionalidades dos modos de proceder os quais se limitam a ensinar como devemos fazer algo para que consigamos obter um bom resultado” (Habermas). Em decorrência... “[...] A autocompreensão culturalmente determinada de um mundo social da vida é substituída pela autocoisificação dos homens, sob as categorias da ação racional dirigida a fins e do comportamento adaptativo”.28

Comportamentos humanos há muito interpretados com base em valores religiosos ou normas morais (alcoolismo, violência, obesidade...) passaram a ser pesquisados como “falhas de programação” (genética ou ambiental, ou seja, defeitos de hardware ou de software), em princípio passíveis de reprogramação técnica. O que se buscava conceber como opção, decisão, preferência, escolha (e que presumia a interioridade, subjetividade ou liberdade), fora das explicações patologizantes (como o homoerotismo, ou a gula) tendeu a dissolver-se ao nível de um radical materialismo, à base das “diferenças genéticas” e “influências ambientais”. De olho nos progressos do cognitivismo americano, Habermas diz que afigura-se, enfim, “o cenário de uma sociedade na qual os antiquados jogos de linguagem de nosso cotidiano são revogados em favor da descrição objetivante de processos de consciência”, como se nesses limiares pesquisantes estivesse sendo ensaiada a “dessocialização completa de nossa autocompreensão”.29

28

J. Habermas, Técnica e ciência como ideologia , p. 74

(27)

Embora a cena do mundo convergindo para um utilitarismo extremo, parecendo-se cada vez mais como uma grande máquina (tal como imaginada pela Escola de Frankfurt ou depreendido de certas leituras de Heidegger, p.ex.) tenha servido a muitos intelectuais (a exemplo de Marcuse) que a invocaram para recusar a modernidade, para difundir um anti-modernismo e fazer a defesa de algum tipo de retorno ao Ser (o corpo, o orgasmo, a tradição, a arte, a comunidade...), há quem advirta contra os exageros, negando que a tecnologia sirva para impor um controle cada vez mais completo, negando que estamos condenados a viver sob tecnocracias totalitárias.

Contra o ceticismo weberiano em face do declínio dos valores e do sentido, Habermas procurou resguardar o conceito de “racionalidade prática” de sua substituição total pela “racionalidade técnica”, realçando, na interação social, outros aspectos da ação não considerados do ponto de vista unilateral da razão instrumental - a esfera dos acordos

normativos para além das situações de interesse. Habermas tornou manifesto este ponto de

vista ao opor-se à concepção marxista que tendia a reduzir o agir interativo (ou comunicativo) ao agir instrumental (expresso no binômio “forças produtivas-relações de produção”), exigindo uma explicação de como estariam relacionados.

O progresso da racionalização, como analisado por Habermas, teria se tornado irresistível por ter sido cada vez requerido tanto no nível do trabalho (transformação da natureza, domínio técnico do mundo) quanto no nível da interação (agir comunicativo, normatização moral) - ou seja, tanto para nos libertar da fome e da miséria (a restrição imposta pela escassez econômica) quanto da servidão e da humilhação (a restrição comunicativa imposta pela dominação política) -, sem que as evoluções do trabalho e da interação estivessem por isso automaticamente unidas. Em outros termos, Habermas evitou aderir à concepção de total reificação do mundo vivido moderno procurando distinguir e manter um conceito de razão “cético e pós-metafísico, mas não derrotista”, dizendo que ao enunciado segundo o qual “quanto mais complexos são os sistemas sociais, mais periféricos se tornam os mundos da vida”...

(28)

[...] não se deve dar um sentido causal, como se as estruturas do mundo vivido se transformassem na dependência da complexidade incrementada do sistema. Pelo contrário, os aumentos de complexidade dependem da diferenciação estrutural do mundo da vida. E esta mudança estrutural, qualquer que seja a forma de se explicar sua dinâmica, obedece, por sua vez, à lógica própria de uma racionalidade comunicativa.30

Através da noção de “racionalidade comunicativa” (ou “agir comunicativo”), transformado em

clef de voûte de seu pensamento, Habermas propôs não uma recusa, mas um aprofundamento

do projeto da modernidade, um uso procedimental da razão para fazer frente aos “problemas funcionais” que os sistemas sociais apresentam, apostando num conceito de racionalidade que buscasse uma unidade formal na multiplicidade de vozes com que se apresenta no contexto da modernidade. Para Habermas, mesmo que o controle político-administrativo procure se impor através do planejamento ideológico, “não há produção administrativa de significados”, ou seja, eles permanecem sempre padecendo de um déficit de legitimação que só poderia ser revertido passando pelo sistema cultural. Com isso, Habermas recomendou, como proposta construtiva, que se fortalecesse a esfera pública pela via institucional, cuja racionalidade não seria possível fora do meio da interação mediada pela linguagem, ou seja, “a discussão pública, sem restrições e isenta de dominação, sobre o caráter apropriado e desejável dos princípios e normas orientadores da ação, à luz de repercussões socioculturais dos subsistemas do agir racional com respeito aos fins”.31 Esta aposta de Habermas no “agir comunicativo” e

na “discussão pública” como via (re)construtiva da esfera institucional - um aprofundamento da racionalidade, uma busca de concordância normativa -, é tida como a marca distintiva de seu pensamento.

30

J. Habermas, Teoria da ação comunicativa II, pp. 189

(29)

Entre muitas questões levantadas por Habermas com sua “teoria consensual da verdade” (Lyotard), L. Araújo perguntou se o “agir comunicativo” não tenderia a tornar-se numa espécie de “síntese comunicativa superior” como sucedâneo (ersatz) secular das funções sócio-integradoras da religião. O autor suspeitou de que talvez a aposta habermasiana colocasse de lado muito rapidamente a coexistência possível do pensamento e do agir religiosos, pois uma vez tomados dentro da perspectiva evolucionista e do método comparativo, estes tenderiam a ser tratados como uma insistência de um “resíduo” a ser “superado” pelo projeto da modernidade, como se estivessem “em atraso” com relação a este projeto. E considerando que a religião perde o significado estrutural que possuía na sociedade, deixando de ser “O Fundamento”, o autor perguntou se ao invés de convergirmos para um mundo areligioso (e ainda mais racionalizado), a religião, desbloqueada e autonomizada pela própria racionalização, não poderia “cohabitar (doravante) em igualdade de condições com as esferas do agir profano?”32

Habermas parece ter respondido a esta pergunta em 2001, dissipando a suspeita de que defenderia um laicismo, falando então em uma sociedade pós-secular em que as religiões continuam existindo apesar de todas as pressões seculizadoras. Mas isso, como destacou, deverá continuar exigindo da religião um aprendizado de convivência e de tolerância recíproca com outras igrejas, a aceitação da autoridade da ciência, o consentimento com as regras do jogo democrático que obrigam o Estado a seguir com os ditames de uma moral profana, e mais: a “tradução” das convicções religiosas em linguagem leiga, facilitando o diálogo com os não-crentes, a sociedade secularizada como um todo...33 No comentário de S.

Rouanet,

Habermas é a favor sim, da secularização, mas de uma secularização que preserve os conteúdos da religião, em vez de aniquilá-los. Essa forma de secularização nos induz a distanciar-nos da fé, sem nos fecharmos às suas intuições. Uma sociedade civil pós-secular, conclui Habermas, pode haurir na religião, mesmo quando dela se afasta, os recursos de sentido que se tornam cada vez mais escassos numa sociedade dominada pelo mercado.34

32 Cf. L. B. Araújo, Religião e modernidade em Habermas, páginas finais 33

Cf. J. Habermas, Teoria da adaptação, FSP, 05.01.2003, Mais!, pp. 10-14

(30)

Mesmo que induzidos a distanciar-nos da fé por força de uma avassaladora racionalidade instrumental tendente a encontrar, “para tudo”, explicações e soluções empíricas, continua a ser requerido, copiosamente, um lugar para os conteúdos da religião, suas intuições do Todo, como critérios que nos ajudem, num mundo incerto, nas escolhas que temos que fazer. É como se, “mesmo depois de respondidas todas as questões” colocadas ao alcance da técnica e da ciência, “os problemas da vida permanecessem completamente intactos” (como no célebre dito wittgenstiano), carecendo todos de uma suplementação de sentido e de racionalidade no mundo.

Há quem diga, com vistas à permanência da fé religiosa (olhada pelo lado dos perigos da intolerância) que o que precisamos, hoje, é de um novo fideísmo, a sustentação de uma fé religiosa nem racional nem irracional, que tampouco precisaria ser fundada em uma doutrina, ou justificada (como uma “outra ciência” ou como uma igreja), mas simplesmente condizente com uma certa atitude para com a vida, uma prática encarnada que não se coloca objetivos nem requer explicações. Esse fideísmo estaria assumindo as formas do “novo fundamentalismo”, no sentido em que, no revés do declínio das grandes doutrinas, das grandes religiões e das grandes lideranças, com as pessoas sendo confrontadas com “a escassez de sentido, a porosidade dos limites, a incongruência das seqüências, a volubilidade da lógica e a fragilidade das autoridades” (Bauman), elas passam a buscar formas de “racionalidade alternativa” à lógica “vitoriosa” do mercado, outras maneiras de escolher, incluindo-se o recurso a conselheiros, consultores, pais-de-santo, gurus espirituais...aderindo à seitas, movimentos de renovação carismática, confrarias, broderias, grupos de ação direta, em suma, o que possa servir para tentar “reencaixar” a identidade deslocada dos eixos, apegando-se não apenas a formas religiosas mas também étnicas, de gênero, de classe social, de localidade...

(31)

A multiplicação das “microesferas axiológicas” seria uma expressão da secularização avançada, cada vez mais distanciada da visão centralizadora de um poder transcendente “vertical”, autoritário, ordenador do mundo, enquanto forma religiosa a priori, que viria antes do humano para lhe dar legitimidade. O questionamento da autoridade religiosa (desde Descartes) abriu caminho para a secularização do Estado e para uma fundamentação também secular da legitimação; a esfera religiosa separou-se da esfera civil, “Deus cedeu lugar ao ‘homem’ passando a habitar ‘em nós’” até que também o humanismo fosse questionado (posto que, desde então, “nós, seu alojamento terrestre, ficamos bem mais atravancados”), anunciando-se o “mais-além-o-homem”, um “fundamento” assentado sobre “nada”, isto é, “mim mesmo” (Stirner), sobre o ideal de “uma vida” (Nietzsche/Deleuze).

Forçados que somos a assumir integralmente a contingência (“aqui se faz, aqui se paga” como no slogan do Greenpeace), tendemos também a contar com que talvez desde as entranhas da própria imanência (a Natureza, a Vida Humana, a existência...) se reencontre um motivo para pensar algo que a transborda, um extravasamento a jusante em direção ao outro, como algo a ser construído ou pensado. É o que L. Ferry chamou de um “humanismo transcendental”, explicitando que se trata de “humanismo, porque não é mais possível recuar para posições pré-modernas, em que o homem ocupava um lugar secundário com relação ao divino”, porém “transcendental” uma vez que “instaurador de valores que excedem uma definição puramente imanentista do humano”.35

Voltaremos mais adiante sobre este ponto, sobre as novas formas do imanentismo-transcendentalista, o anseio disseminado por uma “religião racionalista” que se pode alinhar entre as razões da penetração bem sucedida, em muitos círculos de discussão filosófica (universitárias ou não), do pensamento de filósofos como Nietzsche, Espinosa, Heidegger e Gilles Deleuze (aos quais demos destaque especial).

2. A desconexão econômica

Ao que tem, tudo será dado; ao que não tem, ainda o que tem lhe será tomado - S.Marcos, 4:25

(32)

Mas será que, diante dos problemas globalitários avultando, a esperança que poderíamos ter em uma “inter-ação comunicativa” como projeto de racionalidade ou de esclarecimento para a emancipação não encontra muitos desmentidos?

Não é difícil encontrar quem conteste Habermas, ou considere derrisória sua concepção de “situação ideal de fala”, tratada não raro como uma ficção equivalente a uma “conversa de anjos”. Para muitos, a crença e a fé místico-religiosa não comungariam jamais a almejada neutralidade dos “padrões públicos de emancipação” desejados por Habermas – a democracia do Estado democrático, que se quer laico, continua (e ainda mais) ameaçada, em diversas partes do mundo, por clivagens religiosas: judeus e muçulmanos, católicos e protestantes, etc. Entre os detratores do ideal habermasiano de “uma situação de discussão isenta de coerção e sem limites que fosse realizada entre agentes humanos livres e iguais”, S. Zizek lembrou uma velha lição de Carl Smith (1888-1985), segundo a qual a democracia envolve centralmente a divisão política entre o amigo e o inimigo, a soberania consistindo no poder legal de suspender a validade da lei criando o Estado de exceção contra seus inimigos, lembrança que põe como maior problema e tarefa política o “fornecer/construir a imagem identificável” desse inimigo (que é sempre “invisível em sua dimensão crucial”).

Os poderes terrenos, tanto da Igreja quanto do Estado, sempre respaldaram sua constituição no medo do estranho/estrangeiro, no senso de nossa “extrema vulnerabilidade ao outro, mais do que a preocupação com uma ameaça de perigo específica” (Hirschkop), de um modo que sempre precisaram, para exercer poder, fabricar permanentemente essa vulnerabilidade.36 Para

que se constituam e se sustentem, precisam opor, desde o princípio, um não ao que não faria parte de si próprios, um adversário temível, responsável por nossas mazelas, enquanto tal, sempre exterior. Esse inimigo, contra o qual, sob qualquer pretexto, as paixões reativas podem ser descarregadas, sempre pôde ser combatido efetivamente ou em efígie, mas o problema político, problema de exercício do poder, no entanto, se agrava quando para essa fabricação mal se consegue nomear o inimigo, e ainda menos fornecer-lhe uma face identificável.

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