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Epidemia, narratividade e produção de sentidos na mídia impressa: o caso do Benzenismo no COPEC, 1990 - 1991.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

EPIDEMIA, NARRATIVIDADE E PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA MÍDIA IMPRESSA - O CASO DO BENZENISMO NO COPEC, 1990 - 1991

MARIA LIGIA RANGEL SANTOS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Caroso

SALVADOR 2001

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Ficha Catalográfica

RRR196e Rangel-S., Maria Ligia

Epidemia, narratividade e produção de sentidos na mídia impressa: o caso do benzenismo no COPEC, 1990-1991 / Maria Ligia Rangel Santos. -- Salvador, 2001.

338p.

Tese (Doutorado) – Instituto de Saúde Coletiva - Universidade Federal da Bahia.

1. Comunicação e Saúde 2. Jornalismo e Saúde 3. Mídia e Riscos Ocupacionais I. Título

CDU 316.77:613.6

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A Diogo e Vítor, meus filhos.

Aos jovens sanitaristas que construíram uma aliança solidária com os trabalhadores para enfrentar o desafio do controle da epidemia de benzenismo no COPEC.

Aos estudantes e profissionais de saúde que atuam

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AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas a quem devo agradecimentos para a realização deste trabalho. Em primeiro lugar quero agradecer ao corpo docente do Instituto de Saúde Coletiva, por ter me recebido no quadro discente do Curso de Doutorado em Saúde Pública e, especialmente, pela confiança depositada sobre um projeto na temática de Comunicação e Saúde, não habitual a esta instituição.

Meu especial agradecimento ao meu orientador, Prof. Carlos Caroso, por assumir junto comigo o desafio desse projeto e pela permanente confiança que depositou no meu trabalho, a qual me estimulou decisivamente a prosseguir nesse caminho. Seu fundamental apoio se revelou desde o momento em que me recebeu como orientanda, encorajando-me a proceder um ano de estudos na University of California Los Angeles (UCLA) e facilitando-me o acesso a esta Universidade, até os momentos finais desta pesquisa.

À Fundação Kellogg, pelo apoio a uma bolsa de estudos na UCLA e à minha pesquisa, quando de volta ao Brasil.

Ao Prof. Allen Jonhson, do Department of Anthropology of UCLA, que orientou os meus passos durante a permanência nessa Universidade, acompanhando meus estudos e incentivando-me a cursar disciplinas e a conversar com professores e pesquisadores de áreas afins.

Aos médicos sanitaristas e do trabalho, engenheiros e jornalistas que muito gentilmente me concederam entrevistas.

A Valéria Macedo e Sônia Felzenburg pelo trabalho de coleta das matérias jornalísticas, nos jornais de Salvador e pela cuidadosa organização do material que muito facilitou o meu trabalho posterior.

A Milena Costa D’Almeida, Lílian Helena M. Dutra Moreira e Érica Matos pela ajuda na digitação dos dados.

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Agradeço, especialmente a Dra. Letícia Nobre, diretora do CESAT, e a Dra. Mônica Angelin, coordenadora da COAST/CESAT, pelo apoio e estímulo que recebi, além das colegas Cássia Ramos e Ana Joaquina, que dividiram comigo algumas tarefas do cotidiano de trabalho, de modo a liberar meu tempo para me dedicar a este estudo. Agradeço também ao Dr. Marco Rêgo pela revisão do primeiro capítulo desta tese e a Graciela Natansohn pelos seus comentários sobre a Introdução da mesma.

À colega Maria do Carmo Freitas, Carminha, pelo carinho e pela oportunidade das intermináveis conversas e trocas que fizemos ao longo dessa caminhada.

Às colegas da Rede Unida, especialmente Neusa Barbosa, Heloniza Costa, Eunice Kalil e Laura Fauerwerker, pela compreensão e apoio que me deram, tolerando as minhas ausências nas atividades da Rede, em vários momentos, para cumprir essa tarefa.

A Ceci, José Carlos, Xuxu e Susan, por terem, com sua amizade, me propiciado momentos de acolhimento afetivo, tornando mais agradável o percurso.

A Liège Servo, pelo carinho e por ter cuidado da minha vida no Brasil, durante o período de minha permanência em Los Angeles

Finalmente, agradeço, de coração, aos meus queridos filhos Diogo e Vítor, meu permanente equilíbrio afetivo, pela paciência e tolerância que tiveram no transcurso da elaboração da tese, sempre admirando e acolhendo as investidas da mãe para compreender melhor o mundo em que vivemos e aprender as possibilidades de lidar positivamente com os problemas cotidianos que se nos apresentam.

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo desvendar os sentidos produzidos nas narrativas de quatro jornais de Salvador, Bahia, acerca da epidemia de benzenismo que ocorreu no Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, nos anos de 1990 e 1991.

Orientado pela moderna Antropologia Interpretativa e pelo Interacionismo Simbólico, o estudo desvela os sentidos da epidemia a partir da análise da inovação semântica do enredo, das metáforas e do esquematismo do texto jornalístico, sobre um universo de 217 notícias publicadas naquela ocasião. Estas são articuladas em narrativas sobre as quais se conjectura acerca dos sentidos que são validados por meio do confronto das interpretações.

A análise focaliza também a simbólica textual e a linguagem utilizadas pelos jornais para darem sentido ao texto e buscarem identificação com seu público. As múltiplas vozes que compõem o texto jornalístico são analisadas quanto ao alinhamento em que são postas e as imagens públicas que constróem para os diferentes atores sociais envolvidos no drama da epidemia que acomete trabalhadores do Polo Petroquímico de Camaçari, nos anos 90 e 91.

Dessa análise, encontram-se quatro linhas interpretativas para o evento epidêmico, as quais dão suporte ao debate em torno da epidemia e ao processo de negociação entre trabalhadores, empresas e governo, para o seu controle. Apontando para diferentes horizontes de expectativas quanto à solução do problema, os jornais estruturam seu discurso tendo a epidemia como incerta; real e aterrorizante; criminosa; e por fim, natural.

O estudo corrobora a tendência da análise de discurso midiático que vê no jornal um intérprete privilegiado, construtor da realidade social, que transforma a informação, selecionando-a, organizando-a e dando voz e visibilidade a distintos atores sociais para a produção de sentidos, a serem recebidos e reinterpretados por seu público.

Atesta também que os jornais constróem os sentidos para o evento epidêmico com base tanto nas crenças e valores próprios da cultura em torno dos riscos ocupacionais e de seus meios de controle, quanto dos jogos de poder constituídos na relação empregadores, empregados e governo.

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ABSTRACT

The aim of this research is to uncover different meanings produced by the narratives of four newspapers in Salvador-Bahia with regard to epidemic of benzine contamination which took place at the Petrochemical Plant of Camaçari, Bahia, in the years of 1990 -1991.

The study followed the lines of interpretation of modern Interpretative Anthropology and Symbolic Interactionism, unveiling the meanings for the epidemic event through the analyses of the semantic innovation of the plot, of the metaphors and the structure of the text of 217 written news which were produced about the event. These newslines were articulated as narratives whose reading provides the possibility to conjecture about their meanings, which are validated by confronting the different interpretations.

The analysis also focuses on the symbolism in text and language used by the different newspapers, in order to give meanings to the text and identification with their readers. The alignment of the multiple voices which set up the journalist texts are analyzed, in search to find out the public images that are constructed by the different journals for the social actors involved in the epidemic event.

As a result of this analysis, four lines of interpretation to the epidemic event are found, giving support to the debate around the negotiation process which occurs among the labor union, the industries and government representatives. Pointing out to different expectations horizon towards the solution for the problem, the newspapers structure their discourse about the epidemic as tough it is uncertain; real and terrifying; criminal; and, finally, natural.

The study reaffirms the tendency in discourse analysis of newspaper texts that consider them as a privileged interpreter and constructor of social reality, which transform the information, as a result of selection, organization, and giving voice and visibility to different social actors, in order to produce meanings that are received and reinterpreted by the public at large.

It also brings to evidence that the press constructs the meaning for the epidemic event based both on the beliefs and values of the culture of occupational risks and their means of control, and on the power games resulting from the relations among employers, employees and government.

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APRESENTAÇÃO

Esta pesquisa resulta do meu interesse, enquanto médica sanitarista, em compreender fenômenos referentes à informação e comunicação de temas de saúde, tal como o que presenciei no Complexo Petroquímico de Camaçari - COPEC, Bahia, no início da década de 90. Foi durante os anos de 1990 e 1991, como leitora dos jornais de Salvador que me deparei com notícias freqüentes acerca da epidemia de benzenismo que eclodiu no Polo Petroquímico de Camaçari, ferindo sua imagem de polo de desenvolvimento até então dominante na sociedade baiana.

Encontrava-me, na ocasião, realizando uma pesquisa em uma das plantas petroquímicas quando tive a oportunidade de perceber as múltiplas interpretações sobre a doença e a epidemia que transitavam na vida cotidiana dos trabalhadores. Observei, também, que as notícias dos jornais eram freqüentemente referidas por estes, tanto em contatos informais que tivemos, como na escuta de suas conversas durante o período de deslocamento de Salvador ao COPEC e ainda, nas entrevistas realizadas para a referida pesquisa.

Desde então, passei a me interessar pelo papel da mídia no tratamento de temáticas de saúde e, compreendendo a sua importância na conformação de valores e crenças culturais, interessei-me por analisar a sua construção discursiva sobre aquela doença e a epidemia. Essa experiência no Complexo Petroquímico de Camaçari - COPEC me motivou a recuperar as notícias veiculadas naquela ocasião e submetê-las à análise, como forma de contribuir para a compreensão do discurso da mídia na construção da realidade daquela epidemia, buscando elucidar o que poderia explicar o caos, que na época parecia reger o entendimento dos trabalhadores sobre o assunto.

Movi-me para esse estudo, não a partir de um interesse, tão somente, de reconstituir a história desse acontecimento recente, mas, sobretudo de recuperar e mostrar, nos modos de narrar da mídia impressa, os sentidos produzidos para a epidemia, nesse passado recente. Uma epidemia cujos efeitos continuam presentes nos corpos dos trabalhadores e cujos ecos ainda ressoam na memória e nas práticas dos atores que com ela aprenderam a

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transformar a realidade de saúde dos trabalhadores. Desses modos de narrar, procurei refletir acerca do papel que os jornais de Salvador tiveram na construção dessa realidade. Uma vez que o problema provocou intensos debates e mobilização social, a pesquisa mostrou-se viável no que dependia da memória dos atores participante, além de contar com a vantagem da fixidez do discurso jornalístico, que tornou fácil o acesso a esse produto discursivo. A mídia impressa de Salvador, constituída, na época da epidemia de

benzenismo, por quatro grandes jornais - Tribuna da Bahia, Jornal A Tarde, Correio da Bahia e Jornal da Bahia- realizou ampla cobertura do assunto, que marcou o cotidiano do Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC) no início dos anos 90.

Para realizar esta pesquisa, aceitei o desafio necessário da aproximação a várias disciplinas, para compreender como o tema "Epidemia de Benzenismo no COPEC" havia sido apropriado pelos referidos jornais e apresentado ao público. Para a construção do objeto de estudo, mostrou-se fundamental a aproximação de teorias das Ciências Sociais e da Comunicação, posto que o estudo se propôs a interpelar o discurso midiático sobre a produção de sentidos para a referida epidemia, a partir da análise das matérias jornalísticas publicadas durante o período de julho de 1990 a dezembro de 1991. Assim é que na Introdução, apresento ao leitor o mapa teórico metodológico situado entre as fronteiras dos estudos do jornalismo e da saúde, para buscar a interpretação dos sentidos de uma epidemia que ameaça a saúde dos trabalhadores do COPEC nos anos 90 e 91. Recorro a aportes da moderna Antropologia Interpretativa e ao Interacionismo Simbólico para encontrar o evento epidêmico interpretado por distintos sujeitos sociais e disposto nos 217 textos jornalísticos que se oferecem ao leitor nesse período. Também, nessa Introdução, explicito a organização do texto desta tese, articulada em seis capítulos.

O estudo recupera, por um lado, a descrição do evento epidêmico, tal como foi percebido e abordado por sanitaristas (médicos e engenheiros), que se ocuparam do seu controle e, por outro, a narrativa construída pelos jornais acerca do referido evento, obtida a partir da articulação do conjunto das matérias publicadas. No Capítulo I, ofereço ao leitor uma

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compreensão do "O Acontecimento do Ponto de Vista Médico-Sanitário", que serve de referência à interpretação da narrativa dos jornais.

No Capítulo II, intitulado "Epidemia na Cobertura Jornalística" descrevo o modo 'contagiante' com que as notícias sobre o evento epidêmico se espalharam na sociedade, localizando os eventos de destaque, focalizando o diálogo estabelecido entre os quatro jornais.

No Capítulo III, "Narratividade, Movimentos e Sentidos" realizo o primeiro movimento intencional e metodologicamente definido, para conjecturar sobre os sentidos da epidemia, que vão se revelar em sua plenitude, propiciando a validação, através da análise da semântica e da simbólica textual, descritas nos Capítulos IV e V intitulados respectivamente: "Enredos e Sentidos da Epidemia de Benzenismo na Narrativa Midiática" e "Linguagem e Sentidos da Epidemia de Benzenismo na Narrativa Midiática".

No Capítulo VI, "Faces Ocultas na Narrativa Midiática", encontro na análise das múltiplas vozes que compõem o texto jornalístico, o que se pode chamar da intencionalidade não dita, a qual se esconde nas malhas do discurso midiático, traduzida como a imagem pública que, nos jornais, se constrói para os distintos atores sociais. Entrego o presente estudo da narrativa dos jornais sobre a epidemia de benzenismo no Pólo Petroquímico de Camaçari, Bahia, à leitura de especialistas examinadores e de não especialistas, não só como parte de um esforço e de um exercício acadêmico para a obtenção de titulação profissional, mas, sobretudo, para dar a conhecer ao público interessado nas questões da saúde dos trabalhadores, especialmente estudantes e profissionais de saúde que atuam nessa área, os sentidos diversos dos acontecimentos da história recente de uma epidemia que constituiu parte da realidade de saúde dos trabalhadores do Polo. Esse evento histórico, sendo palco da ação e de intensa mobilização social, inaugurou um novo capítulo na área de Saúde dos Trabalhadores do Estado da Bahia e do Brasil, revelando-se como um importante exemplo da participação social no processo de negociação de riscos à saúde dos trabalhadores, com o qual há muito a se aprender.

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SUMÁRIO

P

INTRODUÇÃO - Tema , Teoria e Método………...13

1. Tema e Justificativa………..……….…..13

2. Objeto da pesquisa………...15

3. Aportes teórico-metodológicos………23

4. O caminho da pesquisa………32

4.1. Procedimentos metodológicos………..35

CAPÍTULO I - O Acontecimento do ponto de vista médico-sanitário………..39

1. Breve histórico do benzenismo na indústria petroquímica………..40

1.1. Benzeno e benzenismo………..40

1.2. Características da indústria petroquímica e o uso do benzeno……….42

2. As evidências da epidemia de benzenismo no COPEC em 1990 e 1991…………....46

3. Os limites da legislação e da tecnologia de avaliação e controle………56

4. O contexto do COPEC no tempo da epidemia………62

5. Alguns ganhos dos movimentos sindical e sanitário………64

CAPÍTULO II - Epidemia na Cobertura Jornalística………....68

1. Epidemia na narrativa jornalística……….73

1.1. Evento inusitado: Morte de um médico do trabalho ………...74

1.2. Progressão da curva - A visita do ministro da Saúde………...79

1.3. O pico da curva - O crescimento dos casos ……….85

1.4. Egressão da curva……….91

1.5. Progressão da curva: mudança de postura das empresas………..94

1.6. Egressão da curva: "esfriamento" progressivo do assunto na mídia………95

2. Discussão………...101

CAPÍTULO III - Narratividade, Movimentos e Sentidos ……….105

1. Movimentos e sentidos no Jornal A Tarde ………...108

2. Movimentos e sentidos no Jornal Tribuna da Bahia………..113

3. Movimentos e sentidos no Jornal Correio da Bahia………..119

4. Movimentos e sentidos no Jornal da Bahia………123

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CAPÍTULO IV - Enredos e Sentidos da Epidemia de Benzenismo na Narrativa Midiática……….128 1. Epidemia e Incerteza ……….130 2. Epidemia e Terror ……….138 3. Epidemia e Culpa ………..153 4. Epidemia Natural………...161 5. Discussão………...173

CAPÍTULO V - Linguagem e Sentidos da Epidemia de Benzenismo na Narrativa Midiática……….175

1. Linguagem e Sentidos .………178

2. Imagens e Sentidos ……….188

3. Discussão……….202

CAPÍTULO VI - Faces Ocultas na Narrativa Midiática ………..203

1. Vozes, Alinhamento e Face dos Atores ………206

1.1. Vozes, Alinhamento e Face no jornal A Tarde ………..206

1.2. Vozes, Alinhamento e Face no jornal Tribuna da Bahia………217

1.3. Vozes, Alinhamento e Face no Jornal da Bahia……….222

1.4. Vozes, Alinhamento e Face no jornal Correio da Bahia………226

2. Discussão………...231 CONCLUSÃO………237 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……….246 ANEXOS……….265 ANEXO 1- Tabelas ……….266 ANEXO 2 - Gráficos ……….….268

ANEXO 3 - Fio Narrativo………....270

ANEXO 4 - Narrativas em Manchete e Quadros de Eventos Focais…………..278

ANEXO 5 - Amostra de textos jornalísticos………286

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INTRODUÇÃO

TEMA, TEORIA E MÉTODO

1. Tema e justificativa

As pesquisas sobre mídia e saúde são relativamente recentes e adotam, principalmente, duas perspectivas: a primeira delas preocupa-se com temas sociais relacionados ao risco à saúde, particularmente quando envolve conflitos em torno dessas situações. Ou seja, examinam a influência dos meios de comunicação de massa no julgamento de risco (Coleman, 1993; Hertog e Fan, 1995); os aspectos ideológicos que orientam coberturas de notícias sobre riscos (Coleman, 1995); e, também, os problemas decorrentes da indexação de risco às imagens e aos textos de TV (Potter,1997; Corner, Richardson e Fenton, 1990). A segunda perspectiva preocupa-se com informações relacionadas ao estilo de vida pessoal e ao comportamento individual que dizem respeito à saúde. Tomam como objeto as informações veiculadas através dos meios de comunicação sobre temas específicos, tais como AIDS (Hertog & Fan,1995), doenças cardiovasculares (Bellicha e McGrath, 1990; Samuels, 1993), hábito de fumar (Erickson, McKenna e Romano, 1990), pré-natal (Alcalay, Ghee e Scrimshaw, 1993), dentre outros.

Algumas investigações têm privilegiado os aspectos da comunicação que dizem respeito a questionamentos sobre o quê e como comunicar, frente ao risco de adoecimento e morte (Santos, 1990; Rowan, 1996; Public Health Service, 1995). Também abordam os efeitos produzidos, no campo da recepção, como parte do processo de comunicação de risco (Corner et alli, 1990). No Brasil, os poucos estudos sobre saúde na mídia, têm focalizado especialmente a produção de discursos sobre a AIDS (Soares, 1998; Fausto Neto, 1999) e a publicidade de bens de consumo de saúde (Lefèvre, 1999).

A despeito disso, problemas de saúde freqüentam as páginas dos jornais, e outros meios de comunicação, via de regra, em espaços especialmente dedicados ao aconselhamento médico especializado sobre problemas da saúde individual, tal como se pode observar nos últimos anos. Freqüentam-nas, também, quando se tornam eventos inusitados a

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despertar a curiosidade e o interesse dos leitores, tais como epidemias, doenças raras e mortes, que se tornam notícias.

Durante os anos de 1990 e 1991, a mídia impressa de Salvador, no Estado da Bahia, deu cobertura a eventos em torno da epidemia de benzenismo que ocorreu no Polo Petroquímico de Camaçari - COPEC, trazendo ao público a experiência de adoecimento e morte entre trabalhadores petroquímicos, vítimas de doenças ocupacionais nesse Polo industrial. Ampliou-se, deste modo, a visibilidade das doenças ocupacionais e das condições de trabalho do COPEC, abrindo-se o evento a múltiplas interpretações e construções discursivas na sociedade baiana. Tais interpretação, oferecidas ao público por quatro jornais de Salvador, dentre outras fontes, conformaram, naquele tempo, uma aparência de caos na informação que circulava no Polo que, ao requerer uma explicação, apresentava-se como objeto de estudo a esta pesquisadora, que via nos jornais um fonte privilegiada de informações para os trabalhadores. Assim, a presente pesquisa objetiva interpretar os sentidos produzidos pelos quatro jornais de Salvador para a epidemia de benzenismo no COPEC, no contexto dos anos 90 e 91.

A relevância deste estudo encontra-se no fato de que, a área da Saúde Coletiva tem acumulado poucos conhecimentos acerca dos modos como os meios de comunicação tratam dos assuntos que oferecem ao público. Contudo, sabe-se da enorme influência desses meios na conformação da sociedade e da cultura.

Enquanto a doença ocupacional não tem sido objeto de estudos que focalizam temas de saúde nos meios de comunicação, esse assunto é freqüentemente ocultado pelos empregadores, no sentido de minimizar os riscos existentes nos processos de trabalho e assim reduzir seus investimentos em segurança e medicina do trabalho. O tema é ocultado, também, pelos empregados, na medida em que estes tentam se proteger do desemprego, especialmente em conjunturas sócio-econômicas que afetam o emprego no mercado de trabalho (Camargo, 1988).

Assim, o estudo da cobertura jornalística, sobre uma epidemia de doença ocupacional, pode contribuir para compreender as potencialidades e limites do papel dos meios de comunicação no desvendamento da doença e na construção de soluções para tais problemas de saúde. Por esta razão, essa temática, desperta especial interesse na sub-área da Saúde Coletiva - a Saúde do Trabalhador - , principalmente quando trata de interpretar

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discursos em conflito, constituintes da realidade de saúde dos trabalhadores no COPEC, área onde o trabalho é considerado de alta periculosidade. Isso porque, a cobertura midiática de problemas da área de saúde ocupacional, necessariamente traduz, ao seu modo, no processo de apreensão e construção dessa realidade, os intensos conflitos que a permeiam, os quais são próprios da relação capital/trabalho.

Ao delimitar o objeto desta pesquisa sobre os sentidos da epidemia de benzenismo na narrativa midiática, nos anos 90 e 91, é necessário aproximar teorias sobre o papel da mídia na sociedade contemporânea, bem como explicar os modos de operação do discurso jornalístico e sua função narrativa. É com esse caráter transdisciplinar que o presente estudo se oferece para a construção de um saber ainda pouco elucidado nas esferas da Saúde Coletiva do Brasil. Um saber que traspassa os horizontes colocados até então, orientando a compreensão dos sentidos da epidemia, a partir da experiências dos atores sociais, expressados no processo midiático.

Este estudo se apoia em teorias do jornal e busca seu suporte fundamental nas Ciências Sociais, especialmente no Interacionismo Simbólico e na moderna Antropologia Interpretativa que toma a cultura não só como um sistema de signos e significados, a linguagem como expressão das mais relevantes da cultura (Geertz, 1978), mas também como um modo de vida que engloba os diversos sentidos da experiência de sujeitos sociais em interação. O estudo tem a Hermenêutica como método de análise privilegiado, valorizando-se a experiência de sujeitos sociais concretos. Dessa perspectiva, pode-se compreender e explicar a narrativa midiática em seus vínculos culturais, produzida a partir de eventos reais, os quais podem ser modificados no ato mesmo de interpretar.

2. Objeto da pesquisa

A construção do objeto desta pesquisa - o discurso jornalístico sobre a epidemia - requer um encontro com a literatura que permita compreender o papel social do jornal e delimitá-lo enquanto uma agência social que apreende um fato real, no caso a epidemia, e o processa, ao seu modo, para ofertá-lo ao público.

Do estudo da literatura sobre o papel do jornal na sociedade, apreende-se que este é complexo e multifacetado, uma vez que o jornal opera nas múltiplas

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dimensões da vida social, afetando fatos de suas esferas econômica, política, ideológica e sócio-cultural.

Duas coletâneas de textos de publicação recente sistematizam o debate teórico metodológico, em nível internacional e nacional, acerca do jornalismo: "Jornalismo: Questões, Teorias e "Estórias", organizada por Nelson Traquina (1999) e "O Jornal", organizada por Mouillaud (1999). São textos, dentre outros, que servem de referência a esta pesquisa, no sentido de aproximá-la a uma compreensão do papel social do jornal, da atividade jornalística e da natureza da notícia.

A leitura desses textos permite localizar pontos de encontro da teoria do jornal, em debate, e a perspectiva pretendida para este estudo. Além dessas, a leitura de Stevenson (1995) possibilita o entendimento da crítica cultural de vários autores ao determinismo tecnológico de McLuhan (1964) 1, que enfatiza os meios técnicos de comunicação como estruturantes das relações sociais intersubjetivas, num modo de determinismo tecnológico. Dentre os seus críticos, Baudrillard (1995) retrabalha algumas das suas principais proposições, ressaltando a importância das redes de comunicação, em termos do transporte de informações que estas realizam e do largo impacto que têm sobre as formas sociais de organização (Baudrilard, 1995: 28; Stevenson, 1995).

McLuhan insiste que os meios de comunicação formatam a percepção humana o que se constituía no mais importante tema teórico nos estudos dos media. A crítica vinda de Raymond Williams, segundo Stevenson (1995), referia-se ao fato da análise de McLuhan ser isolada de contextos sociais e culturais mais amplos, "dissocializando" a análise e tornando invisíveis os modos pelos quais as relações de autoridade estruturam a produção cultural, o conteúdo e a recepção. Critica-se também o divórcio da análise do impacto da tecnologia cultural com as relações sociais específicas.

1

O papel dos meios de comunicação na vida social é amplamente debatido, antes e depois de McLuhan (1964), que sobre eles desenvolveu uma crítica radical na década de sessenta e cuja obra tem sido, até os dias atuais, referência obrigatória nas reflexões acerca de sua natureza (Cohn, 1978; Camacho, 1979; Baudrillard, 1995; Stevenson, 1995).

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Baudrillard ressalta também o caráter dialogal da função dos meios de comunicação de massa, que, segundo esse autor,

consiste em neutralizar o caráter vivido, único de um evento no mundo, para lhe substituir o universo múltiplo dos meios de comunicação, mutuamente homogêneos enquanto tais, significando-se e referindo-se reciprocamente uns aos outros (Baudrillard, 1995: 130).

Sobre isso, Bourdieu (1998) examina a pressão estrutural exercida pelo campo jornalístico, em si, dominado pela pressão de mercado que afeta o que é feito e produzido, conferindo ao meio uma autonomia dependente da percentagem de ganhos que derivam da publicidade e subsídios do estado, e do grau de concentração da publicidade (Bourdieu, 1998).

Abandonando o determinismo tecnológico de McLuhan, os autores reconhecem amplamente a capacidade da cultura midiática de redefinir o tempo e o espaço e, portanto, contribuir decisivamente para formatar relações sociais (Stevenson, 1995: 127). Reconhecem, também, a importância dos meios de comunicação de massa no processo de democratização da

sociedade, na medida em que, dá visibilidade a grupos sociais distintos, ainda que sua ação possa privilegiar uns em detrimentos de outros com menos poder (Idem).

De maneira geral, a mídia é também amplamente reconhecida como uma importante instituição de poder cultural ou simbólico (Thompson, 1995; Mongerson, 1997, Bourdieu, 1989), que produz e oferece sentidos ao mundo social, disputando esses sentidos com outros modos de significação e, portanto, com outros discursos presentes no mundo social, em tensão permanente.

Do mesmo modo, reconhece-se que a mídia utiliza-se de recursos que realizam ações, que podem intervir no curso dos eventos, criar outros e ter várias conseqüências. As ações simbólicas, de acordo com Thompson (1995), podem dar origem a reações e levar o outro a agir ou responder de certos modos, perseguir um curso da ação mais que outro, acreditar e desacreditar, afirmar seu apoio ou opor-se ao estado da questão.

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A exemplo, as instituições religiosas e educacionais, as instituições midiáticas têm provido importante base para a acumulação de meios de informação e

comunicação, tanto quanto de recursos materiais e financeiros, e tem formatado os modos nos quais os conteúdos informacional e simbólico são produzidos e circulados no mundo social (Thompson, 1995: 17).

O poder simbólico da mídia se realiza, segundo o referido autor, através de meios técnicos que se caracterizam pelo grau de fixação e reprodução das formas simbólicas, que está na base da exploração dos meios técnicos de comunicação, conferindo-lhe valor comercial e tornando as formas simbólicas mercadorias.

No caso da mídia impressa, seu produto se materializa em produtos de consumo como o jornal, cuja produção se orienta pela lógica de mercado. Berger (1997b) afirma no título de um artigo, que "Toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a

gente publica" (Berger, 1997b: 281). Assim, através da mídia, assiste-se

à produção de eventos com o objetivo de se tornar notícia, ou seja, de produzir ações espetaculares para aparecer na mídia, não para contar uma história (Idem).

De acordo com Rodrigues (1997), o discurso é o principal produto das instituições midiáticas e não uma de suas funções. O que o jornal produz é um texto que, segundo Kosir (1988), "é uma unidade temática, lingüística e gráfica que é parte da comunicação

de massa de um jornal (…)" 2(Kosir, 1988: 348).

Contudo, o jornal, desde McLuhan, é visto como uma forma confessional de grupo, que induz à participação comunitária, pois "é a sua exposição

comunitária diária de múltiplos itens em justaposição que confere ao jornal a sua complexa dimensão de interesse humano" (McLuhan, 1964:231) 3. Desse

2Tradução livre de Kosir "[It is] a thematic, linguistic and graphic unit that is part of the mass communication of a newspaper and whose function it is to report current public events (how they happened, who took part, in what circunstances) that have occurred within a given and real spectrum, and to note the time, place and persons, all of them recognizable to both communicator and recipient" (Kosir, 1988: 348).

3McLuhan destaca que o jornal, desde o início, tendeu a uma forma participante, apresentado em

mosaico, e não em forma livresca, tornando-se esse seu aspecto o dominante da associação humana, posto que significa uma participação em processo e não "um ponto de vista" particular. Por isso, considera a imprensa inseparável do processo democrático (McLuhan, 1964: 238). A imagem em mosaico refere-se à imagem corporativa ou coletiva e implica em participação profunda que é antes comunitária do que privada, inclusiva do que exclusiva.

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modo, a página do jornal cria o efeito da estória interna da comunidade em ação e interação e apresenta geralmente o lado sujo das coisas. Como um jogo do que vem da existencialidade a ferir o interior do jornal, o autor ressalta que as notícias são sempre más notícias, enquanto os anúncios, que são parte do jornal, são sempre boas notícias. Ressalta, também, o caráter peculiar de confessionário público que o jornal assume, o qual lhe é conferido, por sua forma impressa de alta intensidade e endereçada ao público com

uniformidade de repetição precisa. A imprensa, diz ele, "repete o prazer que

sentimos no uso de nossas faculdades espirituais pelas quais traduzimos o mundo externo em termos da tecitura de nossos próprios seres" (McLuhan,

1964: 259). Estendem-se, desse modo, os sentidos para ver e ouvir sobre o mundo.

Fazer notícia tornou-se tanto um mundo de ações como de ficções, quando a imprensa começou a perceber que as notícias deveriam não só serem

registradas como captadas ou, até mesmo, fabricadas. McLuhan define então a imprensa como "uma ação e uma ficção cotidianas, uma coisa que se faz

com tudo o que sucede numa comunidade" (McLuhan, 1964:240). A data, o

tempo, é para McLuhan, o único princípio que organiza a imagem jornalística na comunidade, conferindo-lhe uma série de ações em processo.

Nesse sentido, a apresentação da notícia deixou de ser uma repetição da ocorrência e meros registros, para constituir-se como uma causa direta dos acontecimentos, na medida em que o noticiarista passa a dizer o que quer. Ele consegue relacionar consigo mesmo, com a nação, com os departamentos e os setores governamentais extremamente fragmentados, além de deixar

"transpirar" as notícias controladamente (McLuhan, 1964), reconstruindo e redefinindo seu papel a cada situação histórica e social4.

4O papel do jornal assume diferentes estatutos em diferentes momentos históricos e sociais. Por

exemplo, o jornal passa desde uma arma ideológica, como foi para Kruschev, a organizador coletivo, para Lenin, e poderosa arma do partido, para Stalin (McLuhan, 1964). Sua importância para a construção da identidade social de um grupo foi estudada por Caparelli (1979), sobre os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul.

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Embora recente e inacabado, o debate sobre a natureza da notícia oferece algumas pistas para esta pesquisa. A despeito das diversas perspectivas dos estudos sobre jornalismo, adota-se, nesta investigação, aquela que entende a notícia como uma construção resultante de um processo de interação social (Traquina, 1999a; Hall, Chritcher, Jeffersosn, Clark e Roberts, 1999; Rodrigues, 1999) e que, enquanto produto cultural, é uma realidade construída, que possui sua própria validade interna (Bird e Dardenne, 1999), observável em sua construção narrativa (Schudson, 1999), e que produz um tipo de conhecimento particular (Schlesinger, 1999).

As notícias, material básico dos jornais, constituem-se, nessa perspectiva, em mensagens textuais com que estes se referem a fatos que ocorreram e que se apresentam sob a forma de "estórias" que não são ficcionais, mas sim convencionais:

As convenções ajudam a tornar as mensagens legíveis. Elas fazem-no de uma maneira que se adapta ao mundo social dos leitores e escritores, porque as convenções de uma sociedade ou tempo não são as mesmas de outra altura diferente. Algumas convenções das notícias mais familiares dos nossos dias são tão óbvias que parecem atemporais, são inovações recentes. Como outras, estas convenções ajudam a tornar legíveis mensagens culturalmente consistentes e mensagens culturalmente dissonantes. A sua função é menos aumentar ou diminuir o valor da verdade que as mensagens transmitem do que dar forma e limitar o campo dos tipos de verdades que podem ser ditas. Elas reforçam certas hipóteses acerca do mundo político (Shudson, 1999:280).

Através das notícias é possível ao leitor pôr-se em relação mediata com a experiência, através do texto (Gomes, 1993). Por sua capacidade de ser reversível, isto é, de poder tornar-se ela mesma um fato, pode se transformar, tornando-se como os outros elementos do fato - embora não seja a mesma coisa, produzir sentido e produzir efeitos na realidade (Gomes, 1993) -, pois este é apreendido pelo jornal, segundo uma estratégia complexa de interações que envolve intérpretes/testemunhas, tal como suas competências de língua e aquelas que tangem a categoria da percepção como patrimônio social. Esse autor define a notícia como um discurso apofânico ou manifestativo, isto é, diz respeito a verdade ou mentira do fato, por isso, para o autor, o jornal representa um forma de conhecimento e como tal pode ser avaliado. A notícia, nessa perspectiva, deve ser julgada por sua capacidade de dar a conhecer ou não os fatos.

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Por sua vez, Motta (1997) define a notícia como um metafato e a compara com os mitos, pois, como estes, não contam as coisas como elas são, mas segundo o seu significado, sendo as notícias "um tipo de narrativa

mitológica, com seus próprios códigos simbólicos que são reconhecidos por seu público" (Motta, 1997:317). Para esse autor a construção da notícia

transforma saber em contar, transcendendo não só os fatos, mas também a atividade jornalística para alcançar a heterogeneidade social. De todo modo, a qualidade mítica da notícia, também descrita por Bird e Derdene (1999), é sobretudo encontrada na sua semelhança com a narrativa oral, realçada a sua base cultural e não natural. Sobre isso, Rodrigues (1999) considera que a notícia surge em substituição ao pensamento mítico para organizar a experiência do aleatório e lhe conferir racionalidade.

A abordagem da notícia como narrativa constitui-se em uma das

perspectivas adotadas na investigação das ciências humanas orientadas para o jornalismo. Dessa abordagem, baseada em estudos literários, entende-se que a mídia ajuda a construir a visão de mundo, por permitir compartilhar experiências em códigos de significados social e culturalmente explicitadas; oferece, através da narrativa, meios de desafiar para mudar ou interromper um discurso comunitário mestre, sendo como tal, um meio estratégico de lembrar e representar o passado, mas também de construir o futuro, como ressalta Ochs (1997) para toda narrativa; e, por fim, é um meio que oferece ao narrador modos de reconfiguração de sua autoridade sobre os eventos (Zelizer, 1993).

Neste aspecto, o jornalista detém uma autoridade que faz da narrativa não meramente uma forma de discurso que pode ser preenchido com diferentes conteúdos, pelo imaginado ou real, mas processa um conteúdo primeiro para qualquer realização de uma fala ou escrita, que se impõe por uma autoridade do narrador (White, 1987).

Mas, vale ressaltar que a comunicação jornalística é por definição referencial (Lage, 1999; Rodrigues, 1999), na medida em que fala de algo no mundo, exterior ao emissor, ao receptor e ao processo mesmo de comunicação. Por esta razão, assume uma linguagem

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que lhe é peculiar, como o uso da terceira pessoa e a incorporação de neologismos e metáforas, no processo interpretativo do fato (Lage, 1999; Traquina, 1999a).

Ao constituir-se como uma meta-narrativa, construída a partir de diversos discursos sociais, o texto jornalístico oferece ao leitor um recorte da realidade que se torna referência, não apenas como representação factual de um relato, mas como inscrição de uma experiência a ser apreendida, compreendida e absorvida como natural (Marques, 1997). De acordo com Marques (1997), no texto jornalístico

os relatos narrativos dos fatos se transformam em acontecimentos, vocacionalmente produzidos por organizações com objetivos especiais. São melodramas de assuntos atuais (…) (que) descrevem acontecimentos como ações que vinculam uma linha implícita e um certo modo de ação dramática (sensacionalismo), utilizando os mesmos atributos: estrutura e conflito; crescimento e declínio da ação, problema e desenlace; um começo, um meio e um fim (Marques, 1997: 533).

Assim, o objeto deste estudo, o discurso jornalístico sobre a epidemia, conforma-se de signos e significados múltiplos que são apreendidos do real e apresentados ao público sob a forma narrativa, a qual se abre a novos potenciais interpretativos. Diante da epidemia, importa saber o que foi narrado, que problemas, que ações, que desenlaces e, dessa narrativa, que significados se pode extrair. Toma-se o discurso jornalístico, neste estudo, como um elemento que é parte da cultura, da experiência intersubjetiva e que, dado o caráter de meta-discurso, não pode ser visto como um mero relato dos fatos, mas uma interpretação compartilhada dos fatos, impregnada de intencionalidade seja essa mercadológica ou não e traduzida em signos e significados diversos.

A epidemia é um fato real, uma experiência vivida e compartilhada por diferentes sujeitos sociais, cujas expectativas apontam para diferentes horizontes com subseqüentes buscas de solução. Este estudo interpela a notícia, entendida como fato cultural, um recorte de certos modos de fala da cultura referente à epidemia, como um produto da interação, numa experiência compartilhada entre o jornal, o jornalista e suas fontes. Trata-se da interpretação de um evento real, que confere sentidos aos fatos a partir de um enquadramento que decorre das escolhas sobre "o quê" do evento, "quem" e "como". Busca-se identificar os sentidos produzidos pelas notícias, na mídia impressa, para a epidemia de benzenismo e compreender como, em meio à interdiscursividade jornalística,

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esses foram produzidos, no processo de construção de suas narrativas, em um contexto de intenso conflito social.

O caráter referencial da narrativa jornalística requer uma reflexão teórica acerca da relação intérprete e referente, definindo-se seu lugar na notícia. Nessa pista, o objetivo do estudo é conhecer os sentidos emprestados à epidemia no texto jornalístico e, para tanto, interrogar-se sobre o horizonte de expectativas do intérprete, o modo como, no texto, estrutura-se o processo de significação e de produção de sentidos.

Em suma, quatro aspectos com relação ao discurso jornalístico merecem ser aqui destacados: primeiro, que o jornalista constrói um texto sobre um evento real; segundo, que o jornalista fala no texto com outros sujeitos sociais, implicados no evento real, que são suas fontes e seus leitores; terceiro, que esses sujeitos ocupam posições diferentes na sociedade; quarto, que o jornalista produz um texto em um contexto de intensos conflitos sociais e em uma instituição (o jornal). Assim, a epidemia, como evento real, uma experiência vivida e compartilhada por diversos sujeitos sociais, pode ser "lida" de diversas maneiras e, para cada leitura, há uma expectativa de solução, restando saber o modo como a mídia organiza tal diversidade, tendo em vista o seu papel social.

3. Aportes teórico-metodológicos

O que se ressalta, dentre os vários aspectos teóricos que definem o papel dos meios de comunicação, é sua importância fundamental no transporte da informação, a sua capacidade de concentrar informação, estabelecer relações de forças simbólicas e, portanto, de concentrar poder simbólico (Thompson, 1995; Mongerson, 1997; Bourdieu, 1989). Ao desempenhar esse papel os meios de comunicação produzem sentidos ao mundo, realizando e influenciando ações e, portanto, o rumo dos eventos. Isto, contudo, não é suficiente para dar conta do objetivo deste estudo.

Em se tratando de uma pesquisa que pretende desvendar os sentidos produzidos pela mídia para uma epidemia, torna-se necessário o recurso a teorias que iluminem a compreensão dos modos de interpretação dos fenômenos sociais, posto que esta é a natureza do trabalho jornalístico.

Trata-se, nesta pesquisa, de construir uma nova interpretação sobre o discurso jornalístico acerca da epidemia de benzenismo no COPEC, nos anos 90 e 91. Uma interpretação a ser

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feita "por cima dos ombros" dos intérpretes dessa realidade, como diria Geertz (1978). O jornalista, situado em uma dada sociedade e em um dado jornal, lê a realidade e a interpreta, produzindo um texto, munido de uma técnica de produção de notícias. A pesquisadora, por sua vez, interpreta os sentidos desse texto. Ao interrogar o texto jornalístico, seu papel é de desconstruí-lo, penetrar-lhe o íntimo, compreender o modus

operandis, para dele extrair os sentidos, primeiros e segundos.

Ao tratar de fragmentos narrativos dispersos no mundo diário, daquele período de um ano e meio de cobertura jornalística, faz-se necessário para o momento investigante, recompor os textos, estes aparentemente partidos, em meio a tantas outras matérias desse tempo passado, aqui revividos para tornar pública uma outra leitura sobre o tema em pauta: uma epidemia que desnuda a realidade de saúde dos trabalhadores do COPEC. Nesse sentido, reorganiza-se um movimento sobre uma narrativa, concebendo-se o vasto universo de signos e significados dos textos jornalísticos da epidemia. Na posição de pesquisadora há uma ação clara sobre a escolha metodológica: a interpretação dos sentidos desses textos tão diversos que ainda ecoam nos horizontes dos diferentes atores sociais. Desse pressuposto, os aportes teóricos contribuem para orientar essa busca, tomando o conhecimento como interpretação de um real que se apresenta multifacetado e complexo (Santos, 1989). Implicitamente, o explicitado nesta investigação versa sobre os valores que referenciam a conduta da pesquisadora intérprete. E como toda conduta humana, há um sentido subjetivo construído na experiência mesma do sujeito, que permite, num ato de compreensão, desvelar interpretações de um evento.

Dessa dimensão valorativa, a ação reflexiva da pesquisadora é uma conduta que se oferece para descrever os modos de narrar e buscar explicações. Compreender e explicar cumprem o caráter de complementariedade entre ambos, na construção de um quadro de sentidos. Pois, não obstante a narrativa dos acontecimentos passados sobre o tema, o ato interpretante age como uma pré-compreensão para explicar e iluminar lacunas (Ricoeur, 1989: 43-48).

O esforço de superação da dicotomia compreensão/explicação, esta tão freqüente entre os que opõem ciências da compreensão e ciências da explicação, se faz através do reconhecimento da interpretação como a dialética explicação/compreensão (Ricoeur, 1976). Em "Teoria da Interpretação" Ricoeur (1976) diz que a interpretação não é, tão

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somente, uma província da compreensão, mas diz respeito à explicação e à compreensão. O autor propõe tomar a dialética da explicação e compreensão enquanto fases de um único processo que descreve

primeiro como movimento de compreensão para a explicação e em seguida, como um movimento da explicação para a compreensão (…). A polaridade entre explicação e compreensão na leitura não deve abordar-se em termos dualistas, mas como uma dialética complexa e altamente mediatizada (Ricoeur, 1976: 86).

Esse autor propõe que a primeira compreensão seja como uma captação ingênua do sentido do texto enquanto todo, seguido de um segundo modo mais sofisticado de compreensão, apoiada em procedimentos explicativos (Ricoeur, 1976).

No princípio, compreensão é conjectura (Ricoeur, 1976), tem-se que conjeturar para compreender, tem-se que referir o que é que se conjectura ao compreender. No fim, satisfaz o conceito de apropriação (resposta a uma espécie de distanciação associada à plena objetivação do texto) (Ricoeur, 1976). Explicação surgirá como mediação entre dois estágios de compreensão.

A ação reflexiva da pesquisadora se faz através da descrição densa dos modos de narrar, buscando-se explicações e construindo-se para a pesquisa um quadro de sentido, conforme propõe Santos (1989). Esse autor defende, com Giddens, que a descrição pode ter caráter explicativo se pela sua integração a um quadro de sentido permite resolver uma questão. Assim, é o quadro de sentido que vai permitir a explicação, seja nas ciências sociais, seja nas ciências da natureza, reencontrando-se o ponto de unificação da produção do conhecimento científico.

Assume-se neste estudo, que o evento existe para e com o sujeito, não havendo um sentido de externalidade total do objeto nem a sua inteira subjetivação. O objeto é o que o sujeito apreende. Sujeitos múltiplos e historicamente situados apreendem os fatos de distintas maneiras, cabendo-lhes a reflexividade para encontrar as similitudes e as diversidades. Assim, entende-se que o acontecimento é para alguém que o apreende e o discurso é sua dimensão expressiva.

Busca-se o sentido. O lado objetivo do discurso é aquele da significação da enunciação (de conteúdo proposicional) que pode ser tomado de dois modos: o "quê" do discurso (o

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sentido) e "acerca do quê" do discurso (a referência). O lado subjetivo, este do significado do locutor, refere-se a auto-referência da frase, a dimensão ilocucionária do ato lingüístico e a intenção de reconhecimento pelo ouvinte (Ricoeur, 1976). A dimensão ilocucionária do ato lingüístico refere-se, segundo Duranti (1997), ao que Austin chamou de ato ilocucionário, o ato de realizar alguma coisa ao dizer alguma coisa (intenção de fala), por meio da força convencional do ato locucionário (ato de dizer alguma coisa). Segundo o referido autor, Austin reservou o termo significado para o ato locucionário e introduziu o termo força para o ato ilocucionário e o termos efeito para o ato perlocucionário (as conseqüências ou efeitos de locução, com respeito a sua força convencional) (Duranti, 1997: 220).

Ricoeur propõe que se conjeture sobre o sentido do texto e não sobre a intenção, porque esta fica além do alcance do intérprete (Ricoeur, 1976). Para o autor,

A superação da intenção pelo sentido significa precisamente que a compreensão tem lugar num espaço não psicológico e apropriadamente semântico, que o texto revelou ao separar-se da intenção mental do seu autor (Ricoeur, 1976:87).

Contudo, a investigadora interroga também acerca do ato ilocucionário e perlocucionário do discurso jornalístico. Ricoeur diz que a dimensão ilocucionária do discurso fica fora do alcance do intérprete, posto que se encontra no espaço psicológico. Contudo, outros estudiosos da pragmática do discurso, especialmente na Antropologia Lingüística, mostram a possibilidade de extrair dos discursos, se não sua intenção, os seus efeitos pragmáticos, tais como a reprodução de relações sociais, afetos, a construção de identidades, a construção de imagens públicas (Goffman, 1970; Ochs, 1989; Goodwin, 1990; Duranti, 1997), dentre outros. Neste estudo, busca-se extrair, do esquematismo do discurso, no interior dos textos jornalísticos, o que Goffman (1970) chama de face. Ou seja, a auto-imagem pública, o modo no qual o indivíduo gostaria de ser visto pelos outros, no bojo da interação, onde este coloca a expectativa de ter sua face sustentada pelo outro, ao tempo em que desenvolve estratégias para ameaçar a imagem do outro. Como visto, esta análise da narrativa jornalística valoriza a experiência dos sujeitos sociais, em interação, com o referente e requer uma abordagem do texto jornalístico para além de sua estrutura interna e dos seus símbolos. Recorre-se por essa razão, aos estudos hermenêuticos de Paul Ricoeur, os quais ensinam que o discurso não pode ser visto

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somente na sua dimensão simbólica, mas também na sua relação com o referente (Ricoeur, 1988), pois "a enunciação é uma apreensão do real por meio de expressões

significantes e não um extrato de supostas impressões vindas das próprias coisas"

(Ricoeur, 1988: 6). Portanto, entende-se que o texto jornalístico comunica, não apenas a mensagem, o conteúdo que dele se pode extrair da aparência, pois há um referente do discurso a uma dada experiência. Um referente que

é rigorosamente contemporâneo de seu caráter de acontecimento e de seu funcionamento dialogal. O acontecimento completo é não apenas que alguém tome a palavra e dirija-se a um interlocutor, é também que ambiciona levar à linguagem e partilhar com outro uma nova experiência (…) (Ricoeur, 1994: 119).

Ricoeur propõe que a aptidão de comunicar e a capacidade de referência devem ser colocados simultaneamente, pois

o que um leitor recebe não é somente o sentido da obra mas, por meio de seu sentido, sua referência, ou seja, a experiência que ele faz chegar à linguagem e, em última análise, o mundo e sua temporalidade, que ela exibe diante de si (Ricoeur, 1994: 120).

Assim, pode-se considerar que o discurso, o texto jornalístico e a referência são parte de uma mesma experiência, embora não seja exatamente a mesma, pois a referência é a experiência chegada à linguagem (Ricoeur, 1994). O referente é um acontecimento histórico e este, para Ricoeur (1994) "partilha da evidência enganadora da maioria das

noções do senso comum". No sentido ontológico, entende-se por acontecimento histórico

aquele que se produziu efetivamente no passado. Ricoeur (1994) reconhece, no acontecimento, um tríplice pressuposto ontológico: este independe das construções e reconstruções humanas; os acontecimentos históricos são aqueles que os seres atuantes fazem acontecer ou sofrem; há uma alteridade que afeta a capacidade de comunicação humana, impelindo à busca do entendimento ou acordo sobre o ocorrido. Do ponto de vista epistemológico, o acontecimento é aquele que só acontece uma vez, quer se trate de uma alta freqüência estatística, de uma conexão causal ou de relação funcional; é, ainda, o que poderia ter ocorrido diversamente; e há um afastamento em relação a qualquer modelo construído ou a qualquer invariante (Ricouer, 1994: 139).

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apenas um vago referente, reacontecendo com mais riqueza no enunciado do jornalista, seu relato usa e abusa do universo simbólico articulando o enredo da narrativa e construindo assim a meta-notícia a partir de uma livre interpretação do narrador (Motta, 1997:315).

Isso porque o referente é captado pelo jornalista através da ação intersubjetiva de construção da notícia, onde textos interpretativos de diferentes sujeitos sobre o real se interconectam, de modo que, a matéria prima da notícia se constitui não apenas da observação e do relato do jornalista, mas também daqueles produzidos por suas fontes, de tal modo que a notícia expressa a diversidade da experiência vivenciada por diferentes atores.

De uma perspectiva fenomenológica, além da referência, está o horizonte, pois "o que é

comunicado, em última instância, é, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projeta e que constitui seu horizonte" (Ricoeur, 1994:119).

Com esse olhar, o texto jornalístico cria a mediação entre o referente e o horizonte de expectativas do narrador e do leitor, os quais podem ser reencontrados no jogo de perguntas e respostas que esse texto se propõe a responder.

Aceita-se aqui o convite de Paul Ricoeur (1994) a pensar esse horizonte de potencialidades constituído interna e externamente pelo contorno que cerca e discerne a experiência.

Interno porque é sempre possível detalhar e precisar a coisa considerada no interior de um contorno estável"; externo porque a coisa visada "mantém relações potenciais com uma coisa totalmente diversa, no horizonte de um mundo total, o qual nunca figura como objeto de discurso (Ricoeur, 1994:119).

Isso eqüivale dizer que se deve valorizar o contexto em que a experiência se desdobra. Um contexto que é local e, ao mesmo tempo, é dado por circunstâncias gerais da sociedade e que definem a situação. Para o autor, por essas razões, situação e horizonte permanecem correlativos. Ele também defende que a linguagem não constitui um mundo para ele próprio e nem sequer é um mundo, pois estar no mundo é estar afetado por situações frente as quais tentamos nos orientar por meio da compreensão e temos algo a dizer, uma experiência a partilhar através da linguagem (Ricoeur, 1994).

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Da relação jornalista e referente, que resulta na produção de narrativas, o que a pesquisadora pretende é desvelar os sentidos que se escondem nas malhas do discurso jornalístico, entendendo que o texto jornalístico não é um mero relato dos acontecimentos e que o modo de fala do jornalista é situado, posto que diz respeito ao seu background enquanto sujeito individual e social, profissionalmente adquirido num contexto histórico e sócio cultural e orientado pela instituição a que pertence.

Conjeturar e validar os sentidos, são as tarefas que se impõem à pesquisadora que se debruça sobre as três instâncias do discurso que escondem e que revelam os sentidos, quer sejam: na inovação semântica do enredo, na inovação semântica da linguagem, especialmente a metáfora, e no esquematismo. No enredo da narrativa, que significa, etmologicamente, arranjo de incidentes, encontra-se a instância semântica, as grandes cadeias sintagmáticas (Eco, 1976:406). A narrativa arranja os incidentes de modo a produzir sentidos e, porque possui sentidos, a sua tecitura se dá sob a forma de uma intriga, já observada desde Aristóteles em A Poética5. Para Ricoeur, a inovação semântica, de onde o sentido emerge, consiste da invenção da intriga, que é uma obra de síntese: "virtude da intriga, objetivos, causas, acasos, que são reunidos sob a unidade

temporal de uma ação total e completa" (Ricoeur, 1994: 9)6.

A inovação semântica reside, segundo o referido autor, tanto na narrativa quanto na metáfora, podendo ser também referida à imaginação produtora e, mais precisamente, ao esquematismo que é sua matriz de significação (Ricoeur, 1994: 10). Esquematizar a operação sintética consiste, diz Ricoeur (1994: 10), em representar a assimilação predicativa donde resulta a inovação semântica. Também, o esquematismo pode ser visto na relação dialógica instaurada entre a obra e seu público, em cada época, na qual, segundo Ricoeur (1997), se baseia a significação de uma obra literária.

O estudo da narrativa jornalística, por seu caráter de metadiscurso, encontra em Bakhtin (1981) aportes teóricos que ajudam a compreender a complexidade de seu modo de esquematismo, a partir dos conceitos de polifonia e heteroglossia. Bakhtin (1981)

5 A Poética de Aristóteles (1993) constitui-se no principal fundamento da reflexão filosófica acerca da narrativa,

sendo referência presente em todas as obras que tratam desse tema (Ricoeur, 1997; White, 1987; Toolan, 1988; Ochs, 1997).

6Entende-se que a narrativa jornalística corresponde ao que Ricoeur chamou de "intriga fingida" ou seja, "uma nova congruência no agenciamento dos incidentes" (Ricoeur, 1994: 9), tal como define para a narrativa da história.

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desenvolve a noção de vozes ao lado do conceito de heteroglossia, quando discute as formas e conteúdos do discurso tomados como fenômenos sociais. Observa que a linguagem é estratificada não apenas em dialetos lingüísticos, mas também, e principalmente, em linguagens sócio-ideológicas de distintos grupos sociais, profissionais, de gêneros, de partidos, de trabalhos particulares, gerações, grupos etários e até mesmo pessoas particulares. A linguagem é entendida não como um sistema abstrato de formas normativas, mas ao contrário, como concepções heteroglotas do mundo. Toda palavra carrega o "gosto" de um determinado grupo social e não tem existência fora da interação social. Não sendo um meio neutro que passa livremente e facilmente como propriedade privada das intenções do narrador, a linguagem é povoada de intenções, ganhando sentidos distintos em contextos particulares.

Desse modo, o objeto de um texto, de acordo com Bakhtin, ganha lugar a partir de um ponto focal por vozes heteroglotas, entre as quais a voz do autor do texto deve também soar e sem as quais esta não pode ser percebida.

As vozes sociais e históricas que povoam a linguagem, todas as suas palavras e todas as suas formas que provêm a linguagem com sua conceitualização concreta, estão organizadas na novela em um sistema que expressa a posição de um autor, diferenciada sócio-ideologicamente em meio à heteroglossia de sua época (Bakhtin, 1981: 300).

A noção de heteroglossia da linguagem ajuda a apreender o entendimento de uma determinada declaração pois, de acordo com Bakhtin, o significado real de uma declaração é entendido, não contra um background da linguagem como significado lingüístico, mas contra um background de outras declarações concretas sobre o mesmo tema,

um background feito de opiniões contraditórias, pontos de vista e julgamentos de valor (…) precisamente aquele background que (…) complica o caminho de qualquer palavra na direção de um objeto (Bakhtin, 1981: 281)7.

Assim, toda declaração é orientada na direção desse background perceptivo de entendimento, prenhe de respostas e objeções, que não é lingüístico, mas, ao contrário, um composto de objetos específicos de expressões emocionais. Nesse ambiente

7Tradução livre de: "(…) a background made up of contradictory opinions, point of view and value judgments - that is, precisely that background that, as we see, complicates the path of any word toward its object". (Bakhtin, 1981: 281).

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contraditório, "ocorre um novo encontro entre o discurso e uma outra palavra, que se faz

sentir como uma nova e única influência no seu estilo" 8 (Bakhtin, 1981: 281).

Tais pressupostos remetem à importância de considerar, neste estudo, a relação interdiscursiva no trabalho simbólico que tem lugar no processo de comunicação (Orlandi, 1988). Assim, trata-se de debruçar-se sobre o entrelaçamento do discurso público produzido pelos quatro maiores jornais da cidade de Salvador para, nas suas malhas, conjeturar acerca dos sentidos da epidemia, considerando a relação dialógica que estes assumem, ao dirigir-se ao público. São textos em contextos particulares, onde os discursos ganham sentido. Remetem, também, para pensar a relação interdiscursiva no interior do texto, o que pode contar com o suporte teórico metodológico proposto, entre outros, por Goffman, quando trata do enquadramento (frame) na atividade comunicativa ou dialógica.

O conceito de enquadramento (frame), aplicado à teoria do jornal (Tuchman, 1999), serve para descrever o processo da visibilidade, na medida em que permite delimitar um campo e um fora de quadro, o qual determina o que deve ser visto. Ao focalizar a visão no interior dos limites deste mesmo quadro, unificam-se em uma cena os dados isolados. (Mouillaud,1997: 43). Desse modo, através do enquadramento, o jornal produz

esquemas que substituem o caos com que o acontecimento se apresenta por uma topografia nítida e distinta (…) trabalho de coerência no espaço e também no tempo: assiste-se à invenção da intriga ao procurar estabelecer na coerência, de uma unidade em uma diversidade, para nós caótica. Trata-se de constituir um todo cujas partes estejam coordenadas (Mouillaud, 1997: 51).

A narrativa se constrói, então, "por pistas que se desenham, caminhos que se abrem,

onde uma rede de sentidos se institui, uma lógica e uma cronologia se instalam" (Idem).

O jornal dá a forma ao acontecimento, oferece um sentido que informa (Mouillaud, 1997: 50). Mas, diz o autor, o jornal não é apenas um dos operadores entre um conjunto de operadores sócio-simbólicos. É aparentemente o último. Aquele que recebe de várias agências um real já interpretado, estando situado no fim de uma longa cadeia de transformações. O que o jornal recebe é o acontecimento, diferente do fato, a ser tornado informação. Ainda, o sentido que o jornal leva ao leitor é, por este, remanejado, a partir

8Tradução livre de: "There, occcurs a new encounter between the utterance and an alien word, which makes itself felt as a new and unique influence on its style"(Bakhtin, 1981: 281).

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de seu campo mental e recolocado em circulação no ambiente cultural. Entende-se, portanto, que a informação não é o mero transporte de um fato, mas um ciclo ininterrupto de transformações, que nasce do enquadramento e da interpretação do seu primeiro leitor

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Mouillaud (1997) distingue fato de acontecimento e informação. Acontecimento é, para o autor, a sombra projetada do fato, este, um conceito construído pelos sistemas de informação.

A informação, mantida discretamente atrás do acontecimento, permanece nele presente como uma filigrana. Quando o referente mundano é posto entre parênteses, a informação aparece ao seu status próprio, mas o referente do acontecimento permanece presente na mesma em estado latente (…). Acontecimento e informação não são instâncias que, a um dado momento, seriam autônomas. O acontecimento sempre possui forma de informação (Mouillaud, 1997: 57).

O esquematismo ao interior do texto, obedece ao arranjo dos personagens em seus lugares de fala, sendo elucidado, neste estudo, pela noção de footing (Goffman, 1981), que trata do modo como operam os autores das vozes participantes no texto jornalístico. O termo footing pode ser traduzido como condição ou arranjo sob o qual algo existe ou opera. Goffman (1981) desenvolve essa noção aplicando-a também sobre um texto jornalístico. As condições ou arranjos com que os participantes se colocam na conversação, ou no texto, são definidos pelo alinhamento, ou postura, ou projeção do self que os participantes assumem. Esta pode ser mantida através de um trecho que uma sentença gramatical não comporta, de modo que o autor considera que sua análise não ajuda muito, embora fique clara a existência de uma unidade cognitiva de algum modo envolvida. De acordo com o autor, deve-se considerar para a interpretação quaisquer que sejam as mudanças na postura ou nos sons dos discursos (tom, volume, ritmo, ênfase, qualidade tonal) (Goffman, 1981:128).

A partir daí, busca-se compreender a significação do discurso, a partir do entendimento dos modos de entrelaçamento da palavra, do verbo de sujeitos em movimento no interior do texto, cuja ação deixa-se ver no ato mesmo da fala (Goffman, 1981).

Apreende-se, com Paul Ricoeur, ainda, que o sentido se produz também na inovação semântica das metáforas, estas entendidas como "uma criação instantânea, uma inovação

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