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Limites da representação: do aórgico ao orgânico

II Parte: O Crivo Institucional

10. Limites da representação: do aórgico ao orgânico

É preciso um pouco de caos interior para dar luz a uma estrela que dança - Nietzsche

Mas o que poderia ser um “involuntarismo na ação política” quando a denotação mais comum de “político” (concernente à polis, ao Estado e ao governo) e/ou de “ação política” (como ação conduzida segundo um plano elaborado com antecedência)210 já supõe o

contrário, ou seja, o engajamento da vontade, a vocação, a abnegação, a “disputa pelo poder”, enfim, o voluntarismo?

209

Cf. F. Zourabichvili, Deleuze e o possível, in E. Alliez, G. Deleuze, uma vida filosófica, pp. 333-355

210 Cf. A. Lalande, Vocabulário, p. 821-823

A ação política, como usualmente entendida, é inseparável dos conflitos de interesses, dizendo respeito à distribuição desigual das chances de vida, implicando a preservação e defesa de status e condições diferenciadas contra novos pretendentes, que reclamam pela igualdade. Kant já descrevia os seres humanos como naturalmente sociáveis, contudo, também tensionados por uma propensão para “viver como um indivíduo”, querendo “dirigir tudo de acordo com suas próprias idéias”, enfim, como seres divididos entre uma inclinação para a sociabilidade e uma “sociabilidade insociável” como contínua resistência que estaria sempre ameaçando fragmentar e desfazer a sociedade.211 Marx realçou com mais fortes

tintas a visão da evolução histórica a partir do conflito de classes, concitando à necessidade de “transformar o mundo” como missão histórica.

No entanto, a noção de “involuntarismo na ação política”, como evocada, desvia-se de todo sentido de ato esforçado (partidário, assembleístico, polêmico, argumentativo...), correspondendo quiçá ao Stimmung (humor) que nos parece hoje a muitos recorrente, de aparecer engajado em uma prática transformadora “divertida e compromissada ao mesmo tempo” (K. Moller), ou então “divertida e importante” (R. Dahrendorf), quer dizer, desviada da luta pela conquista do Poder ou de toda profissionalização de práticas embora implicada num aumento de potências que livremente se encontram e se realizam, como heterogêneos que se somam na possibilidade de “acordar velocidades diferentes”.

Assim como a arte parece ter criado caminhos para além dos ditames canônicos da representação figurativa, atingindo resultados “duvidosos”, mas também capazes de suscitações pluridimensionais mais ricas, talvez em política também se aspire uma criatividade sem modelos, uma política sem imagem estável da política. Talvez possamos dizer da ideação de uma prática política que se queira estabelecida num sentido mais elevado, numa atmosfera rarefeita, em que se age politicamente - e mesmo revolucionariamente - sem ter necessidade de falar como político ou sobre tal agir como político.

211 I. Kant, Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, pp.20-44

Esse quereres parece estar buscando e encontrando termos com que se fortalecer e propagar de empréstimo à filosofia (e à crítica literária), o que parece confirmar-se no ressoar insistente (na Net, no jornalismo cultural, entrando as artes e as ciências humanas) de alguns nomes de filósofos (com destaque para Nietzsche, Heidegger e Deleuze, entre outros), que são circulados por terem se exposto à tentativa de escapar ou superar a

antinomia da lei, pondo filosofias de existências que se quiseram ultrapassar ou consistir à

parte tanto da racionalidade dialética (Vernunft) quanto da razão crítica (Verstand), ou seja, aos modos de entendimento e compreensão conceituais através dos quais as intuições e os idiotismos seriam desvestidos ou abolidos para sobrelevar o logos da representação.

No terreno filosófico recente, os pensadores que retomaram a via desubstancialista ofereceram uma visão do kantismo e do hegelianismo como filosofias que, por presumirem um telos em vias de harmonização universal segundo leis inatas ou históricas, tenderiam a despir de importância a singularidade de todo conflito, apresentando-se assim como pensamentos demasiado reconciliatórios com o componente característico do Estado moderno: a ambigüidade entre uma liberdade individual porém com despolitização, ou ainda, a oposição jurídica dos sujeitos livres (personificação) que são reduzidos (no nível econômico e através de dispositivos técnico-administrativos de controle) às relações sociais como entre coisas sujeitas (reificação).212

212 Nos estudos lingüísticos esta ambigüidade foi pesquisada interrogando-se a distinção entre um “falante” e um “sistema

da língua” (ou um “funcionamento semiótico” e uma “funcionamento simbólico” da linguagem), perscrutando a que ponto uma consciência operante poderia significar a partir de uma estrutura para além dela, deslocando-a, colocando-se adiante de seu tempo (como os poetas), e se, para isso, não seria preciso denegar ou destruir a identidade do sujeito (como o “louco” nietzschiano).

De um ponto de vista político, a pergunta que popularmente tem sido feita (ao encontro dos “filósofos da diferença”) é como sair do esquema, dos compromissos ou consentimentos com o paradoxo democrático de um “governo de iguais” (pois se é governo, hierarquia, como poderia ser “de iguais”?), ou com o limite democrático de não sermos unânimes para decidir mas termos que ser unânimes para obedecer, enfim, com essa nossa condição de sujeitos-sujeitados tão mais comprometidos com a regra de igualdade quanto mais ela serve para maquiar a reprodução da desigualdade. Como já observava Aristóteles, a distopia entre a igualdade proclamada e a desigualdade real é “coisa [que] leva à aporia e à filosofia política”,213 ou seja, a um questionamento insanável acerca do “infundado” de todo

fundamento, da indefinição de todo elemento de base, da ausência de uma norma que seja definitiva, incompletude que movimenta a própria política. O “amor da verdade” que em Platão situava o pensamento puro face a significação, o “soberano bem de um mundo possível” que Kant condicionava à “felicidade proporcional à moralidade”214, como todas as

outras insinuações de fundamento são acusadas de sustentar uma estrutura intelectualista da correlação entre inteligência e inteligível, avantajando o conceito (ou o indivíduo) como determinação (como teria feito Hegel), ou a “unidade da consciência transcendental” (como Kant), deixando de fora o devir das particularidades, os estranhamentos e extravagâncias, tudo sobre o que não se poderia fazer um simples relato.

213

Aristóteles, Política, IV, 1282 b 21

214 E. Kant, Crítica da razão pura prática, liv. 2, pp. 119-120,

Um questionamento “das bases” institucionais e seus regimes de signos tende a voltar-se para a própria atividade de estabelecer regras, para o ato inaugural de nomeação das partes que devem ou podem integrar o conjunto político, para o procedimento de divisão com que se designa os elementos componentes convocando-os aos seus lugares respectivos num plano cosmológico e geométrico feito de círculos concêntricos: o rei-filósofo, o soldado, o artesão, a mulher, o estrangeiro, o escravo...(todos diferentes, segundo as “aptidões”, mas organicamente “integrados” no corpo da pólis). Um ceticismo disseminado não só reconhece o caráter “ideológico” ou “ficcional” de um tal dispositivo como também de toda tentativa de refutá-lo, pois riqueza, justiça, direitos, Deus, a finalidade não passam de “não- seres”, ficções do espírito, seres de razão, sem que haja nada nisso que se impeça de descrer, em suma, de ver que só se fala aí de “nadas” (“Não há nada universal no mundo além das palavras”, dizia Hobbes).215 A questão que se quer ultrapassar ou contornar parece

então concernindo ao ato de determinação como ato de fundação, ato de ordenação sócio- política primeira, seja como identificação das partes (nomeação) ou como distribuição de títulos (titulação) que servem à seleção dos pretendentes às “prerrogativas e provimentos” da polis (destinando cada um ao seu lugar e sua função), seja como justificação argumentada das razões (sem razão) desta desigualdade que se defende e preserva tanto mais se fala em igualdade.

215 T. Hobbes, Leviatã, I, 4

Não são apenas as palavras dos políticos que deixam de ter credibilidade; a ilusão positiva fundamental que sustenta a política como afirmação de um “centro” geométrico e estável de poder – a Pátria, a Justiça, o Estado... – todas as variantes do “Sumo Bem” como “aquilo a que se tenderia em todas as circunstâncias” (Aristóteles), como “amálgama ou reunião de todos os bens” (Descartes)216, como “modelo do mesmo” – já não se agüenta, como se a

ausência do Estado, da Justiça, etc, confirmassem uma suspeita cética: eles nunca existiram de fato, são ilusões, ficções em que não se pode crer nem confiar. Os ideais de totalidade positiva, constituintes básicos da vida política, se enfraquecem conforme os cidadãos percebem que seus governantes representam menos o interesse do povo do que o interesse das grandes corporações, que a liberdade conquistada é a liberdade de mercado monopolizada manifestamente contrária ao princípio da igualdade, colocando em questão, por inteiro, o sistema de representações. A lealdade das massas e a confiança no governo e nos governantes, conquistada e mantida através da distribuição homeopática de provimentos (que iludem com a esperança fundamental de que “estamos sendo reconhecidos”, que “podemos chegar lá”...) decai quando os rendimentos médios caem, o desemprego e a exclusão aumentam, e a desigualdade se agrava. Sem compensações, o questionamento do discurso democrático e da teoria da verdade que o sustenta torna-se inevitável.

216 Cf. G. Deleuze, Diferença e repetição, pp. 419-420

Uma filosofia crítica das representações retoma o fato de que é pela palavra, simultaneamente fundadora e legisladora, que sempre se transportou o conflito, maneirando-o, e elevando-o, desde um plano aritmético de soma simples entre as perdas e os danos, a um plano geométrico onde vige o princípio da isonomia, com todos sendo reconhecidos como iguais “em princípio”, com a cidade podendo resolver seus problemas graças ao funcionamento normal das instituições assegurado pelo respeito de seu próprio

nomos. Uma “política verdadeira” (ou uma politéia bem fundamentada) é o que garantiria o

domínio do pensamento sobre a existência coletiva, tornando a múltipla concentração dos homens comensurável com o pensamento. O ordenamento gramatológico que se impõe aos discursos para que as coisas sejam “colocadas às claras” (abertas para um debate e julgamento públicos) - o onomazein, como síntese que combina os nomes e verbos e a

legein que formula sob que condições um enunciado é significativo - é reencontrado no

ponto em que implica uma separação entre as aparências apolíneas bem fundadas das outras aparências que não respeitam o fundamento nem o fundado (o simulacro “dionisíaco”). “Que ninguém que não seja geômetra entre aqui”, determinava Platão como procedimento explícito do pensamento. O domínio econômico das perdas e danos óbvias é flagrado em sua elevação do ao nível das instituições civis para aí ser eclipsado diante do problema de se criar e sustentar um sistema institucional que unifique os grupos humanos sempre separados por estatutos sociais, familiares, territoriais, religiosos...diferentes.217

Nessa passagem da natureza (e da luz natural), ao código (e à luz da razão), vê-se que o

aórgico é reduzido ao orgânico, as potências agônicas do Todo são limitadas ao “todo”

regulado da pólis, o murmúrio anônimo das pequenas percepções sem objeto são filtradas em proveito de macropercepções integradas em conceitos, de um modo que as cópias são selecionadas e a diferença selvagem e estrangeira é expulsa ou só admitida depois de constrangida ou desnaturalizada e renaturalizada sob a forma de domesticadas representações funcionais. “A clareza”, dizia Diderot, “prejudica o entusiasmo”.218

217

Cf. J-P. Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, p. 228

218 Diderot apud H. Suhamy, A Poética, p. 33

Percebemos hoje, muito claramente, que na passagem dos devires-ativos para a representação política, ou melhor, dos discursos nômades e sem lugar para os discursos filosóficos ou políticos que têm um lugar e uma economia próprios (discursos que “agem pelo gesto e pela palavra na cidade ou na guerra”)219, alguma coisa essencial ou vital sempre

é perdida, sendo que é essa vitalidade que se perde que se quer manter acesa a todo custo, imaginando-se uma “política sem políticos”, uma “subpolítica” ou “micropolítica” reencantada (seja a título de “Gaia”, “Natureza”, “Humanidade” ou “um outro mundo possível”), em que se busca, pela mesma palavra que separa, presentar sempre outra vez o Todo, clamando a Vida, isso que é muito mais do que pode ser dito ou teorizável e que está sempre sendo de novo esquecida conforme prospera metodicamente o intelecto calculador num mundo “já feito”, já “inteligibilizado”. O que se quer, é um pensamento capaz de inventar novas formas de vida, exprimindo a afinidade entre a vida e o pensamento: “a vida fazendo do pensamento algo ativo, o pensamento fazendo da vida algo afirmativo”.220

219

Cf. J. Derrida, Khôra, pp 39-40

220 G.Deleuze, Nietzsche, p. 18

Os discursos encráticos, discursos que têm lugar político determinado, que tratam dos negócios, que tornam as coisas e as pessoas objetivamente disponíveis segundo a re-

presentação, sempre foram ameaçados pelos discursos sem lugar, discursos dos

especialistas do não-lugar e do simulacro, como dos poetas, imitadores e sofistas, indivíduos que afirmam a vida como idéia e atitude de ética prática. Para além desta oposição (que se desdobrou na oposição entre o discurso científico como “o legítimo” contra “outros discursos” que foram definidos por exclusão – literário, retórico, metafísico, etc), também sempre teria havido um lugar sem-lugar para filósofos como Sócrates, que simulava colocar-se entre os genos dos que simulavam a pertença a uma comunidade sem nela ocupar um lugar determinado, para poder então dizer ao mesmo tempo o lugar e o

não-lugar, tomando a palavra e participando, mas para devolvê-la, dar lugar, deixar a

palavra ao outro. Perguntando se a filosofia seria arte ou ciência, Nietzsche também já dizia que seria “arte em seu fim e em sua produção, mas tem o meio, a representação em conceitos, em comum com a ciência”, em suma: “é poesia, não se pode classificá-la”.221 É

mediante esta oscilação, que não se identifica senão apenas parcialmente e de modo contingente com os que têm lugar bem como com os que simulam ter lugar, que se pode formular a pergunta, dirigida ao Grund (ou ao Abgrund): “Onde estamos?”

Que se perceba o que uma tal pergunta possui de antidemocrática, pois não assume o lugar da palavra para falar a partir dele, funcionando conforme a ordem, mas colocando sob surci o dispositivo político, retornando do condicionado à condição, como se “a ordem exterior não tivesse importância” (Lutero). Esta aproximação-distanciação entre o eu e o conjunto societário, que já se considerou como uma marca do pensamento alemão,222 como

movimento da crítica reflexiva, retornou com o romantismo, que fez da idéia moral de “vida” uma atitude ética capaz de opor-se “o intelectualismo da civilização ocidental” (T. Mann), como se, em termos finais, o ser fosse mais importante que a intenção, e a liberdade, como idéia fixa da democracia, “não residisse no operari mas no esse” (Schopenhauer), ou seja, não no funcionamento maquinal das coisas, mas na essência vital.

221

F. Nietzsche, O Livro do Filósofo, trad. Rubens Frias, S.P.:Ed. Moraes, 1987, p. 15-16)

222 Cf. T. Mann, Considerations apud L. Dumont, in P.Veyne, Indivíduo e poder, pp. 54-55

Foi o conceito de vida, esse conceito conservador, profundamente alemão, goethiano e, na sua mais alta acepção, religioso, foi ele que Nietzsche impregnou dum sentimento novo [...] promovido à mais alta categoria e conduzido à soberania universal.223

É a questão “onde estamos?” que tornou a ser feita pela fenomenologia no século XX, pouco depois que o conceito de “objetividade”, que assegurava a posição “olímpica” do sujeito, foi questionada pelos desenvolvimentos da física. A fenomenologia de Husserl se apresentou como uma reflexão radical em que se tentava uma descrição de uma posição que não fosse vítima de qualquer espontaneidade, de nenhuma presença já feita ou pertença já consumada, nenhum fundamento-fundado, nenhuma idiossincrasia social, que desconfiasse ainda mais de tudo que naturalmente se impõe ao saber feito mundo e objeto, que reabrisse o questionamento sobre o mecanismo da determinação em que a matéria é informada - ciosa de que a objetividade na realidade encobria e estorvava o olhar que a fixava. Para os fenomenólogos, como para os bergsonianos, “a significação não se separa do acesso que a ela conduz. O acesso faz parte da própria significação. Os andaimes nunca são tirados”.224

É necessário sempre – desde a objetividade – ascender a todo o horizonte dos pensamentos e das intenções que a visam, que ela ofusca e faz esquecer. A fenomenologia é a evocação dos pensamentos – e das intenções subentendidas – mal entendidas – do pensamento que está no mundo.225

Com efeito, com Nietzsche, Husserl, Bergson, Heidegger, Deleuze, o logos da representação (como a determinação do indeterminado com que o mundo é tornado disponível às operações do intelecto, com que se nomeia as partes e as torna contabilizáveis ou adequadas para uma recontagem interminável), é revertido, fazendo retornar, contra a redução do Real ao “Objeto em geral”, a questão do valor do valores, a diferença vital com que se pode realizar a defecção das propriedades atualizadas, ou ainda, para falarmos com Heidegger, fazendo retornar a questão metafísica da objetividade, da possibilidade de pensar “a entidade dos entes enquanto vigência para a re-presentação asseguradora”, isto é, “a possibilidade de oposição, a saber, do re-presentar que assegura e calcula”.226

223 T. Mann, Considerations apud L. Dumont, in P.Veyne, Indivíduo e poder, p. 55 224 E. Lévinas, Humanismo do outro homem, p. 40

225

E. Lévinas, Ética e infinito, p. 23

226 M. Heidegger, A superação da metafísica in Ensaios e conferências, p. 64

A designação técnica do universo é, ela mesma, uma modalidade de cultura: identificação entre realidade e Wirklichkeit, interpretação do ser como se fosse destinado ao Laboratório e à Usina..227

Esta modalidade de cultura, modelada em torno da égide do sujeito criador (de inspiração judaico-cristã) como aquele que cria tudo do “nada”, isto é, que se antepõe à natureza como “nada”, como objeto de arbítrio, consumo e prazer, encontra hoje, rediviva, a resistência de uma contra-cultura que acusa a ausência do pensamento da ciência, “a indigência das ciências objetivas” (Novalis), e que ensaia um “retorno à natureza” como a uma realidade reencantada, cosmológica, holística – que não só as palavras não alcançam como exigem que elas cessem, como a toda atividade necessitante e impaciente do espírito, na meditação e num silêncio respeitoso, para uma fruição. Ver por ver, e não para fazer certas coisas; à visão do mundo sempre imperfeito, que precisaria de reparo ou correção, como motivo para desaver-nos com ele, segue uma visão dissolvedora do mundo e também do eu, isto é, do conceito, da consciência de si, da personalidade individual.

Para quem procure encontrar os termos em que questionar a substancialidade do mundo é inevitável que reencontre em Kant o ensinamento segundo o qual o conhecimento inteligível do mundo submete o mundo às condições da experiência possível, como se ela tivesse uma realidade em si, capaz de ser teoricamente determinável (e tecnicamente manipulável). A intangibilidade da “realidade em si” é um tema que retorna, com a reflexividade reencontrando a hipostasia da “ação segundo finalidades”, e com ela, o “erro” implícito às tentativas em se apreender o real no próprio sensível atribuindo ao objeto o benefício do signo, uma vez que, como já alertava Kant, com isso as antinomias implicadas na determinação são abstraídas, esquecendo-se do paradoxo da linguagem segundo o qual o inteligível, como o próprio objeto da inteligência, é o que está sempre escapando à apreensão dessa inteligência.228

227 E. Lévinas, Humanismo do outro homem, p. 42

228 G. Deleuze abre seu livro Lógica do sentido com uma deliciosa ilustração desta antinomia apropriada de L. Carroll:

“Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer que ela se torna maior do era. Mas por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora. Sem dúvida não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a propriedade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. “

O que se toma em consideração para um questionamento é que, no ponto em que conhecimento científico-administrativo e senso-comum se cruzam, o interesse básico concernente à linguagem é instrumental, de um modo que age-se para “reduzir as necessidades” como se houvesse por um lado primeiro os conteúdos da mensagem, que seriam tudo, e por outro lado - e depois -, a forma verbal encarregada de exprimir esses conteúdos, que não seria nada, simples ferramenta que serviria para conquistar uma verdade objetiva.229 A separação entre sensível e inteligível, entre a realidade dada à receptividade e

a significação que ela pode revestir, como pressuposta no nível mais comum de apreensão, parecem distinguir-se, como se a experiência oferecesse primeiro as formas, solidez, sabor, odor, etc, para em seguida serem animadas de metáforas, recebendo uma sobrecarga que as levaria para além desses conteúdos.

O real aparece como dado, sem que sua condição de problema e sua tradução teórica sejam debatidas, como se sua existência, clara e impositiva, não merecesse o crivo reflexivo da crítica e já estivesse por si justificada.230

No realismo “ingênuo”, a inteligência aparece instada num mundo vigente “incorporando fatos e concretizando dados” sem pôr-se em “linha de conta com o real, [que] antes