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Desaparição do Sujeito e reaparição do sujeito

O próprio do homem é não ter próprio - Heidegger

Como um dos aspectos mais realçados do fenômeno da globalização – a chamada “crise de soberania” -, corresponde o fato dos Estados nacionais estarem cedendo funções e espaços de ação de interesse público sob o peso das injunções transnacionais. Os “interesses externos” forçam os governos a adotar ajustes econômicos e a postergar ajustes democráticos, retirando dos cidadãos unidos a possibilidade de atuação política sobre suas condições sociais de vida. As vias institucionais de participação política vão perdendo eficácia, gerando um déficit democrático que a criação de novas arenas políticas ainda não se mostrou suficiente para compensar. Tornou-se flagrante que as mais importantes entidades que decidem sobre nossas vidas são supranacionais, escapam ao controle dos governos, e portanto, em princípio, ao nosso controle.

Através da desregulamentação, o Estado foi sendo desabilitado em seu papel fundamental de estabelecer uma agenda de opções políticas e um código de escolhas, funções que foram se transferindo das instituições políticas (eleitas, e em princípio controladas), para outras forças, externas.

Desregulamentar significa diminuir o papel regulador do estado, não

necessariamente o declínio da regulamentação, quanto mais o seu fim. O recuo ou autolimitação do Estado tem como efeito mais destacado uma maior exposição dos optantes tanto ao impacto coercitivo (agendador) como doutrinador (codificador) de forças essencialmente não políticas, primordialmente aquelas associadas aos mercados financeiro e de consumo.73

Sem que as sociedades possam atuar com autonomia sobre si mesmas pela via representativa, vem definhando a substância democrática da participação que constitui sujeitos, enfraquecendo o ideal dos direitos repartidos com paridade (que modelou as Constituições e que subentendia que seus autores, todos os cidadãos, seriam também seus legisladores). As garantias sociais patrocinadas pelo Estado escassearam, o desencanto com a política profissional aumentou, a militância partidária desapareceu, a sensação de que elegemos políticos que só nos decepcionam se alastrou, o maior adversário de todo candidato se tornou a abstenção e o voto nulo. Os espaços públicos, que sempre foram os locais da atividade política liberal por excelência, continuam seguindo a forte tendência de privatização, de um modo que, além de desapossados do “poder de compra de nossas cédulas eleitorais” (Streck), os cidadãos vêm sendo também despossuídos das condições com que organizar um poder de reação, piorando o déficit político.

No plano global e nos governos, os círculos das decisões políticas importantes se concentraram, destacando-se mais e mais do círculo muito maior dos que são por elas afetados. Habermas:

Quanto mais graves e numerosas são as matérias reguladas no curso das negociações interestatais, tanto mais decisões políticas são subtraídas à formação democrática da opinião e da vontade, formação esta ancorada nas arenas nacionais.74

O vasto projeto da modernidade figurava a nacionalidade e o Estado fundidos numa mesma inspiração de “ordem e progresso” sociais, uma construção coletiva confiante, um patrimônio de gerações que se acumulava, ao qual correspondia a possibilidade de se estabelecer projetos de vida igualmente confiantes (com vagas asseguradas na universidade, aposentadorias integrais, etc). O ideal de desenvolvimento, como se materializou durante três ou quatro décadas, parecia tornar cada vez mais possível calcular o futuro pessoal a longo prazo em função de uma visão clara de cada movimento do jogo histórico num “tempo lento”. “Profissões, ocupações e habilidades não envelheciam mais depressa do que os seus titulares”, observou Bauman, “nem o faziam os princípios do sucesso: recompensas que demoravam saldavam-se afinal de contas e a caderneta de poupança sintetizava a prudência e sabedoria do planejamento a longo prazo”. 75

74

J. Habermas, Nos limites do Estado, in FSP, Mais!, p. 5.4, 18.07.1999

Hoje, entretanto, o sentimento geral que cresceu foi o da incerteza. É como se “o mundo como tal”, “mundo ao nosso alcance” se tornasse “indeterminável, incontrolável e assustador”, em que somos corroídos pela dúvida “sobre se as constantes de ação do contexto atual continuarão constantes por tempo suficiente para permitir o cálculo razoável de seus efeitos”. As respostas e reações aprendidas perdem validade rápido demais, sem chegar a se condensarem em hábitos, em comportamentos rotineiros. A identidade que gradual e pacientemente se construía em casa, os valores adquiridos como preceitos de opção racional, reaparecem como obstáculos diante da “flexibilidade” absoluta imposta pelo mercado. Nossa auto-imagem “se parte numa coleção de instantâneos”, “uma série de novos começos”, “uma

identidade de palimpsesto”, ajustada a uma mundo em que “esquecer, mais do que aprender, é

a condição da contínua adaptação”.76

Ao desapossamento do poder de arbítrio e decisão do sujeito-civil (o esvaziamento da esfera pública), declina também o Sujeito modernamente forjado à sombra do Estado, o cidadão de direitos e deveres, para restar dele apenas o indivíduo-consumidor-privado, um sujeito desacorçoado (desenraizado, sem alma), inseguro quanto à sua posição na sociedade. No âmbito das ciências humanas, essa despotenciação do sujeito civil pareceu ter sido anunciada, ruidosamente, com duas ou três décadas de antecedência, desde que a abordagem estrutural- funcionalista de investigação científica empolgou amplos setores da pesquisa, e, em especial, a inteligentsia francesa dos anos 50-60.

A morte do sujeito parece ter sido propagada à medida em que a pesquisa descolou-se do “homem” ou do “indivíduo humano” para interrogar pelos sistemas de ação, com o cognitivismo norte-americano, ou pelas estruturas ou sistemas de relações, com o estruturalismo metodológico, na França. A consumação, na alta-modernidade, do “homicídio” (que já se ensaiava desde as origens da modernidade, desde a identificação materialista do ator social com suas obras), foi finalmente entoada pelo coro de vozes do pós-estruturalismo (como o jornalismo estadunidense nomeou) – uma escolástica que teria tomado “as peripécias do percurso pelas referências últimas do pensamento” (Lévinas) -, como o que elevou a máxima foucauldiana, inspirada em Nietzsche, segundo a qual “Onde se fala o homem não existe mais”.77 Foi como se houvesse sido realizada a máxima:

76

Z. Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, pp. 36-38

Estamos na fase em que o consciente se torna modesto. [...] Em última análise, não é o homem, de forma alguma, que está em causa; ele é aquilo que deve ser ultrapassado.78

A desaparição do sujeito da problematização em diversos âmbitos das ciências humanas, nos anos 50-60, ocorreu sob o impulso, entre outros, de um modelo lingüístico que lhe retirara a pertinência para melhor fundamentar sua cientificidade. A idéia de que “a língua é um sistema que só conhece a sua própria ordem”, de extração saussuriana, prestou-se a um “fechamento da língua sobre si mesma”, multiplicando-se os estudos que se restringiam ao código, à combinatória interna, fora de toda função ou conteúdo referencial. Quando incorporada à lingüística como “estudo da vida dos signos no seio da vida social”, tal idéia se transformou em um programa semiológico global que ultrapassava a própria lingüística para encampar todas as ciências humanas num grande projeto. O formalismo atingiu o paroxismo em diversos centros de pesquisa, dispensando-se o sujeito da fala, transformando-o em epifenômeno da estrutura, descartando-se os pressupostos humanistas que se baseavam nas idéias de intencionalidade, criatividade e autoria, concentrando-se ao invés na topologia dos sistemas de relações (e logo mais, nas “teorias de sistemas”).

Nos Estados Unidos, em especial, desde o âmbito da pesquisa, prosperou mais fortemente o sentido de organização em conformidade com uma mentalidade dirigista auto-compreendida, que se orienta menos para as necessidade humanas globais do que por modelos simulatórios de uma realidade reconstruída que se supõe dever (e poder) ser administrada técnica e estrategicamente. Também aqui o sujeito foi destituído de seu lugar mais alto em nome da complexidade crescente (de subsistemas autopoéticos), passando a ser visto apenas como “uma capacidade contingente de seleção” (Luhmann). Na perspectiva de um inteligível visado por um intelecto repousado ele próprio sobre uma complexidade que esta visada pretende clarear, não se trataria mais de reduzir a complexidade (indeterminada) do meio ambiente, mas de torná-la determinável com projetos ambientais relativos ao sistema, ou seja, re- carregar o sistema com suas próprias capacidades de solução de problemas. As “estruturas normativas”, partejadas ao nível da discussão acerca de problemas práticos, que poderiam manter integradas as sociedades complexas, deixam de ser estabelecidas intersubjetivamente, com a integração do sistema passando a ser tratada a partir de uma perspectiva de condução administrativa, com o comando situado em separado e acima do insumo de motivações, valores e interesses generalizados, protegido diante dos partidos e do público. 79

Emmanuel Lévinas, já nos anos 60-70 descrevia a “crise do humanismo” que se alastrava em vista do domínio triunfante das estruturas de tipo formal ou lógico-matemáticas, para protestar contra os “slogans da alta sociedade intelectual”, contra as proposições que “se impõem com a tirania da última moda”, que eliminariam o sujeito da ordem das razões. Para Lévinas, em tais

fronts pesquisantes estaria sendo praticado um “ordenamento de estruturas inteligíveis” que

não reservava mais à subjetividade qualquer finalidade “interna”:

Nós assistiríamos à ruína do mito do homem, fim em si, deixando aparecer uma ordem nem humana, nem inumana, ordenando-se certamente através do homem e das civilizações que ele teria produzido; mas ordenando-se, no fim das contas, pela força propriamente racional do sistema dialético ou lógico- formal. Ordem não-humana à qual convém o nome – que é o próprio anonimato – de matéria.80

Com o pós-modernismo,81 como outro termo de epocalidade em voga desde os anos 70, para

diversos autores, a idéia de Sujeito (seja do Cogito ou “hegeliano”) teria sido cabalmente destruída, desfazendo-se o ser que, desde o impulso iluminista, estaria destinado a libertar-se das crenças tradicionais, e a convergir, pela razão, para a unidade e a universalidade. A última expressão intelectual de vulto deste Sujeito teria sido dada pelo humanismo sartreano, na década de 50, concebido não como um “coisa espiritual”, mas enquanto praxis individual, transcendência ou perpétua superação, “objeto de si através do outro que não ele, ação negadora, e, portanto, liberdade e luta”.82 Embora já se tratando de um sujeito eminentemente

político (como o que se repetiria a seguir em A. Touraine e outros), o sujeito sartreano

convergia dialeticamente para uma totalização, mantendo como “projeto” a “dedução” da historicidade e sua “compreensão” capaz de transformá-la num instrumento de liberdade.

80 E. Lévinas, Humanismo do outro homem, pp. 86-87

81 O pós-modernismo, no dizer de Ermarth (1998), poderia ser reconhecido por dois pressupostos centrais: primeiramente,

“não existe qualquer denominador comum – a ‘natureza’, ou a ‘verdade’ ou ‘Deus’ ou ‘o futuro’ – que garantam que o mundo seja Uno ou a possibilidade de um pensamento natural ou objetivo”; em segundo lugar, “todos os sistemas humanos funcionam da mesma forma que a linguagem, que são sistemas auto-reflexivos e não sistemas referenciais – sistemas diferenciais, que são potentes, mas finitos, sistemas dos quais dependem a construção e a manutenção do significado e do valor” – apud M. Peters, Pós-estruturalismo e filosofia da diferença, p. 16

Mas os últimos “anos de chumbo” da guerra fria, até a queda do muro, e pouco depois, com o recrudescimento dos conflitos étnicos e a Europa beirando a recessão, serviram para dissipar as esperanças que ainda restavam em uma modernização endógena, bem como em uma historicidade que pudesse ser compreendida, ao tempo em que a palavra “liberdade” passava a significar muito mais vezes “liberdade de mercado” (ou “liberdade de consumo”). Separados de todo trabalho crítico prévio, e das aberturas sugeridas por seus autores, alguns refrões de inspiração nietzschiana empolgaram alguns e aumentaram as reservas de outros. Nesse espírito, retomou-se a frases como a de G. Deleuze, quando decretou: “o sujeito se esvai na espessura do que se diz e do que se vê”.83 Ou de J. Baudrillard: “O indivíduo não existe. Existe

apenas uma espécie de relé, de terminal”...84

O “fim” do sujeito não foi o único “fim” decretado no período; se ensejou, na realidade, especialmente a partir dos anos 80, uma liquidação geral nas ciências humanas: fim da política, fim da história, fim das grandes narrativas, fim das tradições... (até ao ponto em que alguém disse que “já haviam coisas que não existem em demasia”). Este radicalismo, como observado e criticado pouco depois, mesmo quando tomou as cores de um esquerdismo voluntarista (e não mais vanguardista), teria levado mais água ao moinho do neo-liberalismo em ascensão, na medida em que, sacralizando o movimento social como produção livre e desejante, teria se descompromissado das formas institucionais de protagonismo social, e deslizado, em muitos casos, para uma espécie de anarquismo estetizante festivo e inofensivo.

83

G. Deleuze, Conversações, p. 134

A crítica do “totalitarismo do Estado”, muito em voga à época do “urso soviético” que se pintava como o “inimigo” (quando ainda estavam frescas as lembranças do III Reich e seus horrores, e o Vietnã estava em chamas), parece ter se somado ao refrão neoliberal pela presença minimalizada do Estado nas relações comerciais, equivalente à “desregulação econômica”. Os questionamentos suscitados pela “primavera de Praga”, pelo Vietnã, pelas notícias do Gulag, desabonavam as alternativas políticas tanto à esquerda quanto à direita: o problema seria “o Poder”, “o Sistema”, independente de credo político, razão pela qual convinha a “desobediência civil como afirmação da sociedade contra o Estado” (P. Clastres). Segmentos da esquerda voluntarista e da direita neo-liberal, mesmo que com razões diferentes, se encontraram nesses refrões (“é proibido proibir”, etc), e não por acaso, vieram a dividir, alguns anos depois, muitas cadeiras nos ambientes palacianos. No caudal do discurso “contra o Estado” (tratado como “máquina pesada, ineficiente”, “elefante branco”...) a noção de serviço público perdeu-se, e o servidor público passou a ser hostilizado pela imprensa liberal (tratados como “privilegiados”, “marajás”...).

Não foi preciso muito esforço das partes para que as finalidades do Estado fossem reduzidas, e as que sobraram aparecem misturadas com a idéia de governo (enquanto gestão). O fato é que o problema da crise de participação política continuou se agravando, e se já não havia Sujeito (seja como grande corpo coletivo ou categoria crítica forte - “as massas”, o “homem genérico” -, seja como subjetividade e liberdade, poder de escolha e decisão), sua retirada com substituição pelas “estruturas” ou pelos “sistemas de ação” não dirimiram os açodamentos que o solicitavam (em especial, o aumento das desigualdades sociais e a destruição ambiental), e que o obrigaram enfim, a retornar em cena, ainda que não com a mesma força unificadora, nem segundo o enredo de uma qualquer grande doutrina. Há mesmo quem diga, com Derrida, que o pós-estruturalismo não chegou jamais a “liquidar” o sujeito, mas tampouco “resgatou- o”, e sim “reabilitou-o” depois de descentrá-lo e reposicioná-lo em toda complexidade histórico-cultural.85

No âmbito das disciplinas sociológicas, esse sujeito renovado (ou inoculado) teria começado a despontar, com a exaustão dos modelos estruturalistas, também à medida em que o esquerdismo político, confrontado com a irrazão das atuais relações sociais de trabalho, convergiu do plano da “identidade de classe” para o plano do ativismo contracultural, trazendo novamente a questão das identidades pessoais, procurando envolver, no plano de pesquisa, as “formas concretas de vida”, as “histórias verdadeiras”, “as pessoas daqui”, as regiões do vivido, o ordinário, o evento, a oralidade, as biografias (testemunhos, depoimentos, gravações “ao vivo”), em suma, o contexto sócio-cultural, seus atores comuns e seus jogos de linguagem cotidianos.

Observamos, nas últimas décadas, um crescente interesse pela “problemática da vida cotidiana”, havendo mesmo quem diga de um atual “fascínio pelo cotidiano” (Gumbrecht). Tudo o que “é familiar, mas não de conhecimento, e que é estranho, mas não de ignorância” (Lévinas), o mundo cultural preexistente como multiplicidade de tempos, de lugares e de espaços lógicos, pareceu oferecer-se como território apropriado para uma aventura da

escritura. Procurando fazer uma breve “arqueologia” do “fascínio atual pelo cotidiano”

através da análise dos conceitos de “mundo cotidiano” e “mundo da vida”, H. Gumbrecht os relacionou com a “crise da epistemologia” começada em fins do século XIX (com a ruptura do paradigma da Scienza nueva, com o reconhecimento dos limites na relação de objetivação, com a perda da certeza ontológica numa “realidade concreta”), ao mesmo tempo que notava- se “uma nova disposição a aceitar como ‘reais’ fenômenos que não podiam ser definidos como existentes independentemente da mente humana”.86

Para Gumbrecht, o atual fascínio pelo cotidiano coincide com o interesse pelas “realidades construídas” (ou “realidades intermediárias”), pelas “formas cotidianas da existência” (que funcionam como “esquemas de referência”), pelas “práticas correntes” de engendramento das “estruturas sociais das práticas cotidianas”... Tais “medianidades” são encaradas em seu aspecto constitutivo de realidades – do mesmo modo como hoje podemos falar em “mundo do cinema”, “mundo da moda”, “mundo das drogas”, ou “mundo do esporte”... como “mundos” que não existiam e que hoje estão aí, à nossa volta, como “realidades socialmente construídas” -, tornando-se particularmente interessante o ponto em que as idéias, empolgadas pela imaginação, se transformam em projetos de ação política, inventando resistividades, materializando novas formas de existência.

Depois de um certo predomínio, no âmbito das ciências humanas, do modo de conhecimento “observação-experimentação” (tomado de empréstimo das “ciências fáticas”), bem como depois de uma certa limitação dos estudos em torno das “estruturas inconscientes”, visando a formalização, de volta à fenomenologia, à etnologia e à crítica literária (bem como a um certo “romantismo”), cresceram as tentativas de inscrever o corpo e o pensamento do pesquisador na cultura (dos outros, como numa “alteridade desconhecida”) para dela gerar, como “de dentro”, da perspectiva de seus atores (e como ator), uma criação verbal que acrescentasse algo de novo, que fosse ela mesma expressiva, capaz de exprimir mundos ao mesmo tempo que os pensa (e vive). O corpo do pesquisador pareceu encontrar um novo estatuto, sendo considerado ele mesmo seu único “instrumento”, devendo operar como um “sensor sentido” (M-Ponty), criador de novos objetos culturais. A sensibilidade, a percepção, a expressividade, como temas tradicionais da reflexão estética, reapareceram envolvidas na atividade de estudo acadêmica:

Nós não somos sujeitos do mundo e parte do mundo de dois pontos de vista diferentes, mas, na expressão, nós somos sujeito e parte ao mesmo tempo. Perceber é, ao mesmo tempo, receber e exprimir, por uma espécie de prolepse. Nós sabemos, pelo gesto, imitar o visível e coincidir

kinesteticamente com o gesto visto: na percepção, nosso corpo é também o

“delegado” do Ser.87

Toda esta concepção, em que a cultura é assimilada a uma linguagem “que se fala sozinha” (Blanchot), em que um certo involuntarismo tende a substituir o sujeito da escolha e da decisão, em que se enaltece um “presente” de fruição sem telos, sem missão a cumprir, faria parte, no dizer de Lévinas, da “exaltação cultural que dirige a vida espiritual contemporânea”. Para Gumbrecht, a perda da exigência da objetividade teria suscitado “toda espécie de especulações sobre um denominador comum para mundos cotidianos historicamente específicos”, movimento que aparentemente teria deslizado para o lado oposto, encontrando como equivalente contemporâneo “uma sofisticação ilimitada da auto-reflexividade”. Disse:

Enquanto a consciência de quão impossível se tornara a retomada de um território ontologicamente estável gerou a ontologia dos anos 20, as consciência de quão impossível é agir como um observador externo objetivo transformou o observador auto-reflexivo no herói epistemológico de nossos dias. Em ambas as situações a reminiscência (ou mesmo o substituto) de uma “Realidade verdadeira” não mediada era – e é – mantida no horizonte, ganhando o status de um Sublime estético, o status daquilo que jaz além das capacidades perceptivas do observador. As ambições literárias dos etnógrafos reflexivos ao aludirem à autenticidade perdida – que eles pranteiam – podem ser vistas como um erro remoto das funções que Heidegger atribuía à arte e à literatura.88

Com efeito, a arte inspirou uma pesquisa inusitada pela verdade, reeditando-se Heidegger e sua concepção de arte como desvendamento, como pôr em obra que “abre à força um espaço aberto, em cuja abertura tudo é diferente do habitual”. Em muitos casos, a arte vem reaparecendo como a possibilidade de criação de uma realidade auto-suficiente, desengajada, alternativa, contrária (ou recalcitrante) com relação à aceitação social e de mercado, ainda