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No cerne da relações do homem com a natureza, aparece uma parte ideal - M. Godelier

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Z. Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, pp. 229-230

O retorno das esquerdas à cultura é um fenômeno surpreendente nas últimas décadas. As teorias sociológicas com focalização global de inspiração marxista buscavam até há pouco explicar o funcionamento do sistema mundial com base em fatos “materiais e objetivos”, realçando os processos econômicos contra as outras dimensões da existência social. Mas o mesmo marxismo que tendia a relevar a autonomia do econômico como força determinante do processo histórico, com o desmantelamento do bloco comunista, a despolitização das massas proletárias e a continuidade do capitalismo, teve confrontada sua tese da revolução proletária, tendo que rever o papel da ideologia nesses acontecimentos, ou seja, tendo que retornar à cultura, ao simbólico e ao imaginário como elementos fundamentais de análise.

A cultura, para o marxismo ortodoxo, confundia-se com “cultura burguesa”, com “conjunto de valores dominantes”, tendendo a ser entendida como um obstáculo ideológico a ser superado em direção a uma nova “consciência” ou visão “científica” das coisas. Mas a persistência do capitalismo forçou o reconhecimento de que os “pressupostos metafísicos” execrados pelo determinismo e pelo materialismo tornavam-se indispensáveis para tentar entender os “movimentos anti-sistêmicos” (Wallernstein) que, à semelhança do marxismo, fundavam-se em suposições básicas a respeito do sistema mundial, mas já iam longe da idéia de um internacionalismo proletário revolucionário: a teologia da libertação, o ativismo verde, o indigenismo, as igrejas de unificação, os movimentos dos sem-terra, o islamismo radical...

O grande sujeito coletivo que se presumia na expressão “proletários de todo mundo” foi se desfazendo através de “acordos de classe”, e o liame que poderia ligar, como (im)prováveis aliados, uma diversidade tão grande de opositores eventuais que ressoavam um genérico “antiglobalismo” (anti-imperialismo, anti-americanismo...) já não seria argumentativamente sustentável através do caráter político anônimo da dominação de classes (extração da mais- valia). O desenvolvimento das forças produtivas, que se acreditava dotado de um potencial emancipador, deixaram de o provocar desde que o incremento incessante dessas forças se tornou “dependente de um progresso técnico-científico que assume também funções

legitimadoras da dominação” (Habermas). Ao momento de emancipação que se conquistava

com o Estado social seguiu-se outro em que somos submetidos a um regime de regulações que não regula quase nada, a não ser o essencial: o sistema de remuneração do capital. Assegurando o pagamento dos juros, contraindo empréstimos para cobrir empréstimos, os Estados “em desenvolvimento” criaram uma maneira perversa de administrar o distúrbio de crescimento, transferindo-o, por estágios, através do sistema político e sócio-cultural, como um novo “caráter anônimo” que penaliza trabalhadores desorganizados e marginaliza para o sub-consumo amplas parcelas da população.

Nós podemos ver hoje de modo bastante claro as destruições que a propagação global e violenta da cultura industrial produziu - e ainda continua a produzir diariamente nas culturas tribais mas distantes. O mercado mundial e a televisão refazem hoje de modo anônimo o papel representado pelos antigos missionários e senhores coloniais [...]. A dominação imperialista tornou-se amplamente anônima, “conservada” na dominação de coações sistemáticas - inclusive no currículo secreto de uma forma de vida inscrita na infra-estrutura das metrópoles mundiais do século XXI, superando todas as representações da velha Europa - seja em São Paulo, no Cairo ou em Tóquio.104

Diversos autores, com ou sem inspiração na teoria crítica, disseram de um desbotamento das orientações transmitidas pela tradição, percepção que não raro é interpretada como achatamento e destruição das culturas particulares em vistas de um processo de assimilação comercialmente forçada. As mudanças dos traços culturais, que ocorriam lentamente, através de uma incorporação seletiva e elaborada, atualmente, com os meios de comunicação de massa, ocorrem de modo abrupto, são propagados agressivamente:

O multiculturalismo atual, disse Perrone-Moisés, imposto, imediato, superficial e sobretudo comercial, justapõe pessoas e costumes e tende a diluir toda originalidade numa “cultura” global uniforme, destruindo aquilo que Lévi-Strauss chamou de “arco-íris das culturas”. [...] O multiculturalismo globalizado, implicando a espetacularização da diferença, não desemboca numa verdadeira interculturalidade. Intercâmbios coercitivos, assimilacionistas ou aleatórios não podem ser qualificados de interculturais.105

Tomando as coisas de um ponto de vista parecido, O. Coggiola considerou que a “industrialização da cultura” teria rompido com as características “artesanais” das vanguardas artístico-culturais, o que implicaria “o esvaimento da ilusão num questionamento do sistema imperante que parta do terreno cultural”.106 Acompanhando leituras tais, a pergunta inevitável

é: será que toda produção (artística inclusive) haveria que se determinada pelo fato de terem de “satisfazer o caráter processual do sistema industrial de controle autorregulamentado e sua constante aplicabilidade”? Este ponto de vista tem sido partilhado por defensores do “multicomunitarismo”, grupos que procuram manter intactas as diferenças culturais como valores em si mesmas, afirmando e preservando territórios e apegando-se a suas tradições trans-criadas, sem defender o livre intercâmbio cultural nem assumir o debate intercultural significativo sobre os diferentes diagnósticos da cultura e as diferentes soluções culturais.107

105 L. Perrone-Moisés, FSP, 25.11.2001 106

Osvaldo Coggiola, Universidade e Ciência na crise global, p. 12

Mas uma leitura que enfatiza a face dissolutora do multiculturalismo, olhando apenas para a “dominação” (pelo american way, em geral) enquanto “aculturação”, quando não tende a elevar a “pureza cultural” do próprio grupo ao nível e valor supremo, encarando toda manifestação da capacidade de absorção cultural como poluidora, enclausurando-se em suas respectivas defesas comunais (visualizadas pelo padrão gueto), tende a repetir a contradição do pós-modernismo, qual seja, a desesperança alastrada ou o niilismo que paralisa o pensamento e a ação na vala comum do “tudo é pastiche comercial”, “macdonaldização da cultura”, e comete injustiça para com os movimentos de contra-efetuação inter (ou multi) culturais que resistem, pois eles não cessam de também acontecer. A concepção de que o “tempo lento” dos antigos está em vias de desaparição pode ser contestada se observamos, com H. Lefebvre, que a contemporaneidade se desenvolve não só em ritmos desiguais, como também em tempos históricos ou tempos vividos dessemelhantes: no campo, os ritmos e também os valores morais se modificam mais lentamente do que nos grandes centros urbanos; entre servidores públicos e os empresários tanto a pressa como os cadernos de jornais que lêem não são os mesmos, idem idem entre a “classe” dos “com emprego” e a “classe” dos “desempregados”, etc.108

Além disso, o mesmo sistema político-econômico que através da racionalização desmantela as tradições culturais não basta-se para reproduzir a si mesmo, carecendo de uma suplementação efetiva que solicita o sistema sócio-cultural ao mesmo tempo que o denega e expropria. Se as localidades são “unificadas” do ponto de vista das conseqüências funcionais do envolvimento delas na economia de mercado, podemos também insistir na diversidade com que cada povo classifica o mundo para habitá-lo enquanto sistema simbólico, observando que as culturas são muitas e diferentes em suas lógicas, ou seja, em termos habermasianos, o monoteísmo racionalista-instrumental ou as situações de interesse não chegam a suplantar o politeísmo axiológico, outras pretensões normativas de validade que não utilitárias da ação social.

Como um dos autores que mais tem insistido numa expansão dos limites estreitos da racionalidade ocidental, Marshal Sahlins defende a etnografia como reflexividade que pode servir de antídoto ao etnocentrismo, um meio para imaginar a diversidade e romper com o confinamento em “planetas culturais”. Deste modo, ao invés da Grande Narrativa da dominação ocidental, o autor vê ocorrendo o desenvolvimento simultâneo de uma integração global e de uma diferenciação local, ou seja, a homogeneidade e a heterogeneidade não seriam mutuamente exclusivas, elas não disputariam um jogo histórico de soma zero, pois “integração e diferenciação são co-evolucionárias” (Sahlins), ou ainda, “a fragmentação étnica e cultural e a homogeneização modernista não são dois argumentos, duas visões opostas daquilo que está acontecendo hoje no mundo, mas sim duas tendências constitutivas da realidade global”109

Assim, dentro do ecúmeno global, existem muitas formas novas de vida: formas sincréticas, translocais, multiculturais, neotradicionais, em grande parte desconhecidas de uma antropologia demasiadamente tradicional. [...] Em lugar de celebrar (ou lamentar) a morte da “cultura”, portanto, a antropologia deveria aproveitar a oportunidade para se renovar, descobrindo padrões inéditos de cultura humana. A história dos últimos três ou quatro séculos, em que se formaram outros modos de vida humanos, toda uma outra diversidade cultural, abre-nos uma perspectiva quase equivalente à descoberta de vida em outro planeta.110

109 J. Friedman, Being in the World: globalization and localization. In: M. Featherstone, Global Culture, pp. 311-328. 110

M. Sahlins, O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um "objeto" em via de

Em meio ao mix geral, há portanto espaço e solicitação para bricoleurs culturais que também põem criações originais e “com alma”, sejam ou não cooptadas comercialmente ou propaguem-se ou não mesmo que limitadamente, em circuitos alternativos ou informais. As produções artísticas originais - que não são restritas a artistas “exitosos”, mas como aquelas que brotam do cotidiano -, enquanto experimentações de formas inusitadas, mesmo não se comprometendo com a política oficial, trazem sempre algum elemento de reflexão importante sobre as aparências, as evidências, os poderes estabelecidos tal como se encontram encarnados no fundo da conduta individual, familiar, de amizade ou profissional, rompendo com a imagem da História enquanto encadeamento necessário de momentos sucessivos, anunciando não apenas mudanças no Estado ou de Estado, “mas figurando fragmentos de realidade que proclamam a necessidade de mudar de vida”.111 Neste caso, tem-se uma visão acrescida da

cultura, que ao invés de minguar em paralelo com o Estado, a economia e a sociedade, aparece como “suplemento ao social” que fervilha às margens, como... “aquele mais que é necessário invocar quando a explicação funcional ou determinista se esgota. É a cultura como resto que substitui a cultura como soma na definição cultural-funcionalista”112.

111

F. Châtelet, É. Pisier-Kouchner, As concepções políticas do Século XX, pp. 61-62

Como “resto”, não se quer dizer com isso como “menos importante”, mas como “o que resta” como âmbito de resistividade inevitável ao presente, desviando-se da realização pura e simples dos possíveis, longe de uma condição de equilíbrio entre cultura e desenvolvimento econômico, social, e institucional.113 O viés culturalista se apresenta com força no novo

historicismo, uma profusão de pesquisas em torno de micro-histórias do cotidiano, da

sexualidade, da loucura, das produções desejantes e suas restrições culturais, das relações familiares, das festas cívicas e religiosas, dos funerais, dos cardápios, dos sonhos, etc. E também nos “estudos culturais”, que se deslocaram das formas críticas anteriores, baseadas na noção de ideologia, “para abordagens que se centram nas identidades sociais, nas subjetividades, na popularidade e no prazer”, ou seja, para as “formas através das quais os seres humanos vivem, tornam-se conscientes e se sustentam subjetivamente”.114 No

movimento desta “onda”, J. S. Martins disse que...

O que estou fazendo é uma sociologia da vida cotidiana. Ou seja, com Lefebvre, Heller e outros autores, estou trabalhando a pressuposição de que a vida cotidiana não é um resíduo desprezível da realidade social, histórica, política, cultural, etc. Ela domina a vida social no mundo moderno e, ao mesmo tempo, tornou-se mediação fundamental na historicidade da sociedade moderna.115

As culturas civilizacionais, tratadas até então como epifenômenos do desenvolvimento econômico, tenderam a retornar revestidas da autonomia que se atribuía apenas àquele subsistema infraestrutural, tornando-se aceitas como variáveis críticas de oposição às premissas culturais - e acadêmicas - das sociedades centrais (ou “ocidentais”).

Vale assinalar que esta concepção de autonomismo cultural não passou a ser difundida apenas por marxistas, mas também pelos seus adversários políticos. Como porta-voz mais conhecido de uma posição direitista destacou-se Samuel Huntington, que afirmou que, com a política mundial entrando em uma nova fase, “as grandes divisões da humanidade e a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. [...] O choque das civilizações dominará a política global. As linhas de cisão entre as civilizações serão as linhas de batalha do futuro”.116

113 Essa disjunção a História testemunhou outras vezes, a mais conhecida, na situação da Alemanha do final do século XVIII e

início do século XIX, uma nação em que a desintegração estrutural (econômica, política, territorial...) contrastou fortemente com uma prodigalidade cultural inaudita (o romantismo), com a intelligentsia lutando por imprimir à ação cultural uma dimensão emininentemente afirmativa.

114 R. Johnson, O que é, afinal, Estudos Culturais?, p. 15 e p. 29 115

J. S. Martins, A Sociabilidade do homem simples, S.P.:Hucitec, 2000, p. 151

Para muitos analistas, o plano das culturas seria o horizonte próximo das maiores tensões, e Huntington tinha em mente o islamismo, os conflitos nos Balcãs, as resistências da “cultura milenar” chinesa aos avanços da ocidentalização... O expansão do sistema mundial em termos econômicos não estaria sendo simetricamente acompanhada em termos políticos e culturais, gerando “turbulências” ou “erupções” inter-civilizacionais que para uns (a exemplo de Huntington) seriam sinais de um fundamentalismo ameaçador que precisaria ser controlado, ou desmilitarizado, enquanto para outros (a exemplo de Wallernstein) seriam indicativos de uma desordem capaz de gerar uma nova ordem, ou seja, seriam “contradições” a serem exploradas e aceleradas. Para estes últimos, mais à esquerda, a força e o conteúdo da resistência cultural estariam ainda desorientados, podendo avançar no sentido de um

enpowerment através de uma “real” definição da situação global.

A confusão do conteúdo da resistência cultural, porém, talvez só continue avançando para definições parciais e precárias da situação global, cronificando um conjunto de contradições sem superação totalizante do “bloco histórico”, como espera Wallernstein. Para essa continuação contribui a própria visão de Huntington, cuja noção de “choque das civilizações” tem sido polemizada por simplificar em demasia, como se as civilizações ou as culturas formassem “frentes de batalha” em vias de confronto, quando na realidade elas mais bem se interpenetram ou se misturam, sem formar grandes linhas. A “identidade de civilizações” a que recorre o autor é uma noção tão vaga e fácil de usar quanto enganadora - a exemplo do confronto “Ocidente versus Islã” que cresceu no imaginário popular após os atentados de setembro/2001, e que muitos viram como uma confirmação do “choque de civilizações” enquanto outros se apressaram em negá-lo. Huntington tem sido mais vezes lembrado para ser negado, ou seja, não haveria “choque de civilizações” algum, de fato, mas apenas num certo imaginário popular, suportado e animado pela mídia (Berlusconi à frente, revistas evangélicas, etc), ou por visões simplistas de governantes-cowboys (Bush usando expressões infelizes como “nova cruzada”, “eixo do mal”, etc), como o plano imaginário onde uma tal “identidade de civilizações” pode existir e prosperar (não sem graves conseqüências reais, ou que então se

Sem qualquer dificuldade podemos ver, entretanto, que o “Oriente Médio”, se existisse um, poderia ser flagrado desde o alfabeto que usamos para falar, na culinária, na arquitetura, no sistema numérico, ou mesmo no cristianismo e no judaísmo que remontam ao islã em seu legado monoteísta das religiões abrâmicas... Ou ainda mais emblematicamente: não é que Minoru Yamasaki, arquiteto das torres gêmeas do WTC, teria tido em Meca o referencial para sua obra (como se via, p.ex, na forma circular do complexo e nos arcos pontiagudos na base das torres)? Deste modo, numa perspectiva multiculturalista, ao invés de “fazer frente” ao Ocidente, seria mais razoável dizer que...”o islã está dentro do Ocidente desde o início - como foi obrigado a admitir o próprio Dante, grande inimigo de Muhammad, quando situou o profeta no próprio coração de seu inferno”.117

Dizer que há uma cultura ocidental e outra islâmica é um erro, pois mudando-se o ponto de vista, toda “nossa” cultura (mas então, qual?) aparece atravessada pelo islamismo. Como dizia Barthes, “a cultura é um objeto bem paradoxal: sem contornos, sem termo oposicional, sem

resto - e talvez mesmo sem história”. Sendo assim, “onde está então o trabalho da cultura

sobre si mesmo, onde estão as contradições, onde está a sua infelicidade?”.118 Sob a aparência

da paz cultural, Barthes vislumbrava o pulular de uma guerra de linguagens, um jogo de inclusão e desterro de discursos. E propunha, para vencer os abismos que separam as “paisagens culturais” formadas pelas linguagens em confronto, a resistência do jogo da

escritura (ou o Texto como “certa experiência do limite...que se coloca no limite das regras da

enunciação”).119

117 Edward Said, O choque das ignorâncias, in FSP, 17.10.2001, p. A-16 118

R. Barthes, O rumor da língua , p. 105

O trabalho etnográfico, por definição baseado no trabalho de campo, que também se propõe à produção de narrativas sobre outros tantos modos de vida, que se interroga pelas “perspectivas recíprocas”, já foi questionado quanto à sua validade para as Ciências Humanas, se não passaria de uma espécie de “fabulação” sobre culturas e povos que nem seriam tão diferentes quanto reforçado por tais narrativas, mas convergindo nos interesses comerciais e utilitários, como todo mundo. A justificativa dos etnólogos para o esforço de compreensão de povos distantes no espaço e no tempo é dada tomando-se em conta que as diferenças de auto- representação coletiva (como as diferenças religiosas ou étnicas) ou as diferenças de crenças e valores fundamentais se tornaram mais visíveis e tensivas desde a desmontagem do mundo que se estampou com a “queda do muro”, com a globalização financeira, com a maior interdependência dos mercados, com o aumento da mobilidade migratória, com o WTC...em suma, a etnografia, por mais ficcionalizante que fosse, preservados alguns critérios de rigor, poderia ajudar-nos a compreender um pouco melhor o mundo despedaçado em que nos encontramos.

Como mais um dos pesquisadores que estão refletindo sobre as possibilidades efetivas para a ação cultural e política, Robertson também pensa, como Touraine e os neo-marxistas, nas possibilidades de transformação sistêmica a partir dos âmbitos não econômicos da existência societária, mas não encara a cultura de um ponto de vista voluntarista, militante, como “resistência” identitária contra “as lógicas totalitárias” do global (como a um inimigo), e tampouco “ficcionalizando” a experiência dos outros à maneira etnográfica, mas contentando- se apenas com chamar atenção para a diversidade cultural que caracteriza o sistema mundial moderno, os encontros culturais (construtivos e/ou problemáticos) de diferentes formas de vida. O que interessa especialmente a Robertson em seu aporte da situação global é, como ele diz, a polietnicidade e multiculturalidade dadas como forças internas e externas fortemente significantes politicamente - e que inclui definições concorrentes da situação global.

O campo global é altamente pluralista, uma vez que há proliferação de definições civilizacionais, continentais, regionais, societárias e outras, da condição humana, como também, considerável variedade de identidades construídas, em relação a tais aspectos, sem referência direta à situação global.120

Uma declaração assim se enuncia como um posicionamento “entre outros”, fazendo eco à

multiplicidade das narrativas, segundo um despojamento que relativiza os discursos que

tendem a dar prioridade à “objetividade da interdependência crescente”. Ao invés da interdependência econômica, Robertson sugere que se investigue “a forma como o horizonte mundial se abre e se estabelece na produção transcultural de mundos de significação e símbolos culturais”. Para este autor, a questão central da sociologia da globalização deve ultrapassar a temática da dependência transnacional, tomando em consideração o enclave cultural que impede a equiparação do Estado com a sociedade nacionais, marcando uma diferença sempre deslocada.

Na visão de Robertson, é como se a ordem do Estado, suas funções de regulação e controle através de fluxos verticais (códigos disciplinares, sistemas de informação, etc), fosse permanentemente contrariada, ao nível intestino da vida social, desde o âmbito dos recontros e fusões conflituosas ou compositivas da cultura - uma fermentação burburinha que tenderia tanto a seguir como desfazer as linhas, afirmar e deslocar os limites, propor e desviar das metas, se integrar e bifurcar com os fluxos descendentes... O autor chama em favor desta visão um “fato de que podemos ter certeza”, a saber, “os grupos étnicos [que] se tornam cada vez