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II Parte: O Crivo Institucional

8. Phoné e logos

Do que há igualdade e do que há desigualdade, a coisa leva à aporia e à filosofia política - Aristóteles, Política, IV

Enquanto instrumentos de mediação, as organizações da sociedade civil que estão em franco advento surgem (e são reabsorvidas, retornam multiplicadas, etc) de uma arena

166 H. Marcuse, Ecologia e crítica da sociedade moderna, in H. Marcuse, A grande recusa hoje, p. 154 167

F. Whitaker, Fórum Social Mundial em perspectiva, Tendências/Debates, FSP, 30.04.2002, p. A3

168 G. Schwartz, Forum Social desafia os modelos de informação - FSP, 10.02.2002, Cad. Dinheiro, p. B2.

inferior em que a palavra é trocada em seu uso corriqueiro, em situações “informais”, ao nível das “microesferas públicas”, enfim, na periferia das organizações, nos mundos da

vida. Para entendermos os novos movimentos sociais conviria retomar esse “solo” das

situações interativas da “reprodução social”, o plano do senso-comum como sistema organizado do pensamento deliberado que se ergue sobre um emaranhado de práticas herdadas, crenças aceitas e juízos habituais, pequenos e inumeráveis contextos de ação prática nos quais os valores são compartilhados, em que as normas de convivência ou de vizinhança são criadas e transmitidas sem precisar que sejam fixadas por escrito, ou ensinadas, em suma, o plano em que as opiniões são resgatadas “diretamente da experiência e não [como] um resultado de reflexões deliberadas sobre esta.”

A religião baseia seus argumentos na revelação, a ciência na metodologia, a ideologia na paixão moral; os argumentos do senso comum, porém , não se baseiam em coisa alguma, a não ser na vida como um todo. O mundo é sua autoridade.169

Se o senso-comum é uma interpretação a realidade imediata, mera apreensão da realidade feita casualmente, o interesse atual de pesquisa, ou administrativo, ou de cooptação em nome de causas “que estão por serem melhor formuladas” avança no sentido de retomá-lo no ponto em que sugerem padrões de juízo que estariam sendo elaborados através de um conhecimento tácito ou de uma sabedoria coloquial, como nele se vê, então, encarnados. De um certo modo, portando, quando as ONGs se constituem como agências que buscam a interlocução, elas revivem, por assim dizer, no movimento de sua própria auto-instituição, a passagem mítica da “origem das línguas”, de Rousseau. No princípio, antes que se torne metódica, só existe a linguagem das metáforas, as palavras cantantes aproximadas das paixões, a expressividade franca, que, à medida que as necessidades vão crescendo “junto com nossa humana indignação”, são forçadas a mudar de caráter, tornando-se mais precisas, de um modo que os sentimentos que nela se transportavam, e apelavam ao coração, acabam sendo substituídos por idéias, dirigidas à razão.170

169

C. Geertz, O saber local, pp. 114-115

170 J-J. Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas, p. 53

De modo análogo, os movimentos em vias de organização contam em princípio com “comunicações pouco palpáveis” - a linguagem das metáforas, dos gestos eloqüentes, uma percepção muito difusa das coisas, como expressão do desejo incerto de envolvimento das pessoas comuns -, e se tornam organizações afirmadas ao fazer a síntese das necessidades, pondo a palavra em forma, gerando um discurso coerente, se institucionalizando. Há instrumentos legais que patenteiam essas organizações, pois estão contidas no espírito da democracia pluralista (de que os EUA fornecem o melhor exemplo), feita não por indivíduos, mas por grupos de interesse organizados e legítimos (associações, comitês, sindicatos, etc). Ao se articularem para “galgar o platô” da participação política não mais surgem tão somente como representação, mas se formalizam e passam a reivindicar o papel de representantes com mandato, com discurso arrumado, pauta de propostas formulada e disposição para negociá-las. Elas tentam se fortalecer enquanto agências intersistêmicas tanto sintetizando a voz das bases como batalhando para ter direito à palavra e ao voto nos fóruns econômicos e parlamentares, ou seja, participando, através de outras tantas mediações, tanto da vida das comunidades em que se pode desenhar anseios quanto diretamente das mesas de negociação nas quais “os argumentos são avaliados segundo seus méritos e não segundo a identidade dos argumentadores” (Habermas).

O percurso da organização da resistência contra a dominação começa em geral pelo questionamento da justeza das regras que legitimam o funcionamento das instituições, mas é compelida, ato contínuo, a estabelecer novas regras, e a se relançar através de uniformizações, ou seja, a tentar se fortalecer re-instituindo. A compreensão inicial dos movimentos espontâneos, de que as ordenações institucionais são artifícios, como injunções passíveis de serem questionadas e mudadas, uma vez em vias de participar de um governo, solicita uma espécie de reinscrição na natureza, uma reordenação do que seria “mais básico”, anterior a qualquer questionamento, uma (nova) “verdade inegociável” (que é a mesma!). Ao tempo em que se esforçam por emergir do melting pot das opiniões disparatadas e avançar no sentido de elaborar uma “opinião mais adequada”, não chegam a constituir esta “ortodoxia” sem recorrer à divisão política entre amigo e inimigo, ou seja, a um index em que elencar os hereges.

De acordo com o princípio liberalista (formulado por Stuart Mill), a pluralidade não deve ser obstada, “todos” podem ter acesso à decisão política, mas desde que esta tolerância seja aplicada “apenas a seres humanos de faculdades maduras”, ou seja, não seria tolerável a aplicação do princípio de liberdade “a qualquer estado de coisas anterior à época em que a humanidade se tornou capaz de melhorar pela discussão livre e igual”. Em suma: é preciso consentir com “a discussão livre e igual”, para isso repelindo a “barbárie”, perigo que Mill considerava legítimo combater inclusive através da tirania.171 A tolerância, como virtude do

tratamento civil, tem limites, a inclusão é condicional e excludente, pois exige a adoção recíproca de perspectivas, um pacto de não-agressão de cada membro com todos os outros, o comum acordo em acatar e obedecer decisões coletivas, em suma, só há tolerância mediante uma diferenciação que se situa nos termos de uma coletividade política maior, uma totalidade positiva, somente figurável através de uma “adaptação cognitiva” (Habermas).

O componente dessa recusa presta-se à atitude assumida hoje por diversas ONGs e outras agências antiglobalização, que projetam uma imagem de si mesmas também propagando restrições, ventilando que colocam fora de todo questionamento, como “injustificável”, o que chamam, genericamente, de “anarquismo violento”.

O espaço político em torno das grandes reuniões internacionais foi tomado à força por aqueles que desejam praticar a violência, disse Justin Forsyth, diretor de política da Oxfam; eles roubam a atenção dos grupos que desejam mudança positiva.172

171

J. S. Mill apud H. Marcuse, in R. Wolff, B. Morre, H. Marcuse, Crítica da tolerância pura, pp. 91-92

172 in FSP, 22.07.2001, B2 - Gênova separa código de conduta da violência

Do vasto patchwork comunicativo cujos sinais apelativos de insatisfação acusam a dimensão de um dano, um recorte é realizado, uma distinção é afirmada, a mais básica em todo jogo democrático: se a violência é a reação mais óbvia, para evitá-la é preciso constituir as partes, fundar foro apropriado, colocá-las em relação mediante certas regras, dar vez e voz a todos os representantes dos grupos de interesse, instaurar a negociação de acordo com um espaço geométrico... É o que em política é chamado de passar do “estado da natureza” ao “estado civil”, ou seja, em primeiro lugar supõe-se que seja preciso, como desde os gregos antigos, trocar a foice e as pedras pela palavra que se troca entre “iguais”, a violência aberta pelo horizonte de um consenso no qual os conflitos poderiam ser resolvidos sem recorrer à violência recíproca. Em nome de tais princípios, tais ONGs, ao mesmo tempo que procuram afirmar o que são ou o que querem, como agências de mediação, fazem questão de afirmar o que não são e não querem, coisa que têm feito com igual ênfase:

Não precisamos assimilar violência e radicalidade, realçou Bernard Cassen, presidente do Attac; a radicalidade se situa no conteúdo das reivindicações e na sua força de conquistar adesões, e não no número de carros queimados ou de vitrines quebradas.

Não podemos renunciar à luta democrática, não importa quais sejam as dificuldades, emendou o presidente do Oxfam; O anarquismo é muito minoritário; a imensa maioria dos oponentes à mundialização liberal não se reconhece nos seus métodos. 173

Afirmações como estas, de um raciocínio que avança através de oposições binárias, pondo universais através de reduções, fabricando exclusões em nome de uma “maioria”, fazendo petições de princípios, já traem a maneira usual de distorcer a realidade para que ela se torne em fatos de organização. Uma moral da exclusividade se impõe: o discurso que começa reivindicando tolerância, para ser tolerado, precisa diferenciar-se aderindo e defendendo “ideais maiores” contra os que os ameaçam, ou seja, não apenas substituindo uma intolerância por outra mas agravando por extensão a intolerância.174

173

B. Cassen (entrevista) in Para Attac, protesto não deve ser violento, FSP, 19.08.2001, p. A20

174 Cf. C. Rosset, Lógica do pior, pp. 70-80

O distanciamento que se cava contra os que “só querem negar, sem uma proposta construtiva”, por oposição a um “nós” que se quer legitimamente dotado de senso de dever e virtude legisladora, abstraindo-se todos os graus intermediários de envolvimento, ajuda a reforçar a imagem de positividade e responsabilidade de que precisam para serem aceitos tanto pela mídia quanto pelo “andar superior”. O recurso à oposição “democracia ou violência” (ou “democracia ou terrorismo”) é um “paradigma ideológico” (no dizer de S. Zizek175), pois é afirmada como se a única alternativa possível aos “radicalismos” ou

“fundamentalismos” fosse o sistema democrático liberal parlamentar (em conjunto com o capitalismo de hoje). Como ninguém é abertamente favorável ao terrorismo, dá-se a crer que a própria dúvida em si, um simples questionamento, deve ser denunciada como apoio disfarçado à violência.

O discurso pluralista da “discussão livre e igual” concebe o poder como um lugar que ocupar através de uma competição entre forças plurais reconhecidas, mas faz total abstração do fato de que a condição de entrada e de participação política nos círculos das decisões importantes não é igualitária, e sim já “viciada”; ou seja, não é tão somente explícita, mas também já institucionalizada. Os que estão do lado da “situação” ou do

status quo, os que já se institucionalizaram e adquiriram visibilidade e empowerment,

tendem a se autoperpetuar no poder, integrando outros poderes, pondo a posição e a própria máquina administrativa a seu serviço. O que a princípio seria uma luta política entre posições adversárias adentra um jogo de negociações em que as partes cedem até onde for preciso para manter o controle em comum do poder, tendendo a substituir os debates pelos arranjos e o conflito pelo consenso, formando centrões.

No final, partidos políticos, associações econômicas, um amplo espectro de grupos de interesse, assim como instituições que descobriram que sem se unir a eles estarão fadados o fracasso, formam uma vasta bola de cera. Os cidadãos já não sabem mais quem ganha o quê, quando e como, embora existam consultores bem pagos para aqueles que desejem sabê-lo, e cientistas políticos para aqueles que desejem descobri-lo.176

175

S. Zizek, O paradigma da ideologia, in FSP, Cad. Mais! 04.08.2002, p. 3

176 R. Dahrendorf, O Conflito social moderno, p. 131

Estamos cansados de ver políticos e representações oficiais fabricando, através da publicidade, de campanhas de apelo popular ruidosas, a legitimidade que lhes falta, depois de distribuir entre seus pares as concessões de canais de TV, rádio e imprensa de que se tornam donos, de um modo que “os que se levantam contra o sistema vigente estão, a

priori, em posição desvantajosa, que não é melhorada pela tolerância com suas idéias,

discursos e jornais”. Nos períodos de horário eleitoral gratuito, antes das eleições, as coligações partidárias se formam em função do tempo das legendas na TV e no rádio, e não em torno de afinidades político-ideológicas e programas de governo. Uma “oposição oficial” é consentida como fazendo parte do jogo; “a crítica”, dizem os situacionistas, “desde que construtiva, é bem vinda” -, mas essa tolerância com que o “pluralismo democrático” acolhe e integra a oposição é enganosa, “serve antes para deter do que para promover a mudança qualitativa”.177

Empenhados em garantir a posição conquistada e rumar ao topo da representatividade democrática (“os políticos são impotentes”, disse Castoriadis, “já não têm programa, seu objetivo é manter-se no cargo”), pode ocorrer que setores políticos de esquerda que já dividem o poder pela via institucional e querem expandi-lo ou assegura-lo se aproximem de organizações não governamentais que possuam interesses convergentes ou aceitem convergir com eles.178 “Na sociedade repressiva”, dizia Marcuse, “até mesmo os

movimentos progressistas ameaçam transformar-se em seus opostos na medida em que aceitam as regras do jogo”.179 Na passagem da expressividade à representação e desta até o

representante este encarna aquilo que Barthes chamou de “discurso encrático” (ou “discurso no poder”, “à sombra do poder”), um discurso “pleno” dotado de “figuras de amaciamento” (eufemismos, etc - o famoso “tucanês”), “já mediatizado por toda uma cultura jurídica, por uma ratio que todos admitem” - como os discursos do Estado e da mídia:

O discurso encrático [...] não é apenas o discurso da classe no poder; classes fora do poder ou que tentam conquistá-lo por vias reformistas ou promocionais podem assumi-lo - ou pelo menos recebê-lo com consentimento.180

177 H. Marcuse, in R. Wolff, B. Morre, H. Marcuse, Crítica da tolerância pura, pp. 91

178 Uma destas convergências setoriais pode ser notada no último Fórum Social Mundial em Porto Alegre, com o

fortalecimento das propostas “soberanistas” defendidas por militantes de partidos de esquerda, aproximação que desgostou outros segmentos participantes do encontro, que vêem na ressuscitação do Estado-nação um ideal ultrapassado.

179

H. Marcuse, in R. Wolff, B. Morre, H. Marcuse, Crítica da tolerância pura, p. 89

180 R. Barthes, A Divisão das Linguagens, in O rumor da língua , p. 118-119

Com as depredações às lojas do Mac Donald’s virando rotina nas manifestações antiglobalização, diversas ONGs encontraram argumentos para estabelecer critérios para admissão em participações “antiglobalização” que até então eram totalmente abertas para a diversidade. Criaram um “código de conduta” para tentar regrar o movimento; passaram a vibrar discursos mais assemelhados aos dos seus antigos adversários, os “grandes líderes”, repontando as oposições duais da praxe institucional: “agenda positiva” versus “desordem”, os que “buscam o diálogo” e os que “desejam praticar a violência”.... Rapidamente o jornalismo, sempre em busca de “lides” marcadas, passou a chamar tais ONGs de “grupos sérios”, já que estes tomavam em consideração que o único proveito que poderiam tirar da atenção que atraíam para os problemas da globalização seria decidindo exatamente contra o que estariam protestando, buscando a clareza, afastando-se das manifestações que não consentiriam com o diálogo democrático.

Do lado excluído, é percebido o “reformismo” dos “institucionalistas”, e muitos assumem afirmativamente a distinção, denunciando a coalizão deliberada ou involuntária dos pretensos contrapoderes oficializados com os poderes em função como um ardil, maneira de perpetuar a dominação:

O Fórum Social Mundial, atacou Moésio Rebouças, pioneiro dos movimentos antiglobalização no Brasil, é reformista no econômico, tradicionalista no político e conformista no social. Essa esquerda oficial que organiza o encontro tenta capitalizar os movimentos antiglobalização que enfrentaram espetacularmente os poderosos do mundo em Seattle, Praga, Quebec e Gênova.181

181 in Ativistas protestarão contra os dois fóruns, FSP, 30.01.2002, p. A 6

Esse inconformismo com as agências de mediação que se oficializam (com algumas passando inclusive a ser convidadas a participar dos fóruns dos “grandes líderes”), não é uma defesa ingênua de um ativismo pelo ativismo contra todo esforço de formalização de propostas. É que se vislumbra um risco real de “encampamento” oficial que tanto fortalece as organizações que assumem discursos em comum com a esquerda partidária “soberanista” quanto enfraquece o movimento das bases por cindi-lo internamente entre as forças já organizadas politicamente e as forças dispersas dos movimentos não-partidários em vias de organização (ou mesmo, tão somente de expressão, manifestação ou

sublevação).182 Em um contexto de formalização com frágil coesão dos pontos de vista, os

segmentos melhor organizados tendem a se sobrepor e a dominar a cena - inclusive através de artifícios conhecidos de manipulação sectária das assembléias (como o de retardar as votações com questões de ordem e rediscussões intermináveis, destruindo o clima amável da “enturmação” até exaurir a platéia e dispersá-la, para então só votar quando a vitória da proposta estiver assegurada por uma maioria restante só de militantes – uma minoria que se concebe como vanguarda, como capaz de dar direção ao movimento político).

182 As últimas notícias de jornal a respeito contam de um “racha interno” entre os integrantes do conselho internacional e

os integrantes do conselho nacional do Fórum Social. Embora reconhecendo que o conselho nacional tem feito um excelente trabalho, integrantes do conselho internacional acusam-no de “centralizar o poder de decisão sobre a pauta de diretrizes do encontro”, razão pela qual pedem a realização de eleições. Os membros do conselho brasileiro, no entanto, reagem dizendo que “Não faz sentido, pelo menos agora, [haver] eleição. Não somos uma organização que tenha hierarquia” – e lembram que “o conselho internacional foi uma criação do comitê brasileiro”. Internamente, enquanto alguns membros organizadores do fórum afirmem que a tarefa seja apenas de “proporcionar espaço físico para o encontro”, outros insistem em “formular grandes alternativas globais”, amarrando propostas, ou seja, definindo (e conduzindo) uma política de atuação. Novos capítulos estarão sendo acrescentados ao enredo deste processo de organização cindido como tal entre forças hierarquizantes e forças descentralizadoras, apelos à formulação, à síntese das necessidades, e contra-apelos ao por-em-discussão, ampliar o debate, reconstituir a mesa... (Cf. “Fórum Social terá disputa interna em Porto Alegre” – FSP, Caderno Brasil, 16.01.2003, p. A-10)

Na democracia pluralista, em que o princípio normativo não é “cada homem - um voto”, mas “a cada grupo legítimo, sua parcela” qualquer política ou princípio que não possua

representação legítima nenhum lugar têm na sociedade, por mais razoáveis e justas que

sejam.183 Para que o jogo democrático representativo funcione, é preciso que as partes

estejam constituídas, os representantes sejam nomeados e titulados, ficando de fora, sem representação, uma grande parte de não-cidadãos (ou cidadãos “só de nome”). Na democracia, o consentimento com o diálogo através de representantes constituídos foi a maneira encontrada para que a guerra declarada entre proprietários e servos endividados fosse suspensa, e o dano entre as partes, como desigualdade aritmética simples, passasse a ser recalculado segundo uma igualdade geométrica complicada, coisa que sempre exigiu uma recontagem (interminável) das partes e das parcelas, uma redistribuição de títulos e de lugares políticos com relação a um “centro” de poder. Se a democracia suspende a violência aberta, tampouco resolve as causas do conflito (uns têm, outros não têm); ela as desloca, instala uma negociação interminável, exige que todas as partes sejam ouvidas e um diagnóstico “completo” da situação seja realizado, enquanto distribui alguns provimentos e desloca algumas cadeiras em sua distância e posição com relação ao “centro” (das negociações), para cooptar a lealdade das massas – porém sem tocar no “terrível, e talvez não necessário direito” (Beccaria) que é o direito à propriedade individual, de um modo que, flagrantemente, a “igualdade” é só um “operador” do discurso, uma promessa ou prorrogação sine die.

183 Cf. R. Wilff, in R. Wolff, B. Moore, H. Marcuse, Crítica da tolerância pura, pp. 49-51

Para participar dessa recontagem indefinida das partes e das parcelas, examinando parcimoniosamente o que cabe a cada um é preciso que os representantes consintam com o dito aristotélico segundo o qual ser homem é viver em uma comunidade política, ou seja, dotado da faculdade de comunicação, capaz de formular bem as perguntas, de apresentar propostas e/ou defendê-las de modo adequado, de apoiar-se em pressupostos verdadeiros, ajustar-se à suposição da aceitabilidade racional, em suma, é preciso que pressuponha uma

teoria da verdade com que “medir” o mérito de seu próprio discurso e dos discursos

pretendentes (falar conforme a razão). Uma tal teoria para um julgamento se faz necessária seja porque as posições dos participantes ativos são desiguais (e essa desigualdade precisa ser justificada a fim de ser defendida e preservada), seja porque “a dominação deve ainda ser estabelecida e a competência de determinados agentes que no momento afirmam falar com a autoridade tem de ser, para esse objetivo, contestada e desacreditada”.184